Um Estudo do Pensamento: Pressupostos Epistemológicos dos Discursos a favor e Contra as Cotas Raciais.

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XIV CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 28 S 30 DE JULHO DE 2009, RIO DE JANEIRO-RJ

GT – Questões Étnicas e Raciais. Trabalho: UM ESTUDO DO PENSAMENTO: PRESSUPOSTOS EPISTEMOLÓGICOS DOS DISCURSOS A FAVOR E CONTRA AS COTAS RACIAIS. MENDES, Pedro Vítor Gadelha, Universidade Estadual do Ceará - Uece

FORTALEZA-CE, JUNHO DE 2009

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1. INTRODUÇÃO A mão-de-obra escrava de origem africana foi o sustentáculo econômico da Colonização Portuguesa no Brasil, até 1888, quando, por decreto, passou a ser considerada ilegal. Em algumas dezenas de anos, todos os cidadãos brasileiros, independente de raça ou gênero, passaram a ser iguais perante a constituição brasileira. Mas, enquanto essa igualdade formal era fixada no papel, substancialmente os negros continuaram sendo segregados, desrespeitados e excluídos da sociedade brasileira. A marginalização

do

negro

de

sua

condição

humana

se

perpetuou

até

a

contemporaneidade, em que a contradição entre a norma e o tratamento dado ao negro se tornou tão grande que não admira que o racismo seja um tema tão delicado no Brasil. Atualmente, um dos debates que mais tem gerado polêmica diz respeito ao “Estatuto da Igualdade Racial”, projeto de lei que aguarda aprovação no Congresso Nacional. Entre a determinação de adoção de várias ações afirmativas, a que mais tem gerado discussão, principalmente no meio acadêmico, é a reserva de cotas nas universidades federais para alunos negros e aborígenes provenientes da escola pública. Essa política tem dividido opiniões em toda a sociedade civil. Motivado pelas questões suscitadas por essa polêmica e diante da necessidade de escolha de um tema a ser pesquisado na disciplina de “Prática de Pesquisa II”, ministrada pelas professoras Sulamita Vieira e Auxiliadora Lemenhe, escolhi realizar uma análise dos discursos que cercam o debate sobre cotas. Esse debate pode ser acompanhado nos mais diversos meios de veiculação, entre grupos e entre intelectuais que defendem as suas opiniões de forma isolada. Meu critério para a seleção de quais grupos eu deveria selecionar para a contraposição foi o engajamento de cada um em fazer ouvir as suas opiniões e o impacto de suas ações para o debate a nível nacional1 Não é à toa que os agentes envolvidos foram os responsáveis pela publicação dos dois mais recentes manifestos sobre a adoção de cotas: um favorável e um contrário, documentos-chave para a realização deste trabalho. Quais são os argumentos do grupo contra e do grupo a favor dessa política? Este trabalho pretende identificar estes argumentos e lançar luzes sobre as conexões que se estabelecem entre eles. Em que se embasa o argumento de cada grupo? Com este trabalho pretendo fazer uma análise dos discursos das facções envolvidas com essa polêmica. O que as faz discordarem? 1

Iniciamente a pesquisa se propôs a analisar as opiniões contrárias e favoráveis no universo dos antropólogos e dos militantes do movimento negro. No entanto, devido à diversidade de opiniões, mudei o meu foco para os dois principais grupos organizados que tem se pronunciado por meio de cartas abertas (manifestos).

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Rastrearemos as suas diferentes opiniões para alcançar o terreno que lhes é comum e identificar as raízes de suas divergências. Para a realização deste trabalho, conversei com pesquisadores da temática racial e realizei entrevistas com os mesmos. Apesar de não me referir a nenhum deles neste trabalho, a sua contribuição foi determinante para as reflexões que aqui construí. Dentre elas destaco os militantes do movimento negro Fátima Vasconcelos, Patrícia Bettencourt, Carlos Magalhães e José Jorge de Carvalho. Como bibliografia, escolhi produções dos dois grupos a serem analisados. As opiniões contrárias às cotas foram extraídas da carta aberta ao congresso nacional “Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais”, de 2008, e do livro Organizado por Peter Fry e Yvonne Maggie “Divisões Perigosas”. As opiniões favoráveis foram extraídas do manifesto “120 Anos de Luta pela Igualdade Racial no Brasil – Manifesto em Defesa da Justiça e Constitucionalidade das Cotas”, também de 2008, e da terceira edição da revista “O Público e o Privado” editada pelo Mestrado de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Outras informações foram colhidas no sítio eletrônico da Câmara do Deputados. Como forma de tornar a leitura do texto mais fluida, em alguns momentos substituí termos como “grupo defensor da política de cotas raciais” e “grupo contrário à adoção das políticas de cotas raciais” por simplesmente grupo pró-cotas e grupo anti-cotas, respectivamente. Confesso que, como militante defensor das cotas, tive dificuldade em analisar os discursos que se opunham a essa política. Essa discussão me causa uma certa paixão, tanto que não me atrevo da denominar este trabalho de “imparcial”, apesar de meu esforço. Este sentimento ligado ao debate, em alguns momentos, fez com que eu sentisse minhas reflexões um tanto “nubladas”. Mas, com o tempo e maturidade que meus questionamentos foram adquirindo, as idéias foram se organizando e tomando forma. Passei a enxergar diferentes naturezas nos argumentos e as funções destes nos discursos. No primeiro capítulo, tento traçar um histórico do surgimento da política de cotas, incluindo os marcos da polêmica de sua implantação no Brasil. No segundo capítulo, apresento a justificativa dos que defendem a necessidade desta política para a realidade brasileira. No terceiro, quarto e quinto capítulos, analiso o comportamento de ambos os grupos em relação aos dados estatísticos disponíveis sobre a população brasileira. Nesses últimos três capítulos, aprofundo a discussão dos argumentos favoráveis e contrários às cotas. 4

2. UM BREVE HISTÓRICO DA POLÍTICA DE COTAS E A POLÊMICA DE SUA ADOÇÃO NO BRASIL. Apesar de ser um debate muito polêmico hoje no Brasil, a defesa de cotas para grupos socialmente excluídos é uma idéia que remonta às primeiras décadas do século XX em outros países. Essa política é debatida desde 1930 na Índia por B. R. Ambedkar, um dos fundadores da nação indiana junto a Nehru e Gandhi. Ambedkar foi o relator da constituição indiana, introduzindo no texto, de forma direta, a reserva de cotas para os dalits, a casta dos “intocáveis” da qual Ambedkar fazia parte e que fora, durante toda a história indiana, duramente segregada. No Brasil, a primeira apresentação formal de uma proposta de ações afirmativas foi em 1945, no Rio de Janeiro, durante a Convenção Nacional do Negro Brasileiro. Um dos documentos resultantes daquele evento foi o “Manifesto à Nação Brasileira” que, com a intenção de valorizar a presença do negro em todos os setores, definia como uma de suas proposições: “lutar para que, enquanto não for tornado gratuito o ensino em todos os graus, sejam admitidos brasileiros negros, como pensionistas do Estado, em todos os estabelecimentos particulares e oficiais de ensino secundário e superior do país, inclusive nos estabelecimentos militares”. Não podemos dizer com certeza quando este debate tomou as proporções que tem hoje na sociedade brasileira, mas, sem dúvida, podemos destacar alguns marcos que propiciaram um maior enfoque para a questão. Entre eles está a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, que em 1995 entregou ao então presidente Fernando Henrique Cardoso um documento que incluía a seguinte demanda: “Desenvolvimento de ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, á universidade e às áreas de tecnologia de ponta”. A ocasião também ficou marcada como sendo a primeira vez em que a principal autoridade pública do País reconheceu a existência do racismo e da discriminação racial no Brasil. Desde então, acadêmicos e movimento negro protagonizaram uma luta que levou o Estado Brasileiro a elaborar o “Plano Nacional de Combate ao Racismo e Intolerância” que faz parte de todo um processo preparatório para a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, ocorrida em agosto de 2001 na África do Sul. Lá, consciente da desigualdade racial existente em nosso país, a comunidade internacional exerceu forte pressão para que ações afirmativas fossem adotadas no Brasil. Diante disso, nosso governo determinou “que sejam implementadas ações afirmativas na área da educação como 5

instrumento fundamental de promoção da igualdade” e, de forma mais específica, “que sejam estabelecidas cotas para a população negra nas universidades”. Entre as Universidades, as primeiras a instituírem a política de cotas para negros foram a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), isso em 2002, através de uma lei aprovada em 2001 pela Assembléia Estadual do Rio de Janeiro. Essa medida causou grande polêmica, envolvendo ações judiciais, audiências públicas e debates internos nas duas universidades. No entanto, as cotas raciais permaneceram e foram, pouco a pouco, adotadas em outras universidades. Em 2003, a Universidade de Brasília (UnB), partir de uma proposta apresentada em 1999, foi a primeira instituição pública a adotar cotas raciais com base na autonomia acadêmica. Foi ela também a primeira instituição federal de ensino superior a reservar cotas para negros. No dia 25 de novembro de 2005 é apresentado ao Congresso Federal o projeto de lei redigido pelo Senador Paulo Paim intitulado “Estatuto da Igualdade Racial”, que propõe a adoção de várias ações afirmativas. Ao que tudo indicava, o Estatuto seria votado no ano de 2006. Impulsionados pelo clima efervesceste de debates a respeito, no dia 30 daquele ano, um grupo de intelectuais, entre eles Peter Fry e Yvonne Maggie, lançam o manifesto intitulado “Carta Pública ao Congresso Nacional Todos têm Direitos Iguais na República Democrática” que questionava a legalidade das cotas diante da Constituição Brasileira. No dia 29 de junho do mesmo ano, um manifesto intitulado “Manifesto em Favor da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial” é lançado. Contraposto ao primeiro, este manifesto foi redigido por um outro grupo de intelectuais, entre eles o Frei David do Santos e José Jorge de Carvalho. O Estatuto passa a aguardar a sua aprovação no Congresso, até que, no dia 21 de abril de 2008 outro manifesto contrário ao estatuto é lançado. Intitulado “Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais”, este manifesto foi redigido e assinado pelo mesmo grupo de intelectuais contrários às cotas. No dia 13 de maio desse mesmo ano, outro manifesto foi escrito e apresentado ao congresso e à população. Intitulado “120 Anos de Luta pela Igualdade Racial no Brasil – Manifesto em Defesa da Justiça e Constitucionalidade das Cotas”, esse manifesto, além de reiterar a importância das cotas para a realidade brasileira, ainda responde a argumentos do manifesto anterior.

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3. POR QUE COTAS? Depois de ler e as opiniões e justificativas de cada grupo, tive a impressão de que o grupo pró-cotas mantêm seus argumentos embasados em terminologias e percepções mais semelhantes entre si, do que o grupo contrário às cotas, que apresentou percepções mais variadas e diferentes. Provavelmente isso se dá porque o grupo favorável às cotas se utiliza de poucos argumentos que justificam a necessidade das mesmas. Poucos, porém, na percepção dos mesmos, altamente legítimos e pautados pela realidade. Imagino que o fato de serem poucos esses os argumentos possibilita que haja uma maior uniformidade na forma de defender a sua bandeira. Entre o grupo pró-cotas os discursos são mais convergentes. A implementação da política de cotas é defendida por esse grupo com base em dois argumentos principais. Um primeiro calcado na constatação de que os negros no Brasil permanecem excluídos dos espaços brasileiros com melhores condições de vida, seja na educação, na política ou na saúde. Para isso, eles se utilizam de vários dados estatísticos, entre os quais podemos destacar um apresentado por José Jorge de Carvalho: “os negros, que representam 45% da população do país, somam apenas 2% da população universitária brasileira; os brancos e amarelos, que representam 54% da população, detêm 98% das vagas atuais do ensino superior” “Então, se o Estado brasileiro aloca recursos consideráveis para a manutenção desse conjunto de universidades públicas que apenas absorve 1 de cada 200 cidadãos, é de se esperar que essa elite universitária represente a diversidade étnica e racial do país para melhor pensar e atuar sobre seus problemas.” José Jorge de Carvalho.

As cotas para o ensino superior, no contexto brasileiro, seriam mais um meio, dentre tantas outras ações afirmativas, de promover a ascensão econômica de uma população negra historicamente perseguida. Mas não é apenas para corrigir a subrepresentatividade da população negra nas esferas de poder e de produção científica que servirá as cotas. No entendimento deste grupo, a correção dessa subrepresentatividade também trará benefícios para a natureza da produção científica gerada no Brasil. Para José Jorge de Carvalho: “Temos que construir uma academia que reflita a diversidade racial e étnica da nossa nação, para que possa pensar melhor as soluções urgentes de que precisamos para resolver os graves problemas da nossa sociedade.”

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A respeito, o manifesto dos 120 anos (120 Anos da Luta pela Igualdade Racial no Brasil – Manifesto em Defesa da Justiça e Constitucionalidade das Cotas): “A posição que sustentamos no presente Manifesto tem como premissa a valorização da diversidade racial e social na produção e na disseminação das idéias. Este é um dos motivos que justifica a defesa das cotas e de outras modalidades de ação afirmativa. O que questionamos é a supremacia de pessoas brancas no corpo discente e, mais ainda, docente das universidades brasileiras”.

Para alguns, as cotas também teriam uma ação direta sobre o racismo brasileiro. Joaze Bernardino considera que o nosso racismo sofreria um duro golpe ao permitir o acesso do cidadão negro aos mesmos bens econômicos, políticos e acadêmicos de toda a sociedade brasileira, não mais o segregando em postos de trabalho inferiores hierarquicamente. “Nesse sentido, a política de ação afirmativa atua no combate à cultura racista do branco em relação ao negro, propiciando, em muitos casos, a oportunidade única à população branca de conviver, em espaços não subalternos, numa condição de igualdade com negros. A população branca – especialmente a pertencente à classe média – pode, numa nova relação dialógica de não-subalternidade por parte da população negra, efetuar uma revisão dos seus preconceitos.”

As justificativas que defendem a existência de cotas no ensino superior brasileiro não são tão vastas quanto às críticas à adoção de mesmas. A maior parte das páginas escritas defendendo as cotas, são ocupadas por apresentações de dados estatísticos, por históricos de lutas relacionadas e por contra-argumentos que defendem a sua posição como resposta àqueles que a criticam.

4. A UTILIZAÇÃO E DESQUALIFICAÇÃO DE DADOS ESTATÍSTICOS. Uma diferença clara entre os dois grupos é utilização de dados estatísticos como suporte (ver anexos). É claramente visível que o grupo defensor das cotas utiliza muito mais dados estatísticos em suas argumentações do que o grupo contrário a elas. Talvez a pouca presença de estatísticas como recurso argumentativo dos anti-cotas se deva a sua desconfiança sobre a validade das mesmas. Sobre a utilização desses dados pelos pró-cotas, Sidney Goldezon se pronunciou: “Criam programas demagógicos, racistas, baseados em dados falsos ou inexistentes (...)”. No manifesto dos 113 (Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais, 2008), outra vez a confiabilidade nos dados utilizados pelos que defendem as

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cotas é questionada, desta vez, sobre o rendimento dos alunos cotistas em relação aos não cotistas: “A propaganda cerrada em favor das cotas raciais assegura-nos que os estudantes universitários cotistas exibem desempenho similar ao dos demais. Os dados concernentes ao tema são esparsos, contraditórios e pouco confiáveis.” (Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais, 2008).

Aí se constitui um dos primeiros pontos que nos permitem entender as duas diferentes posições: um grupo utiliza todo um banco de dados estatísticos que os permitem concluir a existência de uma situação; já o outro grupo descredencia este banco de dados e, conseqüentemente, a conclusão do primeiro grupo. No entanto, não só através de números pode-se constatar uma determinada realidade. A própria vivência cotidiana pode permitir que se constate a exclusão dos indivíduos negros de determinados espaços e sua concentração em outros menos valorizados socialmente. Sendo de cunho subjetivo, essa vivência pode ser interpretada de maneiras diferentes, que é o que também ocorre com o grupo favorável e o contrário às cotas.

5. A NEGAÇÃO DE PRESSUPOSTOS Para se defender a adoção de cotas raciais para o ensino superior, pressupõese uma série de fatos que servem de sustentáculo para a defesa dessa política. Grande parte dos argumentos do grupo anti-cotas, desqualifica alguns pressupostos da teoria defendida pelo grupo pró-cotas. Um dos pressupostos mais rebatidos dessa estrutura argumentativa é a existência de diferentes raças no Brasil, com enfoque para a polarização entre brancos e negros. Ora, se são defendidas as reservas de vagas para grupos racialmente excluídos, é por que se pressupõe que estes grupos existam. Se se consegue provar que estes grupos não existem, a defesa dessa ação afirmativa cai por terra. O primeiro argumento relacionado à negação dessa questão social no Brasil é a negação do conceito biológico de raça: “Raças humanas não existem. A genética comprovou que as diferenças icônicas das chamadas ‘raças’ humanas são características físicas superficiais, que dependem de parcela ínfima dos 25 mil genes estimados do genoma humano.” Manifesto dos 113.

Já o grupo pró-cotas estranha a abordagem do conceito biológico de raça como um argumento que barre as cotas:

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“E para que insistir em negar aquilo que ninguém afirma? A quem estão atacando realmente? Não a nós, certamente, porque os defensores das cotas jamais falamos em raça no sentido biológico do termo.” Manifesto dos 120 anos.

Apesar do grupo pró-cotas não se referir em nenhum momento à genética como meio de auxílio a um indivíduo para que ele possa definir a que raça ele pertence, o grupo anti-cotas aborda e condena esse método constantemente. “Quem conhece um mínimo de história da ciência, sobretudo dos capítulos acerca das perversas interfaces entre medicina e antropologia física na virada do século XIX, sabe que critérios julgados científicos para a classificação (racial) de indivíduos e grupos sociais na época eram eivados de preconceitos, imprecisões e fraudes”. Ricardo Ventura Santos e Marcos Chor Maio.

A crítica também recai sobre o Estado, que pede para que os indivíduos se classifiquem quanto a sua raça em pesquisas de amostragem e censos: “(...) a definição e delimitação de grupos raciais pelo Estado é um empreendimento político que tem como ponto de partida a negação daquilo que nos explicam os cientistas.” “Não foi a existência de raças que gerou o racismo, mas o racismo que fabricou a crença em raças.” Manifesto dos 113.

Para o grupo contrário à adoção de cotas, perguntar a raça de um indivíduo é perguntar a respeito de uma divisão que já se provou, cientificamente, por meio da biologia, inexistente. No entanto, enquanto e desiguinação “raça” utilizada pelo grupo favorável às cotas é bombardeada de críticas, a percepção de que as cores dos indivíduos se diferenciam é percebida: “Minha filha é branca, aliás, muito branca, já que todos os meus avós eram judeus poloneses. Entretanto, essa não é a sua raça, apenas o tom de sua pele. Ela pertence à raça humana, como todos os seus colegas de turma (de vários tons de pele)”. Sidney Goldezon. “Todos nós sabemos das grandes e pequenas discriminações e humilhações que os cariocas mais escuros e mais pobres vivem cotidianamente”. Peter Fry.

Ao que tudo indica, é essa a percepção de raça com a qual o grupo a favor das cotas trabalha: a idéia de diferenciação por meio do fenótipo. Para eles, a raça não está ligada a uma identificação genética, mas à uma identificação social, uma espécie de

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marca carregada por determinados indivíduos que os faz serem tratados de maneira diferenciada na sociedade brasileira: “No nível sociológico e antropológico, usam-se as falácias do discurso do racismo biológico para negar a existência do racismo.(...) Seu interesse é minar a realidade da diferença entre os seres humanos pelo fenótipo e demonstrar a mestiçagem genética que caracteriza a todos nós, da espécie homo sapiens sapiens. Com isso, pretendem invalidar a possibilidade de que se adotem cotas para negros nas universidades ao ‘demonstrar’ que ‘cientificamente’ não existem negros.” Manifesto dos 120 anos.

Ou seja, ambos os grupos concordam com a não existência da diferenciação genética de raças, mas divergem quanto ao raciocínio conseqüente a essa idéia. O primeiro grupo, contrário à adoção de cotas, desqualifica a utilização do termo “raça” pelo segundo grupo, favorável às reservas. Os primeiros dizem que adotar essa nomenclatura é ressuscitar uma ciência craniológica à muito tempo superada. Já os segundos defendem que, apesar do termo “raça” ter se originado em uma ciência equivocada que determinava inferiores e superiores, os ecos da descrença nessa ciência não se espalharam pelas práticas sociais brasileiras, repercutindo até hoje, silenciosamente, na ideologia definidora do valor de um branco e de um negro. A pertinência da política de cotas continua a ser questionada quando outro pressuposto dela é atacado: a existência do “racismo” no Brasil. Uma ação afirmativa só pode ser adotada visando-se a correção de uma desigualdade histórica, de forma a reproduzir condições de igualdade. No Brasil ela se faria necessária caso fôssemos uma sociedade racista, em que um contingente racialmente identificado fosse vítima de discriminação em detrimento do privilégio de outro contingente. Quando o grupo contrário às cotas questiona a natureza desse racismo ou mesmo se ele existe, ele ataca um dos principais pilares que sustentam a adoção dessa política no Brasil: “Um dos grandes ativos brasileiro é a convivência racial, especialmente naquilo que o Brasil tem de melhor: o povo brasileiro. Existe um racismo disfarçado em alguns setores – classe média e alta não intelectualizadas, em alguns ambientes - , não no ambiente popular.” Luis Nassif. “(...) a nação brasileira elaborou uma identidade amparada na idéia anti-racista de mestiçagem e produziu leis que criminalizam o racismo. Há sete décadas, a República não conhece movimentos racistas organizados ou expressões significativa de ódio racial. O preconceito de raça, acuado, refugiou-se em expressões oblíquas envergonhadas, temendo assomar à superfície. A condição subterrânea do preconceito é um atestado de que há algo de muito

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positivo na identidade nacional brasileira, não uma prova de nosso fracasso histórico.” Manifesto dos 113.

Apesar do grupo anti-cotas não se referir ao termo “Democracia Racial” em nenhum dos textos analisados, os pró-cotas o denuncia como sendo um dos pré-supostos de seu pensamento sobre a “mestiçagem nacional”. É a idéia de que a discriminação racial é um fator quase irrelevante na realidade brasileira. Mas, para os defenssores da adoção de cotas, é a não existência de uma democracia racial que faz com que seja imprescindível a reserva de vagas para aqueles que são racialmente excluídos: “A história a que nos referimos se baseia em um processo concreto de luta pela igualdade após um século inteiro de exclusão dos negros do ensino superior, e não mais na controversa ideologia do mito de uma ‘democracia racial’ que, de fato, nunca tivemos.” Manifesto dos 120 anos.

As divergências aqui são claras: para o grupo contrário às cotas, o racismo brasileiro ou não se manifesta de forma significativa ou é uma anomalia que afronta o verdadeiro comportamento nacional, manifestando-se raramente. Já o grupo favorável, o diagnostica como um mal constituinte da formação brasileira e que se manifesta na própria estrutura social do nosso País. A impossibilidade de determinar a vítima desse possível racismo é outro argumento do grupo anti-cotas que, por extensão, desqualifica a existência e aplicabilidade desse racismo. Como construir uma política pública para um público inexistente? A visão desse grupo é que, num país com um histórico de mestiçagem tão intenso como Brasil, é impossível determinar quem é o negro ou quem é o branco em nossas relações sociais. Mais perverso do que dividir a população brasileira dessa forma seria pedir para os indivíduos que compõem essa população se definirem com qual lado da linha divisória eles se identificam mais: “Como, no Brasil, não sabemos quem exatamente é “negro” e quem é “não-negro”, comissões de certificação racial estabelecidas pelas universidades se encarregam de traçar uma fronteira. A linha divisória só se consolida pela validação oficial da autodeclaração dos candidatos, num processo sinistro em que comissões universitárias investigam e deliberam sobre a “raça verdadeira” dos jovens a partir de exames de imagens fotográficas ou de entrevistas identitárias.” Manifesto dos 113.

Para Joaze Bernardino, os negros no Brasil podem ser identificados sim, e isso de forma totalmente desconectada de sua mestiça árvore genealógica. Sobre o questionamento que pede que se identifiquem os negros brasileiros, ele comenta:

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“Esta é uma pergunta interessante, pois, no momento em que é feita, já traz a resposta: ‘não há negros na sociedade brasileira!’. Neste sentido, os argumentos anteriores são reiterados: a mestiçagem diluiu as distinções raciais.(...) Os operadores do preconceito e do racismo – pais de família, professores, porteiros, policiais, empregadores – não perguntam se aquele que será vítima do preconceito é filho, neto ou bisneto de negros; porém praticam a discriminação com base na aparência da pessoa. Portanto, vigora no nosso sistema social uma classificação social que identifica o negro como aquele indivíduo que em decorrência dos seus traços morfológicos – cor da pele, tipo de cabelo e nariz – se distancia dos padrões estéticos europeus.” Joaze Bernardino.

A divergência aqui se dá sobre a assimilação da idéia de mestiçagem do povo brasileiro. Ambos os lados concordam que o Brasil sofreu um intenso processo de mestiçagem no decorrer de sua história. Para o grupo pró-cotas, o fato de uma nação ser mestiça não exclui a possibilidade de segregação racial, ainda mais quando essa mestiçagem foi erigida sobre a violência do estupro sofrido por índias e negras no decorrer da história brasileira. O racismo no Brasil se manifestaria sobre aqueles que mais se parecessem com índios e negros, os que apresentassem uma certa predominância de traços que os distanciassem do tipo físico europeu. Para o grupo anticotas, essa mestiçagem criou de tal forma gradações entre as tonalidades de cor, que tamanho colorido acabou por diluir qualquer tentativa de se traçar uma reta que separasse e permitisse a distinção entre um grupo discriminado e outro privilegiado, ou seja, entre quem é branco e entre quem é negro. Dessa forma, o racismo e a discriminação racial na sociedade brasileira acabariam por se tornar inviáveis e impraticáveis ante a incapacidade de diferenciação. No entanto, Peter Fry, um dos líderes do movimento anti-cotas, admite que os “cariocas mais escuros” sofrem humilhações diárias. Mas ele não admite o racismo com essa afirmativa já que o problema, para ele, está em outra esfera que não a racial: “Se poucos ‘negros e pardos’ entraram nas universidades públicas, não era por causa do racismo do exame em si, mas pelas adversidades sofridas durante os anos escolares”. Que adversidades seriam estas? José Roberto Pinto de Goés diz que o sistema de admissão sobre o qual recai a política de cotas não é o culpado pela pouca presença de indivíduos negros nas universidades. O vilão, no caso, seria outro. Ele nos esclarece: “Não é o sistema de mérito que gera injustas desigualdades, mas a precariedade da rede escolar pública”. José Roberto Pinto de Góes.

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“(...) é de certa forma estranho que a primeira grande iniciativa de ação afirmativa no campo educacional incida justamente sobre o vestibular, sem propor medidas de correção das deficiências de formação que constituem a causa real da exclusão dos pobres, dos negros e dos índios”. José Goldemberg e Eunice R. Durham.

O manifesto dos 113 aprofunda a reflexão sobre as deficiências de formação geradas pela escola pública: “No Brasil, difunde-se a promessa sedutora de redução gratuita das desigualdades por meio de cotas raciais para ingresso nas universidades. Nada pode ser mais falso: as cotas raciais proporcionam privilégios a uma ínfima minoria de estudantes de classe média e conservam intacta, atrás de seu manto falsamente inclusivo, uma estrutura de ensino público arruinada. Há um programa inteiro de restauração da educação pública a se realizar, que exige políticas adequadas e vultosos investimentos. É preciso elevar o padrão geral do ensino mas, sobretudo, romper o abismo entre as escolas de qualidade, quase sempre situadas em bairros de classe média, e as escolas devastadas das periferias urbanas, das favelas e do meio rural. O direcionamento prioritário de novos recursos para esses espaços de pobreza beneficiaria jovens de baixa renda de todos os tons de pele – e, certamente, uma grande parcela daqueles que se declaram ‘pardos’ e ‘pretos’. A meta nacional deveria ser proporcionar a todos um ensino básico de qualidade e oportunidades verdadeiras de acesso à universidade.” Manifesto dos 113. Aqui se faz presente a lógica: se a escola é pública e gratuita, negros e brancos pobres usufruem equitativamente do que ela oferece. Se a intenção é introduzir um maior número de estudantes negros no ensino superior, nada mais correto do que melhorar as condições dessa escola pública. Desta forma, muito mais negros, que são grande parte da parcela pobre da cidade, teriam o acesso tão desejado à universidade. A melhor ação afirmativa a ser adotada pelo estado seria um poderoso investimento no ensino fundamental e médio das escolas públicas. Apesar de concordar com um investimento mais decente para a educação pública, para o grupo pró-cotas, a questão é mais complexa. O raciocínio dos anti-cotas estaria correto se não houvesse racismo na sociedade brasileira. E, de fato, a idéia defendida pelo grupo contrário à adoção de cotas desacredita na relevância deste problema para o Brasil. Os pró-cotas defendem que não é somente o investimento em educação que vai corrigir a subrepresentatividade da população negra na academia. O racismo não deixaria de agir sobre as crianças negras, mesmo que elas passassem a estudar nos colégios mais qualificados da rede pública. A evasão escolar das crianças 14

negras continuaria a ser maior que das crianças brancas, a média das notas das crianças negras continuaria aquém da média das notas das crianças brancas etc. Tudo isso por que, segundo os pró-cotas, os problemas enfrentados por essas crianças estariam além dos muros de sua escola, na sociedade em que vivem. O mesmo argumento pode ser utilizado para aqueles que criticam as cotas raciais e que crêem que a adoção de cotas sociais já seria o bastante para corrigir a subrepresentatividade: “Se abrirmos cotas para os estudantes de baixa renda, de fato, ajudaremos indiretamente a muitos indivíduos negros. Contudo, os dados de que dispomos nos alertam para o fato de que os brancos pobres já contam com uma vantagem de escolaridade frente aos negros. Se abrirmos cotas para pobres, portanto, independente de sua cor, na verdade, estaremos contribuindo para a reprodução ou até mesmo a intensificação da desigualdade dentro desse segmento dos pobres brasileiros. No ponto diferencial em que o branco pobre está em melhores condições, abrir-se-á ainda mais a vantagem dessa parcela da população, que poderá utilizar esse novo capital cultural na busca de uma melhor posição no mercado de trabalho. Se fizermos isso, estaremos no mínimo postergando ou até mesmo piorando a desigualdade racial brasileira. Ou seja, faremos uma ação afirmativa de classe às expensas de continuar discriminando os negros, cientes de que o fazemos.” José Jorge de Carvalho.

Mais uma vez a discordância reside no reconhecimento ou não de um pressuposto que embasa determinado argumento. Como o grupo anti-cotas não entende o peso que o racismo exerce sobre a sociedade da mesma forma que o grupo pró-cotas, chega-se a defender até as cotas para os alunos de escola pública: “Pode-se discutir ou não a legitimidade de cotas para alunos de escolas públicas, cotas para pobres, mas não cotas para negros”. Luis Nassif. “A pobreza no Brasil tem todas as cores.(...) Basicamente, são diferenças de renda, com tudo que vem associado a elas, e não de cor, que limitam o acesso ao ensino superior.” * As cotas raciais exclusivas, como aplicadas, entre outras, na Universidade de Brasília (UnB), proporcionam a um candidato definido como “negro” a oportunidade de ingresso por menor número de pontos que um candidato definido como “branco”, mesmo se o primeiro provém de família de alta renda e cursou colégios particulares de excelência e o segundo provém de família de baixa renda e cursou escolas públicas arruinadas. No fim, o sistema concede um privilégio para candidatos de classe média arbitrariamente classificados como “negros”. * As cotas raciais embutidas no interior de cotas para candidatos de escolas públicas, como aplicadas, entre outras, pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), separam os alunos proveniente de famílias com faixas de renda semelhantes em dois grupos “raciais” polares, gerando uma desigualdade “natural” num meio caracterizado

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pela igualdade social. O seu resultado previsível é oferecer privilégios para candidatos definidos arbitrariamente como “negros” que cursaram escolas públicas de melhor qualidade, em detrimento de seus colegas definidos como “brancos” e de todos os alunos de escolas públicas de pior qualidade. Manifesto dos 113.

O grupo anti-cotas deixa bem claro: o que limita o acesso ao ensino superior é somente a falta de renda. Com essa visão, o pobre branco se depara com os mesmos obstáculos que o pobre negro, afinal, são todos pobres e essa é a única definição que interessa a esses intelectuais. “(...) os descendentes de africanos não são barrados no acesso ao ensino superior por serem negros, mas por deficiências se sua formação escolar anterior.” “Segregam-se os mecanismos de entrada: um mais rigoroso para brancos e orientais e outro, menos rigoroso, para ‘negros’, o que certamente prejudicará os ‘brancos’ mais pobres que também não tiveram condições econômicas de obter melhor educação, mas se esforçam para ingressar na universidade”. José Goldemberg e Eunice R. Durham.

Argumentando que o problema não é de cor, é de desigualdade, o grupo anti-cotas diverge do grupo pró-cotas justamente neste pilar central que é a admissão do racismo em nossas relações sociais. Os pró-cotas também defendem a existência de cotas sociais, no entanto, entendem que ser negro, além de ser pobre, é ser ainda mais descriminado. “(...)dizem que no Brasil apenas existe uma questão social, ou seja, ignoram a correlação sistemática que todos os estudos estatísticos indicam entre linhas de cor e curvas da pobreza, bem como que as cotas promovem também os outros segmentos de população discriminados pelo atual sistema de acesso ao ensino superior”. Manifesto dos 120 anos.

Na mesma linha de negação do racismo, os intelectuais anti-cotas também não entendem o processo que faz com que a sociedade brasileira tenha uma dívida histórica com a população negra. Isso se deve provavelmente ao não reconhecimento do racismo, pois, caso ele existisse, poderia ser interpretado como uma herança desse passado escravocrata. “Talvez queiram nos convencer de que alguns dos colegas de minha filha (negros) sofreram com a escravidão dos anscestrais. Isso parece afetar a sua capacidade de aprendizado tanto quanto o assassinato dos ancestrais (judeus poloneses) de minha filha pelos nazistas, ou seja, de nenhuma maneira.” Sidney Goldezon

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Neste caso, a análise se mantém restrita ao indivíduo e não inserida em uma conjuntura histórica. Os judeus poloneses não foram escravizados por centenas de anos no Brasil e têm uma contribuição cultural tão recente quanto limitada à integração ao povo brasileiro, diferente dos negros. “A hipocrisia daqueles que pretenderam que o Brasil se transformasse – do dia para a noite – de último grande pais escravocrata em exemplo mundial de harmonia racial e dos que hoje, na mesma linha, declaram que séculos de escravidão não deixaram nenhuma herança “racista” em nosso País se desenvolve a partir de uma série de falácias históricas, sociológicas e políticas.” Manifesto dos 120 anos.

Enfim, todas essas divergências em questão são explicadas por que um grupo, o dos anti-cotas, desacredita nos pressupostos que embasam a teoria do outro, dos pró-cotas.

6. INCONSTITUCIONALIDADE DAS COTAS Para que determinada política pública seja adotada, um dos quesitos a serem preenchidos é a idéia simples de que ele precisa estar de acordo com a lei instituída. Questionar a legalidade de uma política pública é grave, uma vez que se acusa o estado de negligenciar o código jurídico que foi construído para servir a todos, ou seja, o código que o permite ser denominado de estado democrático. Dentre os argumentos dos anti-cotas, uma grande parte deles questionam a compatibilidade das cotas com o nosso ordenamento jurídico: “A reserva de cotas para facilitar a admissão e aumentar a participação de negros nas universidades brasileiras viola a Constituição Federal, que garante, no artigo 206, ‘igualdade de condições para o acesso’ à escola e ao ensino gratuito ‘em estabelecimentos oficiais’”. José Goldemberg e Eunice R. Durham.

No entanto, o grupo pró-cotas defende a constitucionalidade das cotas: “Em relação à igualdade, nosso sistema constitucional, priorizando os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana, estabeleceu a isonomia não somente em sentido formal, mas também em sentido material (art. 3º, inciso III). O constituinte, ancorado nos princípios fundadores da República, reconheceu o profundo quadro de injustiças que atrelam o país ao atraso e estabeleceu objetivos fundamentais a serem alcançados pelo Estado por meio de ações que se consubstanciem em políticas públicas de promoção da cidadania.” “A neutralidade estatal mostrou-se nesses anos um grande fracasso; é necessário fomentar-se o acesso à educação [...]. Deve-se reafirmar: toda e qualquer lei que tenha por objetivo a concretude da

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Constituição Federal não pode ser acusada de inconstitucionalidade" (Cf. Mello, Marco Aurélio. Óptica Constitucional – A igualdade e as Ações Afirmativas. In: Revista latino americana de Estudos Constitucionais, v. 01, Belo Horizonte Del Rey, 2003, p 11-20).” Manifesto dos 120 anos.

O que se desenvolve aí é um debate sobre o conceito de igualdade e como fazer para alcançá-la. O grupo pró-cotas propõe uma atualização da idéia de igualdade, uma igualdade que se configure além do papel em que está escrita e invada a realidade de maneira substancial. Sobre esse novo conceito de igualdade, os anti-cotas o temem: “(...) os proponentes das cotas raciais sustentam que o princípio da igualdade de todos perante a lei exige tratar desigualmente os desiguais. Ritualmente, eles citam a Oração aos Moços, na qual Rui Barbosa, inspirado em Aristóteles, explica que: “A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade.” O método de tratar desigualmente os desiguais, a que se refere, é aquele aplicado, com justiça, em campos tão distintos quanto o sistema tributário, por meio da tributação progressiva, e as políticas sociais de transferência de renda. Mas a sua invocação para sustentar leis raciais não é mais que um sofisma.” Manifesto dos 113.

Sem dúvida, o conceito de igualdade do grupo pró-cotas se assemelha ao abordado por Rui Barbosa, como podemos ver nessa passagem de Ricardo Henriques citado por José Jorge de Carvalho: "Esses dados mostram que, para que as diferenças não se mantenham, as políticas sociais precisam tratar os desiguais como desiguais. Tratar todo mundo por igual é cinismo". No entanto, a natureza dessa desigualdade abordada por Rui Barbosa é de uma desigualdade intrínseca. O tratamento desigual seria necessário por que os indivíduos já seriam desiguais naturalmente, com a existência de inferiores e superiores, negando a igualdade potencial humana. O tratamento desigual defendido pelo grupo pró-cotas e que está na fundamentação da idéia de ação afirmativa, não se faz necessário por que os indivíduos negros sejam naturalmente menos capazes que os brancos. Ele se faz necessário devido à discriminação que eles sofrem na sociedade brasileira e não por sua capacidade. É a partir dessa idéia que se defende a adoção de ações afirmativas para grupos historicamente excluídos de determinados espaços; é visando-se alcançar uma igualdade substancial. Sobre essa necessidade, o manifesto dos 120 anos cita Martin Luther King: “Em outro momento, voltou a advogar medidas de ação afirmativa: ‘Uma sociedade que tomou medidas especiais contra o negro por

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centenas de anos deve agora tomar medidas especiais para ele, para prepará-lo para competir em bases iguais e justas’ (Where we go from here).”

A divergência entre ambos os grupos recai sobre o conceito de igualdade defendido pela constituição brasileira. Enquanto os pró-cotas defendem que as cotas são constitucionais, pois, por meio delas, a igualdade constitucional se faria mais presente e substancial no cotidiano de negros e brancos brasileiros, os anti-cotas as atacam como sendo justamente o primeiro passo para a quebra de uma igualdade jurídica conquistada a duras penas, pois o seu entendimento não assimila o tratamento desigual como um meio de se alcançar a igualdade. Para este grupo, medidas desiguais sustentadas pela lei seria o começo de um sombrio futuro para o Brasil. 7. A ARGUMENTAÇÃO ERIGIDA SOBRE CONSEQÜÊNCIAS NÃO INTENCIONAIS.

A

ESPECULAÇÃO

DE

Quando a África do Sul adotou o regime do apartheid, a lei abordava de forma clara, as diferenciações de tratamento entre negros e brancos. A possibilidade de um regime tão cruel quanto o apartheid foi se tornar realidade no Brasil é temida e denunciada pelo grupo anti-cotas. Para eles a reserva de cotas poderá ser o primeiro passo para um sistema de governo racista, sendo essa uma conseqüência não intencional das atitudes do grupo prócotas. A distinção entre brancos e negros, pela lei brasileira, seria o primeiro passo rumo a um futuro sombrio: “A criação de cotas, no Brasil, representa um retrocesso na medida em que, pela primeira vez na República, se distinguem, na lei, brancos e negros”. José Goldemberg e Eunice R. Durham. “(...) quando se entram com políticas compensatórias raciais, como é o caso das cotas para negros em universidades, começa a se dar legitimamente institucional a esse racismo.” Luis Nassif.

Comparando a defesa das cotas com o início do nazismo na Alemanha, Sidney Goldezon relembra o que aconteceu com os seus antepassados judeus e lamenta: “É muito triste. Esse filme já passou, e muitos de minha família morreram nele”. Para este grupo, as cotas significam a instituição do racismo para a sociedade brasileira, este pensamento tão desprezível se abrigaria onde menos se poderia conceber: na lei. É a partir das cotas que se dará a verdadeira gênese do racismo brasileiro:

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“O verdadeiro custo será a consolidação do racismo, não o fim do racismo”. Peter Fry. “Classificações desse tipo estão na base de todas as formas mais violentas de racismo. O anti-semitismo oficial da Alemanha nazista, assim como o apartheid sul-africano, são exemploo muito claros disso.” José Goldemberg e Eunice R. Durham.

De fato, todas essas preocupações são pertinentes. A possibilidade de gerar uma situação de privilégio de um grupo sobre outro que dê origem a uma sociedade segregada é um motivo para se ter reservas em adotar as cotas raciais no ensino superior brasileiro. No entanto, a construção desse argumento pelo grupo anti-cotas peca por seu limite ao caráter especulativo de seu temor. Neste ponto, o grupo pró-cotas demonstra uma argumentação mais consistente, uma vez que é pautada por seu caráter empírico: “UnB, UERJ, UENF, UFPR, UFAL, UNEB, todas têm cotas para negros há 5 anos e não há indícios de que essa linha divisória tenha se instalado. A palavra que já se estabeleceu para designar os estudantes negros, cotistas é justamente “cotistas”, e este termo técnicoburocrático é empregado quando se trata de discutir aspectos concretos dessa política pública. Não há nenhuma nova “lei racial” operando quando os cotistas e seus colegas brancos tomam ônibus ou caminham pelas ruas, a não ser o racismo brutal cotidiano que todos bem conhecemos pelas páginas dos jornais e sobre a qual podemos refletir a partir dos sucessivos mapas da Desigualdade confeccionados pelo IPEA com base nos dados do IBGE.” “Quem está cheio de rancores e ódios? Os cotistas? Não temos notícia disso. Seus colegas brancos? Até agora a convivência interracial nas universidades com cotas tem sido relativamente tranqüila.” Manifesto dos 120 anos.

A partir do quadro atual, o grupo pró-cotas prevê o surgimento de uma nova ciência brasileira: “A luta pelas cotas é uma explosão de criatividade e seus resultados positivos para a produção de conhecimento e ampliação dos saberes científicos e artísticos estão apenas no começo. Junto com os novos estudantes negros e indígenas que hoje ingressam nas universidades surgem novos temas de pesquisa, demandas por novos currículos e também demandas por mais professores negros e indígenas.” Manifesto dos 120 anos. O fato é que nenhuma menção é feita pelo grupo anti-cotas a uma experiência brasileira de adoção de cotas raciais em que os efeitos temidos tenham se configurado. Hoje, são mais de sessenta instituições públicas de ensino superior que já

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adotaram as cotas raciais. Neste ponto, o grupo pró-cotas conta com um trunfo. Quer dizer, com mais de sessenta trunfos. CONSIDERAÇÕES FINAIS O debate sobre as cotas no Brasil está somente no início. A discussão que o envolve é reveladora de pressupostos sobre a questão racial na sociedade brasileira. Talvez esteja aí, um dos grandes méritos desta discussão que só eclode no Brasil ao final do século XX. Sujeitos diversos, movimentos sociais e personalidades, vão tomando posições sobre temas relacionados à educação e aos direitos sociais de segmentos historicamente excluídos das esferas de poder no Brasil, como negros e índios. Após a realização deste trabalho fica claro que grande parte da discordância existente entre o grupo defensor das cotas e o grupo que as repudia, está nos diferentes pressupostos defendidos por cada grupo. Percepções tão díspares sobre os mesmos problemas revelam uma falta de discussão histórica destas questões em nossa sociedade. É imprescindível que mais debates sejam realizados para que o povo brasileiro possa se pronunciar ao largo do preconceito, do censo comum e da superficialidade que tem cercado esta problemática. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: _Manifesto em defesa da justiça e constitucionalidade das cotas, brasília, 13 de Maio de 2008. http://pvnc.sites.uol.com.br/manifesto13maio2008STF.pdf _Divisões Perigosas: Políticas Raciais no Brasil, Peter Fry e Yvonne Maggie. RJ: Civilização Brasileira, 2007. _Revista O Público e o Privado, No. 3. CE. _http://www2.camara.gov.br/comissoes/temporarias53/especial/PL626405/controle-detramitacao _Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais, 21 de abril de 2008.

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ANEXOS

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