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June 1, 2017 | Autor: Rogério Mattos | Categoria: Literatura, Modernismo, Mário de Andrade, Carnaval, Festa, Espaço Público
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Um doutrinador não nega o carnaval: as desventuras iluministas no enredo do samba por Rogério Mattos: [email protected]

No programa estético esboçado pela Semana de 22 é flagrante o contraste entre sua visão de modernidade e a realidade brasileira e, por outro lado, as próprias conquistas artísticas, políticas, dos integrantes do movimento em contraposição a uma certa idealização de suas aspirações como doutrinários de uma nova ordem. Não foi pouco. Segundo Eduardo Jardim, o Manifesto da poesia pau-brasil “resume poeticamente toda uma doutrina[1]”, que, como expõe, não foi por causa da pobreza de suas concepções que encontrou os empecilhos para sua afirmação. “Elementos contrastantes compõem o retrato do Brasil do ‘Manifesto pau-brasil’: ‘Temos uma base dupla e presente – a floresta e a escola’. Ainda: ‘Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia preguiça solar’. A perspectiva ‘Pau-brasil’ apostava na possibilidade de combinar todos esses diversos componentes da vida brasileira[2]”. No Clã do jabuti, livro de poemas que rivaliza com o manifesto em suas concepções estéticas e que acabou por ficar na sombra frente ao Manifesto, essa obra mais amadurecida conceitualmente de Mario de Andrade, podemos ver no Noturno de Belo Horizonte: “que luta pavorosa entre florestas e casas... / todas as idades humanas / macaqueadas por arquiteturas históricas”, o mato invade a cidade, os homens fogem desta em “comboios de trânsfugas pra Rio de Janeiro”, no que surge o desenho: “clareiras do Brasil, praças agrestes!... / Paz”. E já no seu início, o impulso vital que unira e animara poetas, pintores e músicos de ânimos diversificados, era confrontado com disputas das mais diversas e, talvez quando o movimento parecia se firmar como algo para além de um ou uns “manifestos”, surge a Revolução de 30, o Estado Novo, e em mais uma fileira se reivindica se não as bênçãos da modernidade, pelo menos a glória da alcunha de modernistas. O Clã do jabuti reivindicava uma reflexão madura sobre a nova estética, sem descuidar das prerrogativas intelectuais exigidas por tal empreitada; o Manifesto da poesia paubrasil, ante-sala do Manifesto antropófago, se apresentava como anti-doutrinário, antiintelectualista. Pouco importa, todos desejavam uma determinada pureza em suas formas de expressão, em suas concepções de arte nacional e, não obstante, chocavam-se entre si como a revolução que devorou seus próprios filhos, ou seja, não muito diferente dos arbítrios da época

do Estado Novo. E talvez estivessem certos dois intelectuais importantes, porém não tão centrais nas análises do Modernismo brasileiro. Paulo Prado e Manoel Bandeira talvez tenham visto melhor, nessa época, a tristeza e a melancolia do Brasil... Outro intelectual que surge no período, filho da revolução e um dos sobreviventes, Sérgio Buarque de Holanda, em algumas poucas palavras transcreveu a sensação daqueles que de mais longe viam os ânimos exaltados e as aspirações utópicas da legião de doutrinários, pois “nós não fomos postos neste mundo para descobrir as verdades e sim para achar as conveniências[3]”. É sua, mais do que de Thomas Hardy, a percepção ética a respeito dos dilemas posto por idealizações das mais diversas que beiraram o ufanismo. Ele mesmo no início do movimento se pensava como uma peça da nova construção (palavra comumente empregada pelos modernistas, pelos construtores da nova ordem), “ele próprio procura se iludir e às vezes finge acreditar no prestígio eterno das categorias humanas e, até certo ponto, imagina-se um personagem necessário, um elemento de construção. Mas no fundo, é bem um espírito de negação, um adversário constante das ordenações que os homens se impuseram[4]”. Ao contrário de Sérgio Buarque, de Thomas Hardy, a aspiração por pureza dos modernistas, essa moral expressa numa prática de ser artista, de ser moderno, envolve menos uma questão de reflexões de ordem geral, metafísicas, ou de prescrição moral do que uma questão de “prática”, de vida cotidiana, de “estética da existência, em suma. Como podem ter se constituído os modernistas em moralistas, em doutrinários do desejo, em hipotéticos construtores de uma nova era? Como isso pode ser relacionado à pintura extremamente caótica, que nos sugere enganos, erros dos mais variados, como na reconstrução da sociedade e da cultura paulista da década de 1920, como expressa no livro de Nicolau Sevcenko, Orfeu extático na metrólpole? A espécie de provação de sua própria verdade pela qual passam “nos frementes anos 20”, pode ser colocada de modo mais claro caso sobrepormos duas descrições de época, uma a vivida por Sérgio Buarque de Holanda como jovem crítico do movimento artístico ascendente, e outra a reconstituição quase como uma nova crônica de época, o trabalho por vezes de aparência mais estética do que científica feito por Nicolau Sevcenko. Dos laboratórios para as indústrias, para o mercado, para as casas, o ciclo do prodígio se acelerava num feitio como que de moto-contínuo inesgotável. Do ponto de vista local, São Paulo, grande núcleo consumidor a partir de uma renda de cunho basicamente agrícola, a perspectiva era mais estática, só se tinha acesso à última etapa do ciclo produtivo tecnológico. A

magia parecia maior. Daí o prestígio peculiar de certas simbolizações de realidades descontextualizadas e que, por isso mesmo, adquiriam uma áurea de deslumbramento, sendo portanto apropriadas como índices de discriminação social. Vimos já como o automóvel era aqui tudo, menos utilitário. Algo semelhante ocorre com os fiambres enlatados do Frigorífico Armour, o “o mais moderno da América do Sul”, quando ele aqui se instalou em 1921, iniciando um espantoso sistema de abate em série e processamento mecânico das carnes em escala colossal. E o que pensar da “Casa Edison”, que evocava o “gênio” por trás das novas tecnologias e se apresentava simplesmente como “moderno magazin”? Ou o que se passaria no misterioso “Gabinete de raios X do dr. Raphael de Barros”, sobre quem só éramos informados que “acaba de chegar da Europa”? Ao que parecia, havia virtudes no moderno, mas elas não eram para todos. Nem tanto assim. O “sapólio Radium”, por exemplo: a pequena barra do saponáceo irradiava uma auréola de brilho espontâneo ao seu redor, idêntica àquela do mineral radiativo descoberto pelos cientistas Marie e Pierre Curie apresentados no quadrinho ao lado, idêntica também à substância da equipagem terapêutica usada por médicos no quadrinho seguinte e idêntica, por fim, ao brilho radiante das loucas e panelas no último quadrinho[5].

Este o quadro, esta a crítica: Parece claro que o próprio impulso que levou os primeiros homens a gravar desenhos nas paredes das cavernas participa muito, não de um desejo de libertação como já foi dito [...], não de um esforço de resistência contra o aniquilamento, mas ao contrário e acentuadamente, ao desejo invencível de negar a vida em todas as suas manifestações. Surge assim em sua expressão artística mais rudimentar esse afã de reduzir o informe à forma, o livre ao necessário, o acidental à regra. O desenho regular e monótono dos primitivos, essa exclusão de todos os elementos especiais e acidentais que eles revelam, mostram claramente o significado e o sentido da tendência dos homens para uma regularidade abstrata e unânime[6].

Em que medida este desejo de verdade, o processo pelo qual os modernistas acreditavam que a verdade deveria atravessar para ser capaz de plena expressão, nada mais era do que “uma regularidade abstrata e unânime”, o “desenho regular e monótono dos primitivos”, que, contudo, procuravam imitar? Como desenvolveram eles a história de sua verdade, que seja, do que chamaram de “arte”, em meio a concepções tão distintas de sociedade e cultura de sua época? Como o desejo - as miragens do prazer infinito - fazia a doutrina se liquefazer, se perder em meio a um interminável carnaval? Mário de Andrade talvez tenha sido aquele que com maior clareza - sinceridade mesmo - tenha exposto o drama: Onde andou minha missão de poeta, Carnaval? Puxou-me a ventania,

Segundo círculo do Inferno, Rajadas de confetes Hálitos diabólicos perfumes Fazendo relar pelo corpo da gente Semíramis Marília Helena Cleópatra e Francesca. Milhares de Julietas! Domitilas fantasiadas de cow-girls, Isoldas de pijamas bem franceses, Alsacianas portuguesas holandesas… Geografia!

Para quê “missão de poeta”? Mário de Andrade cumpre sua promessa, “todos cumprem sua promessa de gozar”: “Êh liberdade! Pagodeira grossa! É bom gozar! / Levou a breca o destino do poeta, / Bareei meus lábios com o carmin doce dos dela…”. Num amor tão casto, do poeta que menos do que homossexual, talvez tenha morrido virgem… Sua cópula, no esfregar dos corpos numa multidão, num beijo roubado, num amor romanceado, num beijo fugaz, segundos talvez, em pleno Carnaval carioca: Teu amor provinha de desejos irritados, Irritados como os morros do nascente nas primeiras horas da manhã Teu beijo era como o grito da araponga. Me alumeava atordoava com o golpe estridente viril. Teu braço era como a noite dormida na rede Que traz o dia membros moles mornos de torpor. Te possuindo, eu me alimentei com o mel dos guarapus, Mel ácido, mel que não sacia, Mel que dá sede quando as fontes estão muitas léguas além, Quando a soalheira é mais desoladora E o corpo mais exausto.

Um desejo sem fim, nunca corretamente saciado… Doutrinas que se perdiam em meio ao carnaval, do poeta que fez uma primeira viagem, “científica”, ao norte e nordeste do país, para depois, numa segunda viagem, se perder nos maracatus do Recife, solto, sem ter que integrar a nenhuma “expedição”. Perdeu-se nas delícias, nos desvarios, nas fugacidades: o carnaval carioca, frente a essa rápida passagem no Recife, parece um sonho dourado, cheio de Helenas e Domitilas, e não os festejos no estilo Pablo Picasso, aqueles do lobo solitário. (queria resgatar a passagem do livro que contém a descrição dessa viagem, mas juro que não acho de forma alguma) Logo, uma quebra. Como comparar esses desejos com toda a doutrina construída apesar do carnaval? Não se formaria uma construção abstrata e monótona como lá atrás Sérgio Buarque alertou? Não seria aqui o caso, numa reverberação da História da Loucura, de perguntar à

desrazão os limites da razão, aos loucos sobre a sabedoria daos médicos? Por que qual racionamento se sustenta frente ao desbarato das ideologias construídas? Derrota com a ditadura, derrota carioca sob as ordens de Capanema, reconsideração sobre as diretrizes de 1920 minutos antes da morte: alcoolismo no apartamento da Glória, virgindade corporal ou ausência de sentimos (sentidos?) concretos (Tarsila?), uma dor que não se cala, um poeta que se vai e deixa enigmas em que se parece que falar dele é ou a louvação de um momento utópico ou a discussão de sua sexualidade, suas desventuras românticas e sua itinerante genialidade. Onde o descompasso? Da crítica ou do poeta? Semana (santa?) que marcou a história nacional ou um simples desenredo de carnaval? Logo ele, o Carnaval… Porém nunca tive intenção de escrever sobre ti… Morreu o poeta e um gramofone escravo Arranhou discos de sensações...

[1] JARDIM, Eduardo. Eu sou trezentos: vida e obra. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2015, p. 72. [2] Idem, p. 73. [3] HOLANDA, Sérgio Buarque de. O testamento de Thomas Hardy. In: MONTEIRO, Pedro Meira

(Org.). Mario de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: correspondência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 406. [4] Idem, p. 407. [5] SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 229-30. [6] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p. 68.

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