UM ENCONTRO COM MARTIN LINGS EM MACHU-PICHU

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UM ENCONTRO COM MARTIN LINGS EM MACHU-PICHU 1 Por Mateus Soares de Azevedo

O lugar foi o santuário de santa Rosa de Lima (1586-1617), padroeira da América Latina e primeira santa canonizada do continente. Era uma manhã fria de inverno em Lima, Peru, em 1985. Este foi o local e o momento de meu primeiro encontro com este homem notável que foi Martin Lings, nascido em Manchester, Inglaterra, em 24 de janeiro de 1909.

Com um grupo de brasileiros, fomos a Lima participar de congresso sobre filosofia das religiões, organizado pelo Instituto de Estudios Tradicionales del Peru. Considerei um sinal auspicioso o fato de Martin Lings, luminar da Filosofia Perene e companheiro de décadas do grande Frithjof Schuon, ter visitado com grande interesse, e mesmo devoção, o santuário de Santa Rosa de Lima, discípula de Santa Catarina de Siena, e também que tivesse ocorrido lá minha primeira oportunidade de falar-lhe pessoalmente.

A primeira impressão que tive de Martin Lings foi a de um ser humano delicado como seda, calmo como um cisne, alerta como um condor dos

1 Capítulo de “O Livro dos Mestres” (São Paulo, Ibrasa, 2016). Originalmente publicado em inglês no journal Sacred Web No. 15 (Vancouver, Canadá). 1

Andes, delgado como um galgo inglês, mas ao mesmo tempo firme como uma catedral.

O místico e esoterista inglês Martin Lings (1909-2005), destacado autor da Filosofia Perene no século XX.

Eu havia lido dois de seus livros e tencionava traduzir um deles, Sabedoria Tradicional e Superstições Modernas, pois acreditava que o seu conteúdo seria intelectualmente útil para os leitores brasileiros e, ademais, constituiria uma ótima seqüência ao clássico de René Guénon, A Crise do Mundo Moderno. Lings me recebeu com atenção e cortesia, e deu-me autorização para a tradução da obra, tarefa que empreendi ao retornar ao Brasil (o livro foi posteriormente publicado pela editora Polar, de São Paulo).2

Na volta da visita ao santuário de Santa Rosa, em Lima, pude sentar-me ao seu lado no ônibus e conversamos por um bom tempo. Festina lente (“apressa-te devagar”, ou “faça rapidamente, mas calmamente”) foi um lema que lhe cairia bem, pensei, pois parecia ser o homem mais sereno do mundo, 2 Américo Sommerman, editor da Polar, publicou uma segunda edição de Sabedoria Tradicional & Superstições Modernas em 2015. 2

mas, simultaneamente, sabia ser ágil e rápido quando as circunstâncias obrigavam.

Em suas palestras no congresso de filosofia das religiões, expôs a sabedoria tradicional com clareza e precisão, criticando de forma penetrante os erros e as contradições da mentalidade moderna. Ao falar, parecia crescer em tamanho; ao expor a Verdade universal, parecia alcançar a dimensão de um gigante no palco do salão de conferências. A Verdade, descobri mais tarde, tem a capacidade de transformar homens em gigantes. Transfigurado pela Verdade, Lings parecia hipnotizar a plateia com o poder do conhecimento e a presença pessoal do sagrado.

Após o evento na litorânea capital peruana, ascendemos quase três mil metros até alcançar o “antigo pico” de Machu-Pichu. Foi ali, no último bastião da civilização inca, que tive a segunda oportunidade de encontrar o bom doutor Lings. Escondida nas montanhas e conhecida somente da elite dos índios, Machu-Pichu foi uma espécie de “cidade esotérica”, oculta nas alturas da curiosidade mundana. Em razão disso, e também do fato de que a religião dos índios constituía um ramo da “tradição primordial” de que falara René Guénon, o local também me pareceu significativo.

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Apesar do fato de que Martin Lings tinha então 76 anos – era a pessoa de maior idade num grupo que incluía figuras ilustres como Huston Smith, Joseph Epes Brown, S. H. Nasr, Rama Coomaraswamy, Victor Danner e Gay Eaton, todos autores internacionalmente reputados --, ele surpreendeu seus companheiros pela agilidade e resistência nas excursões. Era sempre o primeiro a subir um monte ou enfrentar escadarias de milhares de degraus. No começo do passeio, Rama Coomaraswamy, um médico, expressou sua preocupação com a saúde de Lings, especialmente naquela altitude. O Dr. Coomaraswamy pretendia caminhar ao lado de seu companheiro mais idoso, para assegurar que tudo corresse bem. Mas, logo desistiu de sua autoimposta missão. O fato é que simplesmente não conseguiu acompanhar o ritmo de Lings! Nem Coomaraswamy, nem qualquer um dos outros, puderam andar pelos espaços de Machu-Pichu tão rapidamente como o homem mais idoso do grupo. A impressão que dava é que ele nunca se cansava! Martin Lings parecia em melhor forma do que qualquer um de nós.

Durante o passeio, ele fez a incomum observação de que as borboletas do Hemisfério Sul eram mais amigáveis do que as do Hemisfério Norte. Ele era um mestre da Filosofia Perene e um homem engajado na pura espiritualidade, de maneira que me surpreendeu ouvir tal comentário num campo que, por falta de melhor termo, poderíamos talvez denominar de 4

“entomologia comparada”. De fato, os delicados insetos se aproximavam dele sem nenhum temor. Talvez quisesse indicar que o mundo animal reponde à sua própria maneira às pressões e agitações fúteis do mundo moderno – isto é, quanto menos modernizado e industrializado uma nação, mais “amigáveis” seus habitantes, ainda que sejam borboletas! Tive o privilégio de falar com Martin Lings mais uma vez, alguns meses antes de sua passagem para os “Campos Elíseos” (ele faleceu em 2005, em sua casa, em Westerham, Kent, ao sul de Londres), quando lhe telefonei para trocar impressões sobre um texto que faria a respeito da publicação de seu livro “A Arte Sagrada de Shakespeare” no Brasil. (3) Ele então disse coisas que eu desconhecia, como, por exemplo, acerca do interesse de Guénon pelo “teatro esotérico” de Shakespeare e o apoio que o metafísico francês deu a Lings em sua interpretação da dimensão esotérica ou mística do teatro do bardo de Stratford-upon-Avon. Fizemos-lhe uma derradeira visita em sua rústica, mas acolhedora casa ao sul de Londres, onde ele nos recebeu com sua proverbial hospitalidade e generosidade. Serviu-nos um ótimo café brasileiro, um delicioso chá britânico com bolo e nos guiou em um agradável e instrutivo passeio pelo country side inglês. Era o mais humilde e generoso dos homens, qualidades que sabia conjugar com uma poderosa força de vontade e uma inteligência penetrante. Martin Lings foi um exemplo vivo de combinação harmoniosa dessas diferentes virtudes com extrema suavidade no trato humano.

3 O livro foi recentemente republicado por edições Polar, de São Paulo, em 2015. 5

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