Um Enclave às Avessas: Favela do Moinho e o Muro da Vergonha

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Vol. 13 (1) Junho-2014

Um Enclave às Avessas: Favela do Moinho e o Muro da Vergonha Breilla Zanon 1 Resumo A Favela do Moinho é um exemplo vivo de como se deram as transformações do espaço urbano e público na cidade de São Paulo – SP. Além de representar um caso de segregação espacial e social, e também de resistência, a Favela do Moinho nos permite pensar o quanto a democratização dos acessos e direitos a cidades se deu inversamente à concepção de vida pública por parte das classes médias e altas. As mudanças ocorridas nas grandes cidades podem se revelar contraditórias aos ideais modernizantes que a princípio preconizavam seus projetos. Por meio dessa análise de enclaves urbanos, traremos questionamentos e problematizações a respeito do pensamento público e privado que permeiam e dão tom à cidadania nas grandes cidades do Brasil contemporâneo. Palavras chave: Favela do Moinho; enclaves; urbanização; democratização; movimentos políticos.

Abstract The Moinho Slum is an alive example of how urban and public space’s transformations have occured in the city of São Paulo-SP. Beyond a case that represents spatial and social segregation, and resistence as well, the Moinho Slum allows us to think about how the democratization of accesses and rights to cities occured inversaly to the design of public life by the middle and upper classes.The changes that have occured in big cities can be contradictory revealed against the modern ideals which were professed on their projects in a first moment. Through this urban enclaves analysis we will bring quenstions and problematizations about the public and private thought which permeate e give tone to the citizenship in the contemporary Brazil’s big cities. Keywords: Moinho Slum; enclaves; urbanization; democracy; political movements.

1

Estudante do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Uberlândia.

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Introdução: Diferença, socia-

Não queremos enaltecer as vir-

bilidade e cidade

tudes já alcançadas dos territórios onde a modernização ditou o pro-

As cidades e as transformações

gresso. Temos interesse em levantar

decorrentes dos seus processos de

situações que mostram como esse

urbanização nos revelam a trajetória

processo de mudança contribuiu

do desenvolvimento da moderni-

igualmente para a transformação so-

dade. Mostram evoluções estéticas e

cial dessas localidades, transforma-

territoriais — fatores que ganham pri-

ções essas que resultam, na maioria

vilégio, a princípio, aos olhos deslum-

das vezes, em exclusão social como

brados e desacostumados daqueles

prática necessária para confecção do

que veem na cidade apenas a suntu-

próprio ideal desenvolvimentista que

osidade de suas mudanças através do

é guiado principalmente por modelos

tempo. Capitais e metrópoles carre-

europeus de cidade moderna em

gam em si o poder de encantar e en-

conjunção com os interesses e lógicas

carnar os sonhos de milhares de indi-

de uma sociedade cada vez mais vol-

víduos que nelas aportam a fim de

tada para o consumo e a individuali-

conquistar as glórias e os sucessos in-

dade.

cessantemente publicizados e media-

O nosso olhar recairá sobre a

tizados. Assim, principalmente a partir

cidade de São Paulo. Não visamos

do século XX, os grandes centros po-

aqui estabelecer uma revisão histórica

pulacionais passaram a abarcar em

de suas construções espaciais e soci-

seus territórios a esperança de chan-

ais, mas pretendemos estabelecer o

ces reais e ideais de conquistas em

diálogo com esses momentos visando

um mundo cada vez mais absorto

compreender as dinâmicas e interes-

pela ideologia do acúmulo financeiro

ses que dão o tom para as práticas de

como progresso.

segregação social na metrópole em 226

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dias atuais. Teremos como foco uma

Muro da Vergonha, construído no

região específica da cidade de São

meio da favela, tem como objetivo

Paulo, a Favela do Moinho, a última

privar seus habitantes da mobilidade

situada no centro da cidade. Nosso

em áreas onde o interesse é o da va-

objetivo é desenvolver uma relação

lorização

entre as barreiras construídas nos

muro também os priva dos olhos de

condomínios fechados de classes mé-

uma classe abastada que circula pela

dia e alta, e o muro erguido ao longo

área central da cidade, pondo à mar-

das habitações da favela. Segurança

gem — escondidos atrás do concreto

para uns, segregação para outros, o

— homens, mulheres e crianças, por

enclave fortificado que, a exemplo

serem incapazes de compreender os

dos condomínios, protege os mora-

processos pelos quais a cidade e a so-

dores da insegurança e imprevisibili-

ciedade em linhas gerais, vêm pas-

dade do ambiente público, na Favela

sado. Por isso, entendemos que focar

do Moinho serve para isolar e delimi-

na trajetória do espaço e da condição

tar a mobilidade de uma população

em que se encontra a favela ilustrará

que carece não só do direito à cidade,

e nos auxiliará a entender objetiva-

mas de condições básicas para a ma-

mente as transformações sofridas na

nutenção de seu cotidiano.

maioria dos bairros centrais de São

imobiliária.

Ademais,

o

Privatização para uns, privação

Paulo, bem como as causas, as carac-

para outros. Tomamos a situação da

terísticas e os sentidos dessas trans-

Favela do Moinho como um enclave

formações e os possíveis produtos

às avessas, pois diferente dos muros

que esse processo pode vir a estabe-

dos condomínios que estabelecem

lecer não só ao espaço físico, mas

áreas privadas a fim de trazer prote-

principalmente aos habitantes da

ção e comunhão entre iguais (finan-

área.

ceiramente falando), veremos que o 227

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Trazemos aqui uma breve aná-

as regras e condutas de sociabilidade

lise, aberta a progressões, tendo

na cidade, bem como o pensamento

como base autores como Michel Fou-

político de seus cidadãos.

cault, Teresa Caldeira, Heitor Frúgoli — os quais nos ajudarão a revelar as

A metrópole em transformação: fa-

nuances do desenvolvimento urbano

tores que produzem muros

e social nas cidades onde a modernização se instala — em diálogos pon-

O processo de ocupação que originou

tuais com Rogério Haesbaert, Mar-

a Favela do Moinho, e posterior-

celo Lopes de Souza e Giorgio Agam-

mente, o Muro da Vergonha, trata-se

ben, os quais nos auxiliam no pensa-

de uma situação muito interessante e

mento sobre as novas categorizações

exemplar para entendermos os per-

de segregação social sem deixar de

cursos em que se deu o desenvolvi-

estabelecer conexões com o imaginá-

mento urbano da cidade de São

rio que serve de suporte para sua

Paulo, suas políticas de habitação, de-

construção e desenvolvimento. O

terminação de espaço público e pri-

contato entre esses autores nos ser-

vado, distribuição populacional e

virá de alicerce para refletirmos de

pensamento políticos, antagonismos,

maneira sensível sobre o espaço físico

relações de poder e resistências em

de uma cidade de multidões, pautada

meio à condução da urbanização.

por preceitos da modernidade, e, por-

Para darmos início à análise, é neces-

tanto, democráticos, mas que segrega

sário que antes tomemos como pres-

socialmente uma parcela considerável

suposto algumas das dinâmicas arti-

de indivíduos, conforme o decorrer

culadas durante a construção da capi-

dos interesses que almeja, reconfigu-

tal paulista como centro inicialmente

rando de maneira específica não só a

de negócios, onde ocorream as prin-

ideia de espaço público, mas também

cipais transações financeiras da elite 228

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cafeeira, e sua posterior transforma-

É importante colocarmos em evidên-

ção em lócus industrial e financeiro. É

cia as transformações pelas quais a ci-

importante visualizarmos tanto a

dade de São Paulo passa ao longo de

construção desses cenários como

sua formatação como metrópole bra-

seus arranjos e decadências, os quais,

sileira. Do final do século XIX até me-

em grande parte, são fruto das rela-

ados da década de 40 do século XX, a

ções de poder econômico de cada

cidade se encontrava concentrada

época. Essas situações refletiram dire-

principalmente nas áreas centrais,

tamente na transformação do espaço

contando ainda com uma pequena

físico — tanto habitacional quanto

área urbana, principalmente povoada

público — e social da cidade. Dessa

pelas camadas de melhor condição fi-

forma, estamos de acordo com Fou-

nanceira e social.

cault (2008:5), quando o autor, diz

“No início do século, o centro tradici-

que

onal constituía um local de consumo, […] a análise dessas relações de poder

comércio e negócio da elite”, local se-

pode, é claro se abrir para, ou encetar

leto onde convergiam “políticos, jor-

algo como a análise global de uma so-

nalistas, acadêmicos. Comerciantes,

ciedade. A análise desses mecanismos

excursionistas, que formavam às por-

de poder também pode se articular, por exemplo, com a história das trans-

tas das lojas diversos grupos, onde

formações econômicas. […] essa aná-

discutem os mais variados assuntos”

lise tem, no meu entender, o papel de

(Frúgoli, 1995:21). No entanto, esse

mostrar quais são os efeitos de saber

cenário começa a sofrer mudanças.

que são produzidos em nossa socie-

É nas primeiras décadas do século XX

dade pelas lutas, os choques, os combates que nela se desenrolam, e pelas

que São Paulo começa a expandir

táticas de poder que são os elementos

suas fronteiras, levando assim a um

dessa luta. (Foucault, 2008:5)

consequente crescimento da especulação imobiliária (Frúgoli, 1995:22). A 229

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segregação espacial que antes era ex-

pansão populacional ocorre em para-

pressa apenas pela construção das

lelo e, de certa forma, influencia no

moradias passa a ser evidenciada em

processo de “degradação urbana” da

termos territoriais, e isso se deve à ex-

região central.

pansão das fronteiras que, por sua

A partir das primeiras décadas do sé-

vez, se deu muito em consequência

culo XX, São Paulo passou por uma intensa expansão de suas fronteiras. (…)

do aumento populacional (Caldeira,

Entre 1914 e 1930 passa-se a verificar

2000:214). Dessa forma, São Paulo já

um “retalhamento da terra na área su-

poderia ser considerada nesse perí-

burbana e rural de São Paulo”, com ex-

odo um espaço cosmopolita e cultu-

pansão considerável da área urbana

ralmente diversificado, contando com

sob o comando da especulação imobiliária. (…) Em vez dos cortiços alugados,

a presença de imigrantes, trabalhado-

passou a predominar como principal

res urbanos advindos do fim da escra-

possibilidade de moradia a casa pró-

vidão e da decadência da produção

pria situada na periferia, construída

cafeeira, e migrantes, brasileiros vin-

quase sempre por eles mesmos, em

dos de regiões mais afastadas em

pequenos grupos ou “mutirões”. (…) Por isso, enquanto a cidade expandia

busca dos benefícios que a cidade

suas fronteiras de forma desordenada,

grande prometia lhe proporcionar.

boa parte de dentro da cidade foi pas-

Fatores derivados das migrações e

sando por um rápido processo de di-

imigrações

também

versificação de funções, sofrendo uma

como componentes para a formação

gradativa deterioração urbana, com

contribuíram

estagnações no ritmo de novas edifica-

de condições que resultaram em de-

ções, queda no seu uso habitacional

sigualdade econômica e, consequen-

com o afastamento de parte de sua

temente, segregação socioespacial.

população para outros bairros, encor-

Frúgoli (1995:28-31) nos ajuda a com-

tiçamento, proliferação do pequeno

preender como esse processo de ex-

comércio informal, aumento da violência urbana (delinquência, assaltos etc.), prostituição, miséria etc. (Frúgoli, 1995:

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Na década de 1970, uma nova trans-

29-30)

formação socioespacial começa a Medidas para a transformação do es-

acontecer. Da concentração no centro

paço e modificação dos padrões de

para o distanciamento periférico, a

moradia até então estabelecidos no

possibilidade da casa própria permitiu

centro da cidade surgiram, em grande

também a politização dos moradores

parte, pela preocupação das elites lo-

de periferia. A partir do engajamento

cais em relação à higiene e à saúde.

de seus habitantes na construção de

Essas elites viam no aumento da con-

suas próprias casas e das reivindica-

centração de pessoas que se instala-

ções, a fim de garantir o atendimento

vam no centro, um prejuízo aos pa-

de serviços primordiais para a habita-

drões de convivência da burguesia,

ção, movimentos sociais passam a

associando tal situação ao aumento

emergir. Nota-se que essa ação polí-

de doenças e criminalidade na área

tica e o engajamento dos moradores

(Frúgoli, 1995:35). A diferenciação

da periferia na luta por melhorias das

não poderia mais ser apenas simbó-

condições habitacionais desencadea-

lica, ou seja, pelo padrão da constru-

ram um aumento da participação po-

ção das moradias; ela deveria ser

lítica — motivada pelos próprios mo-

agora espacial. Assim, a abertura de

vimentos envolvidos — no que diz

ruas e avenidas e o lançamento dos

respeito à arena da democracia. Essa

ônibus nessas vias vieram permitir

participação passa a resultar em me-

que a população menos abastada pu-

lhoramentos na qualidade de vida da

desse garantir a casa própria em lo-

periferia de maneira geral (Caldeiras,

cais mais distantes, porém acessíveis

2000: 237-239).

financeiramente, sendo que agora

Nos anos 1980, essa transformação

contavam com linhas de transporte

da periferia mostra seus resultados. A

público.

crise econômica que acontece nesse 231

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período diminui a renda salarial da

Assim, ao mesmo passo que esses fa-

população brasileira de maneira geral.

tores levam as classes médias a se ins-

Morar em locais periféricos passa a

talar nas regiões periféricas, expulsam

ser mais atrativo, tanto pelo baixo

seus antigos moradores, também afe-

custo da área, quanto pela melhoria

tados pela crise econômica, mas que,

na infraestrutura que esses locais ha-

por sua vez, detinham menos possibi-

viam sofrido mediante as ações polí-

lidades de recuperação.

ticas de seus moradores. Mas deve-

A expansão populacional e a conse-

mos salientar que o aspecto essencial,

quente fragmentação dos espaços

responsável por guiar essa reconfigu-

devido às diversidades culturais e so-

ração do mapa populacional no es-

cioeconômicas serviram de substrato

paço urbano – que é decorrente do

para o aumento das desigualdades

deslocamento das classes médias e

produzidas e expressas no espaço ur-

altas para periferia –, se deu pela von-

bano. Essas desigualdades se tornam

tade de diferenciação dessas classes

visivelmente contrastantes principal-

em relação às classes populares que

mente a partir da década de 1990 e,

passaram a ocupar intensamente as

com o passar dos anos, se espalham

áreas centrais. A popularização do

mais drasticamente.

centro acontece em virtude da busca

A São Paulo do final dos anos 1990 é

por oportunidades na área central,

mais diversa e fragmentada do que era nos anos 1970. Uma combinação de

bem como ao acesso de seus equipa-

processos, alguns deles semelhantes

mentos públicos, uma vez que com a

aos que afetaram outras cidades,

crise da época, opções de trabalho —

transformou o padrão de distribuição

principalmente informais — eram

de grupos sociais e atividades através

mais facilmente encontradas no cen-

da região metropolitana. São Paulo continua a ser altamente segregada,

tro (Frúgoli, 1995:35).

mas as desigualdades sociais são agora produzidas e inscritas no espaço

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urbano de modos diferentes. A oposi-

ocorridas na cidade de São Paulo são

ção centro-periferia continua a marcar

resultados de uma combinação de

a cidade, mas os processos que produ-

processos econômicos e sociais. O

ziram esse padrão mudaram conside-

que ocorre em São Paulo, a partir de

ravelmente, e novas forças já estão gerando outros tipos de espaços e uma

então, é a disseminação de locais pri-

distribuição diferente das classes soci-

vados, principalmente os condomí-

ais e atividades econômicas. São Paulo

nios fechados, transformando o viver

hoje é uma região metropolitana mais

entre muros em um ideal capaz de

complexa, que não pode ser mapeada

garantir segurança, privacidade e a

pela simples oposição centro rico ver-

sus periferia pobre. Ela não oferece

possibilidade de viver entre iguais,

mais a possibilidade de ignorar as dife-

seja em zonas mais afastadas ou cen-

renças de classes; antes de mais nada,

trais. De acordo com Souza (2008),

é uma cidade de muros com uma po-

O medo e a percepção do crescente

pulação obcecada por segurança e dis-

risco, do ângulo da segurança pública,

criminação social. (Caldeira, 2000:231)

assumem uma posição cada vez mais proeminente nas conversas, nos notici-

É dentro desse cenário contemporâ-

ários da grande imprensa etc., o que se

neo, descrito por Caldeira (2000), que

relaciona, complexamente, com vários

passaremos a inserir nossa análise so-

fenômenos de tipo defensivo, preventivo ou repressor, levados a efeito pelo

bre o caso da Favela do Moinho e o

Estado ou pela sociedade civil (...) e se

Muro da Vergonha.

faz presente, hoje, em qualquer cidade. (Souza, 2008, p. 9)

Da primeira área de elite à última favela do centro: a Favela do Moi-

Os enclaves fortificados, como classi-

nho

fica Caldeiras (2000:254-255), configuram uma nova maneira de organi-

Os anos seguintes à década de 1990

zação espacial dos grupos sociais, ba-

nos revelam que as transformações

seados na discriminação social e na 233

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classificação econômica. “Diferentes

Enquanto o poder disciplinar isola ter-

classes sociais vivem mais próximas

ritórios, impedindo-lhes a passagem, as medidas de segurança levam a uma

umas das outras em algumas áreas,

abertura e à globalização; enquanto a

mas são mantidas separadas por bar-

lei quer prevenir e regular, a segurança

reiras físicas e sistemas de identifica-

intervém através de processos contí-

ção e controle” (Caldeira, 2000:255).

nuos, com o fim de dirigi-los. Em pou-

Como observa a autora, a criação de

cas palavras, a disciplina quer produzir ordem, a segurança quer regular a de-

barreiras de segregação social pode

sordem. Como as medidas de segu-

ser compreendida como uma reação

rança podem funcionar somente den-

à ampliação do processo democrá-

tro de um contexto de liberdade de

tico. Por isso, espaços como os encla-

tráfego, comércio e iniciativa indivi-

ves aparecem como forma de manter

dual, Foucault mostra que o desenvolvimento da segurança acompanha as

espaços privados, distantes daqueles

ideias

que “acabaram de forçar seu reco-

do

liberalismo.

(Agamben,

2001:1)

nhecimento como cidadãos, com plenos direitos de se envolver na cons-

Os enclaves fortificados, a exemplo

trução do futuro e da paisagem da ci-

dos condomínios fechados, trouxe-

dade” (Caldeira, 2000:255).

ram uma perspectiva nova ao con-

Visualizamos que, quanto mais se

ceito de cidade, em que o espaço pú-

abriu e abre espaço para discurso da

blico passa a ser considerado como

democracia — e do pensamento libe-

um espaço a ser esvaziado cada vez

ral — e do acesso ao direito à cidade,

mais pelas classes média e alta por ser

mais se disseminam, estimulam, pro-

um local onde a heterogeneidade

duzem mecanismos materiais e sim-

perpassa por todos os ângulos. No

bólicos de diferenciação e discrimina-

seu lugar aparecem espaços privados

ção, sob a forma de mecanismos e es-

de convívio público, no entanto, um

tratégias de segurança. 234

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público seleto. A segurança e o dis-

privados, onde a segregação se ins-

tanciamento em relação ao outro, di-

taura

ferente economicamente, passam a

aquisitivo. A degradação dos outros

ser ideais perseguidos por uma par-

pontos centrais serve agora, em sua

cela considerável da população de

grande parte, para a articulação dos

classes média e alta. Os enclaves tra-

comércios informais, e demais socia-

zem para essas classes a oportuni-

bilidades cotidianas, que transcrevem

dade de um universo exclusivo, sem

o espaço como uma área principal-

que sejam necessários a integração

mente ocupada pela passagem, seja

ou o sentimento comunitário, preva-

de transeuntes ou do próprio trans-

lecendo, apesar da sensação de igual-

porte.

dade que pretende instalar, a exalta-

Podemos dizer que a Favela do Moi-

ção do privado (Caldeira, 2000:257-

nho é uma ocupação habitacional que

275). É em consequência dessas con-

surge consequente à tendência de es-

dições que Agamben (2001: 1) é cer-

vaziamento e à degradação do centro

teiro em considerar que “a longo

e, por isso, nos serve aqui como um

prazo, as medidas de segurança são

exemplo muito rico, resultante das

irreconciliáveis com a democracia”.

transformações centrais na cidade de

O centro da cidade passa a ser um lo-

São Paulo. Ela ocupa a região do

cal pouco utilizado pelas classes mais

bairro Campos Elíseos, que no início

abastadas, uma vez que essas agora

do século XX foi considerado o pri-

encontram todas as comodidades re-

meiro loteamento voltado para a po-

lativas a trabalho, educação, lazer e

pulação mais nobre de São Paulo. Re-

consumo dentro dos próprios encla-

sidências dos fazendeiros de café,

ves. O centro, quando utilizado por

quando estes estavam na cidade,

essas classes, é o centro equipado,

abrigavam também casas de barões

igualmente permeado por espaços

da época. Na metade do século XX, 235

principalmente

pelo

poder

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período áureo da atividade fabril na

entre duas linhas de trem da Compa-

cidade, a região dos Campos Elísios

nhia Paulista de Trens Paulistanos

deu espaço ao maior moinho da capi-

(CPTM), a área da Favela do Moinho

tal, chamado Moinho Central, cujo

pertenceu, a princípio, à Rede Ferrovi-

prédio principal era também conhe-

ária Federal S/A. No ano de 1999, de-

cido como Moinho Matarazzo. No en-

vido às dívidas públicas, a área foi lei-

tanto, conforme toda a transformação

loada e arrematada pelo empresário

já citada, ocorrida na segunda metade

Ademir Donizetti Monteiro em con-

desse mesmo século, a área perdeu a

junto com a empresa Mottarone Ser-

atratividade para a classe média.

viços de Supervisão, Montagens e Comércio Ltda. No entanto, não foi feito

Figura 1. Bairro de Campos Elí-

o registro da área em nome dos no-

seos no início do século XX

vos proprietários, e ela acabou por permanecer sob o domínio da Rede Ferroviária, que anos após, por causa de falência, teve todos os seus bens passados aos cuidados da União. Formada por famílias que se juntaram por conta de despejos, desocupações, incêndios em outras áreas e outros

Fonte: Casas históricas paulistanas.

“acidentes” ou higienizações ocorridas na cidade de São Paulo, a Favela

As instalações que deram origem à fa-

do Moinho aglomerou cidadãos que

vela começaram a cerca de 25 anos,

não foram atendidos pelas políticas

nos anos 1980, ocupando especifica-

habitacionais da cidade, abandona-

mente a área debaixo do viaduto En-

dos pelo apoio do poder público.

genheiro Orlando Murgel. Estando

A gente mesmo começou a limpar o

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terreno e a construir. Aqui, antes, era um cemitério clandestino da polícia.

Figura 3. Imagem recente da fa-

Quando eu vim para cá em 95, tudo era

vela (2012)

um matagal, só tinha o prédio mesmo. Então eles aproveitavam isso para desovar cadáver e colocar a culpa na gente. Em 1999 houve um incêndio, duas crianças morreram queimadas. Em 2000, começamos a expandir de novo, de uma vez. A maioria do pessoal morava na rua mesmo, pelo centro.

Fonte: Blog Dharma.

Embaixo do viaduto era muito pequeno, um barraco em cima do outro. Quando fizemos a expansão, foi até o

A disputa sobre a área da favela vem

prédio e além. (Depoimento de Ales-

acontecendo desde 2006, quando Gil-

sandra Moja, 29 anos, moradora a 18

berto Kassab (PSD) assume a Prefei-

anos na favela e uma de suas lideran-

tura da cidade de São Paulo. Desde

ças)

então ocorrem tentativas engendradas pela Administração Pública a fim

Figura 2. Área da Favela do Moi-

de dificultar a permanência dos mo-

nho

radores no local. O intuito passa a ser a retirada desses moradores para que assim possam reapropriar/“revitalizar” a área, uma vez que essa conta hoje com um alto valor imobiliário. Em 2008, através de um processo de usucapião

Fonte: Revista Fórum

coletivo,

empreendido

pela Associação de Moradores da Fa-

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vela do Moinho com a ajuda da asses-

muro foi construído em 2012, na ges-

soria jurídica popular do Escritório

tão de Kassab, como tentativa de im-

Modelo da Pontifícia Universidade

pedir a realocação das famílias após

Católica (PUC), foi concedida a posse

um dos grandes incêndios. Ao mesmo

provisória aos moradores até o julga-

tempo, o muro cumpre a tentativa de

mento final sobre propriedade da

higienização visual, e esconde atrás

área.

do concreto a última favela situada na

Junto às tentativas de remoção, in-

parte central de São Paulo. Por isso, o

cêndios, cujas causas ainda são des-

muro passa a ser chamado de Muro

conhecidas, atingiram o local por

da Vergonha por seus habitantes, e é

mais de dez vezes, sendo dois deles

em relação a ele que embasaremos a

de grande proporção. Além dos in-

reflexão de nossa análise a partir de

cêndios recorrentes, a favela vem so-

então.

frendo ataque através de outros tipos de estratégias. Apesar da reivindica-

Muro da vergonha: segregação e

ção constante dos moradores, a co-

resistência

munidade é marcada pela omissão do poder público: o esgoto permanece

Tanto os condomínios priva-

exposto, faltam energia elétrica, água

dos de classe média alta como as bar-

encanada e pavimentação, e os mora-

reiras em formações habitacionais

dores são alvos de violência policial

como a Favela do Moinho podem

frequentemente. No entanto, dentre

configurar o que entendemos como

essas estratégias, o exemplo principal

enclaves (Caldeira, 2000:315). O que

e mais simbólico para nossa análise é

podemos ver é que enquanto os pri-

a construção de um muro em meio à

meiros são estratégias de privatização

área da favela,

denominado pelos

e seleção por parte de indivíduos que

moradores de Muro da Vergonha. O

buscam segurança e exclusividade, as 238

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segundas são táticas de privação e se-

nossa atenção de sua mensagem prin-

gregação impostas por medidas de

cipal de medo, suspeita e segregação. Esses elementos, junto com a valoriza-

policiamento disfarçadas de desen-

ção do isolamento e do enclausura-

volvimento urbano. Essas medidas de

mento e com as novas práticas de clas-

policiamento, como constatou Fou-

sificação e exclusão, estão criando uma

cault (2008: 419-421), surgem como

cidade na qual a separação vem para o

“arte de administrar a vida e o bem-

primeiro plano e a qualidade do espaço e dos encontros sociais que são

estar das populações”. A busca por

nele possíveis já mudou consideravel-

segurança, a desigualdade social, a

mente (CALDEIRA, 2000:297)

incapacidade de lidar com as diferenças socioeconômicas, a incompetên-

O interessante no caso da Fa-

cia da gestão de políticas públicas e a

vela do Moinho é que os muros não

inversão de valores entre aquilo que é

são construídos conforme a orienta-

público e o que é privado dão cores à

ção dos enclaves das classes média e

cena da cidade de São Paulo em dias

alta, os quais visam à proteção, à vi-

atuais. A transformação da área ur-

vência entre iguais e à privacidade da-

bana e a segregação das classes soci-

queles que estão dentro. O que acon-

ais por estratégias físicas e simbólicas

tece em relação à Favela do Moinho

nos possibilitam descrever a cidade

tem a mesma essência, porém de ma-

como uma cidade de muros, reve-

neira contrária. Constrói-se um muro

lando suas mudanças não somente

de 55 metros de comprimento e 50

em sua paisagem, mas em seu trajeto,

centímetros de largura em meio à Fa-

a circulação dos sujeitos e suas socia-

vela do Moinho, com o intuito de im-

bilidades.

pedir que os moradores retomassem

Muros, cercas e barras falam sobre

a área destruída pelo incêndio.

gosto, estilo e distinção, mas suas in-

Localizados entre o muro e as linhas

tenções estéticas não podem desviar

de uma ferrovia que ainda é utilizada, 239

Enfoques

Vol. 13 (1) Junho-2014

os moradores enfrentam dificuldades

ilustrar claramente o quanto, na prá-

para acessar saídas na área da favela,

tica, esse projeto apresenta enormes

uma vez que o único caminho livre

falhas (Caldeira, 2000:312-314). O que

passa a ser sob o viaduto Engenheiro

passa a existir como resultado de

Orlando Murgel. Nessas condições,

todo o discurso de exaltação à segu-

podemos dizer que o muro se consti-

rança e às técnicas de policiamento

tui como mais uma estratégia de se-

urbano a ele relacionado, é a forma-

gregação e exclusão, que remaneja

ção irregular e irrestrita de espaços de

indivíduos com o intuito de deixá-los

exceção, que podem tanto priorizar

isolados, privando suas mobilidades a

privilégios quanto reforçar desigual-

fim de criar pretextos para suas retira-

dades sociais.

das sem que necessariamente sejam garantidas outras soluções viáveis.

O totalitarismo moderno pode ser de-

Não se trata de excluí-los literal e ob-

finido, [...] como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma

jetivamente do espaço urbano, mas

guerra civil legal que permite a elimi-

de criar barreiras às suas mobilidades

nação física não só dos adversários po-

e direitos por meio do policiamento

líticos, mas também de categorias in-

de suas circulações (Foucault, 2008:

teiras de cidadãos que, por qualquer

437). Assim, se São Paulo tinha como

razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação

intuito se estabelecer como cidade

voluntária de um estado de emergên-

portadora de um projeto de urbaniza-

cia permanente (ainda que, eventual-

ção moderna, no qual a cidade é en-

mente, não declarado no sentido téc-

tendida como um espaço aberto e

nico) tornou-se uma das práticas es-

acessível a ser usado por todos,

senciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos.

exemplos como o da Favela do Moi-

(Agamben, 2004: 13)

nho e também dos condomínios fechados de classe média alta podem

A Favela do Moinho nos permite ver 240

Enfoques

Vol. 13 (1) Junho-2014

claramente em quais pontos o projeto

urbanísticos de São Paulo, existe a in-

de modernização do espaço e da ges-

tensa relação dos moradores da fa-

tão urbana São Paulo falhou. As cons-

vela com o território em que habitam.

tantes tentativas de reapropriação do

Ao se estabelecerem como comuni-

local por parte do poder público não

dade, o que os moradores da favela

instalam possibilidades de remaneja-

também procuram manter é a sua

mento que possam trazer benefícios à

identidade em relação ao local. As

população que ali vive. Os benefícios

construções de casas e demais apare-

buscados, como os próprios morado-

lhos públicos que se encontram den-

res relatam em entrevistas a jornais e

tro da favela foram idealizadas e

pesquisadores que se interessam por

construídas pelos próprios morado-

sua situação, não dizem respeito ex-

res, sem apoio da iniciativa pública.

clusivamente a questões financeiras.

Mediante todas as estratégias coloca-

Em sua campanha eleitoral (2012), o

das em prática visando à retirada das

atual prefeito da cidade de São Paulo,

famílias do local, e também devido ao

Fernando Haddad, tomou como prio-

fato de que as políticas de ocupação

ridade de sua gestão a regularização

do centro investidas pela Prefeitura

da área como posse dos moradores e

não contemplam faixas de salário bai-

a instalação de serviços públicos de

xas (de 0 a 3 salários mínimos), os mo-

saneamento e energia. Tal preocupa-

radores deram início à construção de

ção de Haddad foi registrada em um

um trabalho comunitário, no qual, a

vídeo durante sua campanha, gra-

partir dos próprios estudos realizados

vado na casa de Zeza, uma moradora

em conjunto com organizações não

da favela. No entanto, as promessas

governamentais,

ainda não foram cumpridas.

vendo projetos que visam à urbaniza-

Em oposição às falhas dos projetos

ção participativa do local. Além da ur-

estão

desenvol-

banização da área, o projeto também 241

Enfoques

Vol. 13 (1) Junho-2014

integra a perspectiva do trabalho am-

da favela, as ruas, os espaços comuni-

biental — uma vez que a maioria dos

tários, que foram pensados pelos moradores, não pelo poder público. O

moradores da favela é catador de lixo

plano vai no sentido de trazer mais

reciclável — e parcerias culturais. Essa

moradores para participar das deci-

articulação tem como objetivo su-

sões e de potencializar o que tem sido

plantar a incompetência das políticas

feito ali.

públicas municipais, criando mais Vemos que o que existe entre os mo-

oportunidades para os moradores, diminuindo a vulnerabilidade dos ado-

radores da Favela do Moinho é um

lescentes à criminalidade e contribu-

sentimento de pertencimento em re-

indo para a reurbanização participa-

lação ao local, e a favela, em si, pode

tiva e consciente do local. Em uma en-

ser considerada o maior símbolo de

trevista para o blog Mídia Indepen-

resistência na luta por moradia na ci-

dente, Caio Castor, uma das lideran-

dade de São Paulo. Por isso, deixar esse território imbricado por vivências

ças locais, explicita o intuito do plano

e mobilidades cotidianas é também

popular gerido pelos moradores: esse plano popular passa, basica-

pormenorizar o posicionamento polí-

mente, pela ideia de chamar os mora-

tico diante do descaso da sociedade e

dores para construírem juntos os pro-

do poder público em relação a ques-

jetos destinados ao local onde vivem. E

tões primordiais da sua população.

para também empoderá-los, no sentido de pensar a urbanização da comunidade como um todo. Assim, a ideia é potencializar o que já tem de bom lá. A comunidade do Moinho, por exemplo, foi construída pelos moradores. Portanto, eles têm lá o campinho de futebol, que é o principal espaço público

242

Enfoques

Vol. 13 (1) Junho-2014

Figura 4. Reivindicações no ‘Muro

impossibilitaria o acesso aos apare-

da Vergonha’

lhos públicos centrais, muito utilizados poe eles cotidianamente, uma vez que são esses aparelhos os únicos que garantem o mínimo de cidadania que essas pessoas buscam todos os dias.

Fonte: Catraca Livre

O muro construído em meio à favela nos dá possibilidade de visualizar claramente o tom das estratégias de se-

Figura 5. Muro da Vergonha

gregação e diferenciação social dentro do espaço urbano. Trata-se de um movimento inverso ao dos condomínios fechados das classes média e alta, pois quem é “preso” entre muros é o outro, aquele que deve ser separado da centralidade pública. Tal fato nos faz perceber o quanto não só as

Fonte: Sul 21

políticas públicas de inclusão não perpassam por reais problemas urbanos,

Outra queixa dos moradores que

como também — o que é pior — nos

deve ser levada em consideração

permite prever cada vez mais o des-

quando se trata do condicionamento

moronamento das capacidades de

do espaço urbano, a qual Caldeira

sociabilidade humana em uma era em

(2000:291) se refere em sua obra, é

que os avanços do conhecimento ci-

que a tentativa de expulsá-los dessa

entífico e tecnológico, bem como o

área para outra região mais afastada

243

Enfoques

Vol. 13 (1) Junho-2014

encurtamento das distâncias, deve-

e reuniões com a Administração Pú-

riam promover o progresso do inte-

blica da cidade de São Paulo como

resse e da responsabilidade na vida

forma de pressionar as autoridades a

em sociedade.

implementarem as melhorias básicas

Diferentes do muro dos condomínios

prometidas em época de campanha

que enaltecem a importância e os va-

eleitoral. Um desses atos foi a derru-

lores

(Caldeira,

bada de parte do muro pelos próprios

2000:277), tanto o muro quanto as

moradores, uma vez que essa havia

demais estratégias de segregação

sido mais uma promessa, acordada

instituídas à Favela do Moinho afir-

em reunião entre as lideranças da fa-

maram ainda mais o sentimento de

vela e o próprio prefeito, mas que, no

comunidade e a importância da resis-

entanto, não foi cumprida. Além dos

tência local e da participação política

atos práticos e simbólicos, várias

nas decisões que dizem respeito à

ações são realizadas pelos próprios

manutenção da área e a reivindica-

moradores cotidianamente, a fim de

ções por uma maior acessibilidade

trazerem melhorias para o próprio es-

aos direitos à cidade. Além da Associ-

paço.

ação de Moradores da Favela do Mo-

Em linhas gerais, às avessas dos encla-

inho, criada em 2008 como forma de

ves e condomínios das classes média

potencializar a importância das de-

e alta da cidade de São Paulo, onde

mandas diante do poder público e do

os moradores não compartilham de

interesse dos moradores em imple-

um sentimento comunitário, mesmo

mentá-las perante a falta de compro-

morando em uma mesma área regida

misso por parte da administração pú-

pelos seus preceitos de “igualdade e

blica do governo de Haddad, os mo-

segurança”, na Favela do Moinho so-

radores vêm realizando diversos atos

lidifica-se um sentimento de perten-

da

vida

privada

244

Enfoques

Vol. 13 (1) Junho-2014

cimento e de consciência pela impor-

por mecanismos e arranjos que se

tância da participação na vida pública

pautam no discurso da segurança,

através das sociabilidades que esta

mas que acabam diferenciando e,

propõe. Dessa forma, podemos dizer

consequentemente, privilegiando a

que os enclaves não só são frutos

partir de práticas de segregação. Vi-

como podem produzir consciências

mos como essas dinâmicas de exclu-

opostas sobre o espaço público, as

são têm como fundamento primordial

quais não se relacionam simples-

desigualdades econômicas, as quais,

mente ao compartilhamento do es-

imprescindivelmente, deveriam ser

paço físico, mas principalmente com

pensadas de maneira democrática

as vivências a eles atribuídas.

dentro do plano de estruturação das grandes cidades.

Conclusão:

Aonde

perdemos

a

Por meio da transformação de uma

perspectiva pública?

área central, que a princípio era destinada à elite, e que em decorrência das

O que buscamos salientar breve-

transformações econômicas e sociais

mente através do caso que a Favela

passa a ser ocupada por moradores

do Moinho nos traz não é simples-

pobres, pudemos visualizar que a re-

mente o descaso das políticas públi-

lação entre a composição pública e a

cas em relação à comunidade de

privada da sociedade urbana também

baixa renda dos grandes centros po-

se transforma, convertendo valores

pulacionais. O que quisemos eviden-

que até então se inseriam nos ideários

ciar principalmente é como as trans-

modernistas de urbanização, em in-

formações que se dão no espaço da

sígnias, concretas e simbólicas, capa-

cidade refletem na sociabilidade, e

zes de restringir, classificar e ordenar

como ambas — as transformações e

a posição dos indivíduos no espaço

as sociabilidades — são construídas

em que vivem, ferindo não apenas o 245

Enfoques

Vol. 13 (1) Junho-2014

plano das sociabilidades como tam-

não se constitui apenas como sím-

bém o próprio ideal democrático

bolo de resistência pela luta por mo-

(Caldeira, 2000:328).

radia, mas também como exemplo de

No entanto, o ponto mais interes-

participação popular na construção

sante em trazer a Favela do Moinho

de um plano urbanístico realmente

como exemplo dentro desse trabalho,

representativo daqueles que habitam

é que seu caso nos mostra como esse

a cidade, plano este que não se volta

movimento pode apresentar várias

apenas para interesses de consumo e

nuances a partir de uma mesma con-

especulação. A Favela do Moinho é

figuração de transformação do es-

capaz de representar hoje um caso

paço urbano. No caso da favela, pu-

vivo e pertinente que nos possibilita

demos observar dois movimentos. O

ver o cidadão integrado à cidade,

primeiro deles, a construção do muro

buscando usufruir de seus benefícios,

e das estratégias de reapropriação,

mas também proposto a transpor

nos revela as tentativas incoerentes

suas dificuldades, ambos de maneira

do poder público que, incapaz de

coletiva, trazendo para a contexto da

promover políticas públicas que real-

sociedade anseios e condutas comu-

mente atendam às demandas dessa

nitárias capazes de reavivar a condu-

população, promove práticas paliati-

ção político-social desse espaço.

vas, violentas e antidemocráticas guiadas por interesses econômicos e imobiliários, os quais são vigentes desde os primórdios da construção urbana de São Paulo. O segundo movimento é que, sendo a última favela da região central da cidade, a Favela do Moinho 246

Enfoques

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Figura 6. Ação coletiva de derrubada do

espacial, ou de demais estratégias

“Muro da Vergonha”

que o campo diversificado das grandes cidades como São Paulo oferecem —, podemos perceber, através do caso da Favela do Moinho, que os embates resultantes dessa situação contribuem para o sentimento de pertencimento e para o desenvolvimento de práticas e consciências po-

Fonte: Jornal GGN

líticas ativas e cientes do espaço que ocupam. A integração existente entre

Apesar da maior abertura democrá-

os moradores e a área que ocupam

tica e das melhores perspectivas de

mostra como, a partir dessa segrega-

acesso de toda população ao espaço

ção social, econômica e espacial, foi

público e político, pudemos ver, pela

possível criar entre eles o sentimento

obra de Caldeira (2000:254-255), que

da comunidade, e um movimento em

resultados antidemocráticos aconte-

prol do direito à cidade, da preserva-

cem. Mais oportunidades de moradia

ção das sociabilidades e da importân-

própria e a democratização do con-

cia em manter-se produtivos e res-

sumo de massa, por exemplo, não fo-

ponsáveis pela própria revitalização

ram fatores que contribuíram direta-

urbana. Esses moradores foram capa-

mente para o real acesso ao direito à

zes de encontrar nessas estratégias

cidadania.

obtusas de segregação do governo e

No entanto, apesar de gerar

da sociedade, símbolos e dinâmicas

uma grande incompatibilidade social

que trouxeram oxigênio a reivindica-

entre grupos cujas situações socioe-

ções políticas elementares, procu-

conômicas são diferentes — que

rando converter esses elementos em

pode tomar a forma de segregação 247

Enfoques

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verdadeiras oportunidades de progresso não somente em relação às so-

Portanto, o contraponto que torna in-

ciabilidades que engendram, mas

teressante ressaltarmos e que nos

principalmente nas afirmações políti-

guiou por grande parte desse per-

cas que propiciam. Como observa

curso é que a diminuição do senso

Caldeira (2000: 306)

democrático e da cultura política aconteceu, em grande medida, em

Na política contemporânea, as pro-

meio às classes mais abastadas, entre

messas liberais não cumpridas de cida-

seus próprios membros quando em

dania universal e, simultaneamente, a

seus enclaves, e também quando es-

reafirmação de algumas dessas pro-

tão diante daqueles que, a partir das

messas têm sido articuladas pelos novos movimentos sociais. Eles têm assu-

classificações dessa classe, são consi-

mido várias formas, seja afirmando o

derados diferentes. No entanto, e ao

direito de grupos específicos (negros,

contrário do que se vê nesse primeiro

populações indígenas, gays, e mulhe-

caso, esses mesmos elementos que

res), seja tentando expandir os direitos

foram comprometidos mediante os

de grupos sociais excluídos (como no caso dos movimentos de moradores

interesses e condutas das classes mé-

da periferia de São Paulo reivindicando

dia e alta, ao pensar sobre si mesmas

seus “direitos à cidade”). Em geral, es-

na cidade, se revigoraram e são de ex-

pecialmente em sua encarnação libe-

trema importância para os grupos se-

ral, os movimentos sociais articulam o

gregados, em suas práticas e sociabi-

que se pode chamar de um ataque positivo aos ideais liberais modernos: seu

lidades entre eles próprios e também

objetivo é ainda expandir os direitos, a

em suas afirmações e reivindicações

liberdade, a justiça e a igualdade, e eles

diante da sociedade e da esfera pú-

buscam modelos que incluam os ex-

blica. A importância da busca por

cluídos e, assim, atinjam esses objeti-

acessos e igualdades representativas

vos de maneira mais efetiva. (Caldeira, 2000:306)

248

Enfoques

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na participação política diante da so-

sentimento de pertencimento e os va-

ciedade e do poder público que os

lores comunitários perderam o inte-

restringem, em si, foi o principal com-

resse pelas classes média e alta, eles

ponente revitalizado, impulsionando

tomam cada vez mais vigor em meio

todas as outras demandas. Dessa

aos grupos segregados.

forma, a Favela do Moinho nos permite dizer que se o espaço público, o

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250

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