Um elogio à dúvida e ao paradoxo: sobre espiritualidade e sentido da vida

June 15, 2017 | Autor: Jonathan Menezes | Categoria: Theology, Spirituality, Existentialism
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[Práxis 24 (2014) 81-97] UM ELOGIO À DÚVIDA E AO PARADOXO: SOBRE ESPIRITUALIDADE E SENTIDO DA VIDA Jonathan Menezes1 RESUMO Meu ponto de partida neste breve ensaio, que procura explorar os benefícios (para a espiritualidade cristã) de uma séria e sincera abordagem à questão sobre o sentido da vida, é o de que uma reflexão sobre esta questão atrelada à questão da espiritualidade, para mim, não é opcional, mas essencial: primeiro, para que entendamos melhor quem somos; segundo, para que reconheçamos e aceitemos jubilosamente a realidade, tanto de quem somos, como da maneira que nosso mundo funciona; terceiro, para que encontremos um jeito (cristão) equilibrado, a despeito disso tudo, de enfrentar, aproveitar e viver a vida da melhor maneira possível. Minha proposta é que demos vazão a dúvidas e perguntas honestas que nos inquietam ao refletirmos sobre o que é a vida, e isto por meio de um diálogo com Eclesiastes, um dos livros mais instigantes e atuais da Bíblia, e também com alguns autores e poetas de nosso tempo. Para tanto, abordo três questões especificamente: a questão de que lugar se tem dado à dúvida em nossa vida de fé; a questão do exame da vida, sobre por que perguntar a respeito de seu sentido; por fim, a questão sobre a urgência de se aproveitar a vida em meio a seus dissabores e a dissolução de nossas ilusões a respeito dela.

PALAVRAS-CHAVE Sentido da Vida; Espiritualidade; Paradoxo; Dúvida; Eclesiastes.

ABSTRACT My point of departure in this brief essay, which aims to explore the benefits (for Christian spirituality) of a serious and sincere approach to the question of the meaning of life, is that a reflection upon this subject close to the one of the spirituality for me is not an option, but is essential: firstly, for a better understanding of who we are; secondly, for a joyfully acceptance of the reality of both who we are and the mechanism of our world; and finally, to find a balanced (Christian) way, despite of everything, to fight back, enjoy and also live life as good as possible. My proposition here is to encourage ourselves to give place to the honest doubt and questions that use to hit us in a reflection on what life is, by means of a dialogue with Ecclesiastes, one of the finest and most contemporary books of the Bible, and also with some authors and poets of our time. To do so, I will address three specific issues: the question of what place has been given to the question in our faith’s life; the question life’s exam about why ask about its meaning; finally, the question on the urgency to enjoy life in the midst of its troubles and the dissolution of our illusions about it.

KEYWORDS Meaning of Life; Spirituality; Paradox; Doubt; Ecclesiastes.

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Professor da Faculdade Teológica Sul Americana. Doutorando em História pela Universidade Estadual Paulista ‘Júlio de Mesquita Filho’, campus de Assis-SP. Email: [email protected]

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Introdução A vida não examinada não vale a pena ser vivida – Sócrates. Espiritualidade não é apenas interioridade – como bem discutiu Marcos Orison Nunes de Almeida (2008, pp. 73-95) em seu artigo Mais que interioridade: uma proposta de espiritualidade integral, publicado no número 8 desta revista –, mas penso que ela tem na interioridade uma de suas importantes dimensões. E não me refiro aqui à “vida interior” apenas como modo de reclusão do mundo, mas como meio de melhor compreender-se no e de se relacionar com o mundo. Assim sendo, como na frase de Sócrates, quanto mais e melhor nos examinamos – e por Deus nos deixamos ser perscrutados – em nosso modo, estilo e razão de viver, mais substância e profundidade injetamos na maneira como encaramos a vida e nas decisões tomadas sobre como viver, para onde ir, quanto ao que é precioso, trivial ou vil, e assim por diante. Nesse sentido, uma reflexão sobre o sentido da vida atrelada à questão da espiritualidade, para mim, não é opcional, mas essencial. O que quero propor neste breve ensaio é que demos vazão a dúvidas e perguntas honestas que nos inquietam ao refletirmos sobre o que é a vida, e isto por meio de um diálogo com o autor de Eclesiastes, um dos livros mais instigantes e atuais da Bíblia, e também com alguns autores e poetas de nosso tempo. 1. Dúvida: perguntas honestas, respostas honestas Há algum tempo, aprendi com Francis Schaeffer (2001, p. 61) em seu clássico Verdadeira espiritualidade, que quando perguntas honestas são feitas elas requerem de nós (cristãos em geral e pregadores do Evangelho, especialmente) respostas intelectualmente honestas – ou honestas desde as entranhas, como prefiro dizer. Mas em que isso implica? Implica em não esconder, mas ajudar a escancarar o que a vida real já torna evidente. Aliás, quanto mais experiência se acumula no caminhar, mais se deveria ser assaltado de honestidade e realismo – bem, neste caso especialmente, reconheço que é uma questão de perspectiva. Há quem diga que escolher ficar alheio à dureza da realidade sempre faz muito mais bem à “saúde” que enfrentá-la. Talvez sim. Mas esse tipo de escolha normalmente conduz a pessoa ao problema anteriormente levantado da “vida não examinada”. Dessa forma, como disse C. S. Lewis em sua autobiografia: “O que me agrada na experiência é a sinceridade que nela percebo. Você pode tomar quantos desvios quiser; mas basta manter os olhos bem abertos, que logo verá a placa de alerta. Talvez você se tenha enganado, mas a experiência não tenta enganar ninguém. O universo se mostra fiel sempre que você o testa com justiça” (Lewis, 1999, p. 182). O problema é que nem sempre estamos de olhos abertos, seja por insensibilidade, opção ou por pura preguiça de abrir os olhos. A pior enganação é aquela em que a gente finge que tudo está bem e sob controle enquanto um universo de coisas, boas e ruins, acontece em nosso entorno. Desejar encará-las não nos torna necessariamente pessimistas ou cínicos, mas nos torna mais humanos, como tenho insistido em boa parte de meus ensaios2. Quando pensamos particularmente no sentido da vida, algumas das inúmeras perguntas que eventualmente surgem, sem que necessariamente reverberem ou tenham lugar, podem ser:

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Alguns deles, especialmente neste tema, foram reunidos no livro Humanos, graças a Deus! (2013).

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(a) Perguntas sobre origem e fim: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Por que tememos tanto a morte? (b) Perguntas sobre o sentido da vida: Que razão tenho para viver? Que proveito tem tanto trabalho? Qual é o sentido de realizar algo se, ao morrer, meu ser e minhas ações serão esquecidos? (c) Perguntas sobre o sofrimento: Pelo que ansiamos profundamente? Por que nunca nos sentimos realmente satisfeitos? Por que coisas ruins acontecem a pessoas boas? (KUSHNER, 2008). Por que justos e injustos são igualados em todas coisas? (d) Perguntas sobre as grandes buscas humanas: O que é e como se obter justiça? O que é e como se obter a paz? O que é e como se obter felicidade? (e) Perguntas sobre a razão da bondade: Faz diferença a maneira pela qual vivo? Faz diferença que eu seja bom, fiel e honesto? Fazemos o bem pelo bem em si ou para sentir menos culpa? (f) Perguntas sobre o sentido da fé: Deus existe? Por que crer nele? Se ele existe, por que não se mostra? O que Deus pensa/sente/espera em relação a mim? Qual é a sua vontade para minha vida, se há alguma? Deus necessita mesmo de nossa existência? (g) Perguntas sobre o sentido de se relacionar: A que se deve nosso anseio por comunidade? Por que nos destruímos mutuamente? Como alguém, sendo egoísta e mau, pode fazer o bem? (h) Perguntas sobre o sentido de progresso: Como podemos viver melhor? Por que às vezes parece tão simples e outras tão complexo viver? Como se continua a viver depois que se constata que toda a sua existência foi um fracasso? O que vemos acima é apenas um exemplo das milhares de perguntas que podem brotar de uma sincera reflexão sobre a vida – lugar essencial de uma espiritualidade transformadora. Coloco-as aqui precisamente para estimulá-los/las a reservar um lugar especial para as perguntas em suas vidas considerando que, para muitas delas, não há resposta. Às vezes tenho a impressão de que a religião, que, a meu ver, deveria ser a amiga número 1 da dúvida, tornou-se sua pior e mais cruel inimiga. Porque a religião lida diretamente com a fé das pessoas, e, embora nem sempre pertencer a uma religião seja garantia de uma fé viva (muitas vezes é exatamente o oposto), em tese, ela se nutre e cresce a partir da fé pessoal e coletiva. Especialmente em contextos fundamentalistas – em que se exige uma responsividade segura do fiel em relação à espécie de doutrina na qual professa crer, e em que, como contrapartida, oferece-se a revelação da verdade bíblica e uma promessa ao fiel de que, nesta vida ou pelo menos na eternidade, todo o seu sofrimento será eliminado – a fé aparece como arquiinimiga da dúvida, e duvidar passa a ser sinônimo de blasfemar, apostatar da fé. Peter Rollins em seu Insurrection (2011), tem como foco de análise a questão da dúvida. No capítulo 2, ele fala sobre a experiência dos líderes na igreja com a dúvida. 3

Numa situação ideal, para que como igreja participemos da crucificação, ele defende que precisamos de líderes que experienciem pública e abertamente “a dúvida, a incerteza e o profundo mistério, líderes que as vejam como parte da fé cristã e importante para o contínuo desenvolvimento de uma espiritualidade sadia e propriamente cristã” (Rollins, 2011, p. 65, tradução minha). Concordo com Rollins quando ele também observa que não é que não existam líderes que experimentem estas coisas; o problema reside em encontrar líderes que admitam experimentá-las – ainda que, secretamente, muitas vezes, enfrentem momentos de incredulidade, ou pior: enquanto exteriormente lutam para manter uma imagem austera de fé, interiormente já deixaram de acreditar nas coisas que pregam. Nas palavras do autor: Todos sabem que a maioria dos pastores tem dúvida e, de tempos em tempos, experimenta um sentimento de ausência divina, e sabe-se que normalmente é bem mais que isso. Também é evidente que eles frequentemente sentem-se impedidos de expressar isso por meios públicos quaisquer – exceto em casos em que adotam uma linha segura de afirmação de que Deus é grande o bastante para conter a dúvida (...). Nas raras ocasiões em que o pastor se levanta e declara abraçar o desconhecido, uma crise entre os congregantes pode ocorrer. Não porque a congregação agora duvida, mas porque a fé do pastor gerou uma barreira psicológica protetora que conteve a dúvida deles. (...) Apenas quando o pastor bane a dúvida ou é substituído por alguém que possa ocupar o papel crente-em-nome-de-nós, a igreja pode outra vez agir como um cobertor de segurança metafísica, prevenindo-nos de experimentar a ansiedade de nossa existência (Rollins, 2011, p. 66, tradução minha).

Esse quadro é muito triste e adoecedor para ambas as partes, pastor e congregação. No entanto, quando lemos as Escrituras de modo sério e abrangente, e não simplesmente procurando justificativas furtivas em versículos aleatórios para problemas que não são simples de se resolver, percebe-se que o oposto pode ser dito e feito em relação à dúvida. A maior parte dos chamados “heróis da fé” teve dúvidas, e, em algum momento, cometeu deslizes tomando “os pés pelas mãos”. A lista de Hebreus 11 é emblemática. Abraão, que há muito é referendado como “pai da fé”, por exemplo, em Hebreus aparece como aquele que, pela fé, deixou sua terra e sua parentela para mudarse ao lugar destinado por Deus e creu, mesmo diante de sua escassa vitalidade e da esterilidade de Sara, na promessa de que sua descendência seria tão numerosa quanto às estrelas do céu e incontável como a areia do mar (cf. Hb 11.11-12). No entanto, conhecemos a estória de Abraão e Sara; facilmente nos recordamos que Abraão, mesmo tendo crido na promessa, não titubeou quando Sara, sentindo-se culpada por ser estéril e não ter-lhe dado filhos, ofereceu sua escrava, Hagar, para que seu marido a possuísse e a engravidasse e desta união nasceu Ismael, filho da descrença de Abraão, por assim dizer (Gn 16). Isso sem falar que Sara riu da ironia da promessa original externando sua dúvida: “Poderei realmente dar à luz, agora que sou idosa”? (Gn 18.13), e depois ainda mentiu sobre ter rido. Com estórias como a de Abraão e Sara, aprendo que promessas não são garantias divinas para a manutenção da fé, e sim fruto do relacionamento entre o ser humano e Deus gerado e gerido em fé. Porém, se tratamos as promessas divinas como um elemento gregário, isto é, como sendo a fonte originária do ato de caminhar na e pela fé, logo elas se tornarão não um telos pelo qual a fé se norteia, mas objetos de veneração e obsessão, ou mesmo moedas de troca que justificam a fé. Abraão não creu 4

na promessa pela promessa em si, mas pela fidelidade do Senhor, que é quem promete. Logo, a vida pela fé não encontra sua razão de ser nas promessas, mas na pessoa do próprio Deus. Mas não percamos nosso foco aqui, que é a questão da dúvida. Vimos que Abraão e Sara duvidaram, mesmo estando na fé. Se for verdade, como se diz em Hebreus, que “sem fé é impossível agradar a Deus, pois quem dele se aproxima precisa crer que ele existe e que recompensa aqueles que o buscam” (11.6), também é verdade, conforme o mesmo texto, que esta fé “é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos” (11.1); ou, na tradução A Mensagem (na versão em inglês), a fé é o firme fundamento sob o qual estão todas as coisas que fazem a vida valer à pena, e “nosso controle sobre o que não podemos ver”. Que controle se pode ter sobre o que não se pode ver, ou sobre o que não é materializável? É claro que aqui a linguagem é paradoxal. O que o autor de Hebreus está dizendo pra gente, a meu ver, é que a fé é a única e real certeza que subsiste em meio às incertezas da vida. Posso estar convicto de minha fé mesmo quando tudo, até mesmo a própria fé, parece estremecer. A fé faz-se chão onde já não se pode mais encontrar chão; é o que dá sentido a um caminhar numa estrada perdida e sem rumos definidos. Mas este sustento, esteio, chão e certeza residem não numa suposta força que emana de nós mesmos, ela misteriosamente é suprida pelo Espírito de Deus. Dessa forma é que retorno outra vez ao paradoxo (ao movimento contrário à doxa ou “opinião comum”), e por isso defendo que a fé deve aprender a conviver com a dúvida: porque ao mesmo tempo em que as dúvidas e questionamentos, e a angústia daí proveniente, podem-nos fazer passar pelo vale do ceticismo e das incertezas, são elas que nos movem outra vez em direção a Deus, nos levam a interpelá-lo em oração, a escancarar diante dele nosso eu ferido e fragilizado; elas nos conduzem ao lugar em que a expressão de súplica, lamento e confiança podem bailar juntas numa única e expressiva dança que é a dança da vida, e a sair dali com uma fé mais madura. Por isso é que, demasiadamente humano, identifico-me com o salmista, que orou dizendo: “Até quando, Senhor? Para sempre te esquecerás de mim? Até quando esconderás de mim o teu rosto? Até quando terei inquietações e tristeza no coração dia após dia? Até quando o meu inimigo triunfará sobre mim?”, e, na mesma oração, declarou: “Eu, porém, confio em teu amor; o meu coração exulta em tua salvação” (Sl 13.1-2,5). Também me uno ao pai do menino possuído por um espírito que o impedia de falar, que, diante da exclamação de Jesus de que “tudo é possível ao que crê”, respondeu: “Creio, ajuda-me a vencer a minha incredulidade” (Mc 9.23,24). Fé e incredulidade são como o joio e o trigo: no mesmo lugar em que uma brota, há a possibilidade da outra crescer; e se tentarmos extirpar uma em detrimento da outra, a incredulidade em detrimento da fé, se tentarmos separá-las abruptamente porque em nossa teologia é inconcebível um espaço em que ambas possam juntas gravitar, pode ser que joguemos fora também o precioso junto com o que entendemos ser vil, e a fé seja cortada antes mesmo que seu fruto cresça, amadureça e apareça. Como afirma Rollins (2011, p. 19) em tom de celebração: “Acreditar é humano; duvidar, divino”. 2. Por que examinar e perguntar sobre o sentido da vida? Para explorar essa questão, gostaria de me debruçar sobre o livro de Eclesiastes. Suporei aqui que você já conheça o livro, já o tenha lido, ou pelo menos tenha uma noção do que ele trata, por isso vou direto ao ponto. Eclesiastes é praticamente o único livro da Bíblia em que vemos esta questão – do sentido da vida – sendo endereçada e enfrentada de modo honesto e realista-prático. É um livro que fala muito ao homem e 5

mulher de hoje não porque seja “pós-moderno”, mas porque é extemporâneo e intempestivo, usando aqui termos nietzschianos. Extemporâneo porque coloca problemas que estão além do próprio tempo em que o autor escreve; num certo sentido e usando um clichê, vale para todas as épocas – mas especialmente para a nossa, afinal, é a única que conhecemos, mesmo que parcialmente. É intempestivo porque é impertinente, incomoda, gera desconforto, até porque parte do lugar de alguém que já não tem mais tempo para perder com besteiras. Como bem analisa Harold Kushner em seu belo livro Quando tudo não é o bastante, Eclesiastes era um homem sábio, na meia-idade ou já passado por ela, que tentava lidar com seu medo de envelhecer e morrer sem ter sentido que havia vivido de verdade. Ele nos dá a impressão de procurar desesperadamente por alguma coisa que dê à vida um significado menos efêmero. (...) Eclesiastes não é um mero professor de sabedoria, ainda que mais honesto e direto que a maioria deles. Não é apenas um inimigo da afetação e da hipocrisia. É um homem com um medo desesperado de morrer antes de aprender a viver. Nada do que já fez, nada do que fará terá importância, pois um dia morrerá e será como se nunca tivesse vivido. E ele não consegue suportar este medo de morrer e desaparecer sem deixar um traço de si (Kushner, 1999, p. 21; 22, grifo meu).

Seguindo a linha de raciocínio de Kushner e ensaiando uma primeira resposta, digo que examina a vida quem a experimenta, se enfada, se inquieta, se angustia, se humaniza e teme que a vida passe rápido, a hora da morte chegue a qualquer instante e “tudo” não tenha passado de “um nada”, vazio de significado. Examina a vida que sabe que vai morrer e que, portanto, precisa logo aprender a viver. Mas a urgência de aprender a viver não pode ser confundida com instantaneidade. Ninguém aprende esse tipo de coisa de um dia para o outro. A gente leva quase uma vida toda para aprender a viver, e quando aprende, quem sabe já não reste muito tempo. No entanto, encanto-me com o exemplo daquelas pessoas, experientes e vividas, que chegam a um estágio de maturidade invejável, mas, ainda assim, não desistem da “beleza de ser um eterno aprendiz”, como se diz na canção “O que é o que é”, de Gonzaguinha. Essas pessoas me ensinam que não há quem tenha aprendido a viver e que não tenha nada mais a saber, a aprender e a experimentar. A trajetória nesta vida só termina depois do suspiro final. Mas, não contente ainda com esta primeira resposta, persistirei na pergunta: por que examinamos a vida e nos perguntamos sobre seu sentido? Aqui vão mais dois palpites. Em primeiro lugar, examinamos a vida porque – transformando aqui uma pergunta de Kushner em afirmação – Deus plantou em nós uma fome que não pode ser saciada, uma fome de sentido e significado. Em Eclesiastes, diz-se que: “Deus fez tudo perfeito a seu tempo e pôs a eternidade no coração do homem, sem que este possa descobrir as obras de Deus do início ao fim” (Ec 3.11). Afinal de contas, o que é essa tal de “eternidade no coração do homem”? A palavra literal no original pode ser traduzida como “duração” (Ver: TEB, p. 1113), que não é o tempo linear, mas a soma de tudo: do sentido da história, do mundo e da eternidade, do que está escondido. Ou seja, o ser humano tem, por obra e graça de Deus, alguma participação na visão divina do sentido da história; mas o que Deus fez e fará, do princípio ao fim, está oculto e não pode ser descoberto. Quer dizer, Deus nos deu um senso do infinito e do eterno, sendo nós 6

finitos, sabendo apenas parcialmente e vendo as coisas apenas de relance. A realidade, a essência de tudo (se elas existem), porém, estão distantes e inacessíveis a nós. Esse texto é uma chave para que entendamos melhor as grandes “buscas” de nosso tempo, que John Stott (1998, pp. 246-264) resumiu em três e, embora sabendo de seus limites, esboço-as a seguir: a. A busca por transcendência. Consiste no anseio “pela realidade suprema, que se encontra além do universo material. É um protesto contra a secularização, isto é contra a tentativa de eliminar Deus de seu próprio mundo”. Trata-se de uma reabertura que vemos crescer no mundo atual de um espaço, que vinha sendo ocupado pelo racionalismo, o progresso e a ciência, por exemplo, como conquistas modernas, para a experiência do transcendente. Daí advém o renascer da espiritualidade, ou melhor, das espiritualidades, em um renovado senso do divino, do mistério e do temor. Neste tempo vemos o florescer da religiosidade, como expressão espontânea e busca de relacionamento das pessoas com Deus através de ritos, performances e adorações, e menos da religião institucional e seus mecanismos de controle ou domesticação. O senso de infinito no coração humano nos conduz ao transcendente. b. A busca por significância. A falta de significado, de sentido para a vida que, na leitura de Stott, é devida ao reducionismo científico, aos efeitos da tecnologia e ao existencialismo – lembrando que este autor tem em mente aqui o europeu ocidental do início dos anos 1990 – também é uma marca do contemporâneo, e gera esta busca por significância. A oportunidade do evangelho, neste caso, está em afirmar o valor das pessoas – acima das coisas que possuem e das funções que exercem –, pois “todo homem, mulher e criança tem valor e significado como ser humano criado à imagem e semelhança de Deus”. O senso de infinito no coração humano nos conduz à raiz do sentido de ser. c. A busca por comunhão. Graças à despersonalização provocada pelas sociedades tecnocratas, as pessoas passaram a ser apenas indivíduos numa era de desintegração social, em que relacionar-se com outras pessoas tornou-se uma atividade incrivelmente complicada, já que quase tudo gira em torno do indivíduo. No entanto, a busca por comunhão ou comunidade passa a se acentuar quando este indivíduo se cansa de si mesmo, de seu isolamento, de estar só. Na leitura de sociólogos, como Michel Maffesoli (2012, p. 48), o individualismo encontra-se em estado de saturação e atomização, e vai dando lugar à “solidariedade tribal”, isto é, a uma união solidária de diferentes pessoas em torno de gostos em comum. Assim, o senso de infinito no coração humano também nos conduz ao outro, como lugar epifânico da vida de Deus. Em segundo lugar, examinamos a vida porque, como outra vez diz Kushner (1999, p. 81), “experimentar o significado da vida em poucas e pequenas coisas, faz mais por nossas almas que uma só experiência religiosa avassaladora”. E o exame cuidadoso nos põe diante do problema da consciência. E a consciência, baseando-me aqui na reflexão de Eclesiastes, é sempre um fato doloroso. Com isso quero dizer que quando alguém se dedica, como o sábio de Eclesiastes, a explorar todas as coisas que são feitas debaixo do sol (Ec 1.12) – ou pelo menos todas as coisas mais ou menos acessíveis a esta pessoa – precisa estar preparado/a para o que pode vir pela frente. Os resultados ou conclusões nem sempre são os/as mais agradáveis. Por essa razão é que O Pregador conclui (1.17) que esforçar-se para “obter conhecimento e sabedoria produz um vazio”, é correr atrás do vento e nadar contra a maré. E ainda acrescenta que 7

“quanto mais se sabe, maior é a responsabilidade; quanto mais se aprende, maior é o sofrimento” (1.18). É esse paradoxo que Miguel de Unamuno chama de “sentimento trágico da vida”, como se pode ver na passagem abaixo: Esse sentimento, mais do que surgir de ideias, as determina, ainda que depois essas ideias reajam sobre ele, corroborando-o. Algumas vezes pode provir de uma doença adventícia, de uma dispepsia, por exemplo, mas outras vezes é constitucional. E não adianta falar, como veremos, de homens sadios e doentes. Além de não haver uma noção normativa de saúde, ninguém provou que o homem tenha que ser naturalmente alegre. Mais ainda: o homem, pelo fato de ser homem, por ter consciência, já é, em relação ao burro ou a um caranguejo, um animal doente. A consciência é uma doença (Unamuno, 2013, p. 32, grifo meu).

“Mas, espera aí: a consciência não é uma benção?”, poderia bem indagar alguém. Depende do ponto de vista que encaramos. Quando afirmo “a consciência é uma doença”, meu lado contestador logo me diz que isso não faz sentido, e que a consciência é, na verdade, uma benção. Quando, no entanto, sou tomado pela dor proveniente de meus lampejos de consciência – afinal, como o autor de Eclesiastes atesta, pensar dói – vejo que isso também não faz sentido e, por um momento de honestidade, tomo a frase de Unamuno quase como que uma oração. A benção da consciência é poder saber em que solo está pisando; a maldição é a incapacidade de mudar de solo apenas pelo “poder de saber”. Eis o paradoxo da sabedoria: o saber é superior à ignorância; mas quem sabe, além de sofrer mais, ainda é nivelado por baixo, pelas contingências da vida, com quem não está nem aí para o saber e prefere abraçar o adágio: “A ignorância é uma benção”. Entrementes, é a presença da consciência que nos permite não apenas que estejamos cientes de nós, mas cientes do mundo-em-nós e de nós-no-mundo. A consciência não está apenas para nós, ela também está para o outro e para o universo exterior a nós. O ser humano só se torna uma “pessoa” quando se reconhece no mundo, na natureza, nos acontecimentos do cotidiano e, assim, também se reconhece em outros seres humanos, como um ser-em-relação. Martin Buber talvez seja um dos pensadores que mais se dedicou a este tema. Em seu livro Sobre comunidade, ele escreve: Creio que a sociedade, imensa inter-relação (sic.) de muitos homens, só é real na medida em que consiste em relações autênticas entre homens. Por outro lado, creio igualmente que o indivíduo atinge a realidade na medida em que se torna pessoa, isto é, um homem que estabelece relação com outros homens, com outras pessoas. Como pessoa, é responsável por eles e aceita a responsabilidade deles por sua própria pessoa. Ele os confirma como homens existentes e se deixa confirmar por eles como homem existente e sempre se oferece como pilar sobre o qual será construída uma ponte sobre si e sobre seus parceiros momentâneos – ponte eterna que desaba a cada momento, mas que a cada momento se reconstrói novamente (Buber, 1987, p. 123).

O reconhecer de outros seres humanos (usando aqui uma linguagem mais inclusiva), como vimos em Buber, envolve uma responsabilidade para com os outros. A consciência, neste sentido, nos põe diante do dilema da indiferença ou da solidariedade 8

em relação aos problemas humanos que nos rodeiam. Será possível reivindicar algum sentido para uma vida apenas centrada e preocupada consigo mesma? Porém, há algum sentido para uma vida totalmente descentrada de si e voltada para outras pessoas? Não seriam ambos, extremos? Não degeneram naquilo que O Pregador chamou de “vaidade de vaidades”? Buber pode ser de ajuda neste sentido, quando me leva a pensar que a pessoa humana é o resultado do equilíbrio ou tensão entre sua compulsão pela individualidade e sua compulsão por comunidade. Entretanto, esse olhar consciente e responsável pode nos fazer enxergar realidades que preferíamos não ver e, por assim dizer, nos tira da zona de conforto. Neste aspecto, parece-me muito inspiradora a canção-oração profética da banda Fresno, em parceria com Lenine e Emicida, chamada “Manifesto” (2014). Quero citar abaixo apenas a primeira parte da canção, que, para mim, fala nos termos de um sentimento trágico da vida contemporânea, um manifesto contra a futilidade da vida, suas farsas e mentiras, sua ausência de sentido, sobretudo quando, por razões pouco razoáveis, ferimos a própria existência na medida em que ferimos a nós mesmos e aos outros. Assim diz a canção: A gente acorda pra vida e não quer sair da cama/ A gente abre a ferida na pele de quem nos ama/ A gente vive na guerra, a gente luta por paz/ A gente pensa que sabe, mas nunca sabe o que faz/ A gente nega o que nunca teve forças pra dizer/ A gente mostra pro mundo o que se quer esconder/ A gente finge que vive até o dia de morrer/ E espera a hora da morte pra se arrepender de tudo... E todas essas pessoas que passaram por mim/ Alguns querendo dinheiro, outros querendo o meu fim/ Os meus amores de infância e os inimigos mortais/ Todas as micaretas, todos os funerais/ Todos os ditadores e sub-celebridades/ Farsantes reais encobertando verdades/ Pra proteger um vazio, um castelo de papel/ Sempre esquecendo que o mundo é só um ponto azul no céu. Quem é que vai ouvir a minha oração? E quantos vão morrer até o final dessa canção? E quem vai prosseguir com a minha procissão Sem nunca desistir, nem sucumbir a toda essa pressão?

A pergunta que fica diante deste tópico é: o que fazer diante do desespero, do desalento, do sentimento de vazio e do sentimento trágico da vida? Uma possível “saída”, como vimos no primeiro tópico, está na aceitação jubilosa de si mesmo e da condição inelutável da realidade que nos envolve. No entanto, aceitar não significa resignar-se, desistir da luta. Pelo contrário, permanecemos lutando, mas não necessariamente como quem dá socos no ar, tentando atingir um inimigo que tampouco conseguimos reconhecer. Eclesiastes não nos permite apresentar saídas artificiais, nem soluções instantâneas. Ele nos instiga a tentar a enxergar a vida de outro modo e, consequentemente, a viver melhor, a fazer melhores escolhas. É sobre isso que gostaria de falar no último tópico deste ensaio. 3. Se não há jeito, o jeito é aproveitar a vida! Portanto, vá, coma com prazer a sua comida, e beba o seu vinho de coração alegre, pois Deus já se agradou do que você faz. Esteja sempre vestido com roupas de festa, e unja sempre a sua cabeça com óleo. Desfrute a vida com a mulher a quem você ama, todos os dias desta vida sem sentido que Deus dá a você debaixo do sol; todos os seus dias sem sentido! Pois essa é a sua recompensa na vida pelo seu árduo trabalho debaixo do sol. O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com 9

toda a sua força, pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento, não há conhecimento nem sabedoria (Ec 9.7-10).

Uma das respostas ao desespero e ao sentimento de vazio, em Eclesiastes, está na máxima implícita no texto acima exposto: aproveite a vida! Diante da análise de que “tudo é vaidade”, isto é, de que é passageiro ou efêmero, de que nada faz sentido, o Pregador chega então ao seguinte pensamento: que mais nos resta, assim, senão aproveitar a vida, gratos por aquilo que de bom ela nos oferece, ao mesmo tempo em que cientes de suas limitações? Que mais nos resta com todo o trabalho no qual nos empenhamos senão gozar, e gozar bem, de seus frutos? Se aquilo que construímos não passa de um “castelo de areia”, que vai se desintegrar no próximo momento, que ficará de “herança” para pessoas que não necessariamente trabalharam para conquistar ou merecer, o que nos resta senão o uso consciente disso tudo em prol da vida? Por isso, ele diz: vá e viva, viva o máximo que puder, com intensidade, aproveite cada chance que você tem de fazer o que tem que fazer, deixando o mínimo possível para o dia de amanhã, que é sempre incerto. Ainda precisamos desenvolver mais uma práxis da espiritualidade cristã que afirme a vida, celebre o prazer e as dádivas que Deus nos deu, e nos inspire a ser gente. Temos dificuldade com esta ideia porque facilmente nos vemos abusando das dádivas que Deus nos deu. Tomamos o prazer pelo prazer, como um fim em si mesmo, apenas para atenuar o desejo. Mas Eclesiastes vem mostrar no texto acima que aproveitar a vida não é o mesmo que abusar dela, e que mesmo em prazeres fugazes podemos nos realizar, principalmente quando reconhecemos que são fugazes. Como elucida Ed René Kivitz (2009, p. 156), “não confunda o efêmero com o nada; a sabedoria está não em desprezar o efêmero, mas em não absolutizar o que não dura para sempre”. Isto é o que poderíamos chamar de viver o presente como “um presente”, isto é, uma dádiva ou dom divino. Muitas vezes, preocupados demais com o futuro ou ressentidos do passado, perdemos a noção do que é viver o presente. Um dos contos da sabedoria budista diz que, certa vez, perguntaram ao Buda o que mais lhe surpreendia na humanidade, e ele respondeu “os próprios homens”. A razão foi a seguinte: Os homens perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem dinheiro para recuperar a saúde. E por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem-se do presente de tal forma que acabam por não viver nem o presente e nem o futuro. E vivem como se nunca fossem morrer... E morrem como se nunca tivessem vivido (Buddha Channel, 2014).

Henri Nouwen (1992, p. 130, tradução minha) também escreveu algo muito interessante a esse respeito, quando disse que “as coisas do mundo em que vivemos são más apenas na medida em que nos tornamos escravos delas”. E que “o mundo tem muito a nos oferecer desde que não nos sintamos obrigados a obedecê-lo”. Nesse sentido, uma espiritualidade transformadora não joga para o futuro ou um post-mortem o que existe para ser vivido aqui. Não faz sentido imaginar o céu e deixar de imaginar como pode ser uma vida melhor e “outro mundo possível” já. Essa era, na interpretação de Kushner anteriormente aludida, a fonte do desespero e preocupação do autor de Eclesiastes: o sentimento de que estava morrendo sem nunca ter realmente vivido. Dessa forma, o paradoxo do prazer, em Eclesiastes pode ser assim resumido: ao experimentar o prazer da vida, descobri que é vaidade; porém, ao provar os dissabores do viver, fruto do trabalho sem recompensa e dos 10

esforços sem sentido, entendi que nada melhor ao ser humano do que aproveitar a vida ao lado da mulher/homem que Deus lhe deu. Isso implica em extrair o que há de melhor de cada dia, de cada oportunidade, de cada pequeno gesto que direcionamos uns aos outros. E assim vamos aprendendo a viver e, como observa Kushner (1999, p. 86), “quando aprendemos a viver, a própria vida é recompensa”. No entanto, precisamos ter coragem de nos desfazer da fábula que inventaram, e que nós continuamos a reproduzir, de que Deus é inimigo do prazer ou é contra o aproveitar a vida. Descrevo esta fábula da seguinte forma. Um dia, um louco acordou e resolveu inventar uma fábula. Nessa fábula ele pintou uma imagem de Deus. Sua imagem revelava um Deus pintado em preto e branco, nada intuitivo, mal-humorado, inimigo da alegria, do riso, da dança, poesia, arte criatividade e prazer. Um Deus para ser servido e obedecido, e amado apenas como resultado da subserviência humana. O paradoxo da fábula é que esse Deus é também inventor de tudo, incluindo o prazer. Mas por não ser sensível, não se comprazia no gozo de suas criaturas, então resolveu condenar o prazer como um mal que nos afasta dele e nos conduz à desgraça eterna. Essa fábula, embora continue sendo contada ainda hoje por esse louco, como vimos em Eclesiastes, não é bíblica. A lógica do autor é simples, se o fim é igual para todos, e se a gente não sabe quando vem o fim, então que mais nos resta, vivos que somos, senão aproveitar a vida? A vida humana assim existe não como uma antessala de outra vida, mas para ser vivida e aproveitada aqui e com a intensidade que cada momento permite. William McNamara, em seu livro A experiência humana: uma loucura divina, disse o seguinte: A vida humana realmente vivida é sempre uma aventura e uma descoberta. Se nós não estamos rompendo barreiras, atingindo níveis mais profundos de ser, tornando-nos mais e mais humanos, isto é, irradiando Deus primorosamente, então nós estagnamos. Perdemos nossa glória original (MCNAMARA, 2010, p. xiii).

Portanto, a sugestão de Eclesiastes, como vimos, é: vá e viva bem a sua vida! Coma e beba, alegre-se e desfrute da mulher/homem que Deus te deu, e desenvolva um gosto pela vida, um prazer de estar vivo, pois Deus sente prazer no seu prazer. Para Ed René Kivitz (2009, p. 162), “essa talvez seja uma das mais extraordinárias definições da graça divina: ‘Deus já se agradou do que você faz (9:7)”. Sabendo disso (e agora uso aqui a tradução A Mensagem), “tire o máximo de proveito de cada dia! Agarre cada oportunidade com unhas e dentes e faça o melhor que puder. E com prazer! É a sua única chance” (v. 7-10). Faça isso na perspectiva de que “isso é tudo o que se pode receber pelo árduo trabalho de se manter vivo”, e que o prazer é passageiro, assim como esta vida sem sentido,porque sujeita à vaidade. Uma espiritualidade transformadora celebra a transitoriedade da vida sem medo ou resignação quanto ao que virá ou o que será (após a morte), sem tratá-la nem com o desprezo dos ascéticos, nem com o excessivo apego dos hedonistas, por uma única razão: a vida é uma dádiva divina e não uma posse humana. Eis algumas perguntas que gostaria de deixar para sua reflexão posterior: (1) Temos sido capacitados na fé a percorrer uma trilha rumo a uma maturidade, que nos ajude a lidar com os paradoxos e limitações da vida? (2) Apesar dos dilemas e traumas próprios de existir, qual é o lugar da esperança em nossas vidas? Que esperança? 11

(3) Se a vida é dádiva, não somos donos da nossa vida, Deus é. Amoroso, Ele nos dá liberdade de escolha sobre como cuidar ou administrar essa vida. Como você tem cuidado da vida que Deus te deu? Que significado tem dado para ela? Se morresse hoje, alguma semente ou fruto de sua vida permaneceria vivo em outras pessoas? Considerações finais A guisa de conclusão, retorno a Eclesiastes. Ao final do livro, o contraponto do Pregador à máxima que perpassa o livro todo – de que “tudo é vaidade” ou de que “nada faz sentido” – resume-se em poucas palavras: “Teme a Deus e faça tudo o que Ele mandar” (Ec 12.13). Aqui talvez seja importante que diferenciemos duas palavras que tecnicamente são sinônimos: “temor” e “temer”. Quando falamos em “temer”, normalmente seguimos o sentido correto da palavra, que se refere ao sentimento de medo ou receio em relação a alguma coisa. Já “temor” não tem a ver com “medo” – embora no dicionário (Michaelis) a palavra também apareça associada a um medo acompanhado de respeito. Eclesiastes, contudo, não está dizendo: “tenha medo de Deus e, por isso, faça tudo o que Ele mandar”. Até porque, na linguagem bíblica da Primeira Carta de João, se “Deus é amor” (4.8), logo, “no amor não existe medo; antes, o perfeito amor lança fora o medo. Ora o medo produz tormento; logo, aquele que teme não é aperfeiçoado no amor” (4.18). O temor, por sua vez, é fruto do amor e da graça e não do medo; consequentemente, temor não é medo, é uma livre reverência e admiração em relação a Deus. Nesta direção, Harold Kushner (1999, p. 74) também esclarece que: Enquanto o medo faz com que tenhamos vontade de fugir, a reverência nos faz querer chegar mais perto, ainda que hesitemos em nos aproximar demais. Em lugar de sentirmos ressentimento por nossa fraqueza, sentimo-nos deslumbrados diante de alguma coisa maior que nós.

Podemos reiterar, então, conforme o olhar de Eclesiastes, que obedecemos a Deus não por medo, mas por temor e amor; não por um receio de ser punidos, mas pela convicção (mesmo incerta, como vimos no primeiro tópico) de que é a melhor coisa a se fazer diante de tantas opções e caminhos que temos hoje a nosso dispor, mas cujo fim não necessariamente é vida. E, seja esta boa ou má notícia, nunca deixaremos de nos perguntar sobre o sentido da vida. O autor de Eclesiastes é bem parceiro neste aspecto, pois nos insta a que sejamos amigos dos paradoxos e a desistir desse empreendimento de buscar ou oferecer respostas prontas e saídas artificiais para as aporias existenciais que vez por outra nos assaltam. E, como lembra Kivitz (2009, p. 220, 224), “quem quer resposta pronta não encontra no cristianismo o seu melhor caminho. (...) Resposta pronta é exigência de quem ainda tem medo de viver por fé”. Kushner também é bastante assertivo quando afirma que: Se pudéssemos fazer hoje algo que resolvesse de maneira definitiva e permanente o problema da vida, não precisaríamos de um amanhã. Por que iria Deus criar o amanhã? A vida não é um problema a resolver de uma vez; é um desafio constante, a ser vivido dia após dia. Nossa busca não deve ser pela Resposta, mas pela maneira de fazer de cada dia uma experiência humana (Kushner, 1999, p. 81). 12

Acrescento à perspectiva de Kushner que a vida não é feita de encaixes permanentes. Ninguém é feliz para sempre, sofrerá para sempre, será sempre famoso, estará sempre em alta ou com bom astral o tempo todo; ninguém perderá nem ganhará de modo perene, todo mundo perde e ganha um pouco na vida; nem tudo do que hoje parece definir quem sou, permanecerá intacto quando e se eu chegar aos 40, 50 ou 60 anos; não há algo como pura bondade ou pura maldade; ninguém é tão feio que não possa ser o bonito de alguém, nem tão lindo que não possua feiura alguma. Viver é simples, e viver é complexo; a vida é difícil, mas nós também dificultamos bastante a vida. Deus é Pai, mas eu nem sempre me vejo como filho; muitas vezes ajo como cliente ou sócio. Relacionamentos são uma bênção, nos completam, mas também machucam e nos fazem infelizes. Não há oito que não possa ser oitenta, nem preto que não embranqueça. Por isso, minha melhor metáfora para ávida neste momento é a de que ela é um tremendo labirinto, com muitos caminhos traçados, outros a ser inventados, mas as saídas não são muito abundantes. É preciso muita atenção e calma para não perder o essencial de vista, pra não se perder nesse labirinto e jamais se encontrar. Bem aventurado não é quem supostamente encontra “a saída” ou “a resposta” rapidamente, mas quem aprende a criar caminhos quando já não mais parecem existir. Viver não é para os afortunados; viver é para os corajosos!

Referências bibliográficas BUBER, Martin. Sobre comunidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987. KIVITZ, Ed René. O livro mais mal-humorado da Bíblia. A acidez da vida e a sabedoria do Eclesiastes. São Paulo: Mundo Cristão, 2009. KUSHNER, Harold. Quando tudo não é o bastante. São Paulo: Nobel, 1999. _________. Quando coisas ruins acontecem a pessoas boas. São Paulo: Nobel, 2008. LEWIS, C. S. Surpreendido pela alegria. São Paulo: Mundo Cristão, 1999. MCNAMARA, William. The human experience: a divine madness. Silver Spring, MD: Beckham Publications Group, 2010. MAFFESOLI, Michel. O tempo retorna. Formas elementares da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. NOUWEN, Henri. Life of the beloved: spiritual living in a secular world. New York, NY: Crossroad, 1992. ROLLINS, Peter. Insurrection: to believe is human; to doubt, divine. New York, NY, USA: Howard Books, 2011. SCHAEFFER, Francis. True spirituality. 30th anniversary edition. Carol Stream, IL, USA: Tyndale House Publishers, 2001. STOTT, John. Ouça o Espírito, ouça o mundo. 2ª ed. São Paulo: ABU Editora, 1998. TRADUÇÃO ECUMÊNICA DA BÍBLIA (TEB). São Paulo: Edições Loyola, 1994. UNAMUNO, Miguel de. Do sentimento trágico da vida. São Paulo: Estampa Livros, 2013.

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Webgrafia PORTAL Buddha Channel. Contos e Koans – Palavras sábias. Disponível em: . Acesso em: 04 de Nov. 2014. Discografia FRESNO. Manifesto. EP: Eu sou a maré viva. Independente/ Tratore, 2005.

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