Um ensaio sobre a navegabilidade do Tejo: O achamento das \" âncoras e âncoras fateixa de Abrantes \"

May 28, 2017 | Autor: Vanda Luciano | Categoria: Modern History
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Um ensaio sobre a navegabilidade do Tejo: O achamento das “âncoras e âncoras fateixa de Abrantes” Vanda Luciano*

Resumo: O achamento de um conjunto de âncoras no Rossio ao Sul do Tejo, Abrantes, impossíveis de datar com precisão quanto ao seu tempo de uso, dão o mote para um ensaio sobre a navegabilidade do Tejo ao longo dos tempos, de que estes objectos foram protagonistas e testemunhos, bem como dos diferentes povos que foram cruzando as suas águas e as suas motivações.

Abstract: The finding of a set of anchors at Rossio ao Sul do Tejo, Abrantes, impossible to date precisely as to time of use, gave the tone for an essay on the navigability of the Tagus over time, that these objects were protagonists and testimonies, as well as the various people who were cruising these waters and their motivations. Palavras-chave: Rio Tejo; âncoras; embarcações; navegabilidade; Key-words: Tagus river; ancors; boats; navigability;

O conjunto das âncoras aqui apresentadas faz parte do espólio recolhido durante operações de dragagem de areias no Rio Tejo, na zona do Rossio ao Sul do Tejo, Abrantes. Por terem sido encontradas fora de todo e qualquer contexto arqueológico, énos muito difícil aferir cronologias que nos permitam datar com precisão o tempo do seu uso. Desta forma, apenas poderemos indicar a larga diacronia que nos é dada pela literatura quanto ao seu período de utilização. Ainda que dois dos exemplares nos pudessem oferecer a possibilidade de procedermos às suas datações por C14, por terem componentes em madeira, ambas encontram-se expostas aos elementos, o que invalida

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um estudo mais aprofundado. Trata-se de um conjunto formado por 11 âncoras de tipologias diferentes e que passo a apresentar: 

Âncoras de “fateixa”, são assim designadas como sendo um género/tipo particular, usadas desde a época Moderna até aos nossos dias, com algumas variações. Este tipo de âncoras é usado também por pescadores, em embarcações mais pequenas, para unhar fundos de rocha (quando o ferro prende ao fundo). Foram encontradas 9 e encontram-se numa “colecção” privada.



Âncoras “almirantado”, constituídas por cepo de madeira, duas hastes e duas unhas (uma delas faltando, em ambas as âncoras). Deixa-se em aberto a possibilidade de ambas se tratarem de âncoras de tipo “gata”, ou seja, com apenas uma haste e uma unha (sendo que a que supostamente está partida, na realidade nunca existiu). Pode ser usada em todos os tipos de fundo. Foram encontradas 2, podendo ser vistas no Castelo de Abrantes e na Biblioteca da mesma cidade.

A questão inglória acerca da temática das âncoras reflecte-se no discurso de Alexandre Monteiro quando encara este tipo de achados, para mais fortuitos, como “um artefacto que, quando muito, apenas nos indica que um navio passou por ali, tal como a presença de um embelezador de jante perdido numa beira de estrada, pouco nos diz sobre o carro que a perdeu, mas apenas que por lá passou”. Ou seja, sem que tenham sido encontradas em contexto, seguido de trabalhos arqueológicos que corroborem cronologias, pouco mais poderemos adiantar. Todavia, algo indesmentível há a dizer da sua presença no leito do rio Tejo e que Alexandre Monteiro muito tem razão: efectivamente um navio passou por ali e perdeu a sua âncora.

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A tradição dos estaleiros de construção e reparação de navios da zona de Abrantes remonta ao Séc. XVI, especializando-se em embarcações de baixo calado que pudessem cruzar as águas do Tejo (tal como Constância e Valada) em direcção a Lisboa, à semelhança de outros portos da região. Este movimento enquadra-se em duas dimensões: a primeira tende que ver com a exploração dos recursos piscícolas, de que a “Cultura Avieira”, imortalizada por Alves Redol (REDOL, 1942), é herdeira e uma segunda, de transporte de pessoas e mercadorias rumo à capital. Desde tempos remotos que sempre foi assim em relação a este fluxo. Os Fenícios, vindos do próximo Oriente, depois de estabelecidos no actual Sul de Espanha, contornam toda a nossa costa, sobem o rio Tejo e vêm fundar a sua primeira colónia no Ocidente Peninsular precisamente no que hoje é Santarém (ARRUDA, 2002a). Muito certamente não terão vindo ao acaso, mas sim com uma estratégia de fixação neste território, tendo como grande atractivo o próprio Rio Tejo, verdadeira “auto-estrada” do seu tempo para o contacto com as regiões do hinterland e os seus recursos. Estrabão, no livro III da sua Geographia, séculos mais tarde, dá-nos pistas para o motivo dessa fixação de populações exógenas a este território: as areias auríferas do Tejo. De facto, os Fenícios tornaram-se os primeiros a explorar intensivamente os recursos do rio em toda a sua extensão navegável, tendo-se estabelecido mais tarde a jusante e fundando Olisipo (Lisboa), praticamente na sua foz. Desta forma, esta potência mercantil do I milénio a.C. conseguia controlar e portajar o movimento fluvial a montante, mas também, quase na barra do Tejo, as entradas indesejadas. A presença Romana ribeirinha igualmente se fez notar logo a partir do primeiro momento da sua presença no nosso extremo Peninsular. Decimus Junius Brutus aproveita a cidade de Scallabis e funda um acampamento junto dela. Roma não a arrasa, antes a refunda como Praesidium Iulium Scallabis e nela se instala, novamente explorando os recursos que o Tejo lhes proporciona. Durante o

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período Muçulmano, o seu papel de grande importância na economia mantém-se, para além de se tornar também, claramente, um grande obstáculo à conquista Cristã. No De Expugnatione Scallabis, a crónica cistercience encomendada certamente por D. Afonso I, onde o herói da conquista, o próprio rei, nos descreve as dificuldades que o Tejo lhe trazia para a conquista da cidade, bem como os atractivos económicos que proporcionava aos Muçulmanos: “auríferas areias”, “abundância de peixe e salubridade das suas águas”. Seria “sem dúvida, um paraíso de Deus” (PIMENTA, 1948). Nos finais da Idade Média, assistimos a um intensificar do tráfego no rio, quer a montante, quer a jusante, com o aparecimento de uma série de embarcações diferentes consoante o tipo de serviço que prestavam, mas também ao gosto do próprio estaleiro ou povoação ribeirinha que o construíam (NABAIS, 1995a). Assim, o que genericamente se denominava de “barca”, começou a ser individualizado consoante a forma da própria embarcação, com a característica comum de serem de baixo calado, precisamente para poderem cruzar as águas do Tejo que, assoreando lentamente, se foram tornando cada vez mais baixas. Este facto não invalida que alguns navios de grande tonelagem (50 a 70t.) não pudessem percorrer o rio em determinado tempo, tendo como limite a montante, precisamente o cais do Rossio de Abrantes. Um dos aspectos que foram pautando o movimento de embarcações no Tejo foi precisamente a sua dinâmica de assoreamento ao longo dos tempos. Se durante a presença Romana estamos já no dealbar da influência da chamada “Transgressão Flandriana” (SENNA-MARTINEZ, 1994) e o Tejo apresenta já algumas dificuldades de navegação, principalmente durante o Verão, derivado à seca, as mesmas foram-se agravando com o passar dos tempos e por isso fomos assistindo a diferentes esforços feitos durante o tempo da monarquia para manter o Tejo navegável. Por iniciativa do Infante D. Luís, é o que acontece entre 1543 e 1544, quando o leito do rio é desviado

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cerca de 1 km para Norte, aproximando-o da Barquinha e da Cardiga e desviando-o cerca de 10 km da povoação de Carregueira. De resto, este é um período bastante prolífero em termos de planos hidrográficos para o Tejo. Durante o domínio Filipino, acalenta-se a ideia de poder ligar as duas capitais Ibéricas através do rio, ideia essa retomada apenas no final do Séc. XIX, mas sem quaisquer fins práticos. 150 anos mais tarde desses primeiros trabalhos houve nova intervenção humana, o que dealbou, já no Séc. XVII, numa série de queixas apresentadas à Coroa, no sentido de tomar medidas para controlar o Tejo, que entretanto começou a alagar terrenos onde antes não corria (DIAS, 1984). O facto desagradava aos latifundiários que viam as suas terras diminuídas em extensão, mas agradavam aos utilizadores frequentes do rio, que assim conseguiam uma navegação mais fácil. Por isso, D. Pedro II ordena a implantação de tanchões ao longo das margens, como forma de segurar as terras e evitar o assoreamento, mas que são repetidamente retirados pelos populares para poderem assim mais facilmente levar as suas embarcações à sirga e por isso acabando por ser durante sancionados por alvará datado de 1694 (CARDIM, sd). Durante a época contemporânea, até finais do Séc. XIX, diversos autores literários dedicaram algumas páginas das suas obras a descrever traços da navegabilidade no rio Tejo. Tomemos por exemplo Eça de Queirós, que na sua obra maior, Os Maias, descreve brevemente a pujança e a beleza do Tejo quando “Tomás de Alencar”, eterno romântico, diz para o regressado “Carlos da Maia”: “– (…) Olha tu para isso, para – Com efeito, é encantador!

esse céu, para esse rio, homem!

Todos três, durante um momento, pasmaram para a incomparável beleza do rio, vasto, lustroso, sereno, tão azul como o céu, esplendidamente coberto de sol.”

É neste período que o rio, perdendo capacidade para os navios de maior tonelagem, ganha enlevo mais uma vez com o advento da chamada “Cultura Avieira”. 5

Surgem novos testemunhos ligados à faina fluvial com a instalação dos varinos nas margens do Tejo apontando-se muitas vezes para factores ambientais ou acidentais na escolha destes sítios. Poderá afirmar-se, no entanto, que estes escolhiam os locais mais desenvolvidos comercialmente e com maior possibilidade de escoamento dos seus produtos. O termo “avieiros” aparece para designar este povo que vivia da pesca no rio, embora eles se vissem somente como pescadores e não conscientes dessa identidade. É neste contexto, que surgem embarcações tais como: fragatas, botes, catraios, barcos de água-a-cima e faluas, assegurando o transporte de bens e mercadorias. Mais tarde, surge o barco varino, cujo uso propicia a navegação em águas baixas e que são já contemporâneos da industrialização nas margens do Tejo. Até meados do séc. XX a navegação do Tejo foi intensa e sem dúvida importante pela ligação do litoral com os meios mais interiores, garantindo uma boa circulação de bens e pessoas. Em alguma documentação nota-se que desde Abrantes a Lisboa circulariam ainda embarcações com cerca de 20 a 40 toneladas e com 3 a 5 decímetros de calado. Designados como “barcos de água-a-cima”, seriam estes que, dadas as condições do Tejo, conseguiriam navegar nas suas águas menos profundas. Em conclusão, o estudo destes achados isolados não poderá fazer sentido se não se complementar com outros que possibilitem perceber o seu significado. A grande impossibilidade neste caso é a questão da datação segura das âncoras, uma vez que, para além de terem sido encontradas de forma desprovida de todo e qualquer contexto arqueológico, têm um espectro cronológico bastante dilatado e não são características de um só tipo de embarcação que nos pudesse dar informação adicional. Neste caso concreto, os artefactos pouco ou nada falam por si. Todavia, algo podemos aferir da presença destes elementos com muito certeza: são testemunhos da navegabilidade do rio Tejo até ao porto de Abrantes, neste caso concreto, em outros tempos já idos. Se por um 6

lado as âncoras de fateixa apresentam tamanhos compatíveis com as embarcações de pescadores de rio, já as duas âncoras “almirantado”, pelo seu tamanho, dão-nos a ideia de trânsito fluvial feito com navios de tonelagem considerável. O Tejo de então era assaz diferente do que temos hoje. Constituía um “braço de mar”, pólo agregador de povoações ao longo das suas margens, bem como via de acesso ao hinterland. A exploração económica do rio permitiu a combinação de recursos, terrestres e fluviais, onde seriam propícias actividades como a pastorícia e a agricultura, bem como as actividades ligadas à exploração piscícola. Também estas áreas fluviais são favoráveis à transitabilidade, a pé ou em embarcações, das mais diversas gentes e mercadorias. Nesta questão, importa perceber que Abrantes e o seu porto fluvial tiveram uma grande importância, tendo em conta que era um local de recepção de matérias-primas, produtos manufacturados de regiões mais interiores que seriam depois reencaminhados para Lisboa e vice-versa. Este porto de Abrantes, tal como o de Constância são mencionados em 1819 num Tratado entre os Reis de Portugal e Espanha (ainda este que não tivesse qualquer consequência prática), mas atestando a sua navegabilidade até períodos já mais tardios e que podem ainda ser contemporâneos destas âncoras. Terá sido, porventura, uma das últimas intenções estatais para reavivar o trânsito fluvial no rio Tejo entre Portugal e Espanha. Actualmente sabe-se que haveriam ainda planos privados para que isso acontecesse, mas a construção de uma série de pontes com tabuleiros bastante baixos (como é o caso da A10), inviabiliza a navegação de navios de maior tonelagem. Por tudo isto, apenas a marinha de recreio e alguma marinha de pesca artesanal que ainda subsiste, mormente com uma forte componente de conservação etnográfica ou turística, poderá manter a tradição da navegação no rio Tejo.

* Arqueóloga associada da AIDIA; 7

Bibliografia consultada: CARDIM, Pedro, coord. (sd) – Ius Lusitanae: Fontes Históricas do Direito Português, Lisboa, Departamento de Histórica da Universidade Nova de Lisboa. DIAS, José Alves (1984) – Uma grande obra de engenharia em meados do Século XVI: A mudança do Curso do rio Tejo, Lisboa, Estampa. ARRUDA, Ana Margarida (2002a) – “A Alcáçova de Santarém e os Fenícios no Estuário do Tejo”, in ARRUDA, Ana Margarida, coord. (2002) – De Scallabis a Santarém, Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia: pp. 19-35. CARDOSO, Teresa Alves (1995) – “O Tejo na literatura”, in Navegando no Tejo, CCDRLVT, Lisboa: pp. 30-33. GIL, Adriano Beça (2008) – “O aproveitamento dos principais rios portugueses”, in Contributos para a navegação fluvial em Portugal, Comunicação apresentada na Academia de Marinha. MONTEIRO, Alexandre; CASTRO Luís Filipe & GÉNIO, Margarida (2010) – “Vida e morte do caravelão “que andava no castelo e trato de Arguim”: Autópsia de um navio dos Descobrimentos”, in Actas do Colóquio Internacional A herança do Infante, Sessão III “Revolução Geográfica”, Lagos, Câmara Municipal de Lagos: pp. 359-365. NABAIS, António (1995a) – “O Estuário do Tejo no tempo dos Descobrimentos”, in Navegando no Tejo, CCDRLVT, Lisboa: pp. 25-27. NABAIS, António (1995b) – “Os barcos típicos do Tejo”, Navegando no Tejo, CCDRLVT, Lisboa: pp. 104-110. NABAIS, António (2009) – “Barcos do Tejo”, in Açafa on-line, n.º 2, Associação de Estudos do Alto Tejo, Vila Velha de Ródão. PIMENTA, Alfredo, comp. (1948) – “A conquista de Santarém” (De expugnatione Scallabis), in Fontes Medievais da História de Portugal, Lisboa, Sá da Costa: pp. 93-106. QUEIRÓS, José Maria Eça de (1888) – Os Maias, Lisboa (ed), Livros do Brasil: p. 694. REDOL, Alves (1942) – Os Avieiros, 2.ª ed., Lisboa, Portugália. SENNA-MARTINEZ, João Carlos de (1994) – “Entre Atlântico e Mediterrâneo: Algumas reflexões sobre o Grupo Baiões/Santa Luzia”, in Trabalhos de Arqueologia da E.A.M., n. 2, Lisboa, pp. 215-232.

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Anexos:

Fig. 1 – Âncora “almirantado” da Biblioteca Municipal de Abrantes – pormenor do cepo;

Fig. 2 – Âncora “almirantado” da Biblioteca Municipal de Abrantes;

Fig. 4 – Âncora “almirantado” do Castelo de Abrantes;

Fig. 6 – Âncoras “fateixa” na Empresa de Transportes “Mendes” – pormenor do conjunto;

Fig. 3 – Âncora “almirantado” da Biblioteca Municipal de Abrantes – pormenor do braço, pata e unha;

Fig. 5 – Âncora “almirantado” do Castelo de Abrantes – pormenor do anete e do cepo;

Fig. 7 – Âncora “fateixa” na Empresa de Transportes “Mendes” – pormenor individual;

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