Um estudo simbólico-arquetípico da Edda em Prosa (Trabalho de Conclusão de Curso em Psicologia, 2016)

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VICTOR HUGO SAMPAIO ALVES

UM ESTUDO SIMBÓLICO-ARQUETÍPICO DA EDDA EM PROSA

UNIVÁS - POUSO ALEGRE 2016

Victor Hugo Sampaio Alves

UM ESTUDO SIMBÓLICO-ARQUETÍPICO DA EDDA EM PROSA

Monografia apresentada como exigência parcial para a obtenção do título de Psicólogo pela UNIVÁS – Universidade do Vale do Sapucaí, orientada pelo Prof. Ms. Alessandro Caldonazzo Gomes.

UNIVÁS - POUSO ALEGRE 2016

Alves, Victor Hugo Sampaio. Um estudo simbólico-arquetípico da Edda em Prosa. / Victor Hugo Sampaio Alves. - Registro: 2016. 194f.; 22 cm. Orientador: Ms.Alessandro Caldonazzo Gomes Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Psicologia) – Universidade do Vale do Sapucaí, 2016. 1. Psicologia Analítica. 2. Mitologia Nórdica. 3. Simbologia. . Universidade do Vale do Sapucaí. CDD

VICTOR HUGO SAMPAIO ALVES UM ESTUDO SIMBÓLICO-ARQUETÍPICO DA EDDA EM PROSA

Trabalho de conclusão obtenção do título de Universidade do Vale Orientado pelo Prof. Caldonazzo Gomes.

Aprovada em

de

PROFESSOR ORIENTADOR:

Prof. Ms. Alessandro Caldonazzo Gomes (UNIVÁS)

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Marcos Antonio Batista. (UNIVÁS)

Profª. Sandra Maria Garcia de Aquino. (UNIVÁS)

de 2016.

de curso para Psicólogo pela do Sapucaí. Ms. Alessandro

A meu avô João Luiz, que compartilha comigo o amor pelas mitologias e narrativas do Homem e quem, desde que eu era pequeno, me apresentou um mundo que valia a pena ser vivido e conhecido.

“Nem sequer teremos de correr os riscos da aventura sozinhos, pois os heróis de todos os tempos nos precederam; o labirinto é totalmente conhecido. Temos apenas de seguir o fio da trilha do herói. E ali onde pensávamos encontrar uma abominação, encontraremos uma divindade; onde pensávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos; onde pensávamos viajar para o exterior, atingiremos o centro da nossa própria existência; e onde pensávamos estar sozinhos, estaremos com o mundo inteiro.” Joseph Campbell

MONOGRAFIA

Alves, V.H.S. (2016). Um estudo simbólico-arquetípico da Edda em Prosa. Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Sapucaí-UNIVÁS, Pouso Alegre – MG.

RESUMO

Este estudo propôs analisar o primeiro capítulo da Edda em Prosa, chamado Gylfaginning, que se traduz por “O Embuste de Gylfi”. A Edda em Prosa é um material literário escrito em nórdico antigo pelo poeta e historiador islandês Snorri Sturluson, por volta do ano de 1220. Dividida em três partes, a obra detém como principal objetivo servir como manual de mitologia, já que as antigas metáforas poéticas e narrativas míticas do passado politeísta da Escandinávia estavam sendo esquecidas após a consolidação do cristianismo. Trata-se da estória do rei Gylfi, que viaja para Ásgarðr buscando um diálogo com os deuses; estes conseguem ver que o rei está a caminho e lhe preparam um embuste, ou seja, uma emboscada. Esta pesquisa qualitativa, investigativa e bibliográfica objetivou identificar certos padrões simbólicos que apontem para a perpetuação de símbolos do inconsciente no material mitológico em questão, além de investigar o modo como tais símbolos se manifestaram na cultura e mitologia nórdica especialmente. Em concordância com a psicologia analítica, concebeu-se que todo artista pode ter seu racionalismo e intenção consciente superados ao executar sua obra, principalmente ao trabalhar com materiais mitológicos. Desta forma, seria possível que o escritor revelasse em sua obra aspectos simbólicos que seriam frutos de um alinhamento de seu inconsciente coletivo com certos temas e arquétipos. Demonstrou-se que os símbolos e arquétipos do inconsciente coletivo se fazem presentes e são inscritos nas mitologias, encarnando lugares, heróis, deuses e bestas. Advindo deste último fato, ressaltou-se a importância, para o psicólogo, dos estudos envolvendo a mitologia, visto que é nela em que os povos dão vida aos símbolos presentes no inconsciente coletivo.

Palavras-chave: Psicologia Analítica; Mitologia Nórdica; Simbologia; Arquétipos.

MONOGRAPHY

Alves, V.H.S. (2016). A symbolic-archetypical study of the Prose Edda. Monography presented to the Psychology Graduation Course, Vale do Sapucaí University-UNIVÁS, Pouso Alegre – MG.

ABSTRACT

The present study aimed to analyze Prose Edda’s first chapter, which is named Gylfaginning and translates to “The tricking of Gylfi”. The Prose Edda is a literary material written in Old Norse language by the Icelandic historiographer and poet Snorri Sturluson, around the year of 1220. Divided in three parts, this opus holds the objective to serve as a manual of mythology, considering that the old poetic metaphors and mythic narratives from Scandinavia’s polytheist past were about to be forgotten after the consolidation of Christianism. It tells the story of king Gylfi, who travels to Ásgarðr searching for a dialogue with the gods; however, they can foresee that the king is coming and so they prepare him a deception. This qualitative, investigative and bibliographic research aimed to identify certain symbolic patterns which pointed to the perpetuation of unconscious symbols in the mythic material, besides investigating the way these symbols were manifested in Norse culture and mythology specifically. According to analytical psychology, it was conceived that every artist may have his rationalism and conscientious intention surmounted when executing his work, mainly when dealing with mythological material. As a consequence, it would be possible that the writer revealed, in his work, symbolic aspects which would be fruits of an alignment of his collective subconscious with certain themes e archetypes. It was demonstrated that symbols and archetypes of the collective subconscious are presented and inscribed on mythologies, incarnating places, heroes, gods and beasts. As a result from this last fact, it was emphasized the importance for psychologists of studying mythology, taking into account that it is in mythology where peoples give life to symbols alive in their collective subconscious.

Keywords: Analytical Psychology; Norse Mythology; Symbolism; Archetype.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................... 1 CAPÍTULO I: ENTREMEIOS DA PSICOLOGIA ANALÍTICA E A MITOLOGIA ............................................................................................... 5 I.I Psicologia Analítica e Mito ........................................................... 5 I.II Mito e oralidade ........................................................................... 9 I.III O autor segundo a Psicologia Analítica ..................................... 13 I.IV Os arquétipos ............................................................................. 17 I.V Os símbolos ................................................................................. 20 CAPÍTULO II: O GYLFAGINNING, A EDDA EM PROSA E SEU AUTOR. ........................................................................................................ 26 II.I A Edda em Prosa ......................................................................... 26 II.II Snorri Sturluson.......................................................................... 30 II.III Resumo e tradução do material ................................................. 32 II. IV Tradução resumida do Prólogo ................................................. 33 II.V Tradução resumida do Gylfaginning.......................................... 38 CAPÍTULO III: SOBRE OS SÍMBOLOS E ARQUÉTIPOS NA EDDA EM PROSA......................................................................................................... 80 III. I A cosmogonia: Ginnungagap, Auðhumla e Ymir ..................... 80 III. II Muspellheim e Niflheim .......................................................... 87 III.III As moradas Asgard e Gimlé .................................................... 92 III.IV Bifrost ...................................................................................... 98 III.V Yggdrasil................................................................................... 101 III.VI Odin ......................................................................................... 105 III.VII Hugin e Munin ....................................................................... 114

III.VIII Thor....................................................................................... 116 III.IX Loki. ........................................................................................ 123 III.X Frigg.......................................................................................... 130 III.XI Freyja ....................................................................................... 134 III.XII Freyr. ...................................................................................... 142 III.XIII As Valquírias ........................................................................ 147 III.XIV Fenrir e Jörmungandr ........................................................... 150 III.XV O Ragnarök. ........................................................................... 156 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................... 160 REFERÊNCIAS. .........................................................................................168 ANEXO I. ...................................................................................................... 173 Glossário ............................................................................................. 173

ÍNDICE DE IMAGENS Imagem 1: Odin, por Rudolf Friedrich Reusch, 1865… ...................................... 111 Imagem 2: Tors strid med jättarna, por Marten Eskil Winge, 1872… ................ 121 Imagem 3: The punishment of Loki, por Doyle Penrose, 1890… ........................ 128 Imagem 4: Freyja, por James Doyle Penrose, 1890. ........................................... 138 . Imagem 5: Estátua de Freyr na Islândia ............................................................... 144 Imagem 6: Uroboros. ............................................................................................ 152 Imagem 7: Asgardsrein, por Peter Nicolai Arbo, 1872. ....................................... 157

INTRODUÇÃO

Apesar da Escandinávia Medieval e a Era Viking praticamente não serem mencionadas durante o ensino de História nos níveis fundamental e médio, e da imagem popularizada e estereotipada – e, em última instância, anacrônica e fantasiosa1 - dos Vikings continuar circulando no imaginário popular, os Vikings tem voltado a receber nossa atenção nos tempos atuais. Os principais sentidos que circulam acerca deste povo ainda são aqueles, já relativamente antigos, que os caracterizam e pintam sua imagem como guerreiros bárbaros sedentos de sangue, brutos, invasores, carniceiros, primitivos e truculentos. O próprio movimento midiático da grande massa passa, atualmente, por um resgate desta figura Viking. Temos, por exemplo, o deus Thor enquanto super-herói da Marvel, presente em várias HQ’s (histórias em quadrinhos). Aliás, já existem dois filmes dedicados exclusivamente às aventuras deste super-herói, aventuras essas que, inclusive, retratam outros deuses do mundo nórdico e os integram à trama: Loki, Heimdall e Odin. Além disso, o sucesso da série Vikings, produzida pelo History Channel, demonstra não só um crescente interesse por esse povo, mas também um novo olhar a respeito dos mesmos. Mesmo com seus anacronismos e inexatidões, a série foi em certo aspecto pioneira ao trazer para o telespectador uma nova perspectiva sobre os Vikings, considerando que ela é narrada de seu ponto de vista, e não do ponto de vista de quem foi por eles invadido, geralmente com foco nos ingleses e franceses, como era de costume. Mais especificamente no mundo acadêmico, o interesse sobre a sociedade Viking também tem ressurgido de maneira relevante. Como se sabe nos dias de hoje, os

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A respeito das origens e perpetuações de estereótipos sobre os Vikings, recomendamos a leitura dos artigos Os Vikings e o estereótipo dos bárbaros no ensino de História e Fúria odínica: a criação da imagem oitocentista sobre os Vikings, ambos pelo Prof.Johnni Langer.

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Vikings praticavam uma religião politeísta de complexa mitologia, e, dessa forma, tanto suas narrativas mitológicas quanto seu pensamento e comportamento religioso e seus ritos, que incluíam até mesmo sua magia típica, chamada seiðr, tem sido objetos de estudo de historiadores, arqueólogos, filósofos, tradutores e cientistas da religião. Os psicólogos têm se mantido afastados desse debate, e o presente estudo constitui um primeiro esforço para trazer a ótica da psicologia direcionada a esse objeto de estudo. Especificamente no Brasil, existe o grupo acadêmico multidisciplinar e interinstitucional, chamado Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos (NEVE), cujos membros dedicam-se ao estudo da religião, cultura, literatura e mitologia da Escandinávia Medieval. O grupo, além disso, mantém um boletim de notícias, o Notícias Asgardianas, onde publicam e disponibilizam suas produções. Há, também, o periódico do grupo Brathair, que foca-se nos estudos celtas e germânicos, trazendo, por vezes, algumas publicações envolvendo a Escandinávia da Era Viking. Por mais que ainda haja muito a ser feito, o momento, enfim, não poderia ser melhor para que se fale dos Vikings. A presente monografia visa investigar uma parte da mitologia nórdica utilizando-se, como fonte primária e como corpus do estudo, a Edda em Prosa. Este material literário foi escrito e compilado pelo monge, historiador e poeta islandês Snorri Sturluson, por volta do ano de 1.220 D.C. A Edda em Prosa tratase de um manual de técnicas poéticas que ilustra as ferramentas a serem usadas pelos escaldos – os poetas da Escandinávia Medieval -. Portanto, além de oferecer as técnicas que poderiam ser usadas na composição de poemas, a Edda em Prosa também disponibilizava um conteúdo sobre o qual os escaldos poderiam versar a respeito: este conteúdo era justamente um apanhado mitológico contendo várias das principais narrativas mitológicas que circulavam na oralidade da Escandinávia pagã. Dessa forma, o objetivo desta monografia é realizar um estudo dos símbolos e arquétipos presentes neste sistema mitológico e que tenham possivelmente

sido 2

registrados na Edda em Prosa. Não pretendemos com este estudo esgotar os temas, símbolos, motivos e arquétipos presentes na mitologia Viking: tal trabalho teria proporções quase inesgotáveis e consistiria numa pretensão irrealizável. Nos ateremos, então, aos símbolos que se fizeram mais presentes ao longo da obra, tanto em questão de presença quanto de profundidade e importância atribuída a eles nesta fonte especificamente. Assim, já que certos símbolos se fizeram mais presentes e potentes nesta obra do que alguns outros que parecem ter sido, por algum motivo, meramente compilados e mencionados, partiremos do princípio que os primeiros possuíam realmente maior importância e presença no sistema mitológico e religioso da Escandinávia politeísta e que também, no momento da escrita, se fizeram mais presentes na mente do autor, seja consciente ou inconscientemente. Portanto, esta pesquisa de cunho investigativo e qualitativo adotará como ferramenta de análise a psicologia analítica, que oferecerá uma leitura simbólica e arquetípica do material a ser investigado. Partindo da conceituação de Jung no que concerne símbolos e arquétipos, buscaremos por estes elementos na obra para debruçarmo-nos sobre eles, amplificando-os em seguida. Em um primeiro momento analisaremos os sentidos, interpretações e cargas afetivas atribuídas aos símbolos e arquétipos, pensando sua ocorrência dentro de seu contexto cultural, social e histórico, ou seja, a Escandinávia Medieval. Em seguida, amplificaremos brevemente

o

significado de cada símbolo, buscando por análises e interpretações mais universais e que permitam correlacioná-lo com sua ocorrência simbólica em outros lugares, culturas e momentos históricos, numa tentativa de apontar justamente para uma presença de tais conteúdos no inconsciente coletivo, mas que adotam diferentes roupagens de acordo com sua cultura e momento histórico. No primeiro capítulo ofereceremos algumas definições e conceituações nas quais esta monografia se baseia para realizar a análise. Portanto,

começaremos 3

explicitando a relação entre psicologia analítica e mito, partindo, em seguida, para algumas questões envolvendo mito e oralidade – visto que os conteúdos presentes na Edda em Prosa circulavam, a princípio, em formato oral na Escandinávia -. Depois, ofereceremos algumas conceituações e breves discussões a respeito dos arquétipos e símbolos, que constituem as principais unidades a serem analisadas por este trabalho. Por último, lançaremos mão de uma pequena explicação a respeito da maneira como a psicologia analítica enxerga o autor em seu relacionamento com sua obra, incluindo o processo de sua produção. Na sequência, disponibilizamos, no segundo capítulo, algumas introduções e maiores explicações sobre o material que analisaremos. Abordaremos algumas questões envolvendo a Edda em Prosa, como, por exemplo, seu contexto sócio-histórico de criação e outras fontes literárias da Escandinávia Medieval que influenciaram no momento de registro do seu conteúdo. Será feita, também, maior contextualização a respeito de Snorri Sturluson, o autor e compilador da obra em questão. Uma vez discutidas estas duas questões, consta uma tradução resumida do conteúdo que será analisado nesta monografia. No caso, disponilizamos a tradução resumida do Prólogo e do primeiro capítulo da Edda em Prosa, o Gylfaginning. O terceiro capítulo trata-se da análise do conteúdo e discussão dos dados. Para melhor organização da análise, dividimos esta parte em vários subcapítulos, organizados conforme o símbolo/arquétipo a ser discutido. Desta forma consta, por exemplo, um subcapítulo para discussão do deus Odin, outro para discutir o mito cosmogônico, um outro para discutir a deusa Frigg, etc. Por fim, uma vez esgotado este capítulo de análise, ofereceremos algumas considerações finais sobre o estudo feito. Visto a grande quantidade de nomes que este material traz, há um glossário com nomes de deuses, criaturas e lugares ao qual o leitor pode recorrer quando julgar necessário.

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CAPÍTULO I: ENTREMEIOS DA PSICOLOGIA ANALÍTICA E A MITOLOGIA

I.I Psicologia Analítica e Mito

Entre os principais interesses da Psicologia Analítica figura aquele de que se investigue, fora os aspectos relacionais, afetivos e sociais dos indivíduos, duas importantes características psíquicas que carregam todas estas outras. Tais características encontram-se em constante e mútuo envolvimento, sendo, portanto, objeto de estudo e intervenção da Psicologia Analítica: a primeira seriam as regências psíquicas, que atuam como representantes das atividades da consciência; a segunda seria o seu modus operandi, ou seja, suas estruturas relacionais e suas estruturas de sabedoria profunda. A forma como as pessoas percebem e apreendem a realidade, seguida pela forma como avaliam ou julgam os conteúdos apreendidos dependerá destes dois pressupostos, que são inerentes às suas próprias psiques (Alvarenga, 2007). Esses pressupostos psíquicos são vivenciados pelo indivíduo e explicitados e traduzidos, para a psicologia analítica, por estruturas arquetípicas que são expressas pelas imagens das divindades. Assim sendo, segundo Alvarenga (2007), pode-se dizer que uma pessoa terá sua expressão de psique regulada em função da relação estabelecida por ela com o mundo, assim como em função da apreensão da realidade configurada, da avaliação atribuída por ela ao que foi apreendido e de seu modus operandi ativado. A leitura simbólica feita dessas emergências primordiais, ou melhor, dessas imagens arquetípicas, se amplia ao entendermos que cada um dos personagens míticos traduz e representa uma das possibilidades de humanização do indivíduo. Em outras palavras:

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O arquétipo, ao estruturar a consciência, o fará segundo perfis existenciais que estarão em conformidade com uma ou mais variantes dos mitologemas que compõem o mito dessas divindades. As demais imagens arquetípicas, consideradas desdobramentos, ou duplos, ou hipóstases da mesma realidade arquetípica primordial poderão se atualizar no mesmo ser humano, em diferentes momentos sincrônicos de sua existência (Alvarenga, 2007, p.22).

Hipóstase, por sua vez, é um conceito que se refere à natureza ou instância particular de um objeto do conhecimento. O pressuposto de que parte Alvarenga (2007), então, é o de que, para a Psicologia Analítica, os arquétipos, ao estruturarem a consciência, oferecerão caminhos de humanização ao indivíduo, caminhos esses que serão mais bem compreendidos quando enriquecidos pelas amplificações encontradas, por exemplo, na mítica de cada divindade. O arquétipo, quando realiza seu caminho de humanização, acaba por estruturar a consciência por meio de uma série de emergências simbólicas, até o momento em que segue por uma ou outra variante mítica dentro de um ramo de opções. Estas opções do caminho de humanização terão maior ou menor poder criativo de acordo com as correlações metafóricas que existam em um ou mais dos seus mitologemas. Mitologema, por sua vez, é um complexo de material mítico que, por um motivo ou outro, é continuamente revisitado, encarnado e reorganizado ao longo da história psicológica e social da humanidade. Em outras palavras, os mitologemas são elementos ou temas isolados que se fazem presentes em qualquer mito como, por exemplo, o mito da ascensão e da queda, o mito do herói, o mito da busca e assim por diante (Hollis, 2005). Já o conceito mito será entendido aqui como forma de explicar o mundo e o homem de um modo não-lógico, apresentando-se como categoria de forma primordial 6

de explicar a realidade de ser e estar no mundo. Devido ao seu caráter não-lógico, as explicações míticas costumam ser compreendidas, para a Psicologia Analítica, como decorrentes de um entendimento vindo, possivelmente, do universo inconsciente (Alvarenga, 2007). Segundo o Dicionário Junguiano (2002), o mito é considerado por Jung como uma forma autônoma de pensamento e de organização cognitiva do mundo, paralela a uma organização mantida também pela função sentimento. Trata-se de uma expressão do enigma que está no fundo da vida, sendo, portanto, entendido como aquilo que tenta evidenciar, na linguagem cifrada de seus simbolismos, aquilo que o homem enquanto tal espera de si e do mundo. É importante que se ressalte também que, para Jung, o mito não é uma forma secundária subordinada em relação ao pensamento racional – como alegam os positivistas - mas sim uma forma autônoma do pensar. Ao notar-se, então, que esses temas míticos eram dotados da capacidade de se repetir, se reeditar e se re-significar em diferentes períodos históricos e entre os mais distintos povos fez com que eles fossem considerados como expressões objetivas das estruturas primordiais psíquicas, qualificadas posteriormente por Jung como os arquétipos. Também foi essa ocorrência supostamente universal dos mitos – atuando como estruturas primárias da psique – que possibilitou a elaboração, por parte de Jung, do conceito de inconsciente coletivo (Alvarenga, 2007). A respeito do inconsciente coletivo, o Dicionário Junguiano (2002) nos traz a informação de que ele é, na verdade, uma propriedade do que Jung definiu como inconsciente absoluto. Este último era:

Uma formulação particular do conceito de inconsciente do qual derivam a teoria sobre a natureza arquetípica de certas representações psíquicas, a teorização das invariáveis da imaginação inconsciente coletiva e as pesquisas junguianas sobre

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os simbolismos, que constituem o patrimônio histórico-cultural de comunidades mais ou menos amplas ou da sociedade inteira (Pieri, 2002, p.245).

Este inconsciente é do tipo formal, ou seja, é uma estrutura inerente à forma dos conteúdos psíquicos, sendo, assim, essencial aos mesmos, pois é ele que permite a formação das representações singulares, tornando possível sua estruturação. Outra característica importante é o fato de que esse inconsciente absoluto é impessoal e coletivo, no sentido de que suas características formais supracitadas não são individuais, mas de caráter universal. Ele também é uniforme, já que se trata de uma estrutura fundamentalmente repetível, ou seja, é quase constante e imutável, sendo também congênito, no sentido de patrimônio psíquico pré-formado em todos os indivíduos, atuando como dispositivo intrínseco (Pieri, 2002). Outras características do inconsciente absoluto, e que talvez se ressaltem mais para o objetivo proposto por este estudo, é seu caráter arcaico-mitológico. Estas seriam as “informações” circulantes e que permeiam suas estruturas, verificáveis sobretudo na linguagem típica do mito e da psicologia “primitiva”. Como conseqüência, segundo Pieri (2002), o inconsciente absoluto acaba por ser, também, numinoso, no significado essencial de experiência de uma energia dinâmica que capta e domina a subjetividade. Portanto, pode-se dizer que são dois os conjuntos que formam o inconsciente absoluto. Um é o conjunto dos instintos, noção que engloba o impulso finalístico dirigido a comportamentos especificamente humanos. O segundo é o conjunto dos arquétipos, que englobam a noção de um inconsciente descrito como sistema vivo de possibilidades de manifestações também especificamente humanas, mas, neste caso, dirigidas à percepção, à cognição e à experiência de si e do mundo (Pieri, 2002).

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I.II Mito e Oralidade

É impossível investigar as questões em torno do mito ou da mitologia sem que se mencione, mesmo que brevemente, seu caráter primeiro: a oralidade. Originalmente, grande parte dos estudos de literatura oral - sobretudo a parte da antropologia que se preocupava com a análise dos mitos de povos específicos - dava enfoque aos textos fixos e seus conteúdos, que, para os estudiosos, eram tidos como portadores de informações sobre uma cultura particular, a sua linguagem, psicologia e mentalidade primitivas (Langdon, 1999). A tradição de se estudar os mitos e o folclore dos povos por meio das narrativas por eles produzidas, mesmo que de caráter oral, data de muito tempo atrás. Langdon (1999) ilustra essa característica tomando por exemplo os Irmãos Grimm, que, no fim dos anos 700, colheram e compilaram uma série de contos de fadas e fábulas que circulavam oralmente na região da Alemanha, numa tentativa não só de preservá-las, mas também de usá-las como parte integrante de suas investigações comparativas e históricas que visavam descobrir as relações entre as línguas Indo-Européias. Ao serem transformados da oralidade para o formato escrito, os conteúdos oriundos dessas narrativas presentes nas sociedades têm sido classificados em diferentes gêneros analíticos que se distinguem uns dos outros, tais como mitos, lendas, contos de fada e história oral. Essa divisão e categorização das narrativas orais, conforme enfatiza Bascom (1984) citado por Langdon (1999), se embasava em critérios éticos de pares de oposições, como temporal/atemporal, veracidade/não-veracidade e sagrado/profano. Levando-se em conta que a escrita constitui sempre um registro adicional à fala, é de se esperar que seu surgimento cause, necessariamente, uma profunda influência na mesma. Segundo Goody (2012), a partir daí, dessa coexistência dos dois sistemas de comunicação, a fala nunca voltará a ser a mesma coisa que era quando estava sozinha. É 9

necessário, então, tomar cuidado para que não se caia na ingenuidade de considerar a literatura escrita como uma simples questão de registrar e escrever o que já existe; um mito (ou história) é sempre modificado ao ser “transcrito”, passando a ocupar seu lugar entre um conjunto de novos gêneros. Esses gêneros que surgem advindos de tal transformação nem sempre recebem designações separadas nas linguagens locais da sociedade em que circulam, apesar de serem distinguidos, na prática acadêmica, de acordo com as diferenças em sua forma, conteúdo e função, diferenças relacionadas, sobretudo, ao público a quem são destinadas. Portanto, devemos ter em mente que, “em qualquer literatura, é importante considerar não somente o orador, mas também o público e o contexto situacional” (Goody, 2012, p.48). No caso específico do mito, o consideramos uma forma de literatura oral cuja principal característica – e também aquela que o diferencia das outras formas de literatura oral – é seu sujeito parcialmente cosmológico. Considerados em seu sentido mais restrito, Goody (2012) explica que os mitos são as próprias recitações de um povo ao redor de um tema cosmológico, como, por exemplo, os mitos sobre a origem ou sobre a criação. Essa percepção acerca da utilidade dos mitos supera a antiga ideia de que os mesmos possuíam função meramente explicativa dos fenômenos naturais, posicionando-o como o mais localizado e específico dos gêneros orais, sobretudo como o mais engastado em ações culturais como, por exemplo, quando são recitados em contextos cerimoniais. Ainda segundo as ideias do autor, “por definição, a mitologia como uma visão de mundo lida com deuses, divindades e agências sobrenaturais em seu relacionamento – seja distante ou próximo – com a humanidade” (Goody, 2012, p.55). Quando se fala em mitos sendo passados da oralidade à narrativa escrita, surgem, conforme vimos, problemáticas inerentes a tal transformação. Visto que a oralidade é o contexto básico não só de criação, mas também de perpetuação das estruturas míticas, há que se perguntar se a literatura é capaz de oferecer um suporte 10

pleno para que esse material mítico e seus sentidos circulem fielmente, o que levanta, conforme apontado por Langer (2006), a seguinte indagação: os sistemas de linguagem registrada afetam o sentido original dos mitos? No caso específico da mitologia Viking, Langer (2006) também questiona se suas fontes literárias, escritas após a conversão ao cristianismo, podem ser considerados testemunhos diretos dos tempos pagãos. Pensando no caso mais específico da mitologia Viking, ressaltemos as duas fontes primárias mais importantes de seus conteúdos míticos, que são as Eddas. A Edda Poética era uma coletânea de poemas anônimos reunidos de várias partes da Escandinávia, datados originalmente entre os séculos IX a XII d.C. Em termos estruturais, apresenta um caráter não uniforme e relativamente flexível, o que, segundo Langer (2006) era típico dos skålds (escaldos, os poetas da Escandinávia Medieval), que adotavam uma técnica de rememoração construtiva das narrativas orais, narrativas essas que eram entendidas e bem aceitas pelas comunidades a que se destinavam as recitações de tais poemas. Quanto à Edda em Prosa, supostamente escrita pelo islandês Snorri Sturluson em 1221 d.C e que será objeto de análise desta tese, nota-se uma estrutura totalmente coerente e ordenada das narrativas mitológicas, fato que Langer (2006) atribui não somente à influência do referencial cristão e civilizador do escritor, mas também ao maior tempo de penetração da escrita latina na sociedade escandinava, que interferia drasticamente nas formas de se ordenar e transmitir os antigos mitos. Portanto, segundo Langer (2006), as narrativas de ambas as Eddas foram preservadas pelos cristãos, mas refletem diferentes momentos de mudança das narrativas orais para o registro escrito. Dessa forma, a Edda Poética consiste em um conjunto muito menos uniforme, já que foi compilada ainda no período inicial do advento do cristianismo e da escrita latina na Escandinávia e, assim, apresentava ainda vivas as variações narrativas da cultura oral. Já a Edda em Prosa apresentava algumas 11

diferenças nesses aspectos, sobretudo, conforme mencionado, devido ao caráter tardio de sua escrita, momento em que cristianismo e letramento já haviam sido mais consolidados em solo Escandinavo:

A extrema racionalização da obra de Sturluson foi devido a outro momento desse processo, já quase definitivo em termos de impacto social, ordenamento e alfabetização – as narrativas um estado mais unificado, fixo e controlado tanto pela Igreja quanto pelos intelectuais (Langer, 2006, p. 54).

Em comparação com a Edda Poética, pode-se dizer, então, que a Edda de Snorri se distancia, de certa forma, de um mero relato vivo da mitologia nórdica, apresentando um conjunto narrativo mais unificado e racionalizado, produto que denota as influências do contexto social de sua produção. Afinal, como enfatizado por Jonsson (1991) a respeito da poesia oral, é natural que ela mantenha sua característica de oralidade ao ser transmitida, motivo pelo qual é raramente passada para a escrita sem que aja alguma incitação de fins intelectuais ou racionalistas.

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I.III O autor segundo a Psicologia Analítica

Jung chegou a debruçar-se sobre o fenômeno da literatura ao explicar que, como psicólogo, a força imagística da poesia -embora pertencente ao campo da estética- lhe interessava. Segundo ele, essa força imagística é também um fenômeno psíquico, e, como tal, deve ser considerada também pelo psicólogo (Jung, 2013). A alma, como mãe de toda ciência e paralelamente vaso matricial da criação artística poderia oferecer, às ciências da alma, que elas pudessem ajudar no tocante ao estudo da estrutura psicológica de uma obra de arte, e, por outro, explicar as circunstâncias psicológicas do homem criador. Estas duas tarefas, no entanto, são diferentes em essência. Ao ser investigada pela psicologia (desde que o material para tal esteja disponível), a psicologia pessoal do criador revela certos traços em sua obra, mas não a explica. O estado atual da psicologia não permite de forma alguma que se estabeleça, no campo dos trabalhos literários, encadeamentos exatos de causa e efeito. No entanto, ela é capaz de revelar certos encadeamentos causais estritos no domínio psicológico, fornecendo descrições pormenorizadas dos acontecimentos psíquicos relacionados aos complexos e arquétipos (Jung, 2013). Na obra de caráter literário a descrição dada pelo autor sobre os fatos que pretende narrar, ainda que possa parecer alheia a qualquer intenção psicológica, é do maior interesse para o psicólogo. Afinal, toda a narração se edifica sobre um pano de fundo psicológico inexpresso e o olhar crítico irá distinguí-lo com tanto maior pureza e clareza quanto mais o autor estiver inconsciente de seus pressupostos. Um cuidado a ser tomado, conforme explicita Jung (2013), é que, no que diz respeito à obra de arte, ela nunca deve ser confundida com aquilo que seu poeta tem de pessoal, por mais que sua obra esteja, certamente, permeada de pessoalidade. É indubitável, diz ele, que a visão do poeta seja uma vivência originária autêntica, apesar de qualquer (tentativa

de) 13

racionalismo vinda de si. A obra, portanto, não é algo de derivado, nem de secundário, e muito menos um mero sintoma; é um símbolo real, a expressão de uma essencialidade desconhecida (Jung, 2013). Uma das categorias em que esse racionalismo é superado por tendências inconscientes de manifestação simbólica é o uso de figuras mitológicas como expressões da experiência íntima do autor (Jung, 2013). Mesmo os autores que se esforçaram por compilar e registrar materiais mitológicos pertencentes ao seu contexto histórico-social – mesmo que estes estivessem num passado histórico, antes do autor propriamente dito estar vivo – podem ter revelado lapsos do inconsciente em sua obra: um alinhamento ou identificação de seu inconsciente com certos símbolos arquetípicos pode ter feito com que, ao escrever os mitos reunidos, acabasse por enfatizá-los em detalhes, por exemplo. O poeta acaba por criar, conforme afirma Jung (2013), a partir da vivência originária - cuja natureza obscura necessita das figuras mitológicas – essa busca ávida pelos símbolos e temas que lhe são afins para, então, exprimir-se por meio deles. Esta vivência originária é um pressentimento profundo e poderoso que quer expressar-se, é um símbolo vivo, um turbilhão que se apodera de tudo o que se lhe oferece, imprimindo-lhe uma forma visível. Nesta relação, tanto mais fortes sejam esses símbolos internos, tanto mais força fará o inconsciente para esvaí-los em expressões externas. Para Jung (2013), o papel da psicologia poderá ser, então, o de elucidar a essência dessa manifestação múltipla de pessoalidade (consciente) e essencialidade (inconsciente), principalmente através da terminologia e de materiais comparativos. O que aparece na visão é muitas vezes, com efeito, imagem do inconsciente coletivo, ou seja, da estrutura inata e peculiar dessa psique que constitui a matriz e a condição prévia da consciência. Neste processo, pode-se dizer que,

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Sempre que o inconsciente coletivo se encarna na vivência e se casa com a consciência da época, ocorre um ato criador que concerne a toda a época; a obra é, então, no sentido mais profundo, uma mensagem dirigida a todos os contemporâneos. (...) Todas as épocas têm sua unilateralidade, seus preconceitos e males psíquicos. Cada época pode ser comparada à alma de um indivíduo: apresenta uma situação consciente específica e restrita, necessitando por esse motivo de uma compensação (Jung, 2013, p.153, grifos do próprio autor).

Esta compensação é fornecida pelo inconsciente coletivo que, mediante subterfúgio de um poeta ou algum outro tipo de visionário, fará com que seja exprimido o inexprimível de uma época. Por esse motivo -essa relevância- é que Jung (2013) afirmou que, no caso da poesia, sua essência consiste em elevar-se acima do aspecto pessoal, rumo ao coração e espírito da humanidade. Os elementos pessoais constituem, na obra, limitações, “vícios da arte”. Uma arte que fosse única ou essencialmente pessoal mereceria ser tratada como uma neurose. Todo ser criador apresenta certa dualidade que constitui um paradoxo em termos de qualidade. Acontece que ele é, por um lado, uma personalidade humana, e, por outro, um processo criador e impessoal. Enquanto homem, ele pode ter uma série de características, funcionar, por exemplo, de modo saudável e doentio, mas sua psicologia pessoal pode e deve ser explicada de um modo pessoal. Contudo, enquanto artista, ele não poderá ser compreendido a não ser a partir de seu ato criador. É por esse motivo que Jung (2013) atribui ao artista, no mais alto sentido, o lugar de homem coletivo, portador e plasmador da alma inconsciente e ativa da humanidade. Na obra do poeta serão identificáveis, então, não apenas indicações semióticas ou alegorias há muito conhecidas, mas símbolos, expressões de dados vivos, antigos e atuantes de sua própria época. Estes dados são, muitas das vezes, os arquétipos (Jung, 15

2013). Torna-se importante ressaltar que arquétipo nenhum é, em si mesmo, nem bom, nem mau. Só através de sua confrontação com o consciente é que ele irá se tornar uma coisa ou outra, ou, então, uma dualidade de opostos. Portanto, “esta inflexão para o bem ou para o mal é determinada consciente ou inconscientemente pela atitude humana do sujeito. São numerosas as imagens primordiais desta espécie.” (Jung, 2013, p.160). Estes símbolos e imagens ficam por muito tempo sem se manifestar em determinadas sociedades e momentos históricos, até que a consciência acaba se extraviando numa atitude unilateral e, por consequência, falsa. Quando isto acontece a nível coletivo, constituindo um sintoma, os instintos do inconsciente são vivificados e delegam suas imagens aos sonhos dos indivíduos da comunidade e às visões dos artistas e visionários, que voltarão a expressar tais símbolos, na busca de um equilíbrio anímico. Este processo é uma espécie de homeostase psíquica do coletivo (Jung, 2013). Diz-se, então, que as necessidades anímicas de um povo são satisfeitas na obra do poeta, e justamente por esse motivo ela significa verdadeiramente para seu autor, estando ele consciente disso ou não, mais do que seu próprio destino pessoal. Jung (2013) afirma que, portanto, o segredo da criação artística e de sua atuação consistem precisamente nessa possibilidade de reimergir na condição originária da participation mystique. Nesse plano, vimos que não é o indivíduo nem o artista pessoal isolado, mas o povo que vibra com as vivências simbólicas manifestas. Não se trata mais das alegrias e dores do indivíduo, a obra torna-se impessoal e objetiva, pertencente a toda a humanidade, expressando-se de acordo com cada contexto sócio-histórico em questão. Segundo este conceito, a personalidade do poeta é secundária em relação ao que ele representa como ser criador.

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I.IV Os arquétipos

Conforme visto anteriormente, a noção de arquétipo está intimamente ligada à de inconsciente coletivo, bem como à relevância do estudo da mitologia para a Psicologia Analítica. Para Pieri (2002), os arquétipos são formas e categorias responsáveis por regular o espírito humano, um “modelo” das coisas sensíveis que existem na mente do homem e que se apresentam enquanto predisposições originárias. Em seus pressupostos, Freud (2014) já havia mencionado algo semelhante. Ao se levantar a discussão em torno dos sonhos que traziam imagens e associações análogas à ideias, mitos e ritos primitivos, o psicanalista nomeou essas imagens oníricas de resíduos arcaicos. No entanto, o psicanalista não deteve sua atenção sobre tais resíduos, descartando sua importância para (e na) análise, pois, segundo ele, estes eram meramente elementos psíquicos que sobreviviam na mente humana desde tempos imemoriais, ou seja, resquícios que deveriam ser tomados como tal (Jung, 2008). Portanto, segundo a visão freudiana, o inconsciente era simples apêndice do consciente, um depósito que guardava seus resíduos sem utilidade. Jung, no entanto, apresentou uma visão oposta à de Freud no que diz respeito ao inconsciente. Ele narra como constatou, ao acompanhar os próprios pacientes, o modo como certas associações e imagens estavam presentes no inconsciente, sobretudo nos sonhos, fosse o paciente instruído ou analfabeto, inteligente ou obtuso. Este fato levou Jung a postular que o inconsciente não continha, na verdade, meros “resíduos” sem vida ou significação, na verdade, muito pelo contrário: que estes resíduos apresentavam associações “históricas”, elos entre o mundo racional da consciência e o mundo do instinto (Jung, 2008). A teoria analítica de Jung foi, então, caminhando aos poucos para a percepção de que muitos dos símbolos que influenciam o homem não são de origem individual,

mas 17

coletiva. As imagens religiosas detinham um lugar especialmente relevante nesse aspecto. O crente atribui aos símbolos e imagens religiosas uma origem divina, produto de uma revelação feita ao homem, enquanto que o cético garante que foram inventadas. Mesmo não estando nenhum dos dois errados, também não estão inteiramente certos (apesar dos conceitos religiosos serem objeto de cuidadosa elaboração consciente ao longo dos séculos, também não deixam de ter a origem envolta em mistérios do passado). No entanto, uma categoria destes símbolos é inegavelmente importante: o fato de que eles são representações coletivas. O objetivo de tal estudo não é, por exemplo, averiguar a veracidade no contexto criacional dos objetos, mas analisar o modo como os indivíduos respondem à sua influência. A problematização se estende, então, para além da questão do alinhamento religioso ou do dualismo acreditar/não acreditar. Justamente o que caracteriza os símbolos é o fato de que os mesmos, em determinada sociedade e contexto histórico, recebem uma carga afetiva que é reconhecida socialmente. Conforme Frog (2015) explica, mais especificamente sobre os símbolos integrantes de uma mitologia ou sistema religioso, estes símbolos podem ser descritos como investidos de carga afetiva justamente porque sua capacidade de significar e influenciar os indivíduos inseridos em sua sociedade é reconhecida socialmente. Uma característica importante sobre o funcionamento desses símbolos é que a influência que causam nos indivíduos não depende de um entendimento consciente e racional que as pessoas façam deles. Um exemplo bem ilustrativo trazido por Kamppinen (1989), é o da pessoa que não “acredita” em fantasmas, mas que, sozinha e trancada à noite em uma casa supostamente assombrada, pode muito bem ser capaz de sentir medo. Outro aspecto interessante sobre a extensão da influência dos símbolos é que esta não depende de um alinhamento pessoal consciente com a carga afetiva que o símbolo traz. Um ateu pode muito bem responder de maneira positiva ao simbolismo do 18

martírio presente em algum material literário, por exemplo. É precisamente o fato de que os símbolos podem ser apontados e reconhecidos como dotados e investidos de carga emocional que permite que sejam usados e manipulados numa sociedade (Frog, 2015). O arquétipo seria, então, justamente esta tendência a formar as mesmas representações de um motivo significativo sem que perca sua configuração original, por mais que estas representações possam ter inúmeras variações de detalhes de acordo com a sociedade e o momento histórico estudados (Jung, 2008). Eles representam, na verdade, o que Jung definiu como tendências instintivas para representar certos temas e imagens simbólicas. Quanto mais pesquisamos as origens de uma imagem coletiva, mais vamos descobrindo uma teia de esquemas de arquétipos aparentemente interminável que, antes dos tempos modernos, nunca haviam sido objeto de reflexões mais sérias. Paradoxalmente, Jung (2008) aponta que, apesar de sabermos mais a respeito dos símbolos mitológicos hoje em dia do que qualquer outra geração que nos precedeu, nunca estivemos tão distantes do entendimento original sobre os mesmos. Hoje em dia, com toda a ciência e metodologia, estuda-se o mito, analisa-se o mito. Nos tempos passados, os homens não pensavam em seus símbolos, mas os viviam e eram inconscientemente estimulados pelo seu significado, o que torna nosso esforço atual de tentar compreender sua carga afetiva em algo ainda mais árduo, principalmente considerando-se a mudança em nosso modo de abordá-los.

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I.V Os símbolos

Para realizar a investigação dos símbolos presentes no material a ser estudado, nos apoiaremos nos estudos do símbolo apresentados por Mircea Eliade. Antes de partirmos para a definição e conceituação dos símbolos, é relevante que se ressalte justamente a importância que a psicologia profunda e a psicanálise trouxeram – ou melhor, ressuscitaram – no que diz respeito ao papel dos símbolos. A consolidação de certas palavras como imagem, símbolo e simbolismo nunca havia acontecido de maneira tão forte antes da psicanálise fazer delas seu objeto de estudo. Paralelamente, estudos em antropologia buscavam por meio de suas pesquisas desenvolver uma sistemática sobre o mecanismo das “mentalidades primitivas”, o que acabou por apontar, também para eles, a importância do simbolismo para o pensamento arcaico, bem como seu papel fundamental na vida das sociedades tradicionais (Eliade, 2012). Com a superação do positivismo e cientificismo, modelos de ciência vigentes no século XIX, surge a atenção voltada para o estudo dos símbolos como um modo de conhecimento autônomo. Redescobriu-se, então, o valor cognitivo dos símbolos, o que possibilitou uma nova abertura para as descobertas relacionadas ao irracional, ao inconsciente, ao simbolismo, às experiências poéticas, às artes exóticas, etc. Dessa maneira, por meio do lento e gradual avanço do estudo autônomo dos símbolos, tornouse possível discutir algo que antes era inimaginável para o cientificismo: “que o símbolo, o mito, a imagem pertencem à substância da vida espiritual, que jamais podemos camuflá-los, mutilá-los, degradá-los, mas que jamais podemos extirpá-los." (Eliade, 2012, p. 7). O estudioso também aponta que os símbolos oriundos das mitologias, tradições e religiões puderam resistir ao descrédito e ceticismo do século XIX, apesar de enfraquecidos, mas resistiram a essa hibernação, especialmente por meio da literatura. 20

Outro aspecto acerca dos símbolos que foi desmistificado é que o pensamento e o alinhamento simbólico não são características exclusivas das crianças, poetas e desiquilibrados. Conforme Eliade (2012) afirma, o símbolo é consubstancial ao ser humano, precedendo a linguagem e a razão discursiva. Mesmo multifacetados, os símbolos possuem uma interface que demonstra grande capacidade de revelar determinados aspectos do real, os mais profundos deles, desafiando outros meios de conhecimento lógicos e racionais que não conseguem chegar lá. Entendemos, então, que as imagens, símbolos e mitos não são meras criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade de preenchimento de uma função. Essa função seria a de revelar as mais secretas modalidades do ser, partindo-se do princípio de que cada ser histórico traz em si uma grande parte da humanidade anterior à História. Não estamos partindo de nenhum princípio que negue a história ou sua importância no estudo dos símbolos e das religiões, já que o mundo cultural, social e histórico é de relevância inegável quando estudamos essa ou aquela religião ou suas interações e intercâmbios. A diferença reside no enfoque, pois o estudo dos símbolos como ciência autônoma visa, conforme proposto por Eliade (2012), resgatar essa parte a-histórica do ser humano, trazida por ele como uma medalha, a marca de uma existência mais rica, anterior, mais completa e quase beatificante. Ao falarmos dessa parte a-histórica do homem, não estamos necessariamente ressaltando um retrocesso a algum estado animal da humanidade. Para Eliade (2012), na verdade, nas inúmeras vezes em que o Homem se reintegra pelas imagens e símbolos ele está utilizando de um estado paradisíaco do homem primordial. Nesse aspecto, não importa a existência concreta deste homem que se alinha com os símbolos, mantendo em mente que o homem primordial apresenta-se, acima de tudo, como um arquétipo impossível de realizar-se plenamente em uma existência qualquer. Portanto, ao escapar, por meio dos símbolos, de sua historicidade, o homem não está abdicando da qualidade 21

de ser humano e se perdendo na animalidade, mas reencontrando a linguagem e a própria experiência de uma espécie de “paraíso perdido” (Eliade, 2012). Aqueles símbolos presentes no inconsciente são, a princípio, muito mais “poéticos”, “filosóficos” e “míticos” do que a vida consciente. Em consonância com Jung, Eliade (2012) reafirma que nem sempre é necessário conhecer a mitologia para viver os grandes temas míticos. Apesar dos vários monstros e bestas que circulam por nosso inconsciente, eles não são os únicos vivendo lá. Ele é também a morada dos deuses, das deusas, dos heróis e das fadas; e, aliás, os próprios monstros que assombram o inconsciente são também mitológicos, pois continuam a preencher, por meio dele, as mesmas funções que tinham em todas as mitologias: em última instância, ajudar o homem a libertar-se, aperfeiçoar sua iniciação. Outro aspecto dos símbolos e imagens que merece nossa atenção é a sua estrutura multivalente. Se o espírito e o inconsciente utilizam de certas imagens para captar e demonstrar ao indivíduo a realidade profunda das coisas, é exatamente porque essa realidade se manifesta, no concreto daquele indivíduo, de maneira contraditória, e consequentemente não poderia ser expressa por conceitos racionais. Portanto, devido a essa capacidade flexível de manifestarem-se de acordo com a necessidade do indivíduo, os símbolos não podem ser estudados de acordo com uma única realidade que podem, no momento, estar apontando: este aspecto não representa o símbolo em si e em toda sua totalidade. A busca, conforme aponta Eliade (2012), está na imagem em si, enquanto conjunto de significações. Esse conjunto é que representa a imagem verdadeira, e não qualquer de suas facetas separadas do resto: uma única das suas significações ou um único dos seus inúmeros planos de referências, separados do todo, nunca podem ser tidos como uma representação fiel da imagem. Concluímos, assim, que, no plano da dialética da imagem, toda redução exclusiva constitui uma aberração.

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Uma propriedade dos símbolos que também se mostra importante é o fato de que eles nunca deixam de estar presentes na psique do indivíduo, por mais que possam estar, em certa medida, adormecidos. A pessoa mais pragmática e realista não deixa de viver por meio de imagens: os símbolos jamais desaparecem da atualidade psíquica, podendo até mesmo mudar de aspecto, mas sua função mantém-se íntegra (Eliade, 2012). Dentre os psicólogos que se debruçaram sobre o estudo das imagens e símbolos, Jung foi o que mostrou mais claramente até que ponto os dramas do mundo moderno derivam não só de crises políticas e econômicas, mas também de um profundo desequilíbrio da psique, o que engloba os âmbitos individual e coletivo. Um dos efeitos consequentes desse fenômeno é a esterilização da imaginação. Eliade (2012) explica que imaginação, etimologicamente, está ligada a imago – “representação”, “imitação” – e a imitor – “imitar”, “reproduzir” -. A imaginação, por sua vez, fica encarregada de imitar certos modelos exemplares, que seriam justamente as imagens, buscando reproduzi-los, reatualizá-los e repeti-los indefinida e infinitamente. Dessa forma, as imagens são responsáveis por nos fornecer visões do mundo em sua totalidade, pois:

(...) as imagens têm o poder e a missão de mostrar tudo o que permanece refratário ao conceito. Isso explica a desgraça e a ruína do homem a quem ‘falta imaginação’: ele é cortado da realidade profunda da vida e de sua própria alma (Eliade, 2012, p. 16).

Os pontos supracitados a respeito dos símbolos servem para demonstrar que o estudo autônomo dos símbolos e imagens interessa ao psicólogo, ao antropólogo e ao historiador das religiões porque contém, em si, o conhecimento envolvendo o homem. Difundidos ou descobertos espontaneamente, os símbolos, mitos e ritos nos revelam sempre uma situação-limite do homem, superando sua situação histórica. Por situação23

limite, Eliade (2012) entende aquelas situações em que o homem descobre-se tomando consciência de seu lugar no Universo. Portanto, ao chamarmos a atenção para a sobrevivência dos símbolos e temas míticos na psique do homem e ao mostrar que a redescoberta espontânea que cada indivíduo faz dos arquétipos do simbolismo arcaico é algo comum a todos os seres humanos, não diferindo, em natureza, entre diferentes raças e tempos históricos, a psicologia profunda empoderou o entendimento que fazemos do homem enquanto um símbolo vivo. Para melhor definição do conceito de símbolo, nos alinharemos ao conceito de Silveira (2011), ao afirmar que em todo símbolo está sempre presente a imagem arquetípica como fator essencial, que se junta a outros elementos para construí-lo. Assim sendo, o símbolo se constitui enquanto forma altamente complexa onde se reúnem opostos numa síntese que vai além das capacidades de compreensão disponíveis no momento presente e que, portanto, não pode ser muito presa e formulada dentro de conceitos. Nos símbolos, portanto, consciente e inconsciente aproximam-se, e nesse momento ocorre a convergência de todas as possibilidades semânticas, tornando os símbolos, então, unidades multifacetadas de significações. É relevante ressaltar o fato de que, de uma parte, o símbolo é uma unidade racional e possui um lado acessível à discussão, análise e à razão; mas, de outro, possui uma constituição inconsciente e primitiva (Silveira, 2011). De acordo com Jung (2008), o símbolo não oferece explicações por si só, mas impulsiona aquele que entra em contato com ele para algo que vai além de si mesmo, na direção de um sentido ainda distante, inapreensível, “obscuramente pressentido” e que nenhuma palavra de língua falada poderia exprimir com maior exatidão, sensibilidade ou de maneira satisfatória. Portanto, segundo Silveira (2011), o conceito junguiano de símbolo situa-o enquanto unidade de ação mediadora que constitui uma tentativa de encontro entre 24

opostos movida pela tendência inconsciente à totalização. Dessa forma, o símbolo é uma linguagem universal infinitamente rica, capaz de exprimir, por meio de imagens, muitas das coisas que transcendem problemáticas específicas dos indivíduos. De acordo com essa visão, os símbolos atuam como unidades coletivas e transpessoais que totalizam e universalizam a experiência de certos sentidos, tornando-os acessíveis por meio de imagens.

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CAPÍTULO II: O GYLFAGINNING, A EDDA EM PROSA E SEU AUTOR

II. I A Edda em Prosa

Foi provavelmente no ano de 1220 D.C que Snorri Sturluson escreveu a sua Edda, chamada Edda em Prosa (Langer, 2015). É comum conferir a ela também o nome Snorra Edda, ou seja, “Edda de Snorri”, visto que sua autoria costuma ser atribuída a esse político islandês do século XIII (Boulhosa, 2004). Essa suposta autoria conferida comumente à Snorri Sturluson aparece em apenas um manuscrito medieval, o manuscrito DG 11, conhecido também como Codex Upsaliensis (U). A Edda em Prosa também circulou durante a Idade Média através de outros manuscritos, como o GKS 2367 4º, o Codex Regius (R), e o AM 242, ou Codex Wormianus (W), porém, nesses dois, de maneira anônima (Boulhosa, 2004). Este último fato mencionado leva muitos acadêmicos contemporâneos a demonstrarem certo ceticismo em relação ao posicionamento tradicional de atribuir a autoria da Edda em Prosa a Snorri Sturluson (Langer, 2015). Contudo, ainda assim vigora a transferência dessa autoria fixa e imutável à Edda em Prosa, o que leva os estudiosos a estabelecerem e trabalharem com a ideia de um “texto original” que seria, conforme explica Boulhosa (2004), aquele texto escrito pelo punho do próprio autor, sem intervenção de copistas desatentos ou criativos. Assim, ao estudar-se a Edda em Prosa, tende-se a ser escolhido como material para estudo o Codex Regius (o manuscrito R) que seria, em tese, a representação do suposto texto original. O conteúdo da Edda em Prosa apresenta um dos mais completos relatos da mitologia nórdica de que dispomos nos dias atuais, além de ser um extensivo manual de versificação escáldica (Moosburger, 2011). Esta era uma técnica de composição presente na poesia escáldica, uma forma de arte poética cujo auge foi durante a Era 26

Viking, período que teve início antes de 800 D.C e estendeu-se por mais de dois séculos e durante os quais os Vikings deixaram suas marcas na Europa Ocidental, na Rússia Oriental e também através do Mediterrâneo (Bronsted, 2004). No entanto, segundo Moosburger (2011), devido às profundas transformações culturais e espirituais que envolveram o mundo nórdico após a consolidação do cristianismo em suas terras, toda essa tradição mítica e poética ancestral corria o risco de ser esquecida, sendo esse um dos motivos pelos quais Snorri Sturluson resolveu compilá-los e preservá-los em sua obra. Quanto à origem dos poemas presentes na Edda, nota-se que estes existiam em formato de oralidade por várias gerações antes que alguém se propusesse a escrevê-los, e, de maneira geral, todos os poemas que a constituem são fortemente pagãos em essência, ou seja, de caráter politeísta e não dogmático (Bellows, 2014). Afinal, conforme afirma Boyer (1987), citado por Cohat, (1992), no período em que os mitos narrados na Edda em Prosa circulavam originalmente a escrita ainda não havia sido introduzida no norte da Europa, tendo chegado àquela região juntamente ao cristianismo, por volta do ano 1000. É por esse motivo que, até a chegada do alfabeto e a da escrita latinos, a poesia posteriormente encontrada nas Eddas era a princípio feita para ser memorizada e recitada: motivo pelo qual passou por adaptações posteriores para que fosse escrita. Aliás, uma característica marcante da obra é justamente sua relação com o cristianismo, visto que foi a cristianização da Escandinávia que trouxe o início do letramento, tornando possível o registro, via escrita, dos mitos de seu passado pagão (Palamin, 2011). Dessa forma, a Edda em Prosa tinha por “objetivo básico ser um manual de mitologia para os jovens poetas, numa época em que as antigas metáforas poéticas e narrativas míticas estavam sendo esquecidas” (Langer, 2015, p.143).

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A Edda em Prosa é composta por um prólogo seguido por três capítulos: Gylfaginning, Skáldskaparmál e Háttatal, respectivamente. Os dois últimos, se considerados juntos, constituem uma artes poeticae, ou seja, um manual de técnicas de composição da poesia escandinava da época (Boulhosa, 2014). No capítulo Skáldskaparmál, cujo significado é “Dicção Poética”, a personagem Ægir parte a caminho de Asgard e lá encontra Bragi, com quem tem um longo diálogo sobre toda a arte poética: trata-se de um modo de Snorri Sturluson elucidar sobre os sinônimos (heiti) e metáforas (kenningar) que poderiam ser usados pelos poetas escaldos (Boulhosa, 2014). O terceiro capítulo, Háttatal, significa “Lista de Métricas” e constitui uma sistematização da linguagem poética espalhada em 102 estrofes redigidas em cem métricas diferentes com o intuito de servir como exemplificação de possibilidades métricas na poesia (Boulhosa, 2014). Por sua vez, o primeiro capítulo, o Gylfaginning (o embuste de Gylfi), retrata um desenvolvimento mais sistemático e objetivo da mitologia nórdica. Ele reconta, por meio de um diálogo dos deuses com o Rei Gylfi, toda essa mitologia, desde o início dos tempos até a destruição e a renovação do mundo (Langer, 2015). Encontramos no Gylfaginning temas como a teogonia e a escatologia do(s) mundo(s), além de aventuras e acontecimentos relacionados aos principais deuses. É importante ressaltar, também conforme apontado por Langer (2015), que o capítulo do Gylfaginning contém citações de um outro material, advindas da Edda Poética. Esta, ao contrário da Edda em Prosa, não é da autoria de Snorri Sturluson, mas de caráter anônimo: trata-se de uma coleção de poemas, em sua grande parte de caráter mitológico e épico, escritos em nórdico antigo, tidos por vários especialistas como a maior fonte para estudo da mitologia nórdica (Langer, 2015). O prólogo apresentado antes do Gylfaginning consiste em uma tentativa da parte de Snorri Sturluson de oferecer uma explicação racional, cristã e evemerista sobre 28

as origens da religião pagã nórdica. O evemerismo consiste, basicamente, em uma tentativa de se explicar, da maneira mais racional possível, o processo de apoteose de homens ilustres, mesmo sendo eles divindades (Brandão, 2001). No caso do prólogo da Edda em prosa, a tentativa evemerista constituiu em um esforço de Snorri Sturluson para retratar os deuses nórdicos como heróis antigos, que na verdade seriam descendentes do Rei Príamo e migraram para o norte da Europa após a queda de Tróia (Langer, 2015). Por fim, apesar das questões religiosas (conscientes ou não) que permeiam o autor e o contexto de escrita da Edda em Prosa, seu autor Snorri Sturluson:

foi a primeira pessoa a tratar a mitologia escandinava de uma perspectiva acadêmica e a selecionar o material de forma sistêmica. As atitudes de Snorri para com os mitos nunca são moralistas, não fazem juízo de valor condenando os antigos mitos pagãos, nem equalizadas com os demônios, atitudes típicas de sua época (Langer, 2015, p. 143).

O que Boulhosa (2014) nos diz é que precisamos deixar de lado a ideia de que os textos medievais estejam fundamentados em um único sistema religioso coerente e unificador, refletindo supostamente uma única tradição. Aliás, o que as percepções mais recentes nos revelam sobre a Edda em Prosa é que ela não representa uma fonte “correta” e original a respeito das narrativas antigas, mas é um produto de sua época, a Idade Média Central, criando, assim, uma espécie de “nova” mitologia que é baseada tanto na tradição nativa em questão, ou seja, os mitos do passado pagão da Escandinávia, quanto no imaginário cristão (Langer, 2015).

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II. II Snorri Sturluson

Snorri Sturluson (1179 – 1241) foi um islandês envolvido com a pesquisa histórica, a poesia e a política, sendo aquele a quem se atribui a autoria da Edda em Prosa que, por isso, também é conhecida por Edda de Snorri (Langer, 2015). Conforme elucidado por Wanner (2008), Snorri vinha de uma família distinta. Seu avô, antes mero fazendeiro, ascendeu até a posição de goði, que seria, grosso modo, uma espécie de chefe-sacerdote. Quando seu avô Þorgrímsson morreu, o filho mais velho, Sturla, herdou sua posição. Sua fama cresceu conforme executava habilmente suas funções de chefe provinciano, até que um dia casou-se com a mulher que seria a mãe de Snorri. Snorri era o décimo primeiro filho entre sete filhos legítimos e sete filhos ilegítimos de seu pai. Aos dois anos de idade, Snorri foi acometido por um evento que mudaria sua vida. Naquela época seu pai envolveu-se em uma disputa, durante a qual foi atingido no rosto pela esposa do oponente. Após esse acontecimento, resolvera cobrar uma reparação extravagante pelo dano sofrido, “advogando” em causa própria, já que tinha o poder para fazê-lo. O desentendimento só foi finalmente resolvido quando o chefe de uma importante família do sudoeste da Islândia interveio, conversando com Sturla e convencendo-o a aceitar uma quantia muito menor do que a que havia pedido como reparação. Contudo, esse mesmo chefe ofereceu, como reparação, adotar Snorri e deixá-lo sob seus cuidados. E foi dessa forma que a Snorri foi oferecida a oportunidade ter crescido e sido educado em Oddi, que, no século XIII, era o maior centro cultural e educacional da Islândia (Wanner, 2008). De acordo com Langer (2015), depois de adulto, Snorri casou-se com Herdís Bersadóttir, tendo administrado as ricas propriedades da família da esposa. Quando seu sogro morreu, Snorri herdou sua posição de goðorð, uma posição de chefia islandesa. 30

Em 1224 casou-se novamente, desta vez com Hallveig Ormsdóttir e, a partir de então, tornou-se um dos homens mais ricos e de maior prestígio político na Islândia, vindo a ser lögusögumaðr, um recitador de leis. Esta posição, embora não envolva grandes ganhos financeiros diretos, demonstra a dimensão da influência de Snorri em torno das estruturas políticas islandesas. Entre 1218-1220, fez uma visita à Noruega e conheceu Skúli Bárðarson, tio do rei Hákon Hákonarson e administrador de seu reino enquanto o rei ainda não tinha idade para administrá-lo por conta própria. Snorri torna-se membro da companhia do rei, chegando à posição de maior presença na corte real, sendo adquirida sob a promessa de que iria lutar para promover a submissão da Islândia à Noruega. Neste momento, utilizou de tamanho prestígio para promover seus próprios projetos na Islândia (Langer, 2015). Portanto, sua educação em Oddi, suas conexões com a corte e o acúmulo de prestígio são aspectos ligados à produção intelectual de Snorri. Para Langer (2015), seu envolvimento político o colocava em uma boa posição para promover seus interesses intelectuais particulares por meio da escrita. Não é por menos, então, que tamanha habilidade de Snorri para a escrita é considerada por muitos como excepcional. Seu conhecimento acerca das tradições orais e o modo como atuavam culturalmente é demonstrado ao longo de sua Edda, como, por exemplo, no modo como encaixou, em sua narrativa, referências poéticas e mitológicas advindas de outro material, a Edda Poética. Contudo, Frog (2009) comenta que, ao longo de sua obra, Snorri não apresenta interesse em meramente registrar e documentar de forma sistemática poemas inteiros que existiam originalmente como fenômenos da oralidade (com exceção, talvez, do Háttatal), mas sim em citar esses poemas de acordo com a relevância que trariam para a semântica e a métrica de seu texto, de modo a preencher essa necessidade típica da escrita. 31

II. III Resumo e tradução do material

O objetivo, neste momento, é oferecer uma tradução resumida do Prólogo da Edda em Prosa e em seguida de seu primeiro capítulo, a ser analisado nesta monografia, o Gylfaginning. Longe de nossa intenção verdadeira ter a pretensão de estar oferecendo uma tradução rigorosa, crítica e sistematizada: trata-se apenas de um esforço para tornar este material mais acessível para uma primeira leitura, já que não existem, até o momento, traduções sérias e acadêmicas da Edda em Prosa para o português. Além disso, o leitor poderá se beneficiar desta disponibilidade da obra traduzida e resumida aqui quando, no capítulo seguinte, abordarmos alguns símbolos e arquétipos, pois poderá voltar ao material em questão e relê-lo em sua fonte. Desta forma, ficará mais acompanhar, juntamente da discussão dos símbolos, sua ocorrência no material primário. A tradução resumida que aqui consta foi feita baseada na tradução do islandês para o inglês feita por Arthur Gilchrist Brodeur, via Dover Publications. Optamos, assim como este primeiro tradutor, por manter a obra dividida em subcapítulos, conforme consta no original. Também nos esforçamos para que a estrutura gramatical e sintática fosse mantida simples, em frases curtas, preservando a pontuação da maneira como foi escrita pelo autor primeiro. Desta forma, as frases de cunho simples, a pontuação e a repetição foram mantidas com tanta fidelidade quanto possível à escrita original.

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II. IV Tradução resumida do prólogo

Snorri Sturluson inicia o prólogo narrando que no começo Deus criou céu e inferno e todas as coisas que faziam parte deles, até que, por último, criou dois seres da raça humana: Adão e Eva, de quem todas as raças se derivaram. Depois, seus filhos foram se espalhando e se multiplicando até povoarem a Terra. Contudo, conforme o tempo foi passando, as raças humanas foram se tornando diferentes umas das outras em natureza, pois enquanto umas eram boas e acreditavam no que era justo, outras cederam à luxúria do mundo, desrespeitando os comandos de Deus. Por essa razão, Deus afogou o mundo e todos os seres vivos que nele existiam, com exceção daqueles que estavam na arca com Noé. Após essa inundação, oito humanos continuaram vivos e foram eles que repovoaram a terra, e as raças humanas deles derivaram. No entanto, aconteceu conforme acontecera antes: quando a Terra tornou-se cheia de pessoas e habitada por muitos, toda a sorte de seres humanos começaram a amar a ganância, a riqueza e a falsa honra, negligenciando o culto a Deus. Como era de se esperar, o domínio do mal chegou a tal ponto que as pessoas não mais nomeavam Deus, e dessa forma, ninguém mais poderia contar a seus filhos sobre os poderosos milagres e maravilhas Dele. O nome de Deus, portanto, se perdeu, e em nenhuma parte do mundo era possível de ser encontrado algum homem em que se reconhecessem os traços de seu Criador. Mesmo assim, Deus não deixou de oferecer presentes aos homens: concedeulhes a riqueza e a felicidade para que pudessem gozar de uma vida prazerosa; Ele também aumentou sabedoria, para que conseguissem compreender todos os assuntos terrenos. Com essa sabedoria os homens foram capazes de reconhecer que a Terra tinha certa vida suportada por uma natureza própria dela mesma, e então concluíram que ela era extremamente antiga e igualmente poderosa, ela alimentava tudo o que nela vivia e 33

também pegava para si tudo o que morria. Dessa forma, deram a ela um nome e traçaram o número de gerações que já haviam nela vivido. Aprenderam também algo importante com seus anciões: que muitas centenas de anos já haviam se passado desde que essa mesma Terra existia, assim como o mesmo sol e as mesmas estrelas no céu, mas que, porém, a duração dessas últimas não era igual, já que algumas tinham vida mais longa que as outras. Por meio desses conhecimentos é que certos pensamentos começaram a ser instigados nos homens, como, por exemplo, a ideia de que haveria algum governante das estrelas do céu, alguém que ordenasse o curso das coisas de acordo com seu desejo e sua vontade, e que, portanto, deveria ser alguém muito forte e cheio de poder. Também acreditavam que se ele era capaz de prolongar ou diminuir o curso dos principais elementos da natureza, que então ele deveria ter começado a existir antes mesmo do que as estrelas do céu, e perceberam que, se ele era capaz de governar o curso dos corpos celestiais, então ele também governava o brilho do sol, o orvalho do ar, os frutos da Terra e tudo o que dela brotasse, e também os ventos e as tempestades dos mares. Contudo, os homens não sabiam onde era seu reino, mas acreditavam, a partir daquele momento, que Ele governava todas as coisas na terra e no céu, bem como os ventos que vinham do mar. Então, decidiram dar nomes a todas essas coisas que existiam. Essa crença dos homens mudou de variadas maneiras conforme iam se espalhando mundo afora, separando-se uns dos outros e suas línguas foram se modificando. Todas as coisas, portanto, eram compreendidas e discernidas pelos homens de acordo com a sabedoria terrena, pois o entendimento do espírito não foi dado a eles. No entanto, uma coisa eles sentiam: que tudo era criado a partir da mesma essência.

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A segunda parte do prólogo nos conta sobre a divisão do mundo em três partes: Ao sul a África, a parte quente e intensamente exposta ao sol; do oeste ao norte a Europa, cuja parte mais ao norte é tão fria que nenhuma grama cresce do chão e nenhum homem suporta habitar; e do norte ao extremo leste, descendo até o sul está a Ásia, onde as frutas da Terra crescem mais, e onde há também ouro e jóias. Há também o centro do mundo, e assim como a terra lá é amável e melhor em todos os quesitos do que em outras partes do mundo, assim são os homens que vivem lá e que foram favorecidos com boas características, tais como a sabedoria, a força física, a beleza e todos os tipos de conhecimento. Conforme narra a terceira parte do prólogo, próxima ao centro do mundo foi feita a melhor das moradas, chamada Tróia. Ela era muito mais gloriosa do que as outras, tendo sido feita com muito mais habilidade e excedendo tanto em luxúria quanto em riqueza, coisas que haviam lá em abundância. Lá existiam doze reinos, cada um com seu rei, mas todos governados pelo Grande-Rei. Havia, dentre eles, um rei chamado Múnón, que se casou com a filha do Grande-Rei, chamada Tróán, e tiveram um filho chamado Trór, que nós conhecemos por Thor. Ele era de uma constituição bela e seu cabelo era mais bonito do que ouro. Aos vinte anos de idade ele assassinou seu pai adotivo e esposa, pegando para si o reino da Trácia, que hoje nomeamos Thrúdheim. Depois, Thor se aventurou mundo afora, tendo ido tão longe quanto os quatro cantos da Terra, vencendo, sozinho, as lutas contra todos os gigantes e também contra um Dragão (o mais poderoso dos dragões), assim como muitas outras bestas. Na parte mais norte de seu reino ele encontrou Síbil, que nós conhecemos por Sif, a profetisa, e se casou com ela. O primeiro filho deles foi Lóridi, que teve uma longa linhagem de descendentes chegando até Vóden (ou seja, Odin). Odin era um homem conhecido por sua sabedoria e por seus grandiosos feitos. Possuía o dom da clarividência, assim como sua esposa, Frigg. Por meio desse dom, 35

Odin tomou conhecimento de que na parte do norte do mundo seu nome seria exaltado e glorificado acima de todos os outros reis. Odin, acompanhado de muitas pessoas, se aprontou para viajar fora do reino onde estava rumo ao norte, e durante o caminho coisas gloriosas foram acontecendo, de forma que coisas igualmente gloriosas começaram a serem ditas sobre ele e seus companheiros, que começaram a ser tomados mais por deuses do que por humanos. A quarta e última parte do prólogo narra o fim da aventura de Odin. Ele passou por outros lugares e fez deles sua morada por um tempo, não sem antes povoá-los com sua linhagem, que viria a fundar os reinos da Saxônia, o Império Franco e a Jutlândia. Por fim, decidira migrar mais ao norte, para um lugar chamado Suécia, onde o Rei Gylfi governava. Quando o rei soube da chegada desses homens da Ásia, que por isso eram chamados de Æsir partiu de encontro a eles. Uma vez juntos, Gylfi propôs uma oferta: mesmo estando Odin dentro de seu reino, seria concedido a ele todo o poder quanto ele alegava ter. Dessa forma, instaurou-se tamanho bem-estar que, em quaisquer terras em que eles morassem havia sempre paz e entendimento, e, portanto, as pessoas passaram a acreditar que havia sido a chegada de Odin que causara tudo isso, pois percebiam que ele e seus companheiros eram diferentes dos outros, tanto em sabedoria quanto no seu senso de justiça. Odin optara por estabelecer lá uma cidade chamada Sigtún, onde estabeleceu chefes assim como havia feito em Tróia, e também delegou doze homens para serem os juízes das pessoas, fazendo com que elas obedecessem e respondessem às leis daquela terra, leis essas que Odin adotou conforme as de Tróia, de acordo com os costumes de lá. Após esse feito, Odin foi mais ao norte, até onde o mar o fizesse parar. Lá ele colocou seu filho Sæmingr como rei do que seria, então, o território da Noruega. Por fim, ao longo dos tempos os Æsir escolheram mulheres daquela terra para serem suas esposas, assim como algumas para casarem com seus filhos. Essas famílias 36

multiplicaram-se e tornaram-se muitas, de modo que seus descendentes espalharam-se pela região da Saxônia até o extremo norte do continente e ao leste da Ásia.

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II. V Tradução resumida do Gylfaginning

I O Rei Gylfi reinava no lugar hoje conhecido como Suécia. Conta-se que ele ofereceu uma terra fértil e arável de seu reino a uma mulher viajante. Essa mulher, chamada Gefjun, pertencia à família dos Æsir. Então, ela trouxe do norte, mais precisamente de Jötunheim, quatro bois que eram filhos dela e de um gigante, colocando-os para arar a terra. O arado, contudo, cortou tão profundamente que o terreno se soltou do restante da terra, e então os bois o levaram mar adentro em direção ao oeste e só pararam quando foram ordenados. E foi naquele lugar que Gefjun firmou sua terra e instalou-se, nomeando-a Selund. O lugar onde este pedaço de terra uma vez esteve era agora nada mais que um grande lago, já que a terra fora arrancada. II O Rei Gylfi, homem sábio e habilidoso no uso da magia, sentiu-se perturbado com o fato de ter sido enganado e perguntou-se como os Æsir poderiam ser assim tão astutos a ponto de que todas as coisas acontecessem sempre de acordo com seu desejo. Ele ponderou se isso era algo devido à própria natureza deles, ou se o poder divino que eles idolatravam era responsável por arranjar as coisas desse modo. Decidido a descobrir a resposta, partiu rumo a Ásgard, disfarçando-se de ancião, com intuito de enganar os Æsir. Contudo, embora ele não soubesse, os Æsir eram mais sábios que ele a respeito dessas coisas, já que possuíam o dom da clarividência, e dessa forma já sabiam de antemão sobre a jornada de Gylfi, tendo todos se preparado contra as ilusões que ele havia preparado para eles. Ao chegar lá, Gylfi deparou-se com um salão imenso e tão alto que ele próprio não seria capaz de escalá-lo sem grandes dificuldades. Suas paredes eram inteiras cobertas por escudos dourados. Na porta de entrada havia um homem, que perguntou a 38

Gylfi seu nome. Este, no entanto, resolveu enganá-lo, já que estava disfarçado: disse que se chamava Gangleri, que tinha chegado até lá por meio do caminho da serpente, além de ter pedido permissão para alojar-se lá durante aquela noite. Aproveitou para perguntar quem era o dono daquele salão, ao que o homem respondeu que era o Rei, e que arranjaria um encontro entre ele e Gangleri. Em seguida, o homem seguiu salão adentro, pedindo para que Gangleri o acompanhasse, e assim que os dois estavam dentro do salão a porta atrás dele se fechou. Lá dentro havia uma grande sala e muitas pessoas dentro, algumas entretidas com jogos, outras bebendo, e outras estavam armadas e lutando. Gangleri avistou três tronos, cada um mais elevado que o outro, e em cada trono havia um homem sentado. Ele perguntou seus nomes: Hárr (O Elevado); Jafnhárr (Igualmente Elevado) e Thridi (O Terceiro). Hárr perguntou a Gangleri se ele busca por lá algo além da bebida e da comida, que ele teria à sua disposição, ao que ele respondeu que, antes de tudo, gostaria de saber se naquele salão existia alguém realmente sábio. Hárr sentiu-se ofendido com a pergunta, não só afirmando que os três eram incrivelmente sábios, mas também que, devido à ofensa, Gangleri jamais sairia de lá inteiro a não ser que provasse ser mais sábio que eles. III Gangleri deu início ao embate, perguntando: “Quem é o primeiro ou o mais antigo dentre todos os deuses?”. Hárr respondeu: Em nosso idioma ele é chamado de Pai de Tudo. Gangleri insiste, perguntando “Onde está esse deus, que poder ele tem, e quais feitos gloriosos ele realizou?”. Hárr conta que esse deus vive em todos os lugares, em todas as eras e governa tudo que seu reino engloba. Ele dirige todas as coisas, das mais grandiosas às menores. Jafnhárr complementa contando que esse deus criou o Céu e a Terra, bem como o ar e todas as coisas que neles estão. Thridi disse que seu maior feito foi ter criado os homens, dando-lhes um espírito que nunca perecerá, mesmo que o 39

corpo em que ele está apodreça ou seja queimado até as cinzas. “O que ele fez, então, antes de criar o Céu e a Terra?”, prossegue Gangleri perguntando. Então lhe foi dito que ele estava com os Gigantes de gelo. IV Após Gangleri perguntar sobre o que havia no começo de tudo, Jafnhárr segue narrando que muitas eras antes da Terra ter sido criada existia um Grande Vazio, onde não havia mar, grama, areia e nem ondas. Depois, foi criado muito antes da Terra o Mundo da Névoa, juntamente do poço chamado Hvergelmir, de onde brotam vários rios grandes. No entanto, antes mesmo disso, Thridi conta de um mundo criado mais a sudeste, chamado Múspell. Este é um mundo claro e quente, pois a região onde fica está brilhando e queimando, sendo inabitável para os forasteiros. Ao fim dessa terra está seu guardião e defensor, Surtr, que carrega uma espada flamejante, e quem, quando chegar o fim do mundo, causará grande tormento aos deuses e os vencerá todos, queimando o mundo inteiro com seu fogo. V Em seguida Gangleri pergunta como todas as coisas foram feitas, antes mesmo das diferentes raças existirem e das tribos crescerem. E então lhe contam sobre as correntes d’água que foram ficando congeladas, tornando o Ginnungagap (O Grande Vazio) um lugar pesado de tanto acumular enormes massas de gelo. Contudo, a parte sudeste do Grande Vazio não estava acumulando gelo devido ao fogo e ao calor que vinham de Múspell. Ao mesmo tempo um frio intenso e todas as coisas que eram terríveis emanavam de Niflheim, e então, quando o calor de um lugar encontrou-se com o frio do outro, no meio de Ginnungagap, os cristais de gelo começaram a derreter e pingar. A poça que se formou do acúmulo desses pingos assumiu uma forma humanóide, e esse homem é chamado Ymir e dele derivou-se a raça dos gigantes de gelo. Gangleri, então, indaga “Como foi que as outras raças se derivaram a partir daí, ou 40

então de que forma foram mais homens sendo criados? Ou vocês tomam Ymir como Deus?”. Jafnhárr afirma que de maneira alguma tomavam Ymir por Deus, dizendo que ele e todos seus descendentes, os Gigantes de Gelo, eram maus. Ele segue contando sobre a origem dos outros gigantes, explicando que, quando dormiu, Ymir começou a suar, e do suor que corria de sua mão esquerda nasceram um homem e uma mulher, derivando-se daí toda a raça dos Gigantes de Gelo. VI “Que lugar Ymir habitava e de onde ele conseguia sustento?”, pergunta Gangleri. Hárr respondeu que quando o gelo de Nilfheim derreteu, dele surgiu uma vaca chamada Audumla. De suas tetas corriam quatro grandes fluxos de leite, dos quais Ymir se alimentava. No entanto, Gangleri logo retruca, querendo saber do quê a vaca, por sua vez, se alimentava, ao que Hárr novamente responde contando que ela lambia os blocos de gelo, que continham um pouco de sal. Conforme ela ia lambendo os blocos de gelo, foram aparecendo os cabelos de um homem, no segundo dia sua cabeça, e no terceiro dia o homem inteiro estava lá. Ele tinha traços belos e era poderoso, seu nome era Búri. Tempos depois ele teve um filho chamado Borr, que viria a se casar com uma mulher chamada Bestla, filha de um gigante. Juntos eles tiveram três filhos: O primeiro foi Odin, o segundo Vili e o terceiro, Vé. Em seguida, Hárr conta que acredita ser Odin, juntamente de seus irmãos, os governantes do Céu e da Terra, sendo ele o mais poderoso e o mais digno de honra. VII Após saber disso, Gangleri pergunta sobre qual dentre os três irmãos era o mais forte e qual tipo de acordo vigorava entre eles. Hárr disse que todos os três irmãos eram tão fortes que mataram, juntos, o gigante Ymir, e que quando ele morreu tanto sangue saiu de suas feridas que todos os outros gigantes de gelo se afogaram, tendo sobrado apenas um deles, conhecido como Bergelmir. Ele fugiu junto de sua esposa, tendo se 41

mantido em segurança dentro de seu navio. Foi assim que os Gigantes de Gelo conseguiram sobreviver até hoje. VIII “O que os filhos de Borr fizeram em seguida, então, já que vocês acreditam que são eles deuses?”, continua Gangleri. Segundo Hárr, após terem assassinado o gigante Ymir, eles o levaram até o centro do Grande Vazio e usaram dele para fazer a Terra: de seu sangue fizeram o mar e o fluxo das águas; a terra foi feita de sua carne; as montanhas foram feitas de seus ossos; pedras e rochas foram feitas de seus dentes e ossos quebrados. Thridi completa dizendo que de seu crânio fizeram o Céu, tendo em seguida espalhado um homem da raça dos anões em cada um dos quatro cantos do mundo: seus nomes eram Norte, Leste, Oeste e Sul. Em seguida, Odin, Vili e Vé capturaram brasas flamejantes que saíam de Múspellheim e as jogaram no meio do Grande Vazio, tanto em cima quanto em baixo, de modo a iluminar o Céu e a Terra. Eles deram destinos específicos a cada um dos pontos de fogo, assim como criaram cursos diferentes para eles também, e dessa maneira surgiram os dias. Mas Gangleri quis saber como a Terra fora planejada. Hárr responde que ela tem formato de anel e que abaixo dela, nas profundezas, fica o grande oceano, lugar onde todas as raças de gigantes fizeram suas moradas. No centro da Terra e contornando o mundo inteiro foi construída uma cidadela, feita com as sobrancelhas erguidas do gigante Ymir, como proteção contra a hostilidade dos gigantes, e chamaram a esse lugar de Midgard. O cérebro de Ymir foi arremessado em direção ao ar, bem alto, e dele fizeram as nuvens. IX “Me parece, então, que eles foram responsáveis por grandes feitos. Mas quando vieram os homens que povoaram a Terra?”, indagou Gangleri. Em seguida contou Hárr que os filhos de Borr estavam caminhando por uma enseada quando

encontraram duas 42

árvores. Eles a arrancaram e fizeram, a partir delas, o molde de dois seres humanos. O primeiro concedeu a eles vida e espírito; o segundo, sabedoria e sentimento; o terceiro, forma, fala, visão e audição. Eles também deram aos dois roupas e os nomes. O homem era chamado Askr e a mulher era chamada Embla, tendo sido dada a eles uma morada em Midgard. Toda a humanidade foi concebida a partir deles. Em seguida os deuses fizeram para eles uma morada no meio do mundo, nomeada Ásgard (os homens a chamam de Tróia). Lá moram os deuses e seus familiares, e muitos contos são conhecidos a respeito de lá. Há também uma morada chamada Hlidskjálf. Quando o Pai de Tudo senta em seu trono elevado, localizado lá, consegue ver o mundo inteiro e todos os atos do homem, tendo conhecimento de tudo o que acontece. Sua esposa chama-se Frigg e foi por meio da união entre os dois que todos os da raça dos Æsir surgiram. Foram justamente os Æsir que povoaram a morada de Ásgard, sendo eles de uma raça divina. Por isso ele é chamado Pai de Tudo: porque ele é o deus pai de todos os deuses e homens e de tudo que contém sua essência. A Terra foi sua filha e também esposa, nela ele fez seu primeiro filho: Ása-Thor, a quem a força e a coragem sempre acompanhavam. X Narfi é o nome de um gigante que morava em Jötunheim. Ele tinha uma filha chamada Noite, cuja face era morena e escura. Ela se casou três vezes, tendo sido o último de seus casamentos com um homem da raça dos Æsir, tendo, então, um filho chamado Dia: ele era radiante e justo. Certo dia, o Pai de Tudo resolveu dar à Noite e ao Dia um cavalo e uma carroça a cada um, mandando-os para o Céu e ordenando que dessem a volta na Terra de maneira alternada. Noite cavalga com seu cavalo chamado Crina Congelada, que é conhecido por trazer o orvalho de todas as manhãs com

a

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espuma gélida que sai de sua boca; enquanto que Dia possui um cavalo chamado Crina Brilhante, que, por sua vez, ilumina o ar e os dias com sua crina brilhosa. XI Então perguntou Gangleri como o curso do sol e da lua eram governados. Hárr conta a estória de um homem chamado Mundilfari, que teve duas crianças tão belas e graciosas que batizou o menino de Lua e a menina de Sol. Sol casou-se com Glenr, algo que os deuses consideraram uma insolência para quem era tão bela. Assim, decidiram pegar os dois irmãos e os deixar no céu: Sol comandaria os cavalos que traziam a carroça do sol, feita das labaredas de Múspellheim pelos deuses para iluminar o mundo; Lua, por sua vez, dirigia o curso da lua, determinando a intensidade de seu brilho e sua proximidade para com a Terra. XII “Sol prossegue pelos céus incrivelmente rápida, quase como se estivesse com medo. Creio que não conseguiria andar mais rápido do que isso nem se estivesse fugindo de algo que causaria sua destruição”, comenta Gangleri. Hárr conta que não é tão surpreendente assim o fato de que Sol se mova com tanta pressa, “sempre próximo está aquele que a persegue, sendo assim ela não tem escolha a não ser fugir”. Hárr continua, então, contando a estória de dois lobos: Skoll é o que corre atrás do Sol, sendo completamente temido por ela; o outro é Hati e segue correndo na frente de Sol, pois na verdade ele persegue a Lua. E assim será no fim dos tempos, cada um dos dois lobos por fim alcançara e engolirá Sol e Lua. Gangleri pergunta, então, sobre a raça desses dois lobos, e Hárr lhe conta de uma feiticeira que mora a oeste de Midgard, numa floresta. Essa feiticeira tem muitos filhos gigantes, todos na forma de lobos, sendo aquele chamado Moon-Hound o mais poderoso de todos. Ele irá se alimentar da carne de todos os homens, ele engolirá a Lua

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e espirrará seu sangue por todo o ar até os Céus, e então até Sol perderá seu brilho e os dias perderão sua quietude. XIII Em seguida, Gangleri deseja saber qual o caminho do Céu para a Terra. Hárr responde, não sem antes soltar uma risada e dizer que tal pergunta demonstrava uma óbvia ignorância da parte de Gangleri, pois, “nunca te disseram que os deuses construíram uma ponte do Céu para a terra, chamada Bifröst?”. Ela possui três cores, sendo aquilo que os humanos chamam de “arco-íris”. Além disso, ela é muito resistente e feita com grande quantidade de astúcia e mais mágica do que qualquer outra coisa. Mas, por mais que seja tão resistente, Bifröst irá ser quebrado pelos filhos de Múspell quando decidirem sair de lá destruindo e atormentando tudo em seu caminho. Indaga Gangleri, então, que não parecia que os deuses construíram essa ponte de maneira honesta e genuína já que possuem o poder de construírem da forma como quiserem mas ela, afinal, poderia ser quebrada. Hárr defende os deuses, dizendo que Bifröst era sim uma ótima ponte, mas que nada nesse mundo continha uma natureza capaz de resistir aos ataques dos filhos de Múspell quando estes saíssem em sua violenta incursão. XIV A próxima pergunta de Gangleri era sobre o que o Pai de Tudo fez depois que Ásgard foi criada. Conta Hárr que, no começo, o Pai de Tudo escolheu e estabeleceu governantes, dando-os conselhos sobre o modo como a cidade deveria funcionar. Isso tudo aconteceu no centro da cidade, chamado Ida-field. Lá fizeram uma corte com doze assentos, e depois um outro, mas elevado, onde senta-se o próprio Pai. Essa casa é a maior e a melhor de toda a Terra, feita inteiramente de ouro. Em seguida fizeram uma segunda casa, um templo feito para todas as deusas, e era também um lugar muito belo e justo.

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Os deuses, então, tomaram seu lugar em seus devidos tronos para discutir a respeito da raça dos anões, se perguntando como é que eles tinham sido moldados tão rapidamente e colocados debaixo da terra, similar ao que os vermes fazem na carne. Os anões tinham, primeiramente, recebido vida e forma através da carne de Ymir, surgindo, na época, como vermes. No entanto, por meio de um decreto dos deuses, a consciência e inteligência dos homens lhes foram dadas, assim como uma forma mais humanóide. Mesmo assim, essa raça continua habitando dentro da terra e das pedras. XV “Qual é o lugar sagrado dos deuses?”, pergunta Gangleri. Hárr conta que é no Freixo da Yggdrasil. Yggdrasil, explica Jafnhárr, é a maior e melhor das árvores, pois seus membros se espalham por todo o mundo, estendendo-se até o Céu. Três raízes a sustentam, sendo que uma delas está junto dos deuses Æsir, outra com os Gigantes de Gelo (no lugar onde antes havia o Grande Vazio) e a terceira e última raiz fica em Niflheim. Debaixo da raiz que perpassa o mundo dos Gigantes de Gelo está o Poço de Mímir, onde a sabedoria e o entendimento ficam guardados. Seu guardião, Mímir, é muito sábio, já que bebe do poço. Foi de lá que o Pai de Tudo obteve sua sabedoria, pois conseguiu beber de sua água, mas não sem ter oferecido, em troca, um de seus olhos. Debaixo da raiz que se estende até o Céu fica outro poço, muito sagrado, chamado Poço de Urdr. É lá que os deuses realizam seu tribunal: todos os dias os Æsir atravessam a Bifröst, que por isso também é chamada de Ponte dos Æsir, e vão até o Poço de Urdr realizar seus julgamentos. A maioria dos deuses cavalgam para atravessar a ponte (sendo que Sleipnir, cavalo de Odin, é o melhor de todos, já que possui oito patas). Em seguida, Gangleri deseja saber se sobre a Bifröst existe fogo. “Aquela coisa vermelha que se consegue observar no arco formado pela ponte é justamente fogo, ele 46

serve como proteção, já que os Gigantes cruzariam a ponte se ela estivesse aberta e desprotegida para todos que a quisessem atravessar. Há muitos lugares belos no Céu, portanto eles devem ser vigiados apropriadamente”, diz Hárr. Ele também conta que debaixo do freixo da Yggdrasil e próximo ao poço há um salão onde habitam três mulheres, chamadas Urdr, Verdandi e Skuld. Elas são responsáveis por determinar o período e a duração das vidas dos Homens: elas são chamadas de Nornas. Existem também outras Nornas, como aquelas que vão até as crianças que acabaram de nascer para determinarem como sua vida será; essas são da raça dos deuses, outras são do povo Elfico, e algumas são da família dos anões. “Se as Nornas determinam a vida e o destino dos homens, então elas tratam essa tarefa de maneira excessivamente injusta, visto que alguns homens tem uma vida luxuriosa e prazerosa, enquanto outros possuem pouco ou nenhum benefício dos prazeres mundanos, assim como alguns homens tem a vida longa e outros tem uma vida curta.” Hárr o explica que as Nornas de raças honoráveis são bondosas e oferecem boa vida aos homens, ao passo que alguns homens sofrem horríveis infortúnios porque são governados por Nornas más. XVI Gangleri pede por mais informações sobre as poderosas maravilhas que podem ser contadas a respeito desse Freixo. Imediatamente, Hárr começa a oferecer alguns outros detalhes sobre ele, como por exemplo, a respeito da águia que fica sentada em um de seus galhos. Essa águia possui o entendimento de muitas coisas, e é tão grande que entre seus olhos fica sentado um falcão chamado Verdrfölnir. Há também um esquilo chamado Ratatöskr, que sobe e desce por todo o freixo, trazendo mensagens entre a águia e Nídhöggr, o dragão. Também correm entre os membros do Freixo quatro veados, que mordem e se alimentam de suas folhas.

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Também é dito que essas Nornas vivendo próximo ao Poço de Urdr pegam de sua água sagrada todos os dias e a espirram por todo o Freixo, de modo que nenhuma parte sua jamais murcha, definha ou apodrece. Dessa água do poço também bebem dois galos, e deles descendeu toda a raça de pássaros que vieram a povoar o mundo. XVII Em seguida, Gangleri pergunta quais outras moradas sagradas existem além daquelas no Poço de Urdr. Hárr discorre sobre várias outras moradas sagradas, sendo as principais delas: Álfheimr, onde moram os Elfos da Luz (eles si diferenciam dos Elfos Negros, pois estes moram embaixo, na terra, e são muito diferentes dos Elfos da Luz, tanto em aparência quanto em natureza); há também uma morada chamada Himinbjörg, que se localiza no fim do Céu e no começo da Bifröst, ou seja, no lugar onde a ponte e o Céu se encontram; outra morada lá é a de Odin, chamada Valaskjálf, dentro de onde fica o grandioso trono de Odin, o Hlidskjálf, e quando se senta lá, ele consegue observar tudo o que acontece em todos os lugares; por último, há no sudoeste do Céu o lugar mais claro que existe, mais brilhante que o sol, chamado Gimlé. É o único lugar que restará quando Céu e a Terra tiverem ambos partido e deixado de existir, e os homens bons e justos morarão lá. “Mas o que protegerá esse lugar quando a chama do terrível Surtr consumir o Céu e a Terra?”, pergunta Gangleri, curioso. Ele obteve sua resposta de Hárr, dizendo que, na verdade, existe outro Céu mais ao sul e acima desse outro, ele é conhecido por Andlangr, e que um terceiro Céu existe ainda mais acima desse, num lugar chamado Vídbláinn, “e é lá que nós cremos que Gimlé se localiza, e por isso está tão protegido. Mesmo assim, acreditamos que nos dias de hoje ninguém a não ser os Elfos da Luz habitam esse lugar”.

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XVIII Gangleri deseja saber, em seguida, de onde vem o vento. Afinal, ele é tão forte que consegue sacudir os oceanos e dispersar o fogo, mas mesmo sendo tão forte ninguém consegue vê-lo, de forma que ele foi, então, maravilhosamente moldado. Hárr diz que a explicação para isso é muito simples: em direção ao norte do Céu existe um gigante chamado Hræsvelgr, que possui plumas iguais às de uma águia. Quando ele abre suas asas e as alonga, pronto para voar, seu movimento gera o vento, que é soprado até a Terra. XIX “E por que deve existir essa diferença entre verão e inverno, de modo que um é muito quente e o outro muito frio?”, diz Gangleri. Antes de responder, Hárr expressa que um homem sábio jamais perguntaria isso, já que todos conhecem a razão disso, mas que já que Gangleri era tão desprovido de entendimento a ponto de não saber disso, ele o permitiria fazer essa pergunta tola uma vez, já que é melhor se passar por tolo do que ficar mantido na ignorância para sempre. Ele conta que o pai do Verão é chamado Svásudr, ele é de natureza justa e agradável, assim como seu filho. Mas o pai do Inverno, Vindsvalr, vinha de uma família conhecida por ser carrancuda e deprimida, de forma que o Inverno tem o seu temperamento. XX Depois, Gangleri pergunta quem exatamente são os Æsir , “aqueles em quem é necessário que os homens acreditem?”. Hárr conta que os Æsir são doze, e Thridi completa, dizendo que Odin é o mais antigo e mais elevado dentre eles: ele comanda todas as coisas, e mesmo sendo os outros deuses tão poderosos, eles o servem como crianças que obedecem ao pai. Frigg, sua esposa, sabe do destino de todos os homens, embora nunca entoe profecias.

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Odin é chamado de Pai de Tudo justamente por ser o pai de todos os outros deuses. Ele também é conhecido como Pai dos Mortos, visto que todos aqueles que morrem em batalha são adotados por ele posteriormente. Eles são trazidos para Valhall e Vingólf, e passam a ser chamados de Campeões. Odin também é conhecido como Deus dos Enforcados, Deus dos Deuses e muitos outros nomes. Esses nomes são frutos de suas andanças e estão ligados a seus grandes feitos. XXI “Quais são os nomes dos outros Æsir e por quais feitos eles são responsáveis?”, Gangleri indaga. Então Hárr conta sobre Thor, o mais famoso deles, também conhecido por Öku-Thor. Ele é o mais forte e o mais poderoso entre os homens e deuses. Seu reino é em Thrúdvangar, onde há um salão de mais de quinhentos cômodos chamado Bilskirmnir. Thor possui duas cabras que puxam sua biga, bem como três outros objetos de valor inestimável: o seu martelo Mjöllnir, que já foi responsável por massacrar o crânio de vários gigantes; o seu cinto da força, que ao ser vestido aumenta sua força divina em mais metade da que já possui; e por último suas luvas de ferro, as quais são imprescindíveis para que ele consiga erguer seu martelo. No entanto, Hárr enfatiza que não existe ninguém no mundo sábio o bastante a ponto de conseguir contar de todos os grandes feitos de Thor – que são muitos – a não ser ele mesmo, mas se o fosse fazer passaria horas e horas narrando. XXII Gangleri pede por mais informações dos grandes feitos envolvendo os Æsir. Hárr prossegue contando do segundo filho de Odin, chamado Baldr, do qual há muitas coisas boas a serem ditas. Ele é o mais belo dos deuses, de modo que todos o louvam, e é também tão brilhante e branco que seu corpo emana luz. Baldr é também tido pelo mais sábio, justo e gracioso dos Æsir, de forma que nenhum julgamento que ele fez

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sobre os outros foi alguma vez contestado. Em seu morada, Breidablik, que fica no Céu, nada de impuro pode existir. XXIII “O terceiro entre os Æsir é Njördr, que também mora no Céu. Ele governa e controla o curso do vento e é capaz de acalmar tanto o fogo quanto o mar. Quando os homens necessitam realizar grandes viagens ou caçadas perigosas, é para ele que rezam. Por ser tão provido de riquezas, também é ele que os homens invocam quando necessitam de mais terras ou equipamentos.”, continua Hárr. Njördr, contudo, não é da raça dos Æsir. Ele foi criado na terra dos Vanir, mas em certa ocasião eles o entregaram aos deuses como refém, e pegaram, em troca, Haenir dos Æsir como refém deles. Desse modo, Njördr começou a fazer parte da família dos Æsir ao ter sido oferecido como uma indenização a eles por parte dos Vanir. Ele viria a se casar com Skadi, filha de um gigante. No entanto, quando se casaram, Skadi desejava intensamente morar em um pedaço de terra que seu pai tinha e que ficava no meio das montanhas, mas Njördr desejava ficar próximo ao mar. Os dois chegaram a um acordo: passariam nove noites em Thrymheimr, nas montanhas, e depois outras nove em Nóatún, perto do mar. XXIV Uma vez em Nóatún, Njördr teve dois filhos: um homem, chamado Freyr, e uma mulher chamada Freyja. Ambos eram poderosos e tinham belas feições. Freyr é o mais renomado dentre os Æsir, pois ele governa a chuva, a intensidade do sol e a quantidade de frutas que crescem sobre a terra: os homens o invocam em nome de boas colheitas, da prosperidade e da paz. Freya, por sua vez, é a mais renomada entre as deusas, responsável por colher e abrigar em sua morada metade dos homens que morrem em batalha – a outra metade fica com Odin -, comandando uma biga puxada por seus gatos. Ela é conhecida por ser gentil e conceder a grande maioria das coisas pelas quais as 51

pessoas rezam. Dizem que canções e baladas de amor são de seu agrado, e por isso é comum pedir por sua ajuda para obter apoio em questões amorosas. XXV Gangleri admite que os Æsir parecem ser extremamente poderosos, e que, se Hárr consegue falar com tanta autoridade a respeito dos deuses e seus feitos a ponto de saber o que se deve pedir para cada um deles, então ele realmente deve ser um homem sábio. “Existem mais deuses?”, pergunta ele. Hárr conta sobre a existência de mais um deus da raça dos Æsir, chamado Týr. Ele é o mais ousado e corajoso dos deuses e tem autoridade sobre toda vitória conquistada em batalha, sendo recomendável aos homens de valor que sempre o invoquem. Ele também possui grande sabedoria. Há uma estória que ilustra bem sua coragem: certa vez, os Æsir queriam prender o lobo Fenris. Eles tentaram enganá-lo, dizendo que iriam acorrentá-lo a uma corrente especial chamada Gleipnir, para que ele tentasse livrar-se dela como se fosse um teste, e que depois iriam soltá-lo. O lobo não acreditou que eles o soltariam depois e pediu por algum tipo de garantia: foi quando Týr ofereceu-se para deixar sua mão dentro da boca de Fenris. Assim, depois que os Æsir o acorrentaram e se recusaram a soltá-lo ele mordeu a mão de Týr, arrancando-a. Esse é o motivo do deus ter somente uma mão e do lugar onde isso tudo aconteceu ter recebido o nome de Prisão do Lobo. XXVI Hárr continua contando dos deuses, dessa vez a respeito do deus Bragi, que é muito conhecido por sua sabedoria e principalmente por sua fluência no discurso e na sua habilidade com as palavras. Ele é o ser que mais conhece sobre a arte e a poesia dos escaldos. Sua esposa é Idunn, guardiã do baú onde ficam as maçãs que os deuses devem comer quando tornam-se velhos, de modo que possam rejuvenescer - coisa que continuarão fazendo até o momento em que chegue o destino final dos deuses- .

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Gangleri comenta que Idunn deve ser uma deusa excepcional, já que os deuses confiam a ela o papel de guardar tão preciosas maçãs. XXVII Há também o deus chamado Heimdallr, conhecido como o Deus Branco, ele é filho de nove donzelas gigantas. Ele é o sentinela dos deuses e fica sentado ao fim do Céu, guardando a ponte Bifröst a salvo dos gigantes. Heimdallr precisa de menos horas de sono do que um pássaro e consegue enxergar tão bem durante a noite quanto o dia – arcando centenas de quilômetros com sua visão -, além de ter a audição tão aguçada que consegue ouvir a grama crescendo, ou então a lã das ovelhas. Ele tem uma poderosa trombeta que se chama Gjallar-Horn, cujo som pode ser ouvido por todos os mundos. XXVIII Outro deus entre os Æsir chama-se Hödr. Apesar de ser cego, sua força e potência são tamanhas a ponto dos deuses desejarem que seu nome nunca precise ser invocado, pois a força e o trabalho de suas mãos seriam lembrados para sempre entre homens e deuses. XXIX Há também, diz Hárr, o deus silencioso: Vídarr. Ele é quase tão forte quanto Thor e os deuses depositam nele grande confiança em todas as batalhas e questões. XXX Áli, em alguns lugares chamados de Váli, é filho de Odin e Rindr: ele é ousado em suas lutas e também conhecido por ser um excelente atirador. XXXI Ulr é outro Æsir, filho de Sif e enteado de Thor. Ele é tão ligeiro e ágil no seu andar e tão bom arqueiro, que ninguém ousa lutar com ele. Ulr também é belo em aspecto e teve várias conquistas como guerreiro; por isso é prudente invocá-lo em combates um-a-um. 53

XXXII Baldr e Nanna tiveram um filho chamado Forseti. Ele possui um grande salão no Céu chamado Glitnir, onde todos os que se envolvem em discussões e desentendimentos a respeito de questões judiciais e da lei podem chegar, sempre saindo de lá com as questões resolvidas e reconciliados um com o outro. Entre homens e deuses, Forseti é o melhor em questões de julgamento e justiça. XXXIII Também se configura entre os Æsir aquele que é conhecido como o fomentador das travessuras entre os deuses, o primeiro pai das falsidades e a mancha entre homens e deuses. Ele é chamado Loki, filho do gigante Fárbauti e da deusa Nál. Ele tem bela aparência e é gracioso de se olhar, mas maldoso em espírito e muito volúvel em seus hábitos. Loki superou todos os outros homens na arte de fazer truques envolvendo muita destreza, sempre tendo artifícios para todas as ocasiões. Por várias vezes trouxe grandes dificuldades aos Æsir, para logo em seguida tirá-los da situação com conselhos muito astutos. Ele casou-se com Sigyn, tendo um filho chamado Nari. XXXIV Hárr continua contando sobre os outros filhos de Loki, frutos de seu relacionamento com uma giganta de Jötunheim chamada Angrboda. Um deles era o lobo gigante Fenris, outro era Jörmungandr (a serpente de Midgard) e a terceira é Hel. Quando os deuses descobriram a respeito desses filhos que haviam nascido e crescido em Jötunheim e descobriram, por meio de uma profecia, que viria dessa linhagem uma grande tragédia que cairia sobre eles, o Pai de Tudo mandou que os filhos de Loki fossem capturados e trazidos até ele. Uma vez lá, ele imediatamente jogou a serpente nas profundezas do mar, onde ela está até hoje. Contudo, ela cresceu tanto que o comprimento de seu corpo dá a volta por toda a Terra, sendo capaz de morder a própria cauda. Em seguida, o Pai de Tudo arremessou Hel para Niflheim, concedendo a ela o 54

poder para governar nove mundos, que eram povoados pelos homens que morriam de velhice ou por doença. Hel é facilmente reconhecida por ter metade do corpo da cor da carne e a outra metade é uma mistura de preto com azul. Apesar de feroz e violenta, possui um semblante triste. Quanto ao lobo Fenris, ele foi trazido até a morada dos deuses e Týr sozinho ofereceu-se para ir até ele e oferecê-lo carne. No entanto, conforme o tempo passou e os deuses perceberam que Fenris não parava de crescer a cada dia e que as profecias declararam que ele estava fadado a destruí-los, os Æsir pensaram em uma solução para o problema. Eles confeccionaram uma corrente muito forte chamada Laedingr e a trouxeram perante o lobo, desafiando-o que deixasse ser preso e depois tentasse rompêla. Não vendo mal algum no desafio, o lobo permitiu. A primeira investida do lobo contra a corrente fez com que ela se quebrasse, e assim ele venceu Laedingr. Em seguida, os deuses fizeram uma segunda corrente, chamada Drómi, que era ainda mais resistente e forte, retornando a desafiarem o lobo da mesma forma, dizendo que ele se tornaria muito famoso se tal corrente, de um acabamento tão poderoso, não fosse capaz de segurá-lo. No entanto, o lobo pensou que aquela corrente era muito forte, mas resolveu aceitar o desafio, já que considerava ter ganhado força após ter arrebentado Laedingr. Os Æsir o prenderam e então deram sinal, dizendo que ele estava pronto para lutar contra a corrente. O lobo bateu a corrente contra a terra e lutou ferozmente para livrar-se dela, até que finalmente a rompeu, lançando seus fragmentos para bem longe. Depois dessas duas tentativas os Æsir temiam nunca serem capazes de prender o lobo Fenris. O Pai de Tudo decidiu enviar Skírnir, mensageiro de Freyr, para a região dos Elfos Negros, para que conversasse com certos anões ferreiros, e assim obteve deles a corrente chamada Gleipnir. Ela era feita de seis coisas: do barulho que um gato faz ao cair de pé; da barba de uma mulher; das raízes de uma pedra; da energia de um urso; da respiração de um peixe e da saliva de um pássaro. Ela era maleável e macia feito uma 55

tira de seda e mais forte e resistente que qualquer outro material existente no mundo. E então ela foi trazida aos Æsir, que desafiaram o lobo novamente. Porém, dessa fez Fenris ficou desconfiado, já que nunca tinha visto uma corrente tão esbelta, e suspeitando de alguma astúcia ou magia vinda da parte dos deuses, disse que então nunca colocaria aquela corrente nos pés. Numa tentativa de convencer o lobo, os deuses disseram que ele que havia quebrado duas correntes tão resistentes certamente seria capaz de quebrar aquela também. Disseram que, além disso, se ele não fosse forte o bastante para arrebentá-la então provavelmente ele não representaria perigo algum para os deuses, portanto eles o soltariam. O lobo, indisposto a arriscar-se totalmente, disse que só aceitaria ser preso se um deles deixasse a mão colocada dentro de sua boca até que ele fosse solto, num gesto de boa fé. Cada um dos Æsir olhou para o lado e ninguém parecia disposto a se arriscar, até que Týr esticou sua mão direita e a colocou dentro da boca do lobo. Assim, Fenris foi preso e começou a tentar se soltar, mas quanto mais força fazia e quanto mais lutava contra a corrente, mais apertada e resistente ela se tornava. Então todos os deuses riram, satisfeitos por terem finalmente prendido Fenris; menos Týr, que perdeu sua mão direita para os dentes afiados do lobo. “Quantos filhos malignos vieram de Loki”, disse Gangleri, “mas porque os deuses não mataram Fenris ali mesmo, se sabiam de todas as mazelas que ele poderia trazer?” E Hárr responde que os Æsir têm tamanha estima e respeito por seu local sagrado que jamais ousariam manchá-lo com o sangue do lobo, mesmo sabendo que no momento do destino final dos deuses ele será o assassino de Odin. XXXV Em seguida, Gangleri pergunta quem são as Ásynjur. Hárr o conta que Frigg é a mais importante dentre eles. Há também Fir (a melhor curandeira), Gefjun (a virgem, e todas as mulheres que morrem virgens tornam-se suas servas), e Fulla. Dentre elas há 56

também Freya, a mais delicada delas, casada com Odur. Quando ele parte em suas longas jornadas, Freya chora por ele, e suas lágrimas são de cor ouro avermelhado. Ela é conhecida como Senhora dos Vanir e muitos outros nomes, já que adotava várias identidades quando saia para diferentes lugares do mundo, buscando por Odin. Há também outras entre os Ásynjur: Sjöfn, responsável por voltar a mente de homens e mulheres em direção ao amor; Lofn, que é tão graciosa e gentil com aqueles que a invocam que foi ela a responsável por ter obtido a permissão de Odin e Freya para que os humanos pudessem casar entre si, o que antes era proibido pelos deuses; Vár, que escuta os juramentos e votos feitos entre homens e mulheres (e também se vinga daqueles que os quebram); Vör, muito sábia e de espírito curioso, a ponto de que ninguém consegue esconder nada dela; Syn, guardiã das portas dos salões, responsável por manter do lado de fora aqueles que não deveriam entrar; Hlín, protetora dos homens que Frigg deseja manter fora de perigo; Snotra, extremamente prudente e ponderada, sendo invocada por aqueles que precisam disso em suas vidas; por último, Gná, quem Frigg envia em aventuras, ela possui um cavalo capaz de correr sobre o céu e sobre o mar. XXXVI Hárr conta que também existem aquelas cujo trabalho é servir em Valhall, essas são as Valquírias de Odin. Ele as envia para todas as batalhas e são elas que escolhem, entre os homens caídos – mortos - quais são dignos de ir para Valhall de acordo com sua bravura e coragem. XXXVII Havia um homem chamado Gýmir, casado com a giganta Aurboda. Sua filha chamava-se Gerdr, a mais bela dentre todas as mulheres. Dizem que um dia Freyr tinha ido a Hlidskjálf e de lá observava o mundo inteiro. Ao olhar para o norte ele viu uma casa, e nessa casa uma bela mulher: quando ela ergueu sua mão para abrir a porta, brilho 57

emanava dela e iluminava tanto o céu quanto oceano. Freyr, então, sentiu a tristeza se apossar dele ao pensar que não a possuía. Ele não conseguia dormir, comer, beber e nenhum homem sequer ousava dirigir-lhe a palavra, tal era seu semblante. Njördr, sensibilizado com o estado de Freyr, invocou Skírnir e pediu que lhe implorasse uma conversa para que descobrisse porque estava tão amargo e abatido. Skírnir disse que iria contra sua vontade, pois coisas malignas eram esperadas vindo disso tudo. Quando puderam conversar, Freyr contou da mulher extremamente bela que havia visto e o quanto se sentiu magoado por não possuí-la. Disse que não viveria por muito mais tempo se não a obtivesse para si. Então, oferecendo uma recompensa em troca, o deus pediu a Skírnir que descesse até lá e cortejasse a mulher em seu nome, trazendo-a, depois, até ele. Skírnir disse que só iria até lá se Freyr oferecesse a ele sua espada - que é tão boa e poderosa que luta sozinha -, e o deus aceitou. Então Skírnir desceu até lá, cortejou a mulher em nome de Freyr, recebendo dela a promessa de que nove noites depois ela iria ao lugar chamado Barrey para que tivesse sua noite de núpcias com Freyr. É devido a isso que Freyr estava sem nenhuma arma quando lutou com Beli, tendo que matá-lo, na ocasião, com os chifres de um veado. “Me pergunto como um chefe tão conhecido como Freyr oferece sua espada sem ter outra igualmente boa com que possa substituí-la. Deve ter sido uma grande privação não ter arma alguma no momento de sua luta com Beli, e eu acredito que ele deve ter se arrependido por ter dado a espada como presente”, disse Gangleri. Hárr conta que na verdade não houve nenhum grande problema, pois Freyr poderia ter matado Beli utilizando somente as próprias mãos se quisesse. O pior, o verdadeiro problema, estará no dia em que os filhos de Múspell chegarem invadindo e destruindo a morada dos deuses, pois nessa ocasião Freyr definitivamente irá sentir falta de sua espada.

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XXXVIII Em seguida, Gangleri indaga sobre os guerreiros que caem em batalha e se juntam a Odin em Valhall. Ele quer saber do que se alimentam, já que o deus deve ser um excelente anfitrião. Hárr conta que é verdade: Odin é um exímio anfitrião, pois oferece aos seus guerreiros a carne do javali Sæhrímnir , que nunca se acaba. Todo dia ele é cozinhado e todo fim de noite ele está novamente inteiro. Odin alimenta seus dois lobos, Geri e Freki, com essa mesma carne, mas ele próprio não precisa dela: vinho serve tanto de bebida quanto de comida para ele. Em cada um de seus ombros senta um de seus corvos, que dizem em seus ouvidos tudo aquilo que eles ouviram ou viram acontecendo no mundo. Eles são chamados de Huggin (pensamento) e Muninn (memória). A cada nascer do dia ele os envia para que sobrevoem o mundo inteiro, atualizando-o sobre todos os acontecimentos quando voltam. É por isso que Odin também é conhecido como Deus dos Corvos. XXXIX “E o que os campeões de Odin bebem que seja tão abundante quanto a comida lá servida?”, pergunta Gangleri. Hárr o responde sobre a cabra chamada Heidrún, que fica em Valhall. Ela morde os membros de uma árvore chamada Laerádr, alimentando-se deles, e depois que ela os digere escorre de suas tetas uma quantidade tão grande de hidromel que um tonel é cheio por dia. Esse tonel é tão grande que todos os dias os campeões de Odin bebem dele até ficarem bêbados. XL Gangleri afirma que Valhall deve ser um lugar maravilhoso, mas que as portas de sua entrada devem ser extremamente lotadas de homens. Mas Hárr afirma que ele está enganado, pois existem mais de quinhentas portas em Valhall, e que apesar de ser cheia de homens, todos conseguem entrar e sair livremente sem nenhum tumulto, pois por cada uma delas podem passar oitocentos homens. 59

XLI Depois, Gangleri deseja saber sobre o que fazem os homens em Valhall quando não estão lutando. A distração deles, segundo Hárr, é a seguinte: todos os dias, assim que acordam e se vestem os homens colocam suas armaduras, pegam em suas armas e vão para o pátio lutar uns com os outros até que matem seus adversários. Esse é o esporte deles, e assim eles fazem até a hora do banquete. Nesse momento, todos param de lutar, os caídos se levantam e vão todos para Valhall para sentarem uns do lado dos outros e banquetearem juntos. XLII “E o que pode ser dito sobre o cavalo Sleipnir? Quem é seu dono?”, deseja saber Gangleri. Hárr conta sobre sua estória: foi ainda durante os primeiros dias dos deuses, quando Valhall e Midgard foram criados. Na ocasião, surgiu uma espécie de obreiro oferecendo seus serviços, dizendo que poderia construir uma fortaleza para os deuses em apenas três estações. Disse que ela seria resistente e perduraria mesmo contra o ataque de qualquer tipo de gigantes. No entanto, em troca da construção desse muro ele exigiu que Freya fosse dada a ele como sua posse, assim como o sol e a lua também. Os deuses então realizaram um conselho e concordaram em oferecer essas coisas a ele desde que fosse capaz de terminar a obra inteira no prazo de um inverno. Se no primeiro dia de verão faltasse ainda alguma coisa para ser finalizada, qualquer que fosse, ele perderia seus prêmios. Também foi concordado que ele não poderia receber a ajuda de ninguém para finalizar a construção. Quando os deuses expressaram suas condições, ele pediu para que deixassem ele usar a ajuda de seu garanhão Svadilfari para realizar a obra. Loki convenceu os deuses a deixarem, dizendo que não haveria problema. Logo no primeiro dia de obra os deuses ficaram maravilhados com as pedras gigantes que o garanhão conseguia transportar e repararam que ele fez mais da metade do trabalho pesado. O obreiro só conseguiu ficar 60

lá porque sabia que havia várias testemunhas de seu acordo feito com os deuses, além de muitos juramentos envolvidos: do contrário, seria muito inseguro para ele, que era um gigante, estar entre os Æsir sem nenhum tipo de trégua, principalmente se Thor aparecesse. Para sua sorte, Thor estava viajando para o leste combatendo Trolls. No fim do inverno a construção da fortaleza já havia avançado muito, e embora não estivesse pronta os muros já estavam tão altos e fortes que ela não poderia ser tomada ou invadida. Quando faltavam três dias para o verão o trabalho deles já havia chegado até a parte do portão da fortaleza. Desesperados, os deuses se reuniram e buscaram uma solução. Começaram se perguntando quem foi que tinha concordado em permitir que Freya fosse para Jötunheim com aquele gigante, ou então que se destruísse o ar e o Céu ao permitir que os gigantes levassem a lua e o sol. Eles chegaram à conclusão de que essa idéia perversa só poderia ter sido fruto daquele conhecido por dar conselhos maldosos, Loki. Os Æsir concluíram que ele seria condenado a receber uma morte lenta e sofrida a não ser que pudesse pensar em alguma maneira de fazer com que o gigante obreiro não recebesse sua recompensa prometida. Ameaçaram Loki com muita violência, e quando ficou amedrontado fez vários juramentos dizendo que faria com que o gigante perdesse o direito às recompensas, não importando o custo. E então, naquela mesma noite, quando o obreiro derrubou a última pedra e ia embora em seu garanhão Svadilfari, uma égua – Loki metamorfoseado - saltou do meio da mata e relinchou para ele. O cavalo imediatamente ficou frenético e saiu correndo em direção à égua, fazendo com que seu dono saísse correndo atrás dele, tentando pará-lo. Os cavalos correram durante a noite inteira, e o gigante, não conseguindo alcançá-los, parou de correr atrás deles no meio da noite. No dia seguinte, o trabalho dele não foi feito em nem metade daquilo que era esperado. Quando ele percebeu que seu trabalho não seria terminado no prazo ele mergulhou em uma profunda fúria típica de gigantes. Á medida em que ele ia caminhando em direção aos deuses e envolto em tamanha fúria, 61

os Æsir não mais se sentiram na obrigação de cumprir seu juramento, mas chamaram Thor, que veio rapidamente. Imediatamente o grande martelo Mjöllnir foi erguido para o alto e então a dívida para com o gigante foi paga, e não com o sol ou com a lua conforme havia sido prometido. O primeiro golpe de Thor acertou o crânio do gigante, que quebrou-se em pequenas migalhas, mandando o gigante para Niflheim. Não se sabe ao certo o que Loki fez com o garanhão Svadilfari, mas, tempos depois, Loki deu à luz um pequeno cavalo que era cinza e tinha oito patas: esse cavalo era o melhor entre os deuses e homens, o Sleipnir. XLIII “E o que você pode me dizer sobre Skídbladnir, o melhor de todos os barcos? Não há nenhum melhor que ele?”, prossegue Gangleri. Hárr afirma que Skídbladnir é realmente o melhor dos barcos, feito por um grandioso trabalho artesão. Foram os anões que o fizeram e o deram para Freyr. O barco é tão grande que nele cabem todos os Æsir com suas armas e equipamentos completos, assim que a vela do barco é levantada o vento sopra favorável. Skídbladnir foi feito com tanta magia, de tantas pequenas coisas e tão astutas que, quando a ocasião não é necessária para que seja usado ele pode ser dobrado como um guardanapo e ser guardado na bolsa de alguém. Contudo, o maior dos barcos é Naglfar, que fica em Múspell. XLIV Gangleri elogia o barco, dizendo que com certeza uma mágica muito poderosa foi usada para confeccioná-lo. Ele pergunta se por acaso Thor nunca encontrou em seu caminho – em uma de suas várias jornadas – alguma coisa que fosse tão poderosa a ponto de vencê-lo por meio do uso da mágica. Hárr explicita que poucos homens são capazes de ter o conhecimento para contar o que ele agora contará a Gangleri. No entanto, ele faz a ressalva de que mesmo tendo Thor encontrado algumas coisas em seu

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caminho que ele não pôde vencer, não é necessário falar dessas coisas, pois existem muitos outros exemplos e estórias que provam que ele é de fato o mais poderoso. Jáfnhárr diz que eles conhecem algumas estórias a respeito desse assunto que lhes parecem incríveis, assegurando a Gangleri que o que contam jamais seria uma mentira. Thridi opina sobre a estória que estão prestes a narrar, afirmando que, apesar de esta não ser uma coisa que gostam de lembrar, irão contá-la a Gangleri para que não percam o desafio. A narrativa começa com Thor em sua biga comandando suas cabras, juntamente de Loki, até que eles encontram um fazendeiro e receberam um alojamento para a noite. No começo da noite, Thor aproximou-se de suas cabras e as matou, esfolando-as em seguida e as jogando para cozinhar em um caldeirão. Quando o jantar estava pronto, Thor e seu companheiro sentaram-se para comer e convidaram o fazendeiro e sua esposa para juntarem-se a eles, assim como seus filhos. O filho chamava-se Thjálfi e a filha, Röskva. Em seguida, Thor colocou as peles das cabras longe do fogo e disse ao fazendeiro e aos outros que eles deveriam jogar os ossos das cabras dentro das peles. Thjálfi estava segurando um osso da coxa da cabra e depois a quebrou usando sua faca, pois queria comer o tutano. Thor pernoitou lá, levantou-se antes que o sol nascesse, pegou seu martelo Mjölnnir, balançou-o para o alto e santificou as peles das cabras – que tinham os ossos dentro -: imediatamente as cabras se levantaram, mas uma delas estava manca. Ao descobrir isso, Thor pensou que o fazendeiro ou alguém de sua família não fez o que deveria ter feito com os ossos, pois percebeu que o osso da perna traseira da cabra estava quebrado. Não é nem preciso dizer o medo que o fazendeiro e sua esposa sentiram quando viram Thor franzindo as sobrancelhas, levantando seus braços para cima e erguendo o martelo com força. Eles fizeram o que era esperado: choraram, rezaram por paz e ofereceram em recompensa tudo o que tinham caso ele os perdoasse. Quando Thor viu o tamanho do terror que sentiam sua fúria sumiu e ele se sentiu 63

apaziguado. Então, resolveu perdoar o casal, mas levou seus dois filhos como retribuição. Desde então, eles o seguem em todos os lugares como seus servos. XLV A estória de Thor continua contando que, depois de sair da casa do fazendeiro, ele seguiu rumo a Jötunheim. Ele, Loki, Thjálfi e Röskva seguiram rumo ao mar, atravessaram-no e andaram mais até encontrarem uma grande floresta. Assim que escureceu, buscaram abrigo pela noite e encontraram um grande salão: tinha uma porta nos fundos, por onde entraram, e uma vez lá dentro eles conseguiram quartos para passar a noite. No entanto, no meio da noite sentiram um terremoto, fazendo parecer com que a terra debaixo deles balançasse excessivamente e a casa tremeu muito. Imediatamente Thor se recompôs e convocou seus companheiros para que se aproximassem. Juntos eles exploraram o salão e encontraram no meio dele uma pequena câmara, onde entraram. Todos estavam com muito medo, exceto Thor, que agarrou seu martelo e pensou em se defender. De repente, todos ouviram um enorme estrondo e uma batida. Quando o anoitecer aproximou-se, Thor saiu da casa e viu um homem deitado próximo às árvores. Não era um homem pequeno, pois ele dormia e roncava poderosa e estrondosamente. Então Thor suspeitou que houvesse sido esse o barulho que haviam escutado na noite anterior. Ele vestiu seu cinto da força, aumentando seu poder, preparou-se para desferir um golpe, mas naquele exato momento o homem acordou e levantou-se sutilmente. Essa foi a primeira vez em que o coração de Thor faltou com ele, pois não teve coragem de golpear o homem. Ele perguntou ao homem seu nome e ele disse que se chamava Skrýmir, mas ele disse que não precisava perguntar a Thor qual era seu nome, pois o havia reconhecido. Contudo, perguntou a Thor: “Quer dizer que era você que estava com a minha luva?” e então Skrýmir esticou a mão e pegou sua luva, que na verdade era o salão onde 64

Thor e seus companheiros haviam passado a noite - a câmara que encontraram era, por fim, a parte do dedão da luva -. Ele então perguntou a Thor se o deus gostaria de ter sua companhia, ao que Thor assentiu. Skrýmir pegou sua bolsa de provisões e começou a comer, convidando Thor e seus companheiros para que compartilhassem da comida uns dos outros e todos concordaram. Em seguida, no fim da noite ele encontrou abrigo para todos debaixo de um grande carvalho. Quando Skrýmir dormiu, logo começou a roncar pesadamente. Thor pegou sua bolsa de provisões e tentou desfazer o nó que a mantinha fechada, mas sem sucesso. Quanto mais tentava afrouxar o nó, mais difícil se tornava abrí-lo. Quando percebeu que sua estratégia não daria certo, Thor pegou Mjöllnir com suas duas mãos e, tomado pela fúria, foi até onde Skrýmir dormia e lhe golpeou a cabeça. Skrýmir acordou e perguntou se alguma folha da árvore havia caído em sua cabeça. Então eles foram para debaixo de outro carvalho, e cerca de meia noite Thor voltou a ouvir o ronco estrondoso de Skrýmir ecoando pela floresta. Ele se aproximou, ergueu seu martelo com toda a força e golpeou no meio de sua cabeça: ele pôde até ver a face do martelo afundando na cabeça de Skrýmir, que acordou e perguntou se alguma noz havia caído em sua cabeça. Thor, desanimado, respondeu que não e foi dormir. Meditando, Thor chegou à conclusão de que se pudesse acertar um terceiro golpe no gigante ele com certeza não resistiria. Ele aguardou e então, um pouco antes do sol nascer, percebeu que Skrýmir dormia profundamente. Thor correu até ele e chegando lá ergueu seu martelo com toda sua força, descarregando-o furiosamente no rosto do gigante com um golpe. Skrýmir acordou, sentou-se, coçou sua bochecha e disse: “alguns pássaros devem estar sentados na árvore acima de mim, pois quando acordei agora senti que algum deles deve ter despejado sua sujeira em mim”. Em seguida, recomendou Thor que não fosse até Útgardr: “eu ouvi vocês comentando que não sou um homem de baixa estatura, e muito pelo contrário, sou enorme. Mas vocês encontrarão homens ainda maiores do que eu se forem para Útgardr. Deixo-lhes um 65

conselho: uma vez lá, não se comportem de maneira exibida e presunçosa, pois os escudeiros de Útgarda-Loki não irão tolerar palavras desse tipo vindas de meras crianças mimadas como vocês. Se não quiser fazer isso, creio que seria melhor para vocês que voltassem de onde vieram”. O gigante colocou sua bolsa de provisões nas costas e foi embora. XLVI Thor e seus companheiros decidiram seguir adiante, caminhando até metade do dia, até que avistaram um castelo. Quando chegaram próximo ao castelo ele estava trancado e havia grades bloqueando o caminho. Thor forçou a entrada, mas sem sucesso, até que conseguiram passar por entre as grades. Eles seguiram adiante e passaram por um grande salão, onde vários homens bem grandes estavam sentados em bancos. A comitiva, então, chega até o rei Útgarda-Loki e o cumprimentaram, mas ele os olhou e dirigiu a palavra somente quando teve vontade enquanto sorria em escárnio. O rei reconheceu Thor e pergunta por quais grandes feitos ele e seus companheiros são responsáveis, pois não seria permitido ali ninguém que não possuísse algum tipo de astúcia ou habilidade acima às dos homens comuns. Loki se ofereceu para participar de um desafio, dizendo que ninguém ali era capaz de comer mais rápido do que ele. O rei, em resposta, chamou um gigante na outra ponta do banco, chamado Logi, para que disputasse com Loki. O desafio era o seguinte: uma enorme tigela foi trazida e enchida de carne, sendo que cada um dos desafiantes ficou em uma ponta. Eles deveriam comer até que chegassem à metade da tigela. Quando o desafio começou, os dois comeram incrivelmente rápido e chegaram à metade da tigela ao mesmo tempo. Contudo, Loki comeu somente as carnes que havia no caminho, enquanto que seu desafiante comeu as carnes, os ossos e a própria tigela. Dessa forma, Loki perdeu o desafio.

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Em seguida, Utgárda-Loki perguntou quem mais se voluntariaria, ao que Thjálfi se ofereceu dizendo que venceria uma corrida contra qualquer um ali. Ele iria correr contra Hugi, escolhido pelo rei. Assim que começaram a correr, Hugi disparou na frente, tendo até tempo de virar-se para trás e ver Thjálfi antes que chegasse no fim. Na segunda partida, Hugi completou o percurso inteiro e ainda faltava grande parte para Thjálfi. Foi feita uma terceira partida, e dessa vez, quando Hugi cruzou a linha de chegada Thjálfi não estava nem na metade do percurso ainda. Dessa forma, a vitória foi declarada a Hugi. Depois, Utgárda-Loki desafia Thor, perguntando-o quais grandes feitos ele deseja, ali, provar que é capaz de realizar – já que tantas coisas são ditas a respeito dele e de seu poder -. Imediatamente, Thor disse que venceria qualquer desafio relacionado à bebida. Ao ouvir isso, Utgárda-Loki chama seu servo e o manda trazer o chifre que os homens de seu reino estavam habituados a usar para beber. O servo o trouxe o chifre para Thor, que o olhou e não o achou muito grande, apesar de comprido. O rei conta que o chifre é considerado bem aproveitado se seu conteúdo for bebido em apenas um fôlego, mas alguns precisam de até dois para beber tudo; no entanto, ninguém é tão fraco a ponto de precisar de mais do que três para bebê-lo. Thor estava sedento: ele pegou o chifre e dava goles enormes, e quando sua respiração falhou ele levantou o chifre para ver o quanto o nível da bebida havia baixado, mas lhe parecia que havia sido incrivelmente pouco. Utgárda-Loki o desafiou a beber o resto em mais uma virada. Thor não respondeu nada e imediatamente colocou o chifre na boca para começar a beber. Ele bebeu ferozmente, lutando contra a bebida até que sua respiração não tivesse outra opção senão ceder. Quando o deus olhou o chifre para ver o quanto a bebida havia descido, parecia que o nível havia diminuído ainda menos que da primeira vez. UtgárdaLoki lhe deu a chance de beber utilizando mais um fôlego, aviso Thor que, caso não 67

conseguisse, significaria que não era um homem assim tão poderoso como os Æsir diziam. Thor enfureceu, colocou o chifre na boca e bebeu com toda sua força até não agüentar mais. Quando terminou, o chifre ainda estava cheio, mas ao menos um espaço considerável havia sido esvaziado. Após o fracasso de Thor nessa prova, Utgárda-Loki afirmou que ele realmente não era assim capaz de tantas proezas quanto diziam, mas o ofereceu a chance de se redimir por meio de outros desafios. O próximo desafio era que Thor levantasse o gato de Utgárda-Loki do chão. Então entrou no salão um enorme gato cinza, que ficou parado. Thor foi até ele, colocou as mãos no meio da sua barriga e começou a erguê-lo; mas assim que começou a levantá-lo do chão o gato se arqueou, fazendo peso, e o máximo que Thor conseguiu foi levantar uma de suas patas. O jogo havia terminado. O rei debocha de Thor, dizendo que, perto dos homens de seu reino ele é pequeno e fraco. Esse comentário obviamente irritou o deus, que, enraivecido, desafiou qualquer um a ir até lá e lutar contra ele. O rei chama uma anciã de nome Elli, para lutar contra Thor, dizendo que já a viu derrubar muitos homens. Assim que a luta começou Thor esforçou-se para imobilizá-la, mas quanto mais o fazia, mas rápido ela se movia. A luta foi continuando e não demorou muito para que Thor caísse em um de seus joelhos. Nesse momento, Utgárda-Loki mandou que o combate cessasse, dizendo que bastava de desafios. A essa altura o dia já havia se tornado noite e o rei ofereceu a todos que ficassem lá, sentassem, banqueteassem e dormissem. XLVII No dia seguinte, quando Thor e seus companheiros estavam prontos para irem embora, Utgárda-Loki lhes serviu um grandioso banquete. Antes de partirem, o rei caminhou para fora de seu castelo junto deles e perguntou a Thor o que ele havia achado do fim de sua jornada e se havia encontrado nela algum homem mais poderoso que ele. Thor respondeu que sentiu-se muito envergonhado com os últimos acontecimentos e 68

que Utgárda-Loki teria, devido a eles, motivos para considerá-lo um homem fraco e ficava muito infeliz com tudo isso. O rei lhe responde: “agora que você já pisou fora do castelo posso contar a verdade, mas você não deve jamais tentar voltar aqui enquanto eu for vivo. E eu juro que, se soubesse que você era tão poderoso a ponto de quase nos colocar em grande perigo, jamais teria chamado vocês para virem até aqui. Eu havia preparado para você várias ilusões de antemão, e quando apareci para você pela primeira vez na floresta e você tentou afrouxar o nó da minha bolsa, saiba que eu tinha preparado aquele nó com ferro, e que foi por isso que você não conseguiu desfazê-lo.” “Em seguida”, o rei continua o relato, “você tentou três vezes seguidas me golpear com seu martelo. O primeiro golpe foi o mais fraco dos três, e mesmo assim teria sido o suficiente para me matar se tivesse me acertado de fato. Ao chegar próximo do meu castelo, onde você viu uma enorme montanha dividida, no topo, em três grandes depressões (sendo uma a mais profunda de todas), essas eram as marcas de pancada vindas do seu martelo. Eu trouxe as montanhas antes de você acertar o martelo no alvo, mas é claro que isso você não percebeu. Foi a mesma coisa com os outros desafios: no desafio da comida, Loki estava faminto e comeu ferozmente, mas ele perdeu porque seu adversário, Logi, era na verdade o fogo, e por isso ele consumiu a tigela com a mesma ferocidade com que consumiu a carne. Ao apostar a corrida, Thjálfi, na verdade não correu contra Hugi: ele correu contra o pensamento, e por isso foi impossível que ganhasse dele num desafio de velocidade. “Quando você bebeu do chifre, pode ter parecido que você bebeu pouco, mas te juro que você realizou um feito que eu considerava impossível: a outra ponta do chifre estava conectada ao oceano, mas você não percebeu. Ao voltar para o mundo aqui fora e reencontrar o oceano, você irá notar a marca de onde ele antes esteve e notará que ele diminuiu graças ao que você bebeu: isso se chama maré. Quando você tentou levantar o gato, todos ficaram espantados com o fato de ter conseguido erguer uma de suas patas, 69

pois ele era na verdade a Serpente de Midgard, cujo tamanho é o tamanho do mundo. A sua luta com a anciã não foi menos memorável: você agüentou e resistiu por muito tempo e, no fim, ajoelhou perante Elli utilizando somente um dos joelhos. Nunca existiu e nem existirá alguém que vencerá a idade sem que caia de joelhos, e Elli era exatamente a idade”. Por fim, Utgárda-Loki despede-se de Thor, avisando que seria melhor se nunca mais tornassem a se ver nesta vida, pois se isso acontecesse o rei utilizaria de outros truques e ilusões para defender seu castelo, de modo que seria impossível para Thor vencê-lo. Ao ouvir isso, o deus pegou seu martelo e o ergueu para o alto, mas quando foi arremessá-lo não viu mais Utgárda-Loki em lugar algum. Então Thor se virou para o castelo, querendo destruí-lo em pedaços, mas o castelo havia sumido e o lugar estava agora completamente plano. E foi assim que ele resolveu retornar para Thrúdvangar. XLVIII Após ouvir essa história, Gangleri pergunta se Thor nunca se vingou da raça dos gigantes pelo que aconteceu. Então, Hárr lhe conta de quando o deus decidiu, sozinho, disfarçar-se de um jovem rapaz e então ir até a morada de Hymir, o gigante. Thor foi recebido e pernoitou lá, e logo que o dia nasceu ele viu o gigante se preparando para ir pescar. Sem perder tempo, perguntou se poderia ir junto, ao que o gigante afirmou que ele seria de pouca ajuda, já que era tão pequeno e jovem. Thor insistiu, dizendo que era capaz de remar para bem longe da costa e que talvez fosse Hymir, e não ele, quem primeiro pediria para que remassem de volta. Aliás, Thor ficou enfurecido nesse momento de descrédito, mas decidiu controlar-se, já que pretendia provar sua superioridade física de outra forma. O deus perguntou para Hymir o que eles usariam de isca e ele respondeu que Thor deveria conseguir sua própria. Ele olhou para trás, num campo onde estava uma manada de bois enormes que pertencia ao gigante. Thor caminhou até o maior deles e 70

arrancou sua cabeça fora, retornando para o barco logo em seguida. Ele imediantamente começou a remar e o gigante percebeu instantaneamente que as suas remadas faziam o barco se mover eficientemente, e assim se moveram até o ponto em que Hymir mandou pararem, pois era o local de pesca. Mas Thor queria prosseguir ainda mais, então remaram para muito mais longe, até o ponto em que Hymir afirmou ser perigoso seguir sob risco de encontrar a Serpente de Midgard. Ainda assim, Thor disse que queria remar ainda mais, e assim o fez - ao que Hymir respondeu com medo-. Quando pararam, Thor imediatamente montou seu equipamento de pesca: uma linha extremamente resistente e um anzol igualmente forte, ambos enormes. Ele colocou a cabeça do boi no anzol e o arremessou para longe, até que caiu nas profundezas do oceano, e foi desse modo que Thor atraiu e seduziu a Serpente de Midgard de maneira tão astuta quanto aquela que Útgarda-Loki utilizou para debochar dele. Foi assim que Thor conseguiu fazer com que a Serpente mordesse o anzol, puxando-a em seguida para cima. A Serpente atacou a cabeça do boi ferozmente e assim o anzol fisgou sua mandíbula, porém quando se deu conta da armadilha ela saiu nadando com tanta fúria e velocidade que os punhos de Thor chocaram-se contra a amurada do barco, deixando-o enfurecido. Então, ele invocou sua força divina e firmou seus pés no chão com tanta força que o barco se quebrou até seu fundo, e então puxou a serpente para cima até a altura da amurada. Até mesmo as pessoas que já testemunharam lutas ferozes nunca viram nada desse tipo: o modo como Thor lançava olhares flamejantes em direção à Serpente e ela o encarava de cima a baixo enquanto gotejava veneno de sua boca. Em seguida, conforme o mar adentrava o barco que balançava, Hymir ficou pálido, depois amarelo e começou a passar mal de medo. No momento em que Thor bradou seu martelo ferozmente levantando-o acima da cabeça o gigante atrapalhou-se ao tentar pegar sua faca de pesca, cortando a linha de pesca em que a Serpente havia sido pega, e assim ela mergulhou em direção ao fundo do oceano. Thor

tentou 71

aproveitar a oportunidade, arremessando seu martelo impiedosamente em direção à Serpente. Alguns dizem que ele acertou sua cabeça com o martelo, esmagando-a contra o fundo do oceano, mas é justo dizer, enfatiza Hárr, que a Serpente ainda vive e circula pelo oceano. Thor, indignado, balançou seu braço no ar e deu um soco na orelha de Hymir, fazendo com que caísse no mar – e a última coisa que Thor avistou foram as solas de seus pés mergulhando-. Depois, o deus voltou para a costa. XLIX “Fantástico esse feito de Thor”, disse Gangleri, “você saberia me contar de outros acontecimentos dignos de nota envolvendo os Æsir?”, perguntou à Hárr. Ele conta, então, uma história que teve grande impacto sobre os Æsir. Certa vez, Baldr, o Bom, teve um grande sonho que o alertou sobre perigos que se aproximavam dele. Ao contar seu sonho para os Æsir eles decidiram fazer um conselho e decidirem juntos as atitudes a serem tomadas. Chegaram à conclusão de que pediriam a todas as coisas que elas garantissem a segurança de Baldr ao prometer, uma por uma, que elas nunca o machucariam ou lhe fariam algum mal. Frigg assumiu essa responsabilidade e foi a responsável por colher o juramento de todas as coisas: fogo e água o poupariam, ferro e metal o poupariam, assim como as pedras, as árvores, as doenças, os pássaros, os venenos, as bestas e serpentes. Uma vez feitos esses juramentos surgiu uma nova diversão entre Baldr e o resto dos Æsir: eles se reuniam para que ele ficasse em pé e então todos os deuses atiravam e arremessavam coisas para acertá-lo. Não importava o que arremessassem ou com o que lhe batessem, nada o machucava ou feria de forma alguma, e isso era algo prazeroso e honroso entre os deuses. Mas quando Loki viu isso acontecer, causou-lhe grande mal perceber que nada machucava Baldr. Ele se disfarçou de mulher e foi até Fensalir para falar com Frigg, perguntando se ela sabia o que os Æsir estavam se reunindo para fazer. Ela contou que todos estavam atirando coisas em Baldr, já que nada podia machucá-lo, 72

e então disse sobre todas as coisas que haviam prestado o juramento. A mulher (Loki) pergunta se realmente todas as coisas prestaram o juramento de poupar Baldr e Frigg inocentemente respondeu que havia uma pequena planta que crescia a oeste de Valhall, chamada azevinho, mas que era tão pequena e delicada que Frigg não exigiu um juramento dela. Loki, então, conseguiu arrancar um azevinho e levá-lo para onde os deuses estavam se reunindo. Hödr, que era cego, estava fora da distração. Disse para Loki que não participava porque era cego e que portanto não saberia onde Baldr estava, fora isso, também era porque não tinha armas. Loki disse que ele não deveria deixar de participar, pois deveria prestar honras a Baldr. Ele ofereceu-se para guiar Hödr em direção a Baldr, lhe dando o azevinho e lhe dizendo para bater com ele. Então, guiado por Loki, Hödr arremessou o azevinho em direção a Baldr: este o acertou, perfurando-o, e Baldr caiu morto no chão – e essa foi a maio desgraça que já existiu entre homens e deuses-. Os Æsir ficaram todos sem palavras perante o acontecido. Odin foi o que mais chorou essa perda, pois sendo o mais sábio dos deuses ele sabia o tamanho da perda e desesperança que a morte de Baldr significava para os deuses. Dessa forma, Frigg se levantou e disse que aquele dentre os Æsir que aceitasse pegar a estrada para Hel em busca de Baldr para trazê-lo de volta para Ásgard receberia todo seu amor e gratidão. Foi o filho de Odin, Hermódr, o Bravo, que se voluntariou. Odin ofereceu seu cavalo Sleipnir, e então Hermódr o montou e partiu rumo a Hel. Então, Hermódr cavalgou durante nove noites através da escuridão das profundezas do mundo, atravessando o rio Gjöll e em seguida cruzando a ponte de mesmo nome – que é coberta de ouro reluzente-. Há uma mulher, Módgudr, que guarda a ponte, e quando Hermódr foi cruzá-la, ela perguntou seu nome e sua raça, já que ele não tinha a aparência de um homem morto. Ele explica que foi até Hel para buscar

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Baldr e a pergunta se ela o viu. Módgudr lhe explicou que Baldr havia passado por lá e em seguida descido Hel adentro. Hermódr só parou de cavalgar ao chegar até o portão de Hel. Ele desmontou do cavalo e deixou com que Sleipnir pulasse em direção ao portão para que conseguisse derrubá-lo. Uma vez caído o portão, Hermódr seguiu para um grande salão, onde finalmente encontrou seu irmão Baldr. No dia seguinte eles encontraram Hel e a pediram para que Baldr pudesse ir embora de lá para casa junto de Hermódr, explicando, também, sobre a tristeza que caiu sobre os Æsir quando Baldr foi morto. Hel, ouvindo o pedido, propôs que colocassem à prova todo esse amor que as criaturas sentiam por Baldr: se todos os seres e coisas do mundo chorassem sua morte ele poderia voltar para os Æsir, mas se alguma delas se recusasse a chorar, então Baldr deveria ficar em Hel. Dito isso, Hermódr levantou-se para voltar rumo à Ásgard e Baldr lhe deu seu anel Draupnir para que levasse até Odin como lembrança. Depois que Hermódr explicou aos Æsir sobre a situação de Baldr e a proposta de Hel, os deuses saíram pelos quatro cantos do mundo pedindo a todos que chorassem por Baldr para que ele pudesse sair de Hel e voltar a viver entre os deuses. Todas as coisas assim fizeram: pedras, árvores, homens, animais e metais, e é por isso que até hoje quando as coisas saem do frio em direção ao calor é possível enxergar seu choro. No entanto, encontraram, morando em uma caverna, uma giganta chamada Thökk que recusou chorar por Baldr, alegando que não sentia qualquer simpatia pelo deus. Não demorou muito para que os deuses descobrissem que essa giganta era, na verdade, Loki metamorfoseado. L Contudo, Loki foi castigado por causa disso de tal forma que se lembrará por muito tempo. Quando os deuses descobriram de seu disfarce e tornaram-se tão furiosos quanto era de se esperar – visto que Loki fora o responsável não só pela morte de Baldr, 74

mas também pelo empecilho em trazê-lo de volta -, Loki percebeu o que lhe aguardava e por isso saiu correndo velozmente em direção a uma montanha, onde fez uma casa com quatro portas para que pudesse olhar em todas as direções ao mesmo tempo. Frequentemente Loki se transformava em salmão e se escondia em uma cachoeira chamada Fránangr e ficava pensando de que artifícios os deuses utilizariam para pegá-lo. Quando se sentava em casa, ele pegava um cordão de linha e ia tricotando uma rede; mas enquanto o fazia, um fogo queimou perante ele, o que significava que os Æsir estavam prestes a encontrá-lo. Odin havia visto de Hlidskjálf onde Loki estava. Dessa maneira, Loki jogou a rede no fogo e em seguida mergulhou rapidamente rio adentro. O primeiro Æsir a entrar na casa em que ele estava foi Kvasir, um dos mais sábios dentre os deuses. Assim que viu a rede queimada, deduziu que era um artefato para apanhar peixes e contou isso aos outros. Os Æsir se juntaram e fizeram rapidamente uma nova rede a partir dos restos daquela que Loki havia tentado queimar. Uma vez pronta a rede eles foram até o rio e a jogaram lá, em direção à cachoeira. Thor segurava uma ponta da rede e o resto dos Æsir seguravam a outra. Loki fugiu repentinamente e ficou escondido entre duas pedras. Os deuses então subiram a cachoeira a arremessaram a rede lá de cima, prendendo a ela uma coisa tão pesada que nenhuma criatura conseguiria passar por debaixo dela. No entanto, Loki pressentiu a rede vindo em sua direção e nadou rapidamente para fora de seu raio de ação antes que ela caísse nele. Além disso viu que a distância do mar era pouca e foi em sua direção, mas os deuses viram para onde ele nadou e seguiram atrás dele. Nesse momento Loki percebeu que tinha duas escolhas: ou se arriscava nadar mar adentro, o que era definitivamente um grande perigo, ou pular por sobre a rede novamente, e assim ele o fez. No entanto, no momento em que Loki deu seu salto, Thor o agarrou no ar, segurando-o firmemente. Loki se debateu para tentar escorregar, mas a 75

mão de Thor escorregou somente até seu rabo, e uma vez lá Thor apertou com tanta força que Loki não escorregou nem mais um pouco, e é por isso que o salmão até hoje tem o rabo mais fino que o resto do corpo. Os deuses aprisionaram Loki sem trégua e o levaram para uma caverna. Eles pegaram três grandes pedras achatadas e fizeram um buraco em cada uma. Então trouxeram seus dois filhos, Váli e Nari, e transformaram o primeiro em lobo. Uma vez metamorfoseado ele foi em direção a seu irmão, Nari, e o estraçalhou completamente com suas mordidas. Os Æsir pegaram suas entranhas e as usaram para amarrar Loki nas pedras. Em seguida, Skadi pegou uma serpente venenosa e a deixou em cima de Loki, de modo que o veneno pingaria da boca dela o rosto do deus. No entanto, Sigyn, a esposa de Loki, fica perto dele segurando uma grande bacia para que o veneno caia nela, mas quando a bacia está cheia e ela precisa correr para esvaziá-la o veneno pinga em Loki nesse meio-tempo: então ele se contorce com tamanha força que toda a terra treme , e daí surgem os terremotos. É lá que ficará Loki até o fim dos tempos. LI “E o que você me contaria a respeito do fim dos tempos?”, pergunta Gangleri. Hárr conta que o primeiro sinal de que o fim dos tempos se inicia será a chegada do Inverno Terrível. Nessa ocasião a neve cairá de todas as direções, as nevascas serão ainda mais rigorosas e tenebrosas e o sol sumirá. Os invernos seguirão dessa forma até que se passem três estações deles seguidas – sem nenhum verão entre um inverno e outro -. Nesses tempos também homens e irmãos se matarão em nome da ganância, e nenhum pai ou filho será poupado do massacre e o mundo cairá na fome, no assassinato e no incesto. Em seguida, grandes eventos ocorrerão. O Lobo engolirá o sol, o que causará grande dano aos homens. Em seguida outro Lobo engolirá a lua, fazendo com que as estrelas desapareçam do céu. A terra começará a tremer intensamente por todos os 76

cantos, assim como as pedras, e as árvores serão arrancadas do solo e todas as correntes e amarras que prendem as coisas serão quebradas, soltando, inclusive, o Lobo Fenris. O oceano irá invadir a terra, pois a Serpente de Midgard se moverá em uma fúria gigante e avançará em direção à costa. Assim, também o grande barco Naglfar será solto e começará a navegar: ele é feito das unhas de homens mortos e será capaz de navegar mesmo quando a grande enchente tomar a terra. Hrymir é o nome do gigante que comandará o barco. O lobo Fenris avançará ferozmente com a boca aberta e sua mandíbula inferior se arrastará contra a terra e sua mandíbula superior contra o Céu, engolindo tudo enquanto fogo salta reluzente de seus olhos. A Serpente de Midgard soltará seu veneno espalhando-o pelo ar e pela água. No meio desse distúrbio o Céu será fendido e os filhos de Múspell o invadirão: Surtr chegará primeiro, causando grande terror e deixando um rastro de fogo e destruição – de sua espada sai uma luz mais forte que o sol-. Quando passarem por sobre Bifröst ela se quebrará, e assim os filhos de Múspell seguirão adiante para o lugar chamado Vígridr, onde se encontrarão com a Serpente de Midgard, o Lobo Fenris; assim como Loki, Hrymr e todos os gigantes de gelo junto deles. Hel enviará todos os seus campeões e guerreiros para serem liderados por Loki. Quando isso tudo acontecer Heimdallr se levantará e assoprará a trombeta Gjallar, acordando todos os deuses. Odin irá para o poço de Mímir em busca de conselhos. O freixo de Yggdrasill tremerá, e nenhuma criatura no Céu e na Terra deixará de sentir medo. Em seguida, todos os deuses e seus respectivos campeões vestirão suas armaduras e equipamentos de guerra, avançando para a batalha. Odin será o primeiro a avançar, usando seu capacete dourado e carregando sua poderosa lança Gungnir. Ele enfrentará o lobo Fenris e Thor, que estará do seu lado, travará uma batalha contra a Serpente de Midgard. Freyr, por sua vez, enfrentará o terrível Surtr:

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essa será uma luta sangrenta em que Freyr terminará vencido, já que deu sua espada para Skírnir, conforme contado anteriormente, e esse foi o motivo de sua morte. Depois o cão Garmr, a mais poderosa das bestas, será solto. Ele batalhará contra Týr e nenhum dos dois sairá vivo dessa luta. Thor acabará por matar a Serpente de Midgard, mas depois de dar nove passos ele cairá morto no chão devido ao seu veneno. Fenris engolirá Odin, dando um fim ao deus, mas logo em seguida aparecerá Vídarr e pisará na mandíbula superior do lobo – seus sapatos são feitos de materiais que ele juntou desde o início dos tempos -. Então, com uma das mãos ele agarrará a mandíbula de Fenris e arrancará sua goela para fora, causando sua morte. Loki batalhará contra Heimdallr e os dois acabarão matando um ao outro. Em seguida, Surtr lançará fogo sobre a Terra e queimará o mundo inteiro. LII Gangleri deseja saber o que acontecerá, então, depois que o mundo estiver queimado e todos os deuses e humanos, mortos. Thridi lhe conta de Gimlé, uma morada nos Céus. Há também um local chamado Ókólnir, onde a comida e a bebida são fartas, assim como os prazeres. Por último, existe um salão em Nida Fells, feito de ouro vermelho, onde morarão todos aqueles que são bons e puros de coração. Em contrapartida, há um lugar maligno chamado Nástrand, coberto de serpentes – e todas as serpentes nas paredes viram-se em direção à casa e despejam seu veneno, formando um rio venenoso que corre pela casa – e os homens que quebraram seus juramentos ou que são assassinos devem peregrinar por esse rio. LIII “Sobrará algum deus vivo, ou ao menos continuarão a existir a Terra e o Céu?”, pergunta Gangleri. Hárr lhe conta que depois desses acontecimentos terríveis a terra emergirá do oceano, verde e fértil, onde breve voltarão a crescer frutos. Vídarr e Váli continuarão vivos, já que nem o oceano implacável e nem o fogo de Surtr terão ferido 78

nenhum dos dois: eles morarão em Ida-Plain, onde antes era Ásgard. Em seguida virão os filhos de Thor, Módi e Magni, e trarão o martelo Mjöllnir com eles. Também surgirão Baldr e Hördr, voltando de Hel. Então todos eles se reunirão e terão uma conversa utilizando de sua sabedoria divina e secreta. Há de se dizer também que dois humanos, chamados Líf e Lífthrasir, esconderam-se debaixo de árvores e portanto se protegeram e sobreviveram ao fogo de Surtr. Esse casal irá gerar muitos descendentes, que repovoarão a Terra. Outro acontecimento maravilhoso é que sol terá deixado uma filha tão clara e brilhante quanto ela, que seguirá seus passos iluminando a Terra. E termina Hárr, dizendo: “Mas, se você for capaz de perguntar ainda mais coisas, então não sei que resposta poderei dar para ti, pois eu nunca vi nenhum homem ser capaz de contar tantas coisas a respeito do curso do mundo como eu o fiz; agora, que você use o conhecimento adquirido aqui para algo vantajoso e produtivo”. LIV Em seguida, Gangleri ouviu enormes ruídos que o cercavam, e, quando se deu conta, olhou para todos os lados em seu entorno e não avistou mais nada: o salão, o castelo e todos haviam sumido. Dessa forma, decidiu ir embora rumo ao seu reino, e uma vez que estava de volta contou a todos sobre as novas e grandiosas coisas que ficara sabendo, e depois dele esses contos acerca dos feitos dos deuses foram passados de geração em geração.

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CAPÍTULO III: SOBRE OS SÍMBOLOS E ARQUÉTIPOS NA EDDA EM PROSA

III. I A cosmogonia: Ginnungagap, Auðhumla e Ymir

Antes de discutir-se o mito da criação propriamente dito é importante ressaltar, a respeito dos conteúdos da Edda em Prosa, que Snorri escreveu seu relato deduzindo que os deuses viviam em uma comunidade e que, portanto, possuíam um lugar próprio deles para morar, com localidade específica dentro de todo o cosmo, que seria Ásgard, semelhante aos deuses da Grécia Antiga, que habitavam o Olimpo e o tinham como morada (Davidson, 1964). Na mitologia nórdica, Ginnungagap é o nome que se dá à origem de tudo. Já próximo ao fim do período pagão da Escandinávia, um autor desconhecido compôs certo poema chamado Völuspá, que se encarregava de narrar a criação dos vários mundos. Segundo Davidson (1964), Snorri Sturluson debruçou-se sobre este poema de autoria anônima para encontrar informações acerca da criação e destruição do Universo. Até que ponto esse primeiro poeta juntou fragmentos isolados de crenças visando montar um todo coerente é algo desconhecido, não sendo possível, dessa forma, afirmar se ele estava realmente retratando um ensinamento já existente acerca do mito da criação. Contudo, a partir de outros referenciais existentes, pode-se afirmar que o poema Völuspá não existia isoladamente (Davidson, 1964). No entanto, mais precisamente no Gylfaginning da Edda em Prosa, Snorri nos apresenta o Ginnungagap como o centro do universo que existia antes mesmo da ordem divina, e que viria a se tornar o lugar onde a árvore Yggdrasil teria uma de suas raízes. No meio deste vazio, os deuses mataram o gigante Ymir e fizeram a terra e o universo da maneira como o conhecemos (Langer, 2015). Snorri nos deixa claro que entendia o Ginnungagap como o centro do universo, visto que o que marca tal fato é justamente 80

que os filhos de Bor colocaram lá as partes do gigante Ymir, para que dele o cosmos fosse criado e uma raíz da Ygddrasil passasse por onde um dia esteve este vazio primordial (Lindow, 2001). Assim sendo, o Ginnungagap era o grande vazio primordial que existia antes de tudo, numa época em que não havia terra, céu e nem nada que posteriormente viria a existir entre eles. O vazio é um conceito recorrente na mitologia, remetendo ao ato de abolição de todos os atos, estando intimamente conectado, então, ao conceito de abismo, simbolizando os estados informes da existência. A ideia de um “abismo”, portanto, intervém em grande parte das narrativas cosmogônicas, seja na forma de gênese ou do fim da evolução universal (Chevalier & Gheerbrant, 1992). Este vazio estava impregnado com o poder potencial da criação. Apesar de não oferecer a definição clara e concisa do que seria o que Ginnungagap, Snorri usa deste nome no momento em que descreve a criação (Lindow, 2001). Basicamente, o mito da criação descrito na Edda em Prosa narra que, ao norte, havia o reino de Niflheim, gélido, congelante e cheio de vento, e ao sul, Muspellsheim, que era brilhante, quente e ardente. Entre eles havia o Ginnungagap, lugar onde não havia vento. Neste lugar, gelo e fogo oriundos de direções opostas se encontraram, fazendo com que o gelo derretido – e venenoso -fosse pingando, até que a poça fosse preenchida com o poder oferecido pelo calor, e então nasceu o gigante Ymir, de quem os homens e gigantes derivam. No que concerne à história de Ymir, teremos, descrita depois, a destruição deste ser primordial para que a terra pudesse ser formada, e acredita-se que a ocorrência desse mito se desse já na antiga tradição germânica. Há até mesmo a hipótese de que o nome Ymir estivesse associado ao termo sânscrito yama, que significa “híbrido” ou “hermafrodita”, afinal, Ymir é realmente um ser duplo em certo sentido, já que dele nascem tanto homens quanto gigantes (Davidson, 1964). Régis Boyer (1997), citado por 81

Langer (2015), também corrobora com esta idéia ao afirmar que o nome de Ymir pode realmente estar relacionado não só ao sânscrito yama, mas também ao védico yima, ambas palavras que significam “hermafrodita”. Na mitologia grega, também encontramos os gigantes enquanto símbolos da primordialidade. Segundo o mito, os gigantes foram postos no mundo por Gaia (a Terra), buscando vingar os titãs que Zeus havia encerrado: eles haviam retornado como seres ctonianos que simbolizam a predominância das forças saídas da terra por seu gigantismo material e indigência espiritual. Os gigantes, muitas vezes, são encarnações de um arquétipo que representa, para o homem, tudo aquilo que ele deve vencer para libertar e expandir sua personalidade (Chevalier & Gheerbrant, 1992). Vemos esse padrão simbólico repetir-se de certa forma na figura do gigante Ymir, tanto no seu aspecto de ser primordial – ao dar origem a toda à estrutura do mundo – quanto no seu papel de gerador do mal, pois todos os seus filhos, a raça de gigantes, possuem esta característica inerente a eles, segundo nos narra Snorri (Langer, 2015). Temos, então, na Edda em Prosa, o surgimento do gigante primordial Ymir a partir do encontro entre o frio de Niflheim e o calor de Múspel, o que aconteceu dentro do Ginnungagap. Conforme afirma Langer (2015), Ymir alimentava-se da vaca Auðhumla, que havia nascido do orvalho derretido do gelo de Niflheim. Ela, por sua vez, alimentava-se lambendo o gelo, que continha certa quantidade de sal. Conforme lambia o gelo, a vaca deu origem a outro ser primordial, Búri, cujo filho daria origem a todo o grupo de deuses Æsir:

Ela [Auðhumla] lambia os blocos de gelo, que eram salgados; e no primeiro dia em que lambeu os blocos, surgiu o cabelo de um homem; no segundo dia, a cabeça de um homem; no terceiro dia, o homem inteiro estava lá. Ele se chamava Búri, tinha belas feições, era grande e poderoso. Ele teve um filho 82

chamado Borr, que se casou com uma mulher chamada Bestla, filha do gigante Bölthorn, e eles tiveram três filhos: Odin, Vili e Vé (Sturluson, 2006, p.19).

Esta ocorrência da figura primitiva da vaca é também digna de nota, visto que, também no Egito e no Oriente Próximo ela era o símbolo da terra frutífera. Seu nome na mitologia nórdica, Auðhumla, é uma palavra nativa que indica uma vaca leiteira, sem chifres. Leite escorria de suas tetas, transformando-se em rios, o que reflete a ideia da árvore do mundo como sendo sua fonte de alimento, conforme aponta Davidson (1964). Em várias sociedades, a vaca era constantemente tida como símbolo da suprema fornecedora de bens. Afinal, os bezerros por ela gerados eram os trabalhadores dos campos, o seu estrume dava origem a fertilizantes, combustíveis e materiais de construção para as casa; seus tendões e ossos podiam ser usados como ferramentas e sua pele como roupa, fora o leite, alimento supremo para milhões de pessoas. Não se admira que a vaca tenha sido venerada como a deusa-mãe que cuida, alimenta e cria toda a vida (Martin, 2012). O relato de Snorri acerca de Auðhumla, citado aqui anteriormente, apresenta certos paralelos encontrados no Rig Veda, uma das escrituras mais antigas da Índia: E essa prece do cantor, alastrando continuamente, Tornou-se uma vaca que estava ali desde antes do início do mundo. (Rig Veda, 10.31)

Também na literatura indiana, o próprio ato de ordenhar a vaca, por exemplo, é comparado à existência do mundo; “a parte que se manifesta como mundo não é mais do que o produto de uma única ordenha da fonte sublime: a grande vaca malhada” (Zimmer, 1946, pág. 146). No caso específico da mitologia nórdica, temos, então, a 83

vaca primordial Auðhumla responsável não só pela alimentação que manteve vivo o gigante primordial Ymir, mas também pela criação de outro ser primordial, Búri. Desta forma, nota-se tanto uma importância direta quanto indireta da vaca: afinal, por um lado ela deu surgimento a Búri, de quem os deuses Æsir se derivaram, por outro, alimentou Ymir, de quem, posteriormente, o mundo foi feito (Langer, 2015). Aliás, este fato interessante diferencia o mito de Auðhumla de outras tantas simbologias da vaca mundo afora: na mitologia nórdica ela é responsável por gerar dois grupos marciais e inimigos, os gigantes e os deuses Æsir (Lindow, 2001). Em seguida, Snorri dá continuidade ao mito da criação ao narrar como o mundo foi criado a partir do corpo de Ymir:

Os filhos de Borr assassinaram o gigante Ymir (...), então pegaram seu corpo, o levaram para o meio do Grande Vazio, e fizeram, a partir dele, o mundo: de seu sangue fizeram o mar e as águas; a terra foi feita de sua carne, as montanhas de seus ossos; pedras e rochas foram feitas de seus dentes e ossos que estavam quebrados. (...) Eles também pegaram seu crânio e dele fizeram o Céu e o deixaram acima da terra, abrangendo os quatro cantos; e em cada canto eles colocaram um anão: seus nomes eram Leste, Oeste, Norte e Sul. (Sturluson, 2006, p. 20).

Há registros de que muitos dos poetas da Escandinávia Medieval, chamados de escaldos, utilizavam metáforas como “O crânio de Ymir” para se referir ao céu ou “O sangue de Ymir” para expressarem o mar, o que nos aponta o fato de que a noção do gigante Ymir como material cru de onde o cosmos surgiu é seguramente antiga (Lindow, 2001). Na Edda em Prosa, Snorri nos revela várias informações importantes sobre este proto-gigante. A primeira delas é acerca de seu papel como progenitor de 84

toda a raça dos gigantes, acontecimento surgido graças à junção dos opostos “calor” e “frio”, vindos, respectivamente, de Múspell e Niflheim em direção ao Ginnungagap:

(...) e quando o sopro de calor se chocou com o gelo; ele então derreteu e pingou, e a vida se formou desses pingos, por meio do poder conferido pelo calor, assumindo a forma de um homem. Este homem é Ymir, mas os gigantes de gelo o chamam de Aurgelmir, pois dele surgiu esta raça (Snorri, 2006, p.17).

Apesar do papel de Ymir na criação do cosmos, quando Gangleri pergunta se ele é tido como algum tipo de deus, Jafnhárr responde: “Nós não o tomamos por Deus de maneira alguma; ele era mal, ele e todos seus descendentes: nós os chamamos de gigantes de gelo” (Snorri, 2006, p. 18). Portanto, apesar de sua força criativa e originária do cosmos, conferindo até mesmo a estrutura material da terra, o símbolo deste proto-gigante não era divinizado. Na mitologia nórdica e sua narrativa envolvendo a criação do cosmos, é interessante notar que não há traços de outra forma difundida da lenda, como, por exemplo, um motivo muito recorrente em outros lugares, que é o da geração do mundo por meio de um ovo primordial cuja casca superior forma os céus e a inferior, a terra. Tal forma de mito é encontrada, segundo Davidson (1964), na tradição egípcia, grega e mitraica, e foi preservada fortemente na Finlândia, na história de Väinämöinen, que cria o mundo a partir de um ovo colocado por uma pata sobre seu joelho, em meio à desolação aquosa. Eliade (2013) discute o simbolismo do ovo como imagem responsável por unir simbolicamente espaço e tempo, tendo, assim grande representatividade nos mitos de criação. Ele utiliza, como exemplo, o texto do Suttavibhanga, que narra o nascimento sobrenatural de Buda por meio da ruptura de um ovo no qual se encontra, potencialmente, o Primogênito (jyeshta) do Universo: quebrar 85

o invólucro equivale, na parábola do Buda, a quebrar o samsâra, a roda das existências, apontando para uma transcendência tanto do espaço cósmico como do tempo cíclico. Em suma, a narração surge como arquétipo do fim do caos por meio de uma formação do Universo, de uma ordem e de uma hierarquia; e mais, a instalação de uma ordem por meio de energia (Chevalier & Gheerbrant, 1992). A criação, então, precede o caos ou lhe sucede, ou então ambos, como encontrados na Edda em Prosa. Há a narração do ato de criação extratemporal, no momento em que não havia mais nada – Ginnungagap, o “Grande Vazio” -, para, depois, haver toda um trilhar mitológico que desembocará na escatologia segundo a mitologia nórdica, o Ragnarök, “crepúsculo dos poderes supremos” (Langer, 2015).

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III. II Muspellheim e Niflheim

Ocorre um debate entre os estudiosos da mitologia nórdica envolvendo Muspell. Alguns trabalham com a hipótese de que Muspell seria um gigante, enquanto outros afirmam que se trataria de um lugar. No momento de descrição do surgimento do cosmos, Snorri Sturluson utiliza duas formas distintas para se referir a Muspell, uma com e outra sem o sufixo “heim” (Muspellsheim). Palamin (2015) aponta que, em algumas línguas germânicas, este sufixo significa “casa” ou “morada” e, portanto, pode ser que ao utilizar das duas formas desta palavra em sua obra, Snorri corrobora a ideia de que Muspell fosse um gigante e Muspellheim sua respectiva morada. Contudo, notase que não há nenhum registro de alguma ação efetuada diretamente por este ser gigante, o que aponta para maior probabilidade de que se trate realmente de uma localidade (Palamin, 2015). No início do cosmos, Snorri aponta que havia somente o Grande Vazio, chamado de Ginnungagap. Muspell teria sido o primeiro mundo a surgir

neste

momento, na região sul:

E Thridi disse: Primeiro surgiu o mundo da região sul, que foi chamado Múspell; era quente e brilhante; aquela região brilhava e queimava, um lugar onde era impossível de se transitar a não ser para aqueles que lá moravam (Sturluson, 2006, p. 16).

Sentado na desse mundo encontrava-se o gigante Surtr, que era tido como defensor de Muspell. Ele empunhava uma espada flamejante, arma que usaria no momento do Ragnarök, quando reduziria os deuses e o mundo a fogo (Palamin, 2015).

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Na Edda em Prosa consta esta parte sobre o gigante Surtr, retirada por Snorri de outro material poético:

Aquele sentado no fim de Múspell, defensor daquela terra, chama-se Surtr; ele branda uma espada flamejante, e no fim do mundo ele irá avançar, vencendo e destruindo todos os deuses, queimando o mundo com seu fogo, conforme é dito no Völuspá (Sturluson, 2006, p.17).

Basicamente, trabalha-se com a ideia de que Muspell está relacionada a dois papéis principais, que seriam na criação e origem do cosmos e posteriormente na destruição do mundo. Snorri diz que havia uma parte do Ginnungagap virada para o norte, coberta de gelo e de vento, advindos da gélida Niflheim, e outra parte, ao sul, envolvida em brasas e faíscas que voavam de Muspellsheim. As forças vindas destes dois lugares se encontravam em Ginnungagap, onde não havia vento. Deste encontro entre gelo e fogo, calor e frio, a geada que vinha de Niflheim derreteu, pingando gotas de veneno das quais, com o poder do calor, emergiram uma vida. Nasceria o gigante chamado Ymir, quem, posteriormente, geraria tanto os deuses æsir quanto os gigantes. Desta forma, parece que Muspell é uma noção que remete a esta localidade flamejante, localizada num perímetro fora do reino dos deuses, e de onde o caos surgirá e emergirá no momento do Ragnarok, quando os mundos serão consumidos pelo fogo (Lindow, 2001). Quanto à Niflheim, ele é, basicamente, o mundo dos mortos. Langer (2015) afirma que estudiosos formularam diferentes hipóteses acerca do significado desta palavra em nórdico antigo: para Rudolf Simek, “mundo escuro”, para Luis Lerate, “mundo das trevas” e, segundo John Lindow, “mundo da neblina”. Fazendo uma distinção entre Niflheim e Nifhel, poderia se dizer que o primeiro é o mais antigo 88

submundo do universo mitológico nórdico, domínio da deusa Hel, enquanto que o segundo seria o nono submundo dos mortos. É importante ressaltar que a Edda em Prosa trata de Niflheim, enquanto que outros materiais poéticos míticos é que tratam de Niflhel. (Lindow, 2001). É possível sabermos que Niflheim trata-se de um submundo muito antigo porque Snorri nos relata que ele existia antes mesmo do mundo ter sido criado – e, inclusive, teria participação decisiva na criação do mesmo - :

Muitas eras antes da terra ter sido formada Niflheim foi feita, no meio dela fica o poço chamado Hvergelmir, de onde saem os rios chamados Svöl, Gunnthrá, Fjörm, Fimbulthul, Slídr e Hríd, Sylgr e Ylgr, Víd, Leiptr. (Snorri, 2006, p. 16).

Posteriormente, Snorri faz um contraste entre todas as coisas frias e malignas de Niflheim com o calor de Muspell, mas não segue adiante oferecendo mais detalhes da comparação. Dessa forma, o enfoque dado pelo autor a Niflheim envolve mais seu papel cosmogônico e cosmológico, bem como sua importância enquanto mundo dos mortos (Lindow, 2001). Aliás, enquanto morada dos mortos, Snorri afirma que todos os homens maus são encaminhados para a deusa do submundo Hel, e dali para Nifhel, que está abaixo, no nono mundo (Langer, 2015):

Hel ele [Odin] ele lançou para Niflheim, concedendo-a poder sobre nove mundos, para que abrigasse todos os que eram enviados a ela: os homens que morriam por doença ou velhice. Ela possui uma grande casa lá, suas muralhas são extremamente altas e seus portões são enormes. (...) Ela [Hel] é metade azul escura e metade branca, o que a torna facilmente reconhecível. Ela é muito poderosa e feroz (Snorri, 2006, p. 42).

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Langer (2015) reitera a posição de Rudolf Simek a respeito de Niflhel, dizendo que este conceito possivelmente foi produto de uma intensificação poética para Hel, designando, a princípio, apenas um local de sombras, e não uma região de sofrimento e punição. Neste caso, a descrição feita por Snorri teria sido produto de um conceito cristão sobre a deusa Hel, associando-a à concepção cristã de inferno. Na simbologia de maneira geral, é comum tomar os submundos como locais das ricas jazidas, das metamorfoses, das passagens da morte à vida, da germinação (Chevalier & Gheerbrant, 1992). Na mitologia grega há uma ocorrência simbólica do submundo com características comuns às que Snorri conferiu a Niflheim, submundo da deusa Hel: o deus Hades - cujo próprio nome era usado para designar o lugar por ele dominado -. Hades tornou-se o grande símbolo dos infernos, conferindo, com certo peso, certas propriedades simbólicas a este lugar que são quase as mesmas em toda parte: invisível, eternamente sem saída, perdido nas trevas e no frio, assombrado por demônios e monstros que atormentam os defuntos (Chevalier & Gheerbrant, 1992). Um tema arquetípico interessante é a ida do herói ao Inferno para cumprir uma missão, geralmente a de resgatar outra pessoa e trazê-la de volta ao reino dos vivos, tema que exploraremos depois. Paul Diel interpreta o simbolismo do inferno, conferindo a este símbolo atributos psicológicos:

Cada função da psique é representada por uma figura personificada, e o trabalho intrapsíquico de sublimação ou de perversão encontra-se expresso pela interação desses personagens significativos. O espírito chama-se Zeus; a harmonia dos desejos, Apolo; a inspiração intuitiva, Palas Atena; o recalque, Hades. O élan intuitivo (o desejo essencial) acha-se representado pelo herói; a

situação

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conflitiva da psique humana, pelo combate contra os monstros da perversão. (Diel, 2014, p.40).

Temos, dentro desta concepção, o inferno enquanto estado da psique que, sucumbiu aos monstros, seja por tentar recalcá-los no inconsciente, seja porque aceitou identificar-se com eles numa perversão consciente. Alguns textos bretões da Idade Média, segundo Chevalier e Gheerbrant (1992), fazem também menção ao inferno, chamando-o na ifern yen, que significa “o inferno gelado”, conferindo a este lugar uma descrição que remonta a noção de inferno enquanto gélido e frio, semelhante à Niflhem. Portanto, Snorri pode ter acrescentado, à noção do submundo de Hel, o simbolismo cristão, adicionado as ideias de sofrimento e punição (Langer, 2015). Neste caso, seria um símbolo representativo da perda da presença de Deus, a desventura absoluta, a privação radical, o tormento misterioso e insondável; seria a derrota total, definitiva e irremediável da experiência humana (Chevalier & Gheerbrant, 1992).

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III. III As moradas Asgard e Gimlé

Em nórdico antigo, Asgarðr significa recinto, casa ou terreno dos deuses, segundo diferentes pesquisadores (Langer, 2015). Basicamente, Asgard seria a fortaleza dos deuses, sobretudo conforme apontado pela Edda em Prosa; inclusive, geograficamente Asgard engloba os vários palácios dos deuses – como Valhala, o palácio de Odin- (Langer, 2015). Rudolf Simek, conforme citado por Langer (2015), formulou a hipótese de que Asgard se situava originalmente em algum plano próximo a Midgard, o mundo dos homens, e em oposição a Utgard, o mundo dos gigantes. Segundo ele, Snorri Sturluson teria posteriormente utilizado de um referencial da cosmologia cristã, situando, então, Asgard num plano mais elevado, próximo ao céu. No Gylfaginning, Snorri traz o que talvez seja a mais importante referência envolvendo Asgard, que seria seu processo de construção. Conforme explicitado por Langer (2015), esta parte da narrativa conta sobre quando um gigante veio, disfarçado, oferecer seu serviço como mestre de obras para os deuses, propondo a construção de uma grande fortaleza que os protegesse dos gigantes das montanhas. Contudo, o gigante fez um acordo com os deuses, dizendo que, se ele conseguisse terminar a construção do muro em um prazo de três estações, os deuses deveriam oferecer a deusa Freyja, o sol e a lua como pagamento. Snorri começa seu relato, dizendo que “no começo dos dias dos deuses, quando haviam estabelecido Midgard e construído Valhala; naquele tempo veio um mestre de obras e ofereceu construir para os deuses uma muralha em três estações, ela seria tão boa que provaria resistir contra os gigantes da montanha e os gigantes de gelo (...)” (Sturluson, 2006, págs. 53-54). Então, os deuses se reuniram e decidiram que a proposta feita pelo gigante seria aceita, desde que realmente terminasse a obra dentro do prazo de 92

três estações. É interessante notar que, neste momento, foi Loki o principal responsável por convencer os deuses Æsires a aceitarem o acordo, mesmo tendo o gigante pedido permissão para usar ajuda de seu ajudante, o cavalo Svadilfari:

No fim do primeiro inverno, a construção da muralha estava muito avançada; já estava tão alta e forte que jamais seria tomada. Quando faltavam três dias de verão, o trabalho tinha chegado até o portal da muralha. Então os deuses sentaram em seus tronos de julgamento, e buscaram por meios de evasão, e perguntaram uns aos outros quem é que tinha aconselhado dar Freyja para Jötunheim, ou então destruir o ar e o céu ao dar o sol e a lua para os gigantes. Os deuses concordaram que o conselho havia vindo daquele conhecido por dar conselhos malignos, Loki Laufeyarson, e eles declararam que ele mereceria uma morte dolorosa, se não conseguisse pensar em um modo de fazer com que o mestre de obras perdesse o trato; e eles ameaçaram Loki com violência. Mas quando ficou com medo, então ele fez juramentos de que pensaria em algum modo de fazer com que o mestre de obras perdesse o trato, custasse o que custasse (Sturluson, 2006, p. 55).

É neste momento, então, que Loki assume a forma de uma égua no cio e afasta o cavalo mágico do gigante construtor, fazendo com que perdesse a aposta. Como consequência desta união enquanto Loki estava metamorfoseado, mais tarde nasceria Sleipnir, o cavalo mitológico de Odin, que tinha oito patas. A peripécia termina com Thor que, ao descobrir a verdadeira identidade do gigante, levanta seu martelo mágico em direção ao gigante, “(...) batendo não mais do que uma vez, e seu crânio [do gigante] partiu-se em pequenas migalhas, e foi mandado para Niflhel” (Sturluson, 2006, p.55).

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Langer (2015) vê nesta narrativa o registro de um mito celeste, que seria a ameaça de que Sol, Lua e a deusa Freyja (que, segundo o pesquisador, era possivelmente vista na Era Viking como o planeta Vênus) seriam perdidos para os gigantes, o que consequentemente ameaçaria a ordem dos céus. Tal concepção seria reforçada pelo fato de que o crânio do gigante foi esmagado e depois enviado para Niflheim, um reino situado no eixo oposto ao de Asgard e, portanto em nível inferior (Langer, 2015). Esta ocorrência aponta novamente para a participação dos gigantes na elaboração do cosmos, pois assim como o céu e Midgard foram construídos a partir do crânio do gigante Ymir, foi também um gigante que fora construir Asgard, ameaçando a estabilidade do firmamento celeste (Langer, 2015). Pode-se notar, no símbolo mitológico da morada celestial e divina, um provável símbolo de hierofania, que, segundo definição proposta por Eliade (2013), é o ato de manifestação do sagrado, afastando o homem da existência ordinária e profana, para colocá-lo em contato com o a sacralidade. A ideia de espaço sagrado revela o modo como o homem concebe o espaço à sua volta de uma maneira nada homogênea: há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras, pois enquanto na existência “profana” as pedras são simplesmente pedras e variam de acordo com formato e tamanho, na existência sagrada uma pedra pode se tornar diferente das outras por ser uma espécie de portal, de canal de comunicação com os deuses. A revelação de um espaço sagrado permite ao homem obter uma espécie de orientação na homogeneidade caótica, possibilitando uma "fundação do mundo”, o viver real (Eliade, 2013). Portanto, certos lugares atuam como manifestações do sagrado, demonstrando qualidade excepcionais, únicas, como se fosse revelações de uma outra realidade intocável. Um simbolismo importante envolvendo esta questão é o do limiar. O limiar separa os dois espaços diferentes, o profano do sagrado, indicando ao mesmo tempo a distância entre estes dois modos de ser; para Eliade (2013), o limiar é ao mesmo tempo 94

o limite, a baliza, a fronteira que distinguem e opõem estes dois mundos, e é também, paradoxalmente, o lugar onde esses dois mundos se comunicam, onde pode se efetuar a passagem do mundo profano para o mundo sagrado. No mito em questão é trazida toda a estória acerca da construção da muralha de Asgard, construída com o intuito de manter os gigantes fora daquele espaço sagrado e divino. Toda a aposta feita com o gigante disfarçado de mestre de obras, que visava obter Freyja, o sol e a lua para si (e que conseguiria, não fosse os deuses ameaçarem Loki e ele transformar-se em uma égua no cio) trata-se de uma narrativa acerca da ritualização de um espaço sagrado. Esta ritualização apresenta elementos como a barganha (feita com o gigante), o risco de perda de uma divindade feminina e de duas forças naturais essenciais; o ápice, momento em que parece que a aposta será ganha pelas forças do caos; a resolução, por meio de encantamentos e astúcia (Loki metamorfoseando-se); e, por fim, com a morte da força do caos, representada pelo gigante (morto por Thor). É possível interpretar esta narrativa como sendo, então, um símbolo ritualístico relacionado ao limiar. Temos Asgard, a morada dos deuses, recinto divino e sagrado, mas que está ameaçado de sofrer ataques dos gigantes a qualquer momento, que, nesse caso, podem ser interpretados como as forças do caos e o movimento do espaço profano. Eliade (2013) afirma que o limiar tem seus guardiões: deuses e espíritos que proíbem a entrada dos adversários dos humanos e também das potências demoníacas e pestilenciais. Neste caso, portanto, encontramos presentes os símbolos da morada sagrada, celestial, lar dos deuses – Asgard -; as forças demoníacas do caos, profanas, que ameaçam esta sacralidade - os gigantes - e o processo de construção do limiar entre estas duas forças, estes dois mundos - a muralha -. Por este motivo, podemos levantar a hipótese de que esta se trata de uma narrativa pormenorizada da construção do próprio limiar, portanto, um processo caracterizado como ritualístico. 95

Outra morada mencionada por Snorri é Gimlé. Supostamente, este seria o salão onde as pessoas viveriam após o Ragnarök: ele é mencionado por três vezes na Edda em Prosa, sendo possível que o autor pretendesse passar a mensagem de que os deuses Æsir apresentavam Gimlé ao protagonista Gylfi como sendo uma espécie de paraíso pagão (Lindow, 2001). Segundo a descrição de Snorri: “A sudeste do céu encontra-se o mais claro de todos os salões, mais brilhante que o sol; chama-se Gimlé. Ele resistirá quando tanto a terra quanto o céu tiverem partido; e os homens bons e de atitudes honradas o habitarão” (Sturluson, 2006, p. 31). Várias obras de arte, sonhos e símbolos são carregados de representações que, por sua vez, são inspiradas no que se chamou a nostalgia do Paraíso (Chevalier & Gheerbrant, 1992). Segundo Eliade (2012), as imagens, símbolos e mitos não são criações irresponsáveis da psique e possuem, portanto, a função de responder a uma necessidade do homem de revelar a si mesmo as mais secretas modalidades do ser. Estes símbolos são caminhos que permitem conhecer o “homem simplesmente”, aquele que ainda não se compôs com as condições da história, já que cada ser histórico traz em si uma grande parte da humanidade anterior à História. Esta parte a-histórica do ser humano seria como uma medalha ou uma lembrança de uma existência mais rica, mais completa, menos condicionada. O homem buscaria, então, sempre reencontrar esta sua parte a-histórica, primordial, reintegrando-se a ela por meio das imagens e símbolos. Estes símbolos, por sua vez, teriam a propriedade de elevá-lo a este estado paradisíaco do homem primordial, não importando a existência concreta, histórica e individual deste último, “pois esse ‘homem primordial’ apresentase sobretudo como um arquétipo impossível de realizar-se plenamente em uma existência qualquer” (Eliade, 2012, p. 9). O homem, ao escapar desta sua historicidade por meio do contato com símbolos consegue, dessa forma, reencontrar a linguagem e a sua experiência de paraíso perdido. 96

Este tema arquetípico se manifesta das mais diferentes maneiras nas mitologias e narrativas religiosas. Tais paraísos seriam a reunião dos sonhos, devaneios, das imagens de suas nostalgias, desejos, entusiasmos e outras coisas que projetam o ser humano historicamente condicionado em um mundo espiritual infinitamente mais rico que seu mundo concreto, comumente fechado (Eliade, 2012). Portanto, o homem anseia por este retorno às suas origens, gerando uma angústia que evidencia uma situação humana muito específica: Eliade (2012) nomeou-a de nostalgia do paraíso. Daí resulta o esforço humano em estabelecer espaços sagrados e reunir-se aos símbolos que o lembram de tal paraíso perdido: como um cristão diria, trata-se da condição anterior à queda. Muitas vezes, então, os símbolos e mitos envolvendo os diferentes tipos de Paraíso envolvem esta nostalgia de um lugar para onde voltar, geralmente ressaltando que lá só entrarão aqueles dignos, como Snorri não deixou de retratar a respeito de Gimlé ao afirmar que os homens bons e de atitudes honradas o habitarão. Os paraísos narrados nas mitologias muitas vezes retomam, então, este tema arquetípico da nostalgia do paraíso. Por mais que estes mitos propriamente ditos sejam, sem dúvida, construídos, condicionados e perpetuados histórica e socialmente, nenhum deles deixa de retomar aquele íntimo desejo humano de nos encontrarmos sempre e sem esforços no coração do mundo da realidade e da sacralidade (Eliade, 2012).

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III. IV Bifrost

Esta é a ponte arco-íris que faz a conexão entre o mundo dos deuses – Asgard – e o mundo dos homens – Midgard -. No Gylfaginning, o rei Gylfi pergunta à Hárr qual seria o caminho da terra até os céus, ao que ele, rindo e o ironizando o questionamento feito pelo protagonista, responde que aquela não era uma pergunta muito sábia, visto que todos sabem a respeito da ponte Bifrost, feita pelos deuses. Em seguida, Hárr oferece mais descrições sobre a ponte, dizendo que ela possui três cores, além de ser muito forte e feita com mais astúcia e magia do que qualquer outra obra que possa ser encontrada (Palamin, 2015). Outra característica a ser notada acerca desta ponte, conforme aponta Lindow (2001), é o fato dela ser citada como estando entre as melhores coisas: assim como Yggdrasil é a melhor árvore, Odin o melhor dos deuses æsir, Bifrost é a melhor das pontes. Contudo, Snorri também nos apresenta, neste momento, uma fala de Hárr sobre a destrutibilidade de Bifrost: “Mas por mais que seja resistente, ela [Bifrost] será quebrada, quando os filhos de Múspell chegarem destruindo e pisoteando (...)” (Sturluson, 2006, págs. 24-25). Por mais que seja a melhor das pontes, ainda assim Bifrost está condenada a ceder quando o Ragnarök começar e os filhos de Muspell a atravessarem (Palamin, 2015). Entretanto, ela não é por isso uma obra menos magnífica, visto que nada no mundo é capaz de resistir à força destes supracitados seres. Mais adianta, Hárr cita também que o vermelho do arco-íris é na verdade o fogo, que está ali para proteger a morada dos deuses de todos aqueles que não devem entrar em seu reino, especialmente os gigantes (Palamin, 2015). Se pensarmos no simbolismo da ponte, ela é, por definição, aquilo que nos permite passar de uma margem à outra. Muitas vezes, segundo Chevalier & Gheerbrant 98

(1992), esta passagem possibilitada é justamente a da terra ao céu, do estado humano aos estados supra-humanos, da contingência à imortalidade. As ocorrências deste tema mundo afora são das mais variadas: diversas lendas da Europa Oriental falam de pontes de metal sucessivamente atravessadas a cavalo; o próprio Lancelot, na saga do Graal, teve que atravessar a ponte-sabre; na tradição iraniana, a ponte Chinvat (“o divisor”) é uma passagem difícil, larga para os justos, mas estreita como uma lâmina de barbear para os ímpios. Portanto, relacionado ao simbolismo da passagem há o caráter frequentemente perigoso de se realizar tal ato. Este perigo é o de toda viagem iniciatória. Existe uma ocorrência simbólica deste tema de maneira similar à encontrada no mito da Bifrost, mas desta vez manifesta na arquitetura das pontes em arco do Extremo Oriente: é o caso das pontes que dão acesso aos templos xintoístas, imagens imitativas da ponte celeste, introduzindo o transeunte no mundo dos deuses enquanto faz sua travessia acompanhada de purificações rituais (Chevalier & Gheerbrant, 1992). A ocorrência simbólica da ponte nas mais variadas tradições confirma traços comuns a este símbolo, sobretudo dois traços, que seriam o de local de passagem e também de prova, teste. A ponte também apresenta dimensões morais, religiosas e rituais. Ao aprofundarmo-nos em tal direcionamento da análise deste símbolo, nota-se que ele simboliza uma transição entre dois estados interiores, entre dois desejos em conflito, e só a travessia da ponte pode resolver o impasse, já que fugir nada resolveria (Chevalier & Gheerbrant, 1992). Convém também uma breve análise da simbologia do arco-íris, visto que, no Gylfaginning, Snorri relaciona a ponte Bifrost com o mesmo. Na ocasião, Hárr conta a Gangleri sobre a ponte, dizendo que “você já deve tê-la visto, ela é aquilo que você talvez chame de ‘arco-irís’” (Sturluson, 2006, pág. 24,). O arco-íris, portanto, é o caminho e mediação entre a terra e o céu, nada mais é do que a ponte que, assim como 99

na mitologia nórdica, os deuses e heróis usam para ir do nosso mundo para o mundo deles. Esta função quase universal do símbolo do arco-íris enquanto ponte ocorre em diversas outras mitologias:

Na Escandinávia, é a ponte de Byfrost; no Japão, a ponte flutuante do Céu, a escada de sete cores, através da qual o Buda torna a descer do céu, é um arcoíris. Reencontra-se a mesma idéia desde o Irã até a África, e da América do Norte até a China. No Tibete, o arco-íris não é propriamente a ponte, mas, sim a alma dos soberanos que se eleva para o céu; o que leva, indiretamente, à noção de Pontifex, lugar de passagem (Chevalier & Gheerbrant, 1992, p. 77).

Existe também um elo etimológico e simbólico entre o arco-íris e o céu, cuja designação bretã, kanevedenn, supõe um protótipo celta muito antigo, kambonemos, ou curva celeste. Este simbolismo, portanto, seria a união, em um só tempo, de céu e de ponte. Os pigmeus da África Central, por exemplo, acreditam que Deus lhes mostra seu desejo de estabelecer relações com eles por meio da manifestação do arco-íris (Chevalier & Gheerbrant, 1992). Desta forma, fica explícita a função simbólica da ponte enquanto aquilo que comunica o divino com o mortal, a parte humana com a divinizada. É um símbolo de conexão por excelência, assim como de elevação e ascensão, já que muitas vezes o fim da ponte desembocará em alguma morada dos deuses.

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III. V Yggdrasil

No episódio narrado na Edda em Prosa, uma das perguntas feitas por Gangleri foi perguntando a localização do lugar sagrado dos deuses. Surpreendentemente, Hárr não menciona Asgard em sua resposta, mas diz que “Seria a árvore Yggdrasil; onde os deuses se reúnem todos os dias para fazerem seus julgamentos”, ao que Jafnhárr complementa “Ela é a maior e melhor dentre todas as árvores: seus membros se espalham pelo mundo inteiro e chegam até o céu” (Sturluson, 2006, p. 27). Dessa forma, no mundo descrito por Snorri havia uma grande árvore no centro, este grande freixo chamado Yggdrasil. Três raízes sustentavam seu grande tronco: uma passava pelo reino dos Æsir, outra ia até o reino dos gigantes de gelo e a terceira, por sua vez, ao reino dos mortos. Sob a raiz na terra dos gigantes localizava-se a fonte de Mimir, cujas águas continham sabedoria e entendimento (Davidson, 2004). Poilvez (2015) compactua com esta visão, afirmando que, segundo o Gylfaginning da Edda em Prosa, a árvore embebedava-se em três poços, que seriam o poço do destino (Urðar brunnr) no mundo dos Æsir, o poço de Mímir (Mímis brunnr) no mundo dos gigantes e Hvergelmir (que talvez signifique “caldeirão burburejante”), em Niflheim, o mundo dos mortos. Portanto, conforme esta descrição, Yggdrasil aparece como uma árvore-mundo, possuindo um áxis vertical que vai do céu até o fundo da terra, e o eixo horizontal, cujas raízes unem o mundo dos Æsir ao mundo dos gigantes e ao dos mortos. Segundo Lindow (2001), desta forma, trabalha-se basicamente com o entendimento de que Yggdrasil é a árvore do mundo, localizada no centro do universo e responsável por uní-lo. A respeito desta simbologia do centro do mundo, Eliade (2013) afirma que ela surge por meio de uma hierofania – ato de sacralização do mundo - onde, num local específico, ocorre a rotura dos níveis, operando-se ao mesmo tempo com

uma 101

“abertura” em cima, para com o mundo divino, e embaixo, com as regiões inferiores e o mundo dos mortos. Desta forma, Terra, Céu e regiões inferiores – as três regiões cósmicas - tornam-se comunicantes. Esta comunicação é muitas vezes expressa por meio da imagem arquetípica da coluna universal, a Axis mundi, que liga e sustenta o Céu e a Terra, tendo sua base cravada no mundo de baixo – geralmente os “Infernos” -. Essa coluna cósmica só pode situar-se no próprio centro do universo, já que a totalidade do mundo habitável espalha-se à volta dela. Portanto, é importante considerar uma sequência de concepções religiosas e imagens cosmológicas que, unidas, consolidam e articulam todo um “sistema de mundo”. Estes sistemas, quando encarnados em uma sociedade tradicional possuem, geralmente, algumas características em comum: um lugar sagrado que vem a constituir uma rotura na homogeneidade do espaço, antes profano; tal rotura é simbolizada por uma abertura que torna possível a passagem de uma região cósmica a outra – do Céu à Terra, da Terra para o mundo inferior, etc. -; a comunicação com o Céu é expressa indiferentemente por certo número de imagens referentes, de alguma forma, à Axis mundi; por último, em torno desse eixo cósmico estende-se o “Mundo”, o “nosso mundo” da sociedade em questão, já que o eixo encontra-se no meio, no “umbigo da Terra”, eis o centro do mundo (Eliade, 2013). Apesar de ser um tema simbólico com inesgotáveis e ricas ocorrências, difundido amplamente ao longo do mundo, todos eles giram em torno da mesma idéia da árvore enquanto cosmo vivo, em perpétua regeneração. Símbolo da vida, ela evoca todo simbolismo da verticalidade, mas, por outro lado, serve também para simbolizar o aspecto cíclico da evolução cósmica, que seriam morte e regeneração (Chevalier; Gheerbrant, 1982). Conforme definição de Chevaler & Gheerbrant (1982), já que suas raízes mergulham no solo e seus galhos se elevam para o céu, a árvore é universalmente 102

considerada como símbolo das relações estabelecidas entre terra e céu, adquirindo o sentido de centro, tanto é que Árvore do Mundo muitas vezes é um sinônimo de Eixo do Mundo. Figura axial, ela é naturalmente o caminho ascensional ao longo do qual transitam aqueles que passam do visível ao invisível. É sempre essa mesma árvore que evocam a escada de Jacó, o poste xamânico da iurta siberiana, o poste central do santuário vodu ou o poste da cabana dos índios sioux em torno do qual se realiza a dança do sol. Portanto, todas estas culturas e outras mais que manifestam essa crença no centro do mundo exprimem um mesmo sentimento, profundamente religioso: o de que “nosso mundo” é privilegiado se comparado aos demais, uma espécie de terra santa, já que é o lugar mais próximo do Céu. Daqui, o Céu poderá ser atingido e o nosso mundo é, assim, um “lugar mais alto” (Eliade, 2013). Esse mesmo simbolismo do Centro explica outras imagens cosmológicas e crenças religiosas, dentre as quais configuram, segundo Eliade (2013), o fato de que as cidades santas e santuários estão sempre no Centro do Mundo, os templos são réplicas da Montanha ou Árvore Cósmica e, consequentemente, constituem também uma ligação por excelência entre a terra e o Céu, e que os alicerces dos templos mergulham profundamente nas regiões inferiores. Tal costume era encontrado também entre os Escandinavos, justamente na forma do culto arbóreo. Segundo Poilvez (2015), Adam de Bremen, em sua Gesta Hammaburgensis Ecclesiae Pontificum, descreve uma árvore ao redor do templo de Uppsala que supostamente era uma representação do freixo-mundo, onde eram feitos sacrifícios por meio de enforcamento: “Os corpos eles penduram no arvoredo sagrado que circunda o templo. Esse arvoredo é tão sagrado para os pagãos que eles acreditam que toda e qualquer árvore contida nele é divina (...)” (Bremen, 2005, pág. 208).

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Portanto, segundo Chevalier & Gheerbrant (1992), esta sacralidade atribuída à imagem da árvore acontece graças à sua importância enquanto axis mundi, funcionando simbolicamente como pilar cósmico. Estas representações são encontradas não só entre os nórdicos, conforme supracitado, mas também no Japão, por exemplo, em cujas narrativas mitológicas as entidades Izanagi e Izanami giram em sentido inverso em torno de um pilar antes de se unirem, dando sustentação ao mundo. Algumas vezes os celtas também representavam o eixo do mundo como uma coluna. No caso, esta coluna sustentava o céu e estava relacionada com a árvore da vida e também com o conceito de santuário (nemeton), conforme um texto gaélico medieval do século XII. É em torno desse eixo, então, que se efetuam as revoluções do mundo, pois é ele o responsável por ligar e conectar, física, simbólica e espiritualmente os domínios ou estados hierarquizados – divinos - em seu respectivo centro, em contato com o homem. Pode ser o caso de unir, conforme vimos, a Terra ao Céu, mais precisamente o centro do mundo ao centro do céu (Chevalier & Gheerbrant, 1992).

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III. VI Odin

Este talvez seja o deus mais polissêmico presente no panteão nórdico. Davidson (2004) aponta como uma das principais funções de Odin a sua representatividade como deus da batalha. Segundo a autora, era a ele quem as pessoas recorriam para pedir por ajuda em casos de perigo e iminência de guerra e, portanto, no fim do período pagão da Escandinávia certamente não havia outra figura que representasse as hostes e a concessão da vitória. Tal ideia seria reforçada pelo fato de que, ao longo dos relatos trazidos por Snorri e muitos outros poemas, o deus é mostrado dando as boas vindas, em sua morada, aos homens corajosos que haviam sido derrotados em combate. Dessa forma, aqueles que se juntavam a Odin em Valhala eram basicamente guerreiros nobres, reis, líderes e heróis de destaque que seguiam o deus em vida e que juraram servir-lhe lealmente em troca de sua ajuda em batalhas. A morada do deus estava longe de ser um paraíso aberto a todos. Odin, então, ofereceria armas e favoreceria seus seguidores escolhidos que, uma vez tendo recebido a ajuda do deus, se comprometiam com ele e lhe prometiam seus leais serviços até a morte e além dela (Davidson, 2004). Segundo Lindow (2001), numa perspectiva mais abrangente, Odin seria tido como deus da poesia, da sabedoria, dos exércitos e dos mortos; além disso, sua imagem é recebida, na mitologia nórdica, como o líder do panteão de deuses. Recaptulando a ascendência do deus, seu pai era Bur, filho de Búri – o homem primordial que surgiu quando a vaca Auðhumla lambeu os blocos de gelo salgados -. A mãe de Odin era Bestla, uma giganta. Esta característica genealógica percebida em Odin reproduz um padrão básico que ocorre na mitologia nórdica, que seria o fato dos deuses gerarem e filhos e/ou tomarem como esposas as mulheres da raça dos gigantes. Juntamente com seus irmãos Vili e Vé, Odin criou o cosmos à partir do corpo do proto-gigante Ymir, 105

quem eles haviam matado. Outro padrão básico se repete aqui: o fato de que os deuses matam os gigantes, mas nunca o oposto. Em termos de família e geração, há muito a ser dito sobre Odin. Isso é visto em seu próprio nome alternativo, difundido amplamente, sobretudo na Edda em Prosa: Alfödr, que significaria All-father, Pai de tudo. Apesar de não ser o pai de todos de maneira propriamente dita, muitas figuras importantes são seus filhos, tais como Thor, ou então seus filhos mais novos, Váli e Vídar, que sobreviverão ao Ragnarök e serão os deuses da vingança. Ele também é filho de Baldr, cuja morte causa grande comoção entre os deuses. Desta forma, o nome Alfödr parece sugerir e ressaltar um duplo aspecto envolvendo o deus, que seria sua importância enquanto gerador de várias deidades, assim como o fato de ocupar um lugar como líder do panteão (Lindow, 2001). Na Edda em Prosa é ilustrada tal concepção de Odin, quando Gangleri pergunta quem era o mais poderoso e mais antigo dentre todos os deuses, ao que Hárr responde que, na língua deles, ele é conhecido como Pai de Tudo mas, em Asgard, ele tem outros 12 nomes. Em seguida, o protagonista pergunta onde vive esse deus, quais são seus poderes e feitos gloriosos, obtendo a resposta novamente de Hárr:

Ele vive em todas as eras e governa seu reino por inteiro, e dirige todas as coisas, grandes e pequenas. Então Jafnhárr disse: ‘‘Ele criou céu e a terra e tudo que existe entre eles.” Então Thridi falou: ‘O maior de seus feitos é esse: ele criou o homem e lhe deu o espírito, que viverá e nunca perecerá, ainda que a carne apodreça ou queime até as cinzas; e todos os homens devem continuar vivendo, desde que sejam bons em suas ações, e então estarão com ele no lugar chamado Gimlé (Sturluson, 2006, p.16).

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Portanto, ainda na concepção de gerador e poder criador, encontramos Odin não somente enquanto pai de vários deuses e criador do mundo, mas também da própria humanidade. Este deus está repleto de manifestações da paternidade, seja enquanto pai do cosmos – ao assassinar Ymir – quanto criador do Homem, manifestando-se na mitologia nórdica como, dentre outras coisas, símbolo do pai. Este símbolo carrega as forças da geração, da posse e da dominação; nesse sentido, é uma representação da autoridade, pois é visto também como chefe, patrão, professor, protetor e deus em última instância. Tal papel paternal é geralmente concebido como desencorajador dos esforços de emancipação, exercendo uma influência que priva, limita, esteriliza e mantém os outros dependentes de si (Chevalier & Gheerbrant, 1992). Esta relação hierárquica típica de um pai e seus filhos fica clara, especialmente conforme Thridi conta desta relação para Gangleri: “Odin é o mais elevado e mais antigo dos Æsir: ele comanda todas as coisas, e mesmo sendo os outros deuses tão poderosos, eles o servem como crianças que obedecem ao pai” (Sturluson, 2006, p.33). Ao notarmos que os próprios seres divinos obedecem ao símbolo deste pai, encontramos aí, provavelmente, um tema muito comum, que é o da autoridade encarnada na figura do pai. Segundo Chevalier & Gheerbrant (1992), trata-se de um símbolo que representa a consciência diante dos impulsos instintivos, dos desejos espontâneos e do inconsciente: dessa forma, ele encarna próprio mundo da autoridade e da tradição diante de quaisquer novas forças de mudança. Langer (2015) recapitula as diferentes perspectivas de vários pesquisadores no que concerne Odin: para Régis Boyer, ele estaria relacionado ao êxtase, às circunstâncias guerreiras, sexuais, poéticas e mágicas; já para Rudolf Simek, Odin é o chefe dos deuses na mitologia éddica e a mais versátil de todas as deidades, como pai supremo, deus da poesia, da morte, da guerra, da vitória, das runas e do êxtase. Segundo Raymond Page, Odin assumiu características de outros deuses, o que levou a sua 107

enorme complexidade que, além das já citadas, inclui também a concepção de um deus sinistro, ligado às atividades comerciais, e tendo um comportamento infiel, instável e muito caprichoso. Até na questão dos nomes a Edda em Prosa retrata essa polissemia: Odin é chamado de Pai-de-tudo porque ele é o pai de todos os deuses. Ele também é chamado de Pai dos Mortos, porque todos aqueles que morrem em batalha são filhos por ele adotados; eles ele encaminha para Valhall e Vingólf; e uma vez lá eles se tornam seus Campeões. Ele também é chamado de Deus dos Enforcados, Deus dos Deuses, Deus das Cargas; e também já foi chamado de várias outras coisas (...) (Sturluson, 2006, p.33). Odin é cego de um olho, que foi sacrificado para que ele pudesse obter o conhecimento da fonte de Mimir. Com isso, o deus obteve também o dom da clarividência, que, junto à sabedoria, foi concedida a ele por meio de um ato de mutilação voluntário. Dessa forma, a imagem de Odin conecta-se intimamente à do sacrifício elevado e consciente, expressado neste conceito mítico do sacrifício em nome do conhecimento (Dumézil, 1973). Ao contrário de outras ocorrências, na estória de Odin a mutilação não ocorre como uma desqualificação, mas como uma elevação. Característica importante é também o fato de que toda a ordem humana expressa-se em pares: o homem fica de pé sobre as duas pernas, trabalha com os dois braços e vê a realidade visível com dois olhos. Em oposição à esta ordem humana, diurna, a ordem oculta, noturna e transcendental é, por princípio, una. As figuras do deformado, do amputado e do estropiado encontram-se todas colocadas à margem dessa sociedade humana, normativa e diurna, já que a paridade entre eles é atingida. Por isso, deste momento em diante, aquele que torna-se mutilado deve participar de uma outra forma, que seria a de uma nova ordem: a da noite, infernal ou celeste, satânica ou divina (Chevalier & Gheerbrant, 1992).

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Encontramos a mutilação, então, como símbolo da iniciação que precede uma vivência em outra ordem, justamente como o caso do deus Odin, que sacrifica um de seus olhos para beber da fonte do conhecimento, que seria o Poço de Mimir. Chevalier e Gheerbrant (1992) ressaltam que, mais especificamente no caso do cego, encontramos a encarnação simbólica daquele que ignora as aparências enganadoras do mundo e que, graças a isso, tem o privilégio de conhecer uma realidade secreta, profunda, proibida ao comum dos mortais. Ele é tido frequentemente como o poeta, o divino, o taumaturgo, o vidente. Neste aspecto, a cegueira, por vezes uma sanção divina, não deixa de relacionar-se também com as provas iniciáticas, pois precisaria ser um dom conquistado – muitas vezes o da clarividência, já que o cego torna-se fechado ao mundo exterior e ordinário -. Para Dumézil (1973), outra propriedade atribuída com força à figura de Odin é a de um grande mago. Visando obter esse conhecimento da magia, o deus também passou por uma provação que quase o levou a morte: pendurou-se em uma árvore durante nove noites, ferido por uma lança. Foi após esta experiência que Odin criou a magia das runas, o mais poderoso dos segredos. Por meio delas é possível tornar-se mais sábio do que qualquer outro ser do mundo. Importante ressaltar que, fora seu envolvimento com as runas, Odin também domina todas as formas de magia. Percebe-se, assim, que os próprios passos do deus são mais de uma vez permeados pela temática do sacrifício, seja na perda de um olho, seja ao ficar por nove dias pendurado em uma árvore, ferido por uma lança. Segundo Chevalier & Gheerbrant (1992), o símbolo do sacrifício é a própria ação de tornar algo ou alguém sagrado, separando-o de todo o resto do mundo que permanece profano. Desta forma, encara-se o sacrifício como símbolo da renúncia aos vínculos terrestres por amor ao espírito ou à divindade: é o próprio ato da elevação. Graças aos sacrifícios feitos por Odin é que o deus obtém o conhecimento e as habilidades necessárias para tornar-se, assim, o deus da 109

sabedoria, da poesia, e, entre outras coisas, a suprema deidade do panteão nórdico (Lindow, 2001). Este poderoso envolvimento do deus com a magia e sua sabedoria misteriosa, especialmente após seus sacrifícios, estão também relacionadas à inspiração poética. Afinal, foi graças à sua capacidade mágica de metamorfose que Odin conseguiu obter para si o hidromel da sabedoria e da poesia, que veio a ser possuído exclusivamente por ele (Dumézil, 1973). Esta bebida, segundo Chevalier & Gheerbrant (1992), representa a imortalidade e geralmente está associada às coisas encontradas somente em outro mundo, geralmente divino: foi preciso que Odin se disfarçasse para ter acesso a esta bebida, roubando-a para si em seguida. Enfim, o caráter e a personalidade desse deus são complexos e muitas vezes este não se trata de uma divindade muito confiável. Conforme Dumézil (1973) afirma, em diversos relatos o deus caminha peregrinando, disfarçado e com um capuz sobre sua cabeça: por vezes espiona, em outras, lidera com sua ajuda. Acontece até mesmo de Odin trair seus seguidores e protegidos, favorecendo os inimigos destes últimos: parece obter certo prazer em semear as sementes da discórdia e causar desavenças. Uma parte dos talentos de Odin como enumerado por Snorri aplica-se especialmente à guerra: paralização das tropas inimigas, a fúria dos guerreiros favorecidos é aumentada em dez vezes. As sagas demonstram o quão frequentemente, por outro lado, como árbitro dos combates, Odin arrebata, com um único gesto, a vitória daqueles que acreditavam tê-la, condenando à morte o guerreiro cujos braços ele toca com seus próprios (Dumézil, 1973, p. 29).

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Imagem 1: Odin, por Rudolf Friedrich Reusch, 1865. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Odin_(Manual_of_Mythology).jpg

Os mitos representando Odin como um deus da morte e dos mortos estão ligados diretamente ao seu poder de dominar o campo de batalha, concedendo a vitória a quem deseja. Existem numerosos contos narrando a maneira como Odin concedia vantagens para um dos lados no momento da batalha, para, próximo ao término do embate, retirar impiedosamente toda a sorte que havia concedido, fazendo com que os seus supostos favoritos perdessem. Este fato marcante torna o deus uma figura constantemente acusada de instável, caprichosa e até mesmo traidora. Pode ser que estas viradas repentinas da intervenção de Odin no momento das batalhas estejam relacionadas a um desejo seu de que os campeões possam morrer para virem se juntar a ele em Valhala (Davidson, 1993). Em suma, pode-se dizer que Odin surge, nas fontes mitológicas, como figura relacionada a três grandes aspectos, conforme afirma Davidson (1993): governante dos mortos; deus da batalha e da guerra; deus da magia, da sabedoria e da inspiração. Chevalier e Gheerbrant (1992) definem Odin como um “Deus insaciável que sempre 111

quer mais combates, mais força, mais prazeres, mais mulheres; quer impor a todos e a tudo a lei de sua vontade; à procura do poder absoluto; o arquétipo de um Fausto” (p.965). Também ressaltam a imagem do deus enquanto divindade dos mortos, símbolo da violência – embora esta interpretação seja de certa forma genérica -. O arquétipo do Fausto, segundo Jung (2011), representa o homem nascido na Terra que, desde os primórdios, apresenta seu lado sadio animal em luta com sua alma e seus demônios. Como esta alma não se trata de algo univocamente escuro, ela precisa encontrar sua luz da individuação: neste percurso surgirão como auxiliadores os símbolos da anima, exercendo a função de anjos de luz, que conduzirão o homem até o seu significado mais alto, onde realiza-se o arquétipo do Fausto. Trata-se de um movimento em que a psique necessita da atuação de psicopombos2, trazidos pelo arquétipo feminino da anima. Na mitologia nórdica, Odin possui traços relacionados a tais aspectos. Segundo Langer (2015), alguns pesquisadores percebem traços xamânicos nos mitos de Odin, como, por exemplo, suas viagens ao além; suas metamorfoses em animais; as experiências extáticas e de quase morte; a visita ao mundo dos mortos. Odin estaria relacionado, portanto, ao seidr (prática mágica fortemente ligada ao feminino, ensinada a Odin pela deusa Freyja), estando diretamente relacionado às práticas femininas xamânicas. Talvez a figura do deus não seja completamente xamânica per se, mas apresenta a estrutura do xamanismo entre suas habilidades mágicas. Portanto, Odin manifesta-se paradoxalmente como deus guerreiro e do mundo masculino, enquanto que ao mesmo tempo é um praticante de seidr, prática mágica e feminina, o que aponta para referências homossexuais ligadas ao deus, seja na literatura

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Trata-se de uma figura que guia a alma humana em ocasiões de iniciação e/ou transição. No mundo humano, atribui-se geralmente esta função sociológica ao sacerdote, xamã ou feiticeiro. Jung usava a palavra para expressar a função da anima e do animus de conectar o sujeito a um sentimento de propósito último, ao seu destino e vocação definitivos. Psiquicamente, é um intermediário entre ego e inconsciente.

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da época ou no culto sagrado às rochas fálicas. Dessa forma, no que diz respeito à manifestação do arquétipo do Fausto, temos Odin relacionado a ambos os temas ligados a este arquétipo: ao masculino, à guerra e à elevação da consciência, mas também enquanto espírito psicopombo, relacionado ao feminino que é imprescindível para auxiliar o homem na perda da animalidade para realização da individuação (Jung, 2011).

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III. VII Hugin e Munin

São os dois corvos de Odin, cuja razão de existir é explicada por Snorri Sturluson:

Os corvos sentam-se em seus ombros [de Odin] e falam ao seu ouvido sobre todas as coisas que viram ou escutaram; eles são chamados de Huginn e Muninn. Ele os envia ao nascer do dia para que voem o mundo inteiro, e eles retornam na hora da refeição; neste momento ele fica sabendo de todos os acontecimentos. Por isso os homens o chamam de Deus dos Corvos (Sturluson, 2006, p.51).

Seus nomes podem ser traduzidos, respectivamente, como Pensamento e Memória. Segundo Lindow (2001), estes nomes atribuídos aos corvos estão relacionados ao duplo perigo da habilidade mágica e xamânica de remeter o pensamento e a memória de uma pessoa a um estado de transe e êxtase, habilidades relacionadas fortemente a Odin e que, aliás, explicam a afinidade do deus para com essas duas figuras. Citando Régis Boyer, Langer (2015) afirma que os dois corvos pertencem a narrativas míticas muito antigas, possuindo funções psicológicas e simbólicas. Em consonância com Lindow (2001), explicita que os corvos estariam relacionados a funções xamânicas de visita a outros mundos e a obtenção de conhecimento, geralmente relacionado a augúrios proféticos e sortilégios. Para Rudolf Simek (2007), citado por Langer (2015), a imagem dos corvos acompanhando Odin estaria relacionada aos estandartes de batalha das tropas nórdicas e anglo-saxônicas durante a Alta Idade Média, onde os corvos eram retratados. Também acredita-se que, além de acompanharem Odin nos campos de batalha, também o auxiliavam na sua função 114

animal e, numa perspectiva mais além, talvez se acreditasse que as valquírias adotassem a forma de corvos para buscarem os caídos em batalha. Esta imagem negativa acerca do corvo como um representante de maus augúrios – semelhante ao gato negro – foi uma concepção construída há pouco tempo atrás, com início na Europa. Um estudo comparativo dos costumes e crenças de numerosos povos aponta que, antes disso, o simbolismo do corvo não possuía tal conotação negativa. No Japão, por exemplo, este animal possui um tributo semelhante à mitologia nórdica, que seria o de mensageiro divino (Chevalier & Gheerbrant, 1992). Vale lembrar que, conforme Chevalier e Gheerbrant (1992) apontam, no Gênesis, é o corvo que vai verificar se a terra começa a reaparecer até a superfície das águas após o dilúvio, mostrando-se um símbolo da perspicácia. Já na Grécia, o corvo era um símbolo solar consagrado a Apolo: segundo Estrabão, foram os corvos que determinaram o lugar do ônfalo de Delfos. Este ônfalo era uma espécie de símbolo do centro cósmico onde a comunicação entre o mundo dos homens, o mundo dos deuses e o mundo dos mortos era possível. O corvo aparece novamente, portanto, enquanto mensageiro dos deuses, um símbolo do canal de comunicação entre diferentes mundos e modos de existência e, por fim, preenchedores de funções proféticas.

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III. VIII Thor

A característica mais marcante de Thor é o fato de que ele trata-se de um deus que se especializou em matar os gigantes. Praticamente quase todos os mitos envolvendo o deus estão relacionados à temática de matança de algum ser da raça dos gigantes. Dentre eles, o pior inimigo de Thor é a Serpente de Midgard, Jorgumandr, a mais poderosa dos gigantes. No fim do Gylfaginning, Snorri narra o último dos encontros entre os dois, durante o Ragnarök. Neste último embate eles se matam quase que simultaneamente, mas, com a Serpente já morta, Thor dá nove passos antes de cair morto – vítima do veneno -, fato que sugere uma pequena vitória ao deus, ainda que termine morto (Lindow, 2001). Thor viaja frequentemente em companhia de seu assistente, Thjálfi, e em algumas outras ocasiões com Loki ou Týr. Para Lindow (2001), é interessante notar que este primeiro companheiro de Thor é um homem, um símbolo indicador de que Thor possuía um relacionamento bom e próximo dos humanos – o que inclusive possui evidências materiais, vide os amuletos com o martelo de Thor -. Pode-se dizer com segurança que, nos mitos nórdicos trazidos por Snorri, Thor é sem dúvidas um dos deuses que mais se destaca. Afinal, trata-se de ninguém menos do que o campeão dos Æsir e o próprio defensor de Asgard, uma figura descrita como grande, de barba vermelha, munida de um martelo, luvas de ferro e um cinto de força. Estas características tornam Thor o herói mais característico do tempestuoso mundo dos vikings: direto, indomável, possuidor de muito vigor e energia, pondo sua confiança em sua própria força e em suas armas simples (Davidson, 2004). Na Edda em Prosa, Snorri nos introduz a este herói divino da seguinte forma:

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Thor é o principal deles [dos deuses], ele é chamado de Thor dos Æsir, ou ÖkuThor; ele é o mais forte entre todos os deuses e homens (...). Ele também possui três coisas de grande valor: uma é o seu martelo Mjöllnir, que os gigantes de gelo e os gigantes da montanha conhecem, quando é erguido para o alto, e não é surpresa que ele já tenha esmagado muitos crânios de seres dessa raça. Ele possui uma segunda coisa valiosa, a melhor delas: o cinto de poder; e quando veste o cinto à sua volta, então sua força divina é aumentada em mais metade. Ainda uma terceira coisa ele possui: suas luvas de ferro; ele não pode ficar sem ela quando precisa levantar seu martelo (Sturluson, 2006, págs. 35-36).

Conforme Davidson (2004) afirma, encontramos na figura de Thor certa simplicidade. É um deus que obtém prazer ao comer e beber em demasia, características que combinam com sua grande vitalidade e força física. A maneira como progride através dos reinos dos deuses e gigantes era marcada pela contínua derrota de seus adversários e superação dos obstáculos. O método como matava os gigantes era também simples e direto, pois não recorria a nenhum capricho tortuoso como Lóki ou Odin, mas simplesmente golpeava-os com seu martelo, partindo seu crânio, ou lançava-os no ar para esmagar suas cabeças. Nas estórias envolvendo Thor, deparamo-nos muitas vezes com este deus em ação derrubando árvores, destruindo homens com seus arremessos mortais. O próprio reino de Thor difere do de Odin: seu culto na Escandinávia pagã não era aristrocrático. Aliás, um insulto dirigido a Thor em um dos poemas Éddicos alegava que, enquanto Odin recebia em Valhala os campeões e reis caídos em batalha, Thor recebia os escravos e servos. Ele era, portanto, uma deidade cujo poder ia longe: deus supremo do céu tempestuoso e da vida em comunidade em todos os seus aspectos (Davidson, 2004).

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Dessa forma, encontramos a imagem de Thor enquanto deus do trovão, o mais forte dos deuses e a deidade matadora de gigantes. Além disso, pode-se afirmar que ele é o mais importante deus para o paganismo escandinavo e, com certeza, a figura da mitologia escandinava mais popular até nossos dias. Thor é filho de Odin (a fúria) com Jörd (terra), casou-se com Sif e veio a ser pai de Módi (Raiva), Magni (Forte) e Thrúd (Poderosa) (Langer, 2015). Citando Davidson, Langer (2015) diz que, para esta autora, o casamento de Thor com Sif representa a união entre um deus do céu com a deusa terra, representando o caráter de fertilidade e do ciclo das estações que culminam com a colheita, o que foi somado ao lado mais antigo do deus, que seria o da tempestade. Além da maioria dos mitos de Thor estar relacionada à sua luta com a raça dos gigantes, é de impressionar também a quantidade de gigantas mortas pelo deus: “as forças do caos possuíam um forte lado feminino” (Lindow, 2001, p.290). Portanto, ao contrário dos mitos envolvendo Odin, os mitos de Thor tendem a enfatizar seu poder sobre o mundo natural, assim como suas muitas disputas contra adversários supernaturais, os gigantes. Ele é associado às tempestades e ao vento, mas acima de tudo aos raios e trovões (Davidson, 1993). Segundo Davidson (1993), em vários mitos é notada uma ausência de Thor em Asgard -inclusive em momentos definitivos e delicados, como quando um gigante se disfarçou de mestre de obras, ofereceu seus serviços e pediu Freyja como pagamento -, pois o deus estava ocupado matando gigantes, viajando constantemente para Jotunheim, reino destas criaturas. Um conto interessante dessa espécie, encontrado na Edda em Prosa, é a viagem de Thor até Utgard-Loki. Lá, enfrenta os desafios propostos pelo gigante, falhando em todos eles. Somente depois é que Thor descobre que havia sido enganado por meio de ilusões e magias, o que explicava sua derrota. Segundo Davidson (1993) este também é um mito de Thor que ilustra sua inabilidade para com a magia e

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assuntos elevados, pois Thor aparece, neste caso, ludibriado por um embate que não é meramente físico, mas mágico, e perde. Em suma, conforme Langer (2015) cita Lindow, encontramos os deuses Thor e Odin não como opostos, mas como forças contendo atuações simbólicas complementares. Thor mantém relações confortáveis com a comunidade humana, enquanto que Odin não; Odin, por sua vez, comanda mundos, Thor não; por fim, Odin criou e ordenou o mundo e o tempo, mas é graças a Thor que a luta contra o caos é propagada, mantendo a ordem uma vez estabelecida. Assim, pode-se detectar, em Thor, a figura típica do herói divino. Para Chevalier & Gheerbrant (1992), o símbolo do herói representa a união das forças celestes e terrestres, geralmente por meio da união de um deus ou deusa com um ser humano, da qual o herói é fruto. No caso de Thor, ele não se trata de um semi-deus, mas de um deus ligado fortemente aos humanos, seja pela personificação percebida em seu companheiro de várias jornadas, Thjálfi – um humano - , seja nas evidências de que havia cultos dos camponeses se dirigindo a Thor como deus da fertilidade e das boas colheitas (Langer, 2015; Dumézil, 1973). Segundo Boechat (1996), o arquétipo do herói representa a própria energia psíquica que transita entre o arquétipo do si-mesmo e o ego. Entre as personificações do masculino é a mais geral, oscilando desde o arquétipo do puer aeternus até o pai: apenas a figura do velho sábio, dotada de transcendência e de seu aspecto cósmico, escapa ao caráter heroico. Dessa forma, encontramos o arquétipo do herói associado, muitas vezes, aos ritos de passagem, que são centrais na estruturação da consciência. Se nos ativermos ao indivíduo, portanto, encontraremos esses ritos de passagem enquanto fenômenos transicionais, que são passagens do ego de um nível de consciência a outro, mais diferenciado. Trata-se de um fenômeno energético da psique. O herói, atuando no eixo ego-si-mesmo, proporciona à consciência a energia necessária para uma 119

adaptação ao novo estado de ser. É devido a isso que os modelos míticos mostram sempre o mitologema do herói que mata o monstro. Tal mitologema seria o que configura a estruturação da consciência a partir do inconsciente, do monstro. A morte deste monstro simboliza o domínio ou repressão de impulsos instintivos primitivos (Boechat, 1996). Este símbolo do herói, encarnado na mitologia nórdica no deus Thor, manifesta interessantes relatos sobre essa luta contra os instintos primitivos e as forças do caos, que seriam representados pelos gigantes mortos pelo herói. Conforme narrado pelo próprio Snorri Sturluson (2006), os gigantes de gelo e das montanhas sabiam que o martelo do deus já havia esmagado o crânio de vários outros seres desta raça. Pode-se alegar, então, que enquanto exista uma tarefa externa que constele o indivíduo, ou enquanto houver rito de passagem ou transição, haverá a figura do herói enquanto arquétipo. Segundo Boechat (1996), este arquétipo do herói permeia todas as manifestações do masculino em sua grande tarefa arquetípica, que seria a de estruturar a consciência. Em termos de análise, o herói simboliza o elã evolutivo, ou seja, o desejo essencial, a situação conflitante da psique humana agitada pelo combate contra os monstros da perversão (Diel, 2014). Por isso atribui-se, ao arquétipo do herói, a tarefa de (re)estruturação da consciência. Segundo Campbell (2007), o herói simbólico é o homem ou a mulher que conseguiu vencer suas limitações pessoais e locais – ou seja, as suas limitações subjetivas e individuais, mas também as sociais e culturais, enfim - e alcançou novas formas válidas e humanas de existir no universo. Mais especificamente no caso das mitologias, essa personificação da estruturação e da transição acontecem de maneiras mais peculiares. Diferente das figuras heroicas encontradas nos contos de fada, por exemplo, nos mitos os heróis obtêm uma vitória e um triunfo que são macrocósmicos e universais. Portanto, encontramos nas figuras mitológicas heróis responsáveis pelo 120

equilíbrio de todas as forças do universo, mantendo as forças do caos distantes, possibilitando que os valores da virtude perdurem.

Imagem 2: Tors strid med jättarna, por Marten Eskil Winge, 1872. Fonte: http://images.ttcdn.co/media/i/product/121909c35514fd2e41473b880ddc32eaa5ace3.jpeg?size=2000

Para Meletínski (2015), são os deuses e diferentes espíritos que basicamente modelam o mundo exterior, enquanto à sociedade humana correspondem as personagens a partir das quais gradativamente é formado o arquétipo do herói. O herói figura em primeiro plano e geralmente possui um papel especial no enredo das narrativas míticas – papel central que muitas vezes determina o desempenho das outras personagens – e o aprofundamento dos traços específicos do herói

dão-se 121

paulatinamente, de modo que a personalização desta figura arquetípica pode ocorrer relativamente tarde e até aquele momento o herói permanece na órbita do subjetivismo coletivo. O herói para tornar-se herói deve se personalizar, conceito que entende-se por sua emancipação que o torna distinguível do coletivo. Dessa forma, ao expressar-se em alguma mitologia, o arquétipo do herói cultural encarna os princípios da sociedade humana e é comum que ele venha a ser o elemento mitológico mais representativo da tribo à que pertence, identificando-se à mesma. Essas personagens míticas dos heróis culturais representam a sociedade humana e étnica, perante os deuses e espíritos, atuando como intermediários e mediadores entre mundos míticos diferentes, uma espécie de ponte entre o Homem e o divino, por mais que o próprio herói, como no caso de Thor, seja um deus (Meletínski, 2015). Este último fato acerca do herói torna-se importante quando lembramos que a imagem de Thor na literatura figura, acima de tudo, como entidade protetora dos deuses e homens, apoiando a ordem e a lei, assim como o bem-estar da comunidade. Além disso, juntamente de Freyr, o culto a Thor era muito comum e frequente entre membros da comunidade pagã escandinava, principalmente entre aqueles envolvidos com atividades que mantinham a base da sociedade, como a caça, pesca e a agricultura (Davidson, 1993).

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III. IX Loki

Seja na mitologia nórdica de maneira geral, seja no círculo de Asgard, o lugar ocupado por Loki é de certa forma intrigante. Ele tem um papel de destaque na maioria dos mitos nórdicos conhecidos por nós nos dias de hoje. Considerando o material produzido por Snorri Sturluson como única fonte, Loki talvez seja o personagem de maior destaque entre os deuses do norte, o principal ator nas estórias divertidas e também a força motivadora em um bom número de tramas. Ele traz ao reino dos deuses tanto a comédia quanto as grandes tragédias, como a morte de Baldur (Davidson, 2004). A figura de Loki apresenta-se evidentemente como força ambivalente que, conforme Davidson (2004), não é boa nem má, embora nas estórias contadas por Snorri especificamente o lado mau predomine. É possível que, ao fim da Era Viking, o lado perverso e perigoso deste personagem possa ter sido fortalecido e exacerbado para compará-lo à figura do diabo, que tomou força na Escandinávia após a ascensão do cristianismo. Langer (2015) define Loki como a deidade mais enigmática e controversa do mundo nórdico, lembrando que ele é nomeado por Snorri como sendo um deus Æsir. Ainda segundo o autor, vários acadêmicos descrevem Loki como sendo um gigante que mora com os deuses, já que seu pai, Fárbauti, era um gigante. Sua mãe, Laufey – também conhecida por Nál – era uma deusa relacionada às árvores. Um traço marcante de Loki, comum a nenhum outro deus exceto Odin e Thor, é sua sociabilidade. Ele participa de aventuras em companhia de quase todos os deuses importantes de Asgard, com exceção de Freyr. Em grande parte das narrativas é companheiro de Odin e Thor e possui um papel importante tanto na criação do mundo quanto na destruição do mesmo. É importante lembrar a ajuda oferecida por Loki, imprescindível no momento da construção das muralhas de Asgard. Loki trata-se, então, 123

de uma entidade que se sente à vontade tanto na companhia dos deuses quanto na de gigantes e monstros. Contudo, não é possível definir a importância de Loki como divindade para os nórdicos, posto que não há evidências de um culto a esta figura (Davidson, 2004). Nas estórias trazidas por Snorri acerca de Loki, o encontramos mais como uma entidade manhosa e “levada” do que propriamente perversa. Algumas vezes suas ações causam grandes inconvenientes e sofrimento aos deuses, mas, em outras, é responsável por resgatar os deuses de sérios problemas, como no caso em que ajuda a recuperar o martelo de Thor que havia sido roubado. Muitos de seus atos, no entanto, parecem ser mais traquinagens de um moleque do que crimes graves contra os deuses justos, mostrando-se astuto e manhoso (Davidson, 2004). Segundo Langer (2015), nas narrativas envolvendo Thor, Loki possui um papel bem humorado e pouco pejorativo como quando, por exemplo, viajam para recuperar o martelo de Thor que havia sido roubado pelos gigantes e ele, então, se traveste de serva da deusa Feyja. No Gylfaginning, Loki participou da jornada para Utgarda-Loki, onde, juntamente de Thor, envolve-se numa competição com os gigantes. Já o seu papel negativo mais óbvio é como causador indireto do Ragnarök, cujo gatilho é a morte de Balder, causada por Loki. É neste momento que Loki passa a ser considerado como um inimigo dos deuses, sendo condenado ao submundo e auxiliado somente pela esposa Sigyn. Assim, conforme consta no Gylfaginning, quando acontecer o Ragnarök Loki não permanecerá ao lado dos deuses Æsires durante a batalha final, libertando-se e se juntando aos monstros e entidades caóticas que habitam o reino de Hel. Neste momento, Loki acabará enfrentando o deus Heimdall e ambos se matam no campo de batalha. Esta dualidade na natureza de Loki, segundo Davidson (1993), é uma das maiores complexidades que o envolvem. Algumas vezes ele é tido por uma figura simplória, pequena, ágil e astuta, grudada ao cinto de Thor e o acompanhando em

suas 124

aventuras, ou levada por uma águia, e às vezes por um poderoso gigante que se soltará de suas correntes e, juntamente ao lobo Fenrir e à Serpente de Midgard, guiarão a raça dos gigantes em um ataque a Asgard. Suas atitudes também revelam esta dualidade. Se muitas vezes Loki era responsável por roubar vários objetos dos deuses e levar aos gigantes, muitas vezes era também era o único capaz de encontrá-los e trazê-los de volta aos deuses. Snorri introduz Loki da seguinte maneira:

Também presente entre os Æsir está aquele que alguns chamam de fomentador do mal, e o primeiro pai da falsidade, e o maior defeito de todos os deuses e homens: ele é chamado de Loki ou Loptr, filho do gigante Fárbauti; sua mãe era Laufey ou Nál; seus irmãos são Býlestr e Helblindi. Loki é belo e formoso à vista, maligno em espírito, muito volúvel em suas atitudes. Ele superou outros homens naquela arte conhecida como destreza com as mãos, e tinha artifícios para todas as ocasiões; ele sempre trazia para os Æsires grandes problemas, para depois resolvê-los com conselhos astutos (Sturluson, 2006, págs. 41-42).

Segundo Lindow (2001), parece que na maior parte do presente mítico Loki mantém uma relação de aliança para com os deuses Æsires, mostrando-se um aliado. É frequente a ocorrência de estórias em que Loki sacrifica sua honra – ou algo ainda pior – para ajudar os Æsires, como, por exemplo, a vez em que metamorfoseou-se em égua para seduzir o cavalo mágico co mestre de obras para que a construção da muralha de Asgard não fosse concluída e assim Freyja não tivesse que ser oferecida ao gigante. A dimensão de tal ato é vasta, ainda mais ao se pensar na má conotação que uma atitude dessas teria na sociedade hiper-masculinzada da Islândia Medieval. No entanto, no passado mítico, quando juntou-se àquela que seria sua esposa, Angrboda, e no futuro mítico – no Ragnarök – ele se mostrou descaradamente contra os deuses. 125

Dessa forma, Davidson (1993) diz que a personalidade de Loki, de maneira geral, assemelha-se à do trickster, cuja ocorrência se dá em várias outras mitologias. Essa figura costuma ser ambivalente, perpetuando tanto o bem quanto o mal para as outras deidades com quem estão envolvidos. De certa forma, eles agem como heróis culturais, pois apesar de suas aventuras e jornadas atrapalhadas – que frequentemente trazem contratempos e problemas para eles mesmos – conseguem obter resultados que muitas vezes traziam benefícios duradouros para os deuses e homens. Por meio de seu relacionamento com os outros deuses estas figuras funcionam como catalizadoras, liberando energia criativa. Portanto, assim como Loki, o trickster é ganancioso, egoísta e traiçoeiro; é capaz de assumir forma animal; aparece em situações cômicas e às vezes nojentas; mesmo assim, consegue reunir em si traços do herói cultural que traz, por exemplo, a luz do sol ou a descoberta do fogo. Também é capaz de assumir forma masculina ou feminina e ter bebês. O trickster é uma espécie de xamã semicômico, situando-se entre deus e herói, mas com forte traços divertidos, astuciosos, lembrando o bobo da corte (Davidson, 1993). Sobre o arquétipo do trickster, Boechat (1996) enfatiza que o termo é tomado da antropologia, especialmente quando Paul Radin visou descrever certa figura mitológica entre os índios norte-americanos Winnebago. Esta figura atua sem limites e sem qualquer lei que não seja a do próprio desejo. Por esta razão, pode-se dizer que o trickster costuma representar a antítese de valores culturais estabelecidos e integrados pela consciência coletiva em forma de rituais, e então, quando surge, personifica a antítese da atitude culturalmente esperada. Até o corpo do trickster não é uma unidade integrada,

separando-se

frequentemente

em

partes

autônomas

ou

então

metamorfoseando-se. Loki, por exemplo, é capaz de transformar-se em fêmea e se metamorfosear em vários animais como salmão, égua, etc (Langer, 2015). 126

Portanto, esta figura do embusteiro personifica o arquétipo da inversão, sendo responsável por trazer à tona tudo o que é recalcado e reprimido culturalmente. Tal manifestação catártica do arquétipo da sombra tem certo efeito benéfico sobre a consciência coletiva, pois propicia a manifestação da sexualidade de forma brincalhona; a agressividade e destrutividade latentes no inconsciente são manifestadas de maneira lúdica, geralmente em fantasias que mais expressam do que disfarçam (Boechat, 1996). Outra função importante do trickster ressaltada por Boechat (1996) é a sua capacidade terapêutica dentro de uma cultura. Ele a conecta com seus núcleos instintivos mais profundos, impedindo que ela se torne desenraizada. Como é um conteúdo do inconsciente coletivo, esta figura arquetípica aparece de formas variadas que são calibradas de acordo com a história e cultura de uma determinada sociedade. Segundo Meletínski (2015), na mitologia de muitos povos do mundo o herói cultural tem um irmão ou, em alguns casos, uma série de irmãos que ora o ajudam, ora o prejudicam. É também frequente a representação de dois irmãos, um “sábio” e o outro um “idiota”, que correspondem respectivamente ao herói cultural e ao trickster. Este último tende a aparecer ou imitando de forma desajeitada o herói cultural, ou perpetrando intencionalmente uma série de malfeitos. Especificamente nos mitos de criação, a presença do arquétipo do trickster se explica provavelmente pelo fato de que a ação, nos mitos de criação, está relacionada com o tempo que precede o estabelecimento de uma lei rigorosa de ordenação do mundo. Este fato confere aos contos e mitos sobre o trickster certo caráter significativo de válvula de escape legítima, de antídoto seguro contra a regulamentação miúda da sociedade tribal. As imagens do trickster estão relacionadas ao olhar do “eu”, perdido no passado remoto da consciência coletiva e ainda não diferenciado (Meletínski, 2015). Dessa forma, se pensarmos na sua forma clássica, o trickster é gêmeo do herói cultural, sendo-lhe oposto não da maneira como o princípio consciente se opõe ao 127

consciente, mas antes, da maneira como o ingênuo, o tolo, o maldoso e o destrutivo se opõem ao sábio e ao criativo. Assim, esta figura arquetípica do moleque-brincalhão mitológico reúne em si um inteiro repertório de desvios da norma, sua inversão e ridicularização (eventualmente como a função supracitada de válvula de escape), principalmente porque esta figura do embusteiro arcaico só pode ser pensada e concebida se tivermos justamente a norma como referencial. Diferente do herói cultural, o trickster é a-social – não no sentido de não socializar-se, mas no sentido de não agregar simbolicamente ao social aquilo que é comumente esperado – e por isso mesmo é uma instância mais pessoal. Por este motivo, muitas vezes o trickster é apresentado negativamente e como sendo uma figura marginal, muitas vezes até mesmo se opondo à própria tribo ou clã do qual faz parte (Meletínski, 2015).

Imagem 3: The punishment of Loki, por Doyle Penrose, 1890. Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/8d/The_Punishment_Of_Loki.jpg

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Assim como coletivamente o embusteiro tem um valor terapêutico, segundo Boechat (1996), este arquétipo também atua dessa forma na psicodinâmica do indivíduo. O trickster seria a representação do masculino emergente, trazendo valores inaceitáveis para a persona, valores esses que vitalizam o ego que se encontra desenraizado do instinto. Em suma, assim como todo símbolo, o trickster expressa uma polissemia ambígua. Se por um lado está relacionado à renovação da consciência, espontaneiadade, vitalidade e criatividade, por outro lado ameaça o ego de dissociação e de intensa regressão caso esteja presente em excesso e desequilíbrio.

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III. X Frigg

Frigg é a deusa esposa de Odin. Segundo Lindow (2001), ao longo de seus aparecimentos na mitologia nórdica, principalmente no Gylfaginning e em outros materiais produzidos por Snorri, ela funciona principalmente como esposa e mãe, sendo uma figura cuja presença é marcada por estas duas funções sociais e mitológicas. Na Edda em Prosa, a maior participação de Frigg é na estória envolvendo a morte de Balder. Como figura da mãe que teme a morte do filho, após tomar conhecimento, por meio do seu dom da clarividência, de que o filho iria morrer, a deusa percorre o mundo extraindo juramentos de todos os seres e coisas para que ninguém causasse nenhum mal ao filho. Contudo, quando falha – graças ao envolvimento de Loki -, e Balder termina assassinado, ela envia Hermód para o reino de Hel, pedindo-o que trouxesse o filho de volta (Lindow, 2001). Conforme nos lembra Ayoub (2015) o Gylfaginning narra que a morte de seu filho Balder era considerada a primeira grande tristeza da deusa, e a segunda grande tragédia que a acometeria seria a morte de seu marido Odin, durante o Ragnarök. Nota-se, dessa forma, que as duas grandes tristezas da deusa surgem enquanto perda de suas funções de mãe e esposa, respectivamente – justamente os principais papéis que a definem e caracterizam -. Portanto, vê-se que Frigg também é lembrada enquanto mulher de Odin, a deidade suprema. Sua função de mãe estende-se, de certa forma, ao ser madrasta de Thor, Hermód, Heimdall, Týr, Bragi, Vidarr, Váli, Skjödur e Hödr, e é considerada uma das maiores deusas, ao lado de Freyja. Portanto, Frigg, enquanto grande deusa-mãe, era considerada muito boa para ser chamada no momento em que uma mulher casada estava dando a luz. Inclusive, nestas ocasiões, as escandinavas utilizavam uma planta sedativa que se chamava Gramma-de-Frigg (erva coalheira) para auxílio na hora do bebê ser recebido (Ayoub, 2015). 130

Apesar de não se relacionar intensamente com a magia da mesma forma que Freyja, Frigg era considerada uma deusa de grande sabedoria que, inclusive, possuía o conhecimento acerca do destino de todos os homens, embora nunca se pronunciasse a respeito. Segundo Ayoub (2015), encontramos, em Frigg, a representação de um conceito muito presente nos povos germânicos - que inclusive é retratado no Germânia, de Tácito - que seria a ideia de que as mulheres são portadoras de grande sabedoria. Outro fato digno de nota seria justamente o de que Frigg nunca se pronunciava sobre suas premonições, mas, no caso envolvendo seu filho Balder, a deusa se permitiu fazer uma exceção. Lindow (2001) afirma que o nome Frigg é derivado de uma raiz Indo-Européia cujo significado é “amor”, e no livro Interpretatio Germanica foi concedido a esta deusa o dia pertencente à Venus, apontando que, na época, foi feita uma correlação entre as duas. É também interessante que o nome de Frigg aparece em vários nomes de lugares na Escandinávia, indicando atividades de culto ligadas à deusa. Portanto, encontramos a deusa Frigg como sendo, acima de tudo, um símbolo da deusa-mãe, figura da esposa e sábia, aquela a quem os escandinavos adoravam em seus rituais em troca de fertilidade e proteção (Ayoub, 2015). Segundo a definição de Neumann (1999), quando a psicologia analítica se refere a esta imagem primordial e arquetípica da “Grande Mãe”, ela não se refere à uma existência concreta e padronizada desta imagem existindo com tempo e espaço, mas sim a uma imagem anterior em operação na psique humana – e, justamente por isso, arquetípica - . As expressões simbólicas desse fenômeno psíquico são as figuras e imagens da Grande Deusa, reproduzidas nas criações artísticas e nos vários mitos da humanidade. De acordo com Neumann (1999), a experiência dessas imagens ocorre numa área que se estende desde a Sibéria até os Pirineus e parece pressupor a existência de certa visão de mundo mais ou menos unitária, em cujo centro supostamente estaria o 131

símbolo da Grande Deusa. Para o estudo simbólico, parece que seria irrelevante se, numa dada sociedade, era o grupo das mulheres, dos homens ou ambos os responsáveis por serem veículos psíquicos deste arquétipo. Assim, o arquétipo da Grande Deusa Mãe pode se manifestar numa sociedade patriarcal, da mesma forma que, em oposição, o arquétipo do Deus Pai pode se estabelecer numa sociedade matriarcal. O sexo do indivíduo e a estrutura sociológica são apenas condições que podem variar o modo da constelação arquetípica básica sem modifica-la em essência. Simbolicamente, a Grande Mãe, enquanto terra-mulher, seria a representação do “trono em si”, caracterizando, então, o útero e a maternidade do Feminino. Quando é levada ao colo ou ao seio, a criança está no centro de uma expressão simbólica de sua aceitação por parte do Grande Feminino. Inclusive, segundo Neumann (1999), não é aleatório o fato de que o rei, ao tomar posse de uma terra ou reino, senta-se no trono que simboliza o colo de aceitação da Deusa Mãe:

A deusa-mãe, sentada e entronizada, subsiste na imagem sagrada do trono. O rei assume o poder quando ‘‘sobe ao trono’’ e assim ocupa seu lugar no colo da Grande Deusa, a terra, como seu filho. Encontramos, assim, num sem-número de cultos ao trono, que originalmente era a própria divindade e venerado como ‘assento da divindade. (Neumann, 1999, p.93)

Portanto, o Grande Feminino, em sua qualidade protetora e acolhedora, é um símbolo que unifica e congrega em si a vida da família e do grupo sob o símbolo da casa e da proteção (Neumann, 1999). Chevalier & Gheerbrant (1992) afirmam que todas as Grandes Deusas Mães eram, também, deusas da fertilidade: Gaia, Réia, Hera e Deméter, entre os gregos; Ísis, entre os egípcios; Astart, entre os fenícios e Kali entre os hindus. O símbolo da grande mãe é atuante também de forma ambivalente, pois, se por uma lado é 132

a segurança do abrigo, o calor, a ternura e a nutrição, por outro também pode ser o risco da opressão e do sufocamento por meio de um prolongamento excessivo da função de alimentadora e guia. Seria a imagem da genitora devorando o futuro genitor, a generosidade transformando-se em captadora e castradora. O símbolo da mãe assume, assim, um valor de arquétipo. Ela é a primeira forma que toma para o indivíduo a experiência da anima, ou seja, da parte feminina do inconsciente. Essa instância pode agregar um valor tanto construtivo quanto negativo. Trata-se da origem de todos os instintos, o resíduo de tudo o que os homens viveram desde os mais remotos inícios, o lugar, portanto, da experiência supra-individual, mas possui a necessidade da consciência para se realizar, já que não existe a não ser em correlação com ela. É precisamente dentro dessa relação que o poder do inconsciente pode se instalar e causar estragos, quando em desequilíbrio. Devido à superioridade relativa que procede de sua natureza fortemente impessoal e da sua qualidade de fonte, ele pode voltar-se contra o consciente nascido a partir dele, destruindo-o: seu papel passa a ser, então, o de uma mãe devoradora, indiferente ao indivíduo, absorvida unicamente pelo ciclo cego da criação (Chevalier & Gheerbrant, 1992).

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III. XI Freyja

No Gylfaginning, quando Snorri apresenta Freyja pela primeira vez, declara que ela era a mais renomada das deusas e a única dentre os deuses que ainda estava viva. Freyja é filha do deus Njörd e uma das mais importantes deusas na mitologia nórdica. Não pertence à família de deuses Æsires, mas aos Vanes. Uma das características mais marcantes da deusa é o fato de que, ao longo das narrativas que a envolvem, ela frequentemente é alvo de olhares luxuriosos por parte dos gigantes, que não raramente a cobiçam (Lindow, 2001). Segundo Langer (2015), Freyja preside o amor e a volúpia, além de possuir, também, fama de lascívia. Sua residência é o palácio chamado Folkvangr, para onde se dirigem metade dos mortos em batalha – a outra metade vai para Odin -. É conhecida por possuir uma carroça puxada por gatos, embora em outros relatos também apareça montada em um javali. Conforme Davidson (2004), Freyja era chamada de deusa ou noiva dos Vanes, e, inclusive, uma das alegações escandalosas de Loki é a de que ela teria um caso de amor com o próprio irmão, o deus Freyr. Snorri nos apresenta esse problema informando que os casamentos entre irmão e irmã eram costumeiros entre o grupo de deuses Vanes. A deusa era associada a casos de amor entre homens e mulheres e, inclusive, diziam que era bom pedir sua ajuda nessas situações. Em outras fontes mitológicas as várias estórias de cunho sexual relacionadas à deusa, bem como seu gosto pela poesia erótica, possivelmente foi o que possibilitou Snorri concluir que aquele com problemas e questões envolvendo o amor deveria se voltar para Freyja. Provavelmente, esta noção de interferência e interesse divinos pelas questões envolvendo o amor entre humanos está relacionado à noção dos deuses Vanes como deidades da fertilidade (Lindow, 2001). 134

No entanto, Freyja não se ocupava somente do amor humano pura e simplesmente. Segundo Davidson (2004), ela parece ter tido também certa autoridade no mundo da morte, visto o fato de que divide metade dos mortos em batalha com ninguém menos que Odin. Além disso, conforme Lindow (2001), Freyja também é fortemente conectada ao mundo da magia, especialmente ao tipo de mágica conhecida por seiðr. Snorri afirma que a deusa era uma sacerdotisa dos Vanes e que, inclusive, foi a primeira a ensiná-los este tipo de magia. Outras fontes mitológicas escritas em prosa nos inteiram um pouco a respeito da mágica do seiðr:

Os elementos essenciais para a prática dessa feitiçaria eram a armação de uma plataforma ou assento elevado sobre o qual o praticante líder se sentava, a entoação de encantamentos, e o estado de êxtase no qual o líder entrava. Esse líder geralmente era uma mulher, chamada völva. Às vezes, a völva era apoiada por uma grande companhia, que atuava como um coro e fornecia a música. No fim da cerimônia, a realizadora do seiðr podia responder às perguntas que lhe eram feitas pelos presentes, e entendemos que ela recebia as informações enquanto estava num estado de transe. Os relatos mostram que as perguntas, na maioria, tinham a ver com a estação que se aproximava e a esperança de fartura, e com os destinos dos homens e mulheres jovens da assembléia. (Davidson, 2004, p.100).

O termo seiðr também surge algumas vezes como magia prejudicial que se dirige contra uma vítima em específico, mas, na maioria dos relatos, surge como um rito de interpretação e adivinhação. Já o termo völva é encontrado na poesia e nas sagas para denotar alguém com dons mânticos, como uma vidente ou um adivinho. Esses dados 135

são relevantes ao se estudar a figura da deusa Freyja justamente porque ela era tida como uma especialista em seiðr, tendo sido a difusora mítica de tal prática. Também relacionado a isso, há relatos de que a deusa podia assumir a forma de um pássaro, o que significava que lhe era possível viajar a uma distância maior que na forma humana. Outro fato que indica a relação de Freyja com o seiðr é o fato de que, como deusa dos Vanes, a prosperidade da comunidade e os casamentos entre os jovens estavam sobre sua jurisdição, e eram precisamente esses os temas sobre os quais a völva era consultada nos rituais mágicos (Davidson, 2004). Questão relevante é também a relação da deusa com os gatos que puxavam sua charrete. Apesar deste elo nunca ter sido explicado, Davidson (2004) afirma que, para os escandinavos, os gatos estavam entre os espíritos animais que supostamente auxiliavam a völva em sua jornada sobrenatural. Portanto, devido a esta similitude, encontramos novamente a figura de Freyja enquanto praticamente da magia do seiðr. Citando Bernárdez, Langer (2015) explica que as poucas referências às deusas na mitologia nórdica se devem a um referencial masculinista por parte dos compiladores e escritores cristãos, como o próprio Snorri Sturluson. No entanto, dentro destas referências encontradas envolvendo Freyja, ela se apresenta como deidade que encarna os papéis sexuais, de fertilidade, de magia e de morte do mundo feminino da Escandinávia alto medieval, enquanto que a outra deusa, Frigg, assume o papel de esposa e está associada mais diretamente aos partos. Dessa forma, o culto das deusas no mundo nórdico foi estendido apenas nos limites entre família e casa. Até mesmo no mundo rural, em que as narrativas orais envolvendo a fertilidade eram essenciais para a sobrevivência cotidiana – especialmente nas colheitas -, os deuses ocupam um lugar mais privilegiado e preponderante do que as deusas. Portanto, não há uma separação muito nítida entre o espaço da lavoura, da criação dos animais ou do ambiente doméstico. Na verdade, todos são conectados e 136

cada deus ou deusa ocupa um lugar dependendo da situações e não do contexto espacial, como é comum que se pense. Nesta forma de organização, os deuses são relacionados à ordem das comunidades, à guerra, ao trabalho, ao campo e à terra, às viagens, negócios, heranças e leis, enquanto que as deusas se concentram em aspectos particulares da vida, como nascimento, crescimento, cura, amor e sexo. Portanto, as deusas nórdicas não eram especializadas e se conectavam com uma área limitada da terra, água e fazenda, associadas com suas famílias e gerações ancestrais. Mesmo assim, elas são representadas como figuras poderosas, destrutivas e implacáveis, associadas com o crescimento e a cura, mas também com forças indomadas da natureza e com aspectos selvagens do comportamento humano (Langer, 2015). Surge, neste momento, um paralelo interessante que pode ser feito entre estas duas funções simbólicas ocorridas na mitologia nórdica de maneira tão delineada – do masculino e do feminino -, e duas funções arquetípicas, a anima e o animus. Segundo Silveira (2011), todos sabem que no corpo de cada homem existe uma minoria de genes femininos que foram sobrepujados pela maioria de genes masculinos. Assim sendo, Jung denominou de anima a feminilidade latente que existe inconscientemente no homem: a anima nada mais é que a representação psíquica da minoria dos genes femininos ainda presentes no homem. Outros conteúdos agregam a anima, como por exemplo as experiências fundamentais que o homem teve com a mulher – enquanto figura – através dos milênios, formando um aglomerado hereditário inconsciente de origem extremamente longínqua, tipo de todas as experiências da linha ancestral em relação ao ente feminino, resíduo de todas as impressões fornecidas pela mulher. Ainda segundo Silveira (2011), a anima apresenta-se, então, personificada das mais diversas maneiras, seja nos sonhos, nos contos de fada, no folclore e na mitologia. Ela pode se revestir em formas belas ou horríveis, a depender da relação que um povo

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ou indivíduo estabelece com a figura feminina: por isso sua imagem vai de fadas, feiticeiras e sereias a bruxas e gigantas. Segundo Jung (2011) a anima possui como traço marcante e definidor uma predileção por tudo que é inconsciente, escuro, mágico, incerto e relacionado ao capricho e à vaidade. Este arquétipo pode ser expressado em figuras de deusas com fortes tendências à sexualização, sendo figuras sedutoras, voluptuosas e por isso cultuadas como responsáveis pela fertilidade. Por outro lado, conectam-se ao conhecimento mágico e intuitivo, às artes obscuras e ao dom da clarividência. Com exceção desta última, encontramos todas estas características reunidas na figura de Freyja, que poderia muito bem ter sido uma forte personificação da anima conferida pelo povo escandinavo. Afinal, constatou-se que no sistema mitológico escandinavo cabia aos deuses, símbolos masculinos do inconsciente coletivo, as funções da guerra, da ordem, do trabalho, dos negócios e leis. Às deusas, por sua vez, cabiam as funções de maternidade, fertilidade, amor, magia, voluptuosidade e sexo, visto que

estão

expressões simbólicas femininas do inconsciente coletivo.

Imagem 4: Freyja, por James Doyle Penrose, 1890. Fonte: https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/564x/1c/4c/6a/1c4c6a0d4c0dced2c75af51596d68b14.jpg

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Nos deuses nórdicos, por sua vez, são notadas características de certa forma opostas às da anima. O animus, então, se relaciona ao logos, à consciência, às opiniões, à racionalidade e à lei. É o princípio masculino do inconsciente coletivo que se relaciona à busca pela consciência e à intelectualidade por meio da razão. O fato de coexistirem, em uma mesma época e sociedade, símbolos que encarnem ambos os arquétipos, indica uma tendência natural do grande inconsciente coletivo de tentar equilibrar-se, numa espécie de processo homeostático que visa não manter nenhuma vivência coletiva simbólica em excesso enquanto outra encontra-se em (Jung, 2011). Contudo, conforme posto por Langer (2015), o referencial de deusas na mitologia nórdica é muito menor se comparado ao dos deuses. Podemos estar diante de um desequilíbrio do inconsciente coletivo, que, naquela sociedade, pendia muito mais para o lado do animus: tratava-se de uma sociedade hiper-masculinizada e que, provavelmente, não assimilou sua anima coletiva completamente. Byington (2013) confere um comentário de nosso interesse a respeito dessa diferença entre o feminino e o masculino nas relações arquetípicas manifestas nos mitos e na psicologia. Para o autor, o dinamismo arquetípico matriarcal está fortemente ligado às origens da vida e da Consciência e, por isso, funciona de forma tão enredada com os processos inconscientes mais poderosos. Esta seria a principal razão pela qual tal dinamismo incomoda intensamente o patriarcal, seu oposto que, em função disso, frequentemente reage ao matriarcado de forma antagônica e preconceituosa. Apesar de inicialmente ter sido ignorado pelas Ciências Sociais e pela Psicologia, o dinamismo matriarcal foi sendo “descoberto”, estudado e valorizado, aos poucos, ainda que freqüentemente reduzido à histeria e ao feminino. Para Byington (2013), já na Psicologia moderna, a relação primária tem hoje grande destaque, seja no estudo do desenvolvimento normal, seja no estudo

das 139

formações patológicas, mas ainda continua reduzido exclusivamente à figura da mãe. O estudo das culturas com dinamismo matriarcal exuberante e mesmo dominante, como é o caso de muitas culturas índias e negras, está cada vez mais valorizado, mas continua muito reduzido ao “primitivo”, ao inconsciente e ao feminino. Não conseguimos ainda deixar de aprisionar o dinamismo matriarcal ou no início da vida individual e coletiva, na patologia histérica ou no feminino. Lança-se mão do conceito evolutivo para empregá-lo de forma estagial, linear ou em escada, e com isso ele fica reduzido a uma mera etapa inicial do desenvolvimento. Um indivíduo com dominância matriarcal na personalidade, por exemplo, tende a ser, no mínimo, denominado de imaturo ou infantil. Outro fator importante, no que concerne ao dinamismo matriarcal no homem e na mulher, é o fator cultural que, na Cultural Ocidental, favoreceu intensamente uma posição social assimétrica do homem com relação à mulher devido á dominância patriarcal da Consciência Coletiva. Nessa estruturação social patriarcal, o dinamismo matriarcal foi desvalorizado e depositado exclusivamente na mulher junto com sua própria desvalorização. O resultado é que a mulher, além de ter biologicamente um relacionamento mais íntimo que o homem com o dinamismo matriarcal, passou a ser também a sua depositária cultural com conotação nitidamente pejorativa. Este fator dificulta a compreensão da presença da função estruturante do dinamismo matriarcal na personalidade do homem e da mulher. Esta talvez seja a grande dificuldade que se tem tido para um estudo não preconceituoso das diferenças do desenvolvimento da personalidade nos dois sexos (Byington, 2013). Portanto, o processo de individuação na modernidade vem demonstrando que os papéis históricos atribuídos ao homem e à mulher não coincidem necessariamente com a natureza de cada pessoa. Assim, os adjetivos masculino e feminino passam a ser fonte de grande confusão semântica para descrever a individuação. Ao perceber que o Arquétipo da Grande Mãe existe também na personalidade do homem e o Arquétipo do 140

Pai, na da mulher, mudei sua denominação para incluir os dois gêneros. Passei a chamálos de Arquétipo Matriarcal para designar o arquétipo da sensualidade, e Arquétipo Patriarcal para nomear o arquétipo da organização, ambos presentes na personalidade do homem e da mulher e em todas as culturas em combinações variáveis. Este passo mostrou-se importante para vincular o desenvolvimento arquetípico às neurociências, pois o Arquétipo Matriarcal, como o arquétipo dominante da sensualidade, da imagem e do desejo, pode ser associado ao hemisfério cerebral direito, ao sistema límbico e ao sistema neuroendócrino-vegetativo, enquanto que o Arquétipo Patriarcal, como o arquétipo dominante da organização, do poder e da abstração, pode ser relacionado, segundo o autor, ao hemisfério cerebral esquerdo e aos sistemas volitivo-sensório-motor e associativo cortical.

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III. XII Freyr

Trata-se de um importante deus que também não pertencia ao grupo dos Æsires, mas aos Vanes. Freyr, assim como Freya – com quem se casou -, é filho do deus Njörd. Na Edda em Prosa, ao introduzir Freyr pela primeira vez, Snorri Sturluson o apresenta juntamente de Freya, dizendo que ambos eram deuses belos e poderosos (Lindow, 2001):

Em Nóatún, Njörd gerou dois filhos: o filho chamava-se Freyr, e a filha chamava-se Freya; eles tinham o rosto belo e eram poderosos. Freyr é o mais renomado dos Æsires; ele comanda a chuva e o brilho do sol, e consequentemente as frutas que crescem na terra; e é bom invocá-lo para estações férteis e paz. Ele governa a prosperidade dos homens. (Sturluson, 2006, p.38).

Apesar de ser originalmente um deus do grupo dos Vanes, conhecidos por seu caráter de fertilidade e paz, Freyr juntou-se ao grupo dos Æsires posteriormente como resultado de uma guerra ocorrida entre os dois grupos de divindades, conforme relatado em outro material, a Saga dos Ynglingos. Por ser praticamente descrito como um deus da fertilidade, havia pouco para o deus fazer nas narrativas míticas, já que estava em meio à cultura fortemente militar e beligerante dos deuses Æsires (Lindow, 2001). Segundo Davidson (2004), como as fontes escritas apresentam Freyr como a divindade soberana de aumento e prosperidade, suas imagens e cultos apresentavam, geralmente, características fálicas. O bispo saxão Adão de Bremen descreveu, em sua Gesta Hammaburgensis, uma imagem do deus Freyr no templo sueco de Uppsala que apresentava um grande falo. De certa forma paradoxal, Saxo Grammaticus,

um 142

historiador medieval da Dinamarca, descreve também um culto ao deus no templo de Uppsala, afirmando que o culto conferido ao deus era acompanhado por encenações contendo “gestos efeminados” e um “repicar de sinos pouco másculo”. Possivelmente, esta encenação consistia em alguma espécie de drama simbólico em homenagem a Freyr, que servia para garantir a benção divina na fecundidade da estação que estava por vir. Grande parte das fontes escritas preserva a memória de que existiam cultos de fertilidade associados a Freyr, em perceptível contraste ao culto da batalha conferido a Odin, por exemplo. Paralelamente, há relatos a respeito de uma proibição de armas nos templos do deus, acompanhados de uma ira, vinda de sua parte, diante do derramamento de sangue em solo sagrado e um tabu contra criminosos, apontando para a segunda característica de Freyr que seria a de promovedor da paz. Dessa forma, as representações do deus apontam para uma divindade da fertilidade, sobretudo masculina; uma ligação também com casamentos e nascimentos; e, por último, com a paz e a justiça. (Davidson, 2004). Ayoub (2015) recapitula uma relevante narrativa envolvendo Freyr e seu casamento com a giganta Gerda, presente no Gylfaginning. Na ocasião, o deus avista uma giganta de Jotunheim e se apaixona por ela, pedindo, em seguida, que seu criado Skírnir vá até lá pedir à giganta que se case com Freyr. O deus empresta a Skírnir a sua espada e o seu cavalo para levá-los em sua viagem, símbolos esses da realeza guerreira e da viagem por diferentes mundos e esferas, respectivamente. A giganta demora a aceitar a proposta, mas depois, por meio da utilização de força, algumas magias e oferenda de presentes, a giganta acaba concordando em encontrar-se com Freyr após nove noites. Nota-se, então, que o único a respeito de Freyr que chega até nós marca o deus como símbolo central de um hiero gamos entre as forças da ordem –representadas pelo deus – às forças do caos feminino – a giganta -. 143

Imagem 5: Estátua de Freyr na Islândia. Fonte: http://www.hurstwic.org/history/articles/mythology/religion/pix/Freyr_idol.jpg

Para Chevalier e Gheerbrant (1992), tal interpretação coincide com a conferida pela análise junguiana, segundo a qual o casamento simbolizaria, durante o curso da individuação, a conciliação do inconsciente, o princípio feminino, com o espírito, princípio masculino. Não raro, as hierogamias – casamentos sagrados – são encontradas em quase todas as tradições religiosas e, quando ocorrem entre divindades, denotam uniões simbólicas de princípios divinos que, uma vez unidos, serão capazes de engendrar certas hipóstases (verdades substanciais de natureza específica). Ou seja, a união de dois símbolos divinizados canaliza a possibilidade de criação, por meio dessa integração de dois princípios, de uma nova realidade simbólica. Na mitologia grega, por exemplo, da união de Zeus – princípio da força – e Têmis – a justiça e ordem eterna -, surgiram Irene, Eunomia e Dice que seriam, respectivamente, a paz, a disciplina e o direito. 144

Mais especificamente no mundo nórdico, o rito da hierogamia (casamento sagrado) foi atestado desde a Idade do Bronze (1800-400 a.C.), principalmente em gravuras rupestres que trazem de maneira frequente um homem e uma mulher copulando, enquanto uma terceira figura consagra o ato por meio do brandir de um machado ou martelo. Aliás, o símbolo do martelo enquanto fertilidade e matrimônio sobreviveu com os Vikings (Langer, 2015). Citando Régis Boyer (1997), Langer (2015) atribui à hierogamia a simbologia de união entre céu e terra relacionada particularmente aos cultos dos deuses Vanes, ligados á fertilidade e fecundidade. Havia até mesmo certo culto de pedras esculpidas em algumas das áreas da Escandinávia que servem como prova de um culto fálico em que o coito era praticado nos campos cultivados, na espera de que viesse uma boa colheita. Na psicologia analítica ocorre uma ideia semelhante, que seria a do coniunctio. Segundo Samuels (1988), a coniunctio é basicamente um princípio alquímico a respeito da união entre duas substâncias desiguais, constituindo um casamento entre opostos numa relação sexual que visa o nascimento de um novo elemento. Assim sendo, do ponto de vista de Jung, a coniunctio era identificada como ideia central de todo o processo alquímico, constituindo um arquétipo do funcionamento psíquico. É um símbolo do padrão de relacionamento entre dois ou mais fatores inconscientes que interagem entre si. Uma vez que tais relacionamentos são, de início, incompreensíveis à mente percebedora, a coniunctio é capaz de inúmeras projeções simbólicas (como por exemplo, homem e mulher, Rei e Rainha, cão e cadela, galo e galinha, Sol e Lua). Por simbolizar processos psíquicos, a coniunctio encontra-se intimamente ligada ao renascimento e à transformação que têm lugar dentro da psique após sua ocorrência. Como todos os arquétipos, a coniunctio representa dois pólos de possibilidade; um positivo e outro negativo. Por isso que, uma vez realizada, são vivenciadas certas questões inerentes ao seu acontecimento, tais como a morte e perda, mas também o 145

renascimento. Trazê-la à consciência significa a redenção de uma parte anteriormente inconsciente da personalidade. Porém, conforme o próprio Jung adverte, o tipo de efeito que ele terá depende, amplamente, da atitude da mente consciente (Samuels, 1988).

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III. XIII As Valquírias

Este nome deriva-se do original em nórdico antigo, valkyrja, cujo significado é “aquela que escolhe os mortos”. Entre as diversas atribuições conferidas a essas figuras, a mais famosa delas é a de que se tratam de guerreiras que iam ao encontro dos combatentes que haviam morrido no campo de batalha, para em seguida levá-los ao Valhalla, o lar de Odin, onde esperariam pelo Ragnarök, o fim do mundo (Langer, 2015). Na descrição feita por Snorri acerca da vida no além para os guerreiros, há certos seres que formam um elo entre Odin e os aniquilados em batalha, entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Os encarregados desta tarefa são justamente os espíritos femininos chamados de Valquírias, que aguardam para levar os grandes guerreiros e campeões até Valhalla. Segundo Davidson (2004), nas descrições dos poetas, elas aparecem como mulheres usando armadura e montadas em cavalos, levando ordens de Odin enquanto a batalha se desenrola, dando a vitória segundo a vontade do deus. No fim, conduzem os guerreiros derrotados e mortos até Valhalla. Algumas vezes, no entanto, elas são retratadas como esposas de heróis vivos. Davidson (2004) aponta que, de maneira geral, a literatura nórdica antiga nos deixou um retrato das dignificadas Valquírias montadas em cavalos e armadas com lanças, mas também houve a sobrevivência de outro quadro, um pouco mais rústico, acerca destas mulheres. Elas seriam seres sobrenaturais ligados ao sangue e ao sacrifício, criaturas fêmeas, às vezes de proporções gigantescas, que despejavam sangue sobre um distrito onde mais tarde haveria uma batalha. Por vezes, elas são até mesmo descritas carregando cochos de sangue ou montadas em lobos, ou são vistas remando um barco em meio à chuva de sangue que cai do céu. Nesse contexto, as Valquírias são tidas como figuras geralmente ligadas aos augúrios de lute e morte e chegam até mesmo 147

a aparecer para os homens em seus sonhos, conforme alguns poetas escaldos descreveram nos séculos X e XI. Na Edda em Prosa é trazida a seguinte definição: “Estas são chamadas Valquírias: elas Odin envia para todas as batalhas; elas determinam a morte e a vitória dos homens“ (Sturluson, 2006, p.48). Citando Régis Boyer, Langer (2015) diz que a figura da Valquíria seria um símbolo de desafio ao mundo masculino, onde a mulher transpõe o que lhe cabia na sociedade da época, por isso entra em combate e possui proficiência no uso das armas. Nessa perspectiva, a figura da Valquíria seria em si uma figura transcendente, capaz de ir e voltar de seu mundo de serventia para o mundo masculino do sangue e da terra, tornando-a, dessa forma, uma imagem muito popular e forte na literatura nórdica. Portanto, foi especialmente durante a Era Viking (799-1066 d.C) que o mito das valquírias foi amenizado, transformando-se em uma representação mais dignificada, heroica e nobre. Snorri Sturluson foi um dos responsáveis por resgatar essa imagem durante o período cristão, popularizando-a. Contudo, ele conferiu a estas criaturas femininas um papel duplo, pois, enquanto eram guerreiras e responsáveis por escolherem o destino das batalhas e transportar os homens tombados nos conflitos até o salão dos mortos de Odin, o Valhalla, neste mesmo local elas atuam como serventes semelhantes à taverneiras, servindo bebidas e comidas aos homens que lá banqueteavam (Langer, 2009). Podemos falar, então, de uma evolução morfológica no mito das Valquírias, que, conforme descrito por Langer (2009): começaram como entidades sanguinárias incentivadoras de carnificinas durante a Antiguidade; na Antiguidade Tardia, funcionavam como selecionadoras dos mortos nas batalhas; durante o início da Era Viking, somou-se a esta última incumbência o trabalho como serviçais em Valhalla; por fim no fim da Era Viking, eram retratadas como guerreiras de Odin, donzelas-cisnes 148

(filhas de reis, puras e reluzentes), esposas/amantes/filhas de reis e nobres. Esta metamorfose contínua na simbologia das Valquírias está relacionada ao trabalho dos poetas, que acabaram dignificando muitos aspectos das narrativas orais, geralmente para atingir fins específicos visando agradar seu público alvo. Afinal,

Em uma sociedade em que a religião não era centralizada, sem organização de uma instituição central, sem hierarquias sacerdotais e com muitas variações regionais de cultos, o padrão mítico comum (panteões divinos e cosmológicos de origem germânica) foi utilizado pelas classes aristocráticas para fins políticos (Langer, 2009, p.73).

Chevalier & Gheerbrant (1992) resumem o símbolo das Valquírias como ninfas do palácio de Odin, comparadas às amazonas. São mensageiras dos deuses, guias dos combates, responsáveis por conduzir os heróis à morte e, uma vez em Valhala, serviamlhes cerveja e hidromel. São figuras que simbolizam, simultaneamente, a embriaguez dos arrebatamentos e a ternura das recompensas, a morte e a vida, o heroísmo e o descanso do guerreiro.

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X.XVI Fenrir e Jörmungandr

Loki e a giganta Angrboda tiveram três filhos que seriam todos, de maneiras diferentes, inimigos dos deuses: o lobo Fenrir, a deusa do submundo Hel e a Serpente de Midgard, Jörmungandr. No Gylfaginning, Snorri relata que os deuses descobriram, por meio de uma profecia, que a cria de Loki e Angrboda que crescia em Jötunheimar ainda traria muitos problemas para eles. Então, Odin fez com que os filhos de Loki fossem trazidos até ele, lançando a Serpente no fundo do oceano e Hel para o mundo dos mortos. Curiosamente, ao contrário do que aconteceu com os outros dois filhos de Loki, os deuses decidiram manter o lobo Fenrir entre eles, e lá ele permaneceu por algum tempo. No entanto, quando notaram o quanto o lobo crescia rápido e reconsideraram o valor das profecias, o lobo foi preso a uma corrente mágica – não sem antes ter arrebentado outras duas correntes e, por fim, o deus Týr ter sacrificado uma de suas mãos para que pudessem prender Fenrir – (Lindow, 2001). Para Régis Boyer e Rudolf Simek, citados por Langer (2015), o nome Fenrir tem significado de “pântano”, relacionado à palavra nórdica fen e, portanto, originalmente Fenrir significava habitante do Pântano, um termo bem apropriado para um monstro. As principais aparições e participações do lobo nos escritos de Snorri Sturluson se dão em quatro momentos: primeiramente, na narrativa envolvendo sua prisão e acorrentamento; em seguida, a fuga de Hel; o momento em que o lobo devora o sol e a lua e, por fim, a batalha do Ragnarök e a morte do lobo pelo deus Vidar. Nas religiosidades europeias pré-cristãs, a figura do lobo é de extrema importância e em função ela assemelha-se à do cachorro, atrelando-se simbolicamente com a morte. Ambos os animais também possuem ligação com a ideologia guerreira e com as batalhas e, inclusive, há nomes de família relacionados a lobos em inscrições rúnicas e iniciações ritualísticas de jovens guerreiros (Langer, 2015). 150

Para Lindow (2001), no material escrito por Snorri é afirmado que, no momento do Ragnarök, Fenrir se soltará de suas correntes e engolirá o mundo, tendo sua mandíbula inferior na terra e a superior no céu. Além disso, o lobo será responsável pela morte de Odin, que posteriormente será vingada pelo deus Vidar. É curioso o fato de que, apesar de trazer tamanha destruição no momento do Ragnarök, ainda assim, da mesma maneira que Loki, Fenrir passou um considerável tempo vivendo entre os deuses. Outra criatura que se virará contra os deuses é a irmã de Fenrir, a Serpente de Midgard. Segundo Langer (2015), a ideia de uma serpente do mundo foi um dos mitos nórdicos mais difundidos e cuja ocorrência em representações iconográficas e literárias da Idade Média ocorreu em larga escala. No caso de Jömungandr, ela é considerada inimiga dos deuses e representa um agente tradicional do caos, juntamente de seu irmão. Quando, por meio de uma profecia, Odin soube do mal que a serpente viria causar, arremessou-a no fundo do oceano. No entanto, ela cresceria tanto que chegaria a abarcar toda a terra com seu corpo, e chegando, inclusive, a morder a própria cauda. Impossível, após essa descrição tão precisa, não visualizar a própria imagem do uroboros. Chevalier e Gheerbrant (1992) descrevem essa imagem como uma serpente que morde a própria cauda e simboliza um ciclo de evolução encerrado nela mesma. Este símbolo contém, simultaneamente, as ideias de movimento, continuidade, autofecundação e, como consequência, o eterno retorno. Sua imagem circular denota a união do mundo ctônito – figurado pela serpente – e do mundo celeste – representado pelo círculo propriamente dito - . Ao ser desenhada em forma circular, a serpente que morde a própria cauda é um símbolo que rompe com a evolução meramente linear, marcando uma transformação de tal natureza que parece emergir para um nível de ser que é superior: o nível do ser celeste, espiritualizado, simbolizado pelo círculo. Trata-se

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da transcendência da animalidade, rumo ao avanço no sentido do mais fundamental impulso de vida.

Imagem 6: Uroboros. Fonte: https://educar.files.wordpress.com/2013/04/uroboros.jpg

Neumann (1995) descreve este símbolo como uma perfeição demonstrada naquilo que repousa em si mesmo e também se circula. Embora seja símbolo do que é estático e eterno, sem história, este repouso absoluto, ao mesmo tempo em que o lugar de origem é também a célula-semente da criatividade. É o dragão ou cobra circular que vive no ciclo de sua própria vida, mordendo a própria cauda – visualmente, trata-se da mesma imagem descrita pelos nórdicos em seu mito da Jörmungandr -. O pensamento simbólico retratado nessas imagens do redondo busca captar conteúdos que escapam à consciência atual, pois ela só os enxerga em termos de paradoxos, justamente por não poder captá-los. Se dermos a algo o nome de “tudo” ou “nada” e em seguida falarmos de uma totalidade que engloba ambos, ou seja, de uma unidade, uma não-diferenciação e ausência de opostos, a consciência tentará reunir todos estes conceitos em algo maior. No entanto, não haverá sucesso, pois o 152

entendimento deste grande símbolo que exprime a união de todos esses conceitos é uma unidade simbólica nova e não a mera soma de todos os conceitos anteriores. Este grande símbolo da existência e da unidade totalizadora é o uroboros. Ele é, portanto, o redondo que contém o ventre primal materno e o útero, mas também a união do antagonismo feminino-masculino, os ancestrais, pai-e-mãe, todos unidos em coabitação permanente. De lá a consciência do homem surgirá e para lá ela retornará, constituindo o perfeito e completo fim em si mesmo (Neumann, 1995). Esta imagem de um monstro circundando todo o planeta provavelmente é muito antiga, pois sua ocorrência é confirmada em vários poemas escáldicos. Contudo, apesar de a princípio ser uma ameaça, o monstro acabou por constituir o grande equilíbrio cósmico ao conferir estabilidade especialmente para as montanhas e terras. Tanto é que, na narrativa em que Thor tenta pescá-la e a retira do fundo do oceano, as terras estremecem assustadoramente. Depois, no Ragnarök, essa imagem do mar engolindo a terra volta a aparecer no momento em que Jörmungandr sai do mar para atacar os deuses. Seu próprio nome está relacionado a isso, visto que ele significa literalmente “vareta enorme”. (Langer, 2015). A respeito deste simbolismo da serpente circulando o mundo inteiro com seu corpo, uma pausa para a cosmologia medieval será útil. Vale ressaltar que a concepção vigente na época era a de um planeta em formato de disco achatado em cujo centro estaria a, tendo o mar cercando-a por todos os lados. A serpente, portanto, estaria longe do centro, onde homens e deuses viviam, da mesma maneira que Hel e seu mundo dos mortos estariam muito abaixo da terra, num lugar inacessível aos vivos. O fato de Jörmungandr circula o mundo e morde sua própria cauda simboliza que ela forma um completo círculo que envolve deuses e homens (Lindow, 2001). Ainda assim, a principal imagem que circula acerca do símbolo desta serpente é enquanto besta gigante localizada no fundo do oceano, filha de Loki e o maior dos 153

inimigos do deus Thor. Se, por um lado, trouxe equilíbrio entre o mar e as montanhas, no momento final avassalará este equilíbrio, atacará e matará Thor, o campeão e herói dos deuses e homens. No que diz respeito à simbologia dos monstros e bestas, Chevalier & Gheerbrant (1992) afirmar que tratam-se de símbolos das dificuldades a serem vencidas, dos obstáculos a serem superados para que um grupo de indivíduos – ou, muitas vezes, nos mitos, toda a raça humana – obtenham o acesso final definitivo a um bem maior, relacionado a algum tesouro material, biológico ou espiritual. Portanto, a figura aterradora do monstro está presente para provocar o esforço, a dominação do medo e o heroísmo. Não é coincidência que figuras tão tenebrosas, maléficas e de proporções gigantescas e assustadoras sejam, na grande parte dos mitos, os principais inimigos dos deuses. Sejam os gigantes de gelo ou o poderoso Surtr (gigante que virá de Múspellheim até Asgard no momento do Ragnarök) na mitologia nórdica, ou os titãs da clássica mitologia grega. Psiquicamente, o rumo da individuação deve passar por diversos

ritos

iniciáticos, que só serão desencadeados após enfrentamento dos monstros. Cabe ao herói passar por provas, dar a medida de suas capacidades e se provar capaz, para só então conquistar o que estava à altura de seus méritos (Meletínski, 2015). Associado ao rito de passagem, o papel do monstro é o de devorar o homem velho para que o novo nasça. O mundo guardado pelos monstros e bestas não é o mundo exterior dos tesouros fabulosos, mas o mundo interior do espírito, que não pode ser acessado a não ser por meio de uma transformação interior. É por esse motivo que vemos em várias civilizações as ocorrências de monstros devoradores, andrófagos e psicopombos que são símbolos da necessidade de uma regeneração. A fórmula morra o homem velho, viva o homem novo resume a simbologia do monstro (Chevalier & Gheerbrant, 1992). 154

Na mitologia nórdica é possível encontrar esta ideia de ressureição de um novo mundo e de regeneração na narrativa do Ragnarök. Os deuses são mortos pelos monstros, provocando o nascimento de um novo mundo que será repovoado por um casal de humanos que restou, mundo esse que também será governado por uma nova geração de deuses. Seguindo outra linha de interpretação, Diel (2014) afirma que os monstros são símbolos de certa função psíquica que estaria conectada à imaginação exaltada e errônea, que seria, então, fonte de desordens e infelicidade. Trata-se de uma deformação doentia, a caracterização de um funcionamento enfermo da força vital. Neste caso os monstros não representam ameaças exteriores, mas forças reveladoras de certo perigo interior, que seriam as formas horríveis de desejos pervertidos, procedidos da angústia. É um estado compulsivo composto de duas atitudes diametralmente opostas: a exalração desejosa e a inibição amedrontada. Portanto, do mesmo modo que os monstros saem geralmente da região subterrânea, de cavidades e antros sombrios, da mesma forma certas imagens perturbadoras do inconsciente também o fazem.

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III. XV Ragnarök

O Ragnarök trata-se, basicamente, do acontecimento que culminará na morte de todos os deuses, no fim do cosmos e o término do presente mitológico que é narrado nas Eddas. Em sua obra, Snorri Sturluson usa o termo Ragnarøkkr, que significa “Crepúsculo dos Deuses” (Lindow, 2001). Segundo Langer (2015), a palavra Ragnarök aparece somente na poesia Éddica e não há sua ocorrência em nenhuma outra fonte escrita da Era Viking (793 – 1066 d.C.). Entre as principais referências escritas sobre o Ragnarök encontram-se os poemas Vafþrúðnismál, Lokasenna e sobretudo o Völuspá, de onde, inclusive, Snorri Sturluson tirou vários trechos e se embasou para nos apresentar, no Gylfagininng, sobre este acontecimento. Davidson (2004) também corrobora com a ideia de que Snorri baseou-se fortemente no poema do Völuspá, tendo feito apenas alguns pequenos acréscimos aqui e ali para apresentar este mito em sua Edda em Prosa. Conforme narrado, então, principalmente no Völuspá e no Gylfaginning, a grande fatalidade do Ragnarök é prenunciada pela chegada de um grande inverno – o fimbulvetr-, cuja duração é de três anos ininterruptos, além de um período de muito sofrimento, perversidade e constantes guerras entre os homens. Em seguida, ocorrerão poderosos terremotos e o sol escurecerá até que, por fim, os monstros se livrarão de suas amarras: a Serpente de Midgard sairá do mar e fará as águas subirem até que dominem a terra; os gigantes chegarão em seu barco, feito das unhas dos homens mortos; Fenrir se soltará de suas correntes, enquanto que outra companhia, liderada pelo gigante Surtr, virá de Múspellheim e atravessarão a ponte Bifröst para invadir Asgard (Davidson, 2004). Após a perda do sol e da lua, Fenrir se soltará de suas correntes, fazendo o mundo tremer. Heimdall, o guardião da ponte Bifröst, soará sua corneta Gjallarhorn, 156

avisando aos deuses do que está por vir. Enquanto isso, Yggdrasil estremecerá e os gigantes virão do leste para atacar a terra dos deuses; simultaneamente, a Serpente de Midgard deixa o mar rumo ao ataque. Loki é visto comandando um barco, vindo da terra dos gigantes, pronto para atacar (Lindow, 2001). Snorri conta que, neste momento, Odin enfrenta o lobo Fenrir, Thor combate a Serpente de Midgard, Freyr luta contra o gigante Surtr e Týr se encarrega de Garmr, o cachorro gigante. Por fim, Freyr acabará sendo morto pelo gigante Surtr; Týr e Garmr assassinam um ao outro; Thor consegue matar a Serpente de Midgard, mas depois dá nove passos e, consumido pelo seu veneno, morre; Fenrir engolirá Odin, mas seu filho, o deus Vídarr, se vingará matando o lobo. Simultaneamente, Loki batalha contra Heimdall, mas sem vencedores, pois um acabará matando o outro.

Imagem 7: Asgardsrein, por Peter Nicolai Arbo, 1872. Fonte: http://zenpundit.com/wp-content/uploads/2015/01/Aasgaardreien-Peter-NicolaiArbo-Wild-Hunt-detail.png

Em seguida, conforme aponta Lindow (2001), a morte dos deuses é seguida por um extermínio de todo o cosmos criado por eles. O sol torna-se negro, a terra é engolida pelo mar, fogo e fumaça atingem o céu: por fim, o mundo é mergulhado em caos. No 157

entanto, o Ragnarök, apesar de acontecimento escatológico, possui uma segunda parte a respeito do renascimento e do recomeço. A terra ressurgirá de debaixo do oceano e uma nova geração de deuses estará habitando-a, e, além disso, possuem algumas características de seus antepassados. Os deuses Höd, Baldr e Hoenir estarão lá também, pois sobreviveram ao Ragnarök. Snorri também afirma que Vídar e Váli, filhos de Odin, e Magni e Módi, filhos de Thor, estarão lá – sendo que os dois últimos terão herdado Mjöllnir, o martelo de seu pai -. Ainda segundo Snorri, haverão dois humanos que terão sobrevivido, o casal Líf e Lífthrasir, que repovoarão a terra com a raça humana. Davidson (2004) sumariza o Ragnarök dizendo que imagens como o afundamento da terra no mar; o triunfo do frio, do fogo e da escuridão; a libertação dos monstros até então aprisionados e a morte dos deuses provavelmente se abrigaram profundamente na mente dos homens, o que explica a persistência deste relato até os tempos de hoje, inclusive após forte consolidação do cristianismo. O cenário do Ragnarök, confome diz a autora, “pode realmente ser visto como uma grande e aterradora imagem de um colapso mental, ou como a completa desintegração da mente na morte” (Davidson, 2004, p.177), conferindo a esta parte do mito poder e influência inegáveis. Para Chevalier & Gheerbrant (1992), a ideia de uma escatologia possui três detalhes estruturais: primeiramente, trata-se de uma revelação que se apóia em realidades misteriosas – no caso da mitologia nórdica, no poema Völuspá, cujo conteúdo se refere às visões de criação e destruição do mundo, essas informações são dadas por uma profetisa, que foi ressuscitada pelo deus Odin para esta finalidade-; em segundo lugar, trata-se de uma profecia, pois é uma realidade sabida que ainda está por vir – Ragnarök é o fim mais à frente, que só foi descoberto por ter sido profetizado -; em terceiro lugar, toda escatologia é uma visão cujas cenas e detalhes funcionam como símbolos. 158

Dessa forma, as visões escatológicas e apocalípticas não possuem valor por si mesmas, mas sim dos simbolismos que carregam, já que praticamente tudo em uma narrativa escatológica possui significado simbólico (Chevalier & Gheerbrant, 1992). No caso do Ragnarök, temos o simbolismo das estações desreguladas e intensas, a revolta da natureza, principalmente pelo mar, e o rapto da lua e do sol, coisas que tornam o mundo inabitável para a raça humana. Mas o simbolismo do fim atua também sobre os deuses: tal fato é simbolizado pelos monstros, que são nada mais nada menos que as bestas apocalípticas que responsáveis pela morte dos deuses, mergulhando o mundo divino no caos e trazendo o fim de uma Era. Todos esses símbolos, quando lidos no contexto escatológico do qual fazem parte, são representantes das características necessárias para que se atinja, invariavelmente, o fim do mundo (Chevalier & Gheerbrant, 1992). Os mitos escatológicos trazem, então, narrativas profetizadas acerca de um futuro ainda não vivido pelo homem, mas já conhecido por ele, futuro este em que existe seu fim. Contudo, eles tratam da destruição e do caos que necessitam ressurgir de maneira descontrolada e intensa para que um outro recomeço possa existir. Este é frequentemente apontado como uma nova chance para o Homem, que tornou-se melhor: este motivo arquetípico é conhecido e ocorre também em outras mitologias, como no mito cristão do dilúvio de Noé, do qual só os puros se salvaram (Chevalier & Gheerbrant, 1992). Na mitologia nórdica, há o casal Líf e Lífthrasir que, conforme dito por Snorri, repovoarão a Terra, dando origem a uma nova raça de seres humanos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Visa-se, neste momento, recapitular e ressaltar alguns dos pontos chave desta monografia, explicitando-os ao leitor conforme retomamos esses aspectos importantes que puderam ser revelados por meio da utilização da ferramenta metodológica proposta. Também pretende-se apontar lacunas, neste campo de estudo, que foram evidenciadas pela monografia e que, portanto, carecem de maior atenção por parte dos pesquisadores do assunto que desejem se aprofundar em tais questões. A presente proposta consistia, então, em analisar um material mitológico em forma de escrita, a Edda em Prosa, que constituiu o corpus da atual pesquisa. Debruçouse, mais especificamente, sobre seu primeiro capítulo, o Gylfaginning. Trata-se de um apanhado mitológico escrito em prosa e contendo várias estórias e narrativas que envolvem os deuses da Escandinávia politeísta. Encontrou-se, nesta fonte, os mitos cosmogônicos e escatológicos da mitologia nórdica, bem como algumas peripécias envolvendo os deuses, monstros e gigantes da mitologia nórdica. Contudo, um ponto digno de observação é o fato de que este material foi supostamente escrito e compilado por um cristão, o islandês Snorri Sturluson, por volta do ano de 1220 D.C.. Desta forma, deparamo-nos com um material que trata única e exclusivamente das narrativas mitológicas e heroicas do passado politeísta dos nórdicos, mas que, no entanto, foi escrito por um monge declaradamente cristão. Buscou-se, portanto, analisar a presença dos símbolos encontrados na obra, numa tentativa dupla de, primeiramente, demonstrar seus aspectos e significados dentro da cultura nórdica pagã, mas, em seguida, apontar para certas universalidades e ocorrências deste mesmo símbolo em outras culturas e períodos históricos. Foi realizada uma investigação bibliográfica e qualitativa do material proposto. Para tal, foram utilizados os pressupostos de Jung sobre o conceito de arquétipo, que seria, basicamente, uma tendência instintiva universal para representar certos temas e 160

imagens simbólicas. Por mais que estas representações possam ter inúmeras variações de detalhes e “roupagem” – manifestação concreta - de acordo com a sociedade e o momento histórico estudados, elas constituem tendências a formar as mesmas representações de um motivo significativo sem que o mesmo perca sua configuração e sentido original. Encararam-se os símbolos como unidades multifacetadas para onde convergem vários significados e sentidos. Segundo o olhar junguiano, os símbolos funcionam enquanto unidade de ação mediadora que constitui uma tentativa de encontro entre opostos movida pela tendência inconsciente à totalização. Dessa forma, o símbolo é uma linguagem universal infinitamente rica, capaz de exprimir, por meio de imagens, muitas das coisas que transcendem problemáticas específicas dos indivíduos, sendo de cunho universal e inerente ao ser humano. Foi corroborado com Mircea Eliade ao conceber os símbolos como interfaces que demonstram grande capacidade de revelar determinados aspectos do real, os mais profundos deles, desafiando outros meios de conhecimento lógicos e racionais que não conseguem chegar lá. É justamente por isso que eles estão tão presentes no folclore e nas mitologias. Era de interesse, portanto, procurar pela ocorrência de símbolos e arquétipos na Edda em Prosa para fazer, em seguida, uma breve discussão contextual e histórica sobre seu significado e ocorrência na mitologia nórdica. Em seguida, amplificamos os significados de cada um, em busca de sentidos mais universais e (provavelmente) inatos ao consciente coletivo. Devido a certas questões de ordem prática não pudemos nos deter sobre todos os símbolos, de modo que há consciência a respeito desta primeira lacuna. Não foi possível abranger alguns importantes deuses, como Baldr e Heimdall, ou então que se aprofundasse em certos temas míticos que possuem alguns paralelos com os de outras culturas: o castigo aplicado a Loki, semelhante ao de Prometheus da mitologia grega; ou 161

então o tema arquetípico da ida do herói ao submundo para trazer um morto de volta à vida, como Hermodr sai em busca de Baldr. Contudo, estes são temas e símbolos que também carecem de uma posterior investigação por parte dos pesquisadores do assunto. Para escolha dos símbolos que deveriam entrar em análise nesta monografia, utilizou-se como filtro a ideia de Jung acerca do autor. O autor, em relação à sua obra, está sujeito a lapsos e interferências do inconsciente individual e principalmente do inconsciente coletivo – ainda mais quando trabalha com materiais mitológicos – de forma que o resultado final é tanto uma obra individual e subjetiva quanto universal e coletiva. Portanto, os temas mais abordados e aprofundados na Edda em Prosa revelam, primeiramente, que Snori Sturluson tinha maior conhecimento acerca deles e, também, que provavelmente as narrativas e cultos do passado politeísta da Escandinávia conferiam mais vivacidade e importância a certos símbolos do que a outros, o que ocorre em qualquer religião ou mitologia. Em segundo lugar, o inconsciente coletivo também faz um papel de filtragem, levando o autor a descrever certos símbolos e estórias com mais peso e detalhes, enquanto que outros são meramente mencionados. Partiu-se do princípio de que essa importância dada a certos conteúdos ocorreu não só por mais disponibilidade de material acerca dos mesmos para que Snorri escrevesse sua obra, mas também que seu inconsciente coletivo e a “consciência de sua época” alinharam-se mais a determinados símbolos do que a outros. Este processo é o que Jung comparava à homeostase, afirmando que, quando o coletivo e o social se alinham a certos símbolos em demasia – causando o desequilíbrio – os artistas desta época surgem como canalizadores, tentando resgatar os conteúdos opostos numa busca de que se reestabeleça o equilíbrio. Afinal, nenhuma vivência em demasia e em excesso de um símbolo é saudável. Foram encontrados, no capítulo anterior, alguns indícios relevantes para o propósito desta monografia. Puderam-se encontrar símbolos relacionados à “nostalgia 162

do Paraíso” que, conforme Eliade, seria a vontade inominável do Homem de voltar ao mais completo estado de si mesmo, anterior à sua “queda do Paraíso”, um estágio da perfeição e da suprema paz e completude, primordial e anterior a tudo. Contudo, este seria um arquétipo impossível de se realizar em nossa existência mundana e concreta, o que nos causa angústia e suscita, nas mitologias, a ocorrência de imagens dos Paraísos e outros lugares só possíveis de serem adentrados pelos merecedores. Na mitologia nórdica, uma possível ocorrência destes símbolos estaria expressa nos lugares Asgard e Gimlé. Detectou-se também a simbologia do axis mundi, a coluna universal que sustenta o eixo vertical dos mundos e os conecta, sendo um pilar cósmico que comunica os diferentes planos – homens, deuses e o submundo dos mortos - e faz de um certo povo, o “centro” do Universo, representado pela Yggdrasil na mitologia nórdica. De aspecto semelhante, notou-se a ocorrência da Bifrost, a ponte que liga o mundo celestial dos deuses ao mundo profano dos homens. Ambos os símbolos denotam o arquétipo da ligação e conexão humano-divina, responsável por indicar simbolicamente, aos homens, a sua conexão com o mundo dos deuses. Ainda relacionados de certa forma a este aspecto, foi feita uma análise da figura dos corvos de Odin, Huginn e Munnin, em seu papel de mensageiros dos deuses. Portanto, o corvo é representante de um canal de comunicação entre diferentes mundos e modos de existência – divina e humana, sagrada e profana - e, por fim, atuam também como preenchedores de funções proféticas. Já as Valquírias surgem enquanto símbolo de certa forma dual, atuando como mensageiras dos deuses, guias dos combates e responsáveis por conduzir os heróis à morte; mas, uma vez em Valhala, serviam-lhes cerveja e hidromel. São figuras que simbolizam, simultaneamente, a embriaguez dos arrebatamentos e a ternura das recompensas, a morte e a vida, o heroísmo e o descanso do guerreiro. Elas atuam, então, 163

como símbolo do feminino que cuida e nutre, e, simultaneamente, enquanto modelo de marcialidade e poder. A respeito dos deuses, encontrou-se, em Odin, atribuições simbólicas relacionadas à beligerância, à marcialidade e à guerra enquanto que, paralelamente, são atribuídos ao deus aspectos da magia, da poesia, da embriaguez e do êxtase. Por sua vez, em Thor perceberam-se características do arquétipo do herói cultural, responsável por manter a ordem e o equilíbrio no mundo por meio da eliminação das forças do caos, demonstrando grande apreço pelos humanos, apesar de ser da raça dos deuses. Já o deus Freyr encarna um símbolo masculino da fertilidade, da paz e das boas colheitas. Além disso, ele é responsável por encarnar o símbolo da hierogamia entre deuses e gigantes, simbolizando a união de princípios diferentes. Frigg e Freyja, deusas da mitologia nórdica, estão relacioanadas a aspectos mais pessoais e subjetivos do que coletivos. Representam, então, a convivência familiar, o casamento, o nascimento e a fertilidade humana. Entre elas, foi possível evidenciar que Frigg atua simbolicamente com questões da maternidade, do cuidado e do nutrir, estando relacionada ao arquétipo de Grande Mãe, enquanto que Freyja possui ligação com o sobrenatural e com a clarividência, relacionando-se também à prática da magia do seiðr. Loki, por sua vez, encarna a figura do trickster, o oposto do herói cultural. Tratase de uma figura travessa, infantil e egoísta, pondo as próprias vontades e desejos à frente do coletivo e do senso de comunidade. No entanto, ressaltou-se sua importância enquanto figura arquetípica do caos e da instintividade, sendo, assim, um símbolo inconsciente que nos coloca em contato com nossas raízes e desejos instintivos. Se por um lado não devemos viver intensamente nossa instância instintiva, por outro, se nos esquecermos dela por completo nos desligamos de nossas raízes e corremos o risco de ficarmos perdidos na racionalidade infrutífera. 164

Foi possível trazer também algumas observações sobre o mito cosmogônico e o escatológico que encarnam, a nível simbólico, a criação e origem da consciência e da experiência humana, e o término cíclico e a renovação, respectivamente. Já os monstros e gigantes são símbolos das forças do caos e da instintividade desenfreada que podem tomar o controle do inconsciente. São também os obstáculos a serem superados para que o homem alcance sua plenitude. Espera-se, enfim, que o presente estudo tenha servido para demonstrar a maneira como os símbolos do inconsciente e os arquétipos podem ser registrados e vivenciados nas mitologias e crenças antigas. Eles se fazem presentes nos relatos e narrativas mitológicas transformando-se em lugares, deuses, entidades espirituais ou bestas. Não se deseja, com isso, renunciar a uma interpretação histórica, contextualizada e antropológica dos mitos; mas, por se tratar de uma monografia em psicologia, optou-se por focar a interpretação e análise no modo como o inconsciente coletivo humano vive estes símbolos. Assim, o ponto chave e a mensagem definitiva que se deseja expressar com o estudo de símbolos e arquétipos feito aqui é a importância da mitologia enquanto vasta fonte onde símbolos, crenças e forças do inconsciente são inscritas. Daí a relevância do estudo do mito não só para os historiadores e antropólogos, que têm se dedicado com afinco à questão, mas também aos psicólogos. Afinal, nenhuma outra criação humana é capaz de unir tantos símbolos de maneira tão profunda e entrelaçá-los coerentemente, unindo-os e transformando-os em tramas, narrativas e estórias ricas em significado. O resultado final é uma amálgama de temas míticos que abarca desde questões como a criação da consciência e a sombra coletiva, até outras como as hierarquias sociais, interações humanas e estrutura da família. Seria uma pena se as forças inconscientes – e por que não universais - que impulsionam o ser humano rumo à criação e perpetuação de tais mitos fossem negligenciadas pelo psicólogo. 165

Contudo, se faz também imprescindível demonstrar nesta monografia as representações simbólicas que os povos da Escandinávia politeísta fizeram destas estruturas da psique e arquétipos. Ou seja, foi necessário que se explorasse, a respeito de cada símbolo - mesmo que brevemente - a maneira como instâncias e pressupostos inerentes da psique acabaram por se manifestar na cultura escandinava antiga em especial. Mesmo assim, não detemos a ilusão de ter esgotado tudo que há para ser estudado a respeito desta “roupagem” – desta face – que a cultura escandinava antiga deu aos símbolos e arquétipos, gerando todo seu sistema mitológico e ritualístico. Temos a ideia de que, por mais que certos símbolos contenham uma universalidade, cada cultura e período histórico os representam de maneira única, e esta peculiaridade só pode ser analisada com as lentes da História, da Linguagem, das Ciências da Religião e da Antropologia voltadas especificamente para aquele recorte. Foi feito o máximo para que este estudo se detivesse ao seu objetivo primeiro: demonstrar, por meio da hermenêutica analítica, o modo como os arquétipos e símbolos podem ser expressos na mitologia e no registro escrito da mesma. Também buscou-se elucidar um pouco a respeito da relação autor-obra segundo a psicologia analítica: o autor da Edda em Prosa, por mais que fosse um cristão erudito e tenha tentado, no prólogo da obra, oferecer uma explicação do racionalismo cristão para os mitos politeístas, não conseguiu conter alguns alinhamentos simbólicos de seu inconsciente coletivo com os conteúdos da mitologia nórdica. Observa-se, a partir desse choque de sistemas mitológicos e religiosos distintos, um material resultante que é riquíssimo em conteúdo simbólico e retrata um material quase infindável a ser estudado e desbravado. Ao concluir esta monografia é importante que se ressalte a parceria que deve existir entre a psicologia e as outras ciências humanas, suas disciplinas irmãs que abarcam deste a antropologia e a linguagem até os estudos de tradução e a história. Não esperamos e nem temos a presunção de utilizar a psicologia como única ferramenta de 166

análise possível no estudo dos mitos e muito menos como a única maneira de interpretálos e compreendê-los. Pelo contrário, esperamos que o presente trabalho tenha servido como uma primeira ligação, mesmo que tímida, entre a psicologia e estas outras ciências, na tentativa de desbravar melhor o estudo autônomo dos símbolos, o inconsciente humano e as representações mitológicas do mesmo. Também desejamos, com esta monografia, que a psicologia arrisque a se enveredar mais pelos caminhos da mitologia e do folclore, algo que tem acontecido, até os dias de hoje, poucas vezes – e quase sempre voltado à mitologia clássica -. Por fim, gostaríamos de chamar a atenção para o recente fenômeno de ressurgimento do interesse pela cultura e mitologia escandinavas. Que o mundo acadêmico, em suas mais diversas áreas, continue carregando a tarefa de explorar esta mitologia incrivelmente rica, vasta e que ainda carece de mais atenção por parte dos pesquisadores das ciências humanas.

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REFERÊNCIAS

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Langer, J. (2015). Hel. Em J. Langer (Org.). Dicionário de mitologia nórdica. São Paulo: Hedra. Langer, J. (2015). Hugin e Munin. Em J. Langer (Org.). Dicionário de mitologia nórdica. São Paulo: Hedra. Langer, J. (2015). Niflheim. Em J. Langer (Org.). Dicionário de mitologia nórdica. São Paulo: Hedra. Langer, J. (2015). Odin. Em J. Langer (Org.). Dicionário de mitologia nórdica. São Paulo: Hedra. Langer, J. (2015). Ragnarök. Em J. Langer (Org.). Dicionário de mitologia nórdica. São Paulo: Hedra. Langer, J. (2015). Snorri Sturluson. Em J. Langer (Org.). Dicionário de mitologia nórdica. São Paulo: Hedra. Langer, J. (2015). Valquírias. Em J. Langer (Org.). Dicionário de mitologia nórdica. São Paulo: Hedra. Langer, J. (2015). Ymir. Em J. Langer (Org.). Dicionário de mitologia nórdica. São Paulo: Hedra. Langer, J. (2006). Mythica Scandia: Repensando as fontes literárias da mitologia Viking. Brathair – Revista de estudos celtas e germânicos. 6;2. p.48-78. Lindow, J. (2001). Norse Mythology: a guide to the gods, heroes, rituals, and beliefs. New York: Oxford University Press. Martin, K. (2012). O livro dos símbolos. São Paulo: Taschen. Meletínski, E. M. (2015). Os arquétipos literários. São Paulo: Ateliê Editorial. Neumann, E. (1999). A Grande Mãe. São Paulo: Cultrix. Neumann, E. (1995). História da Origem da Consciência. São Paulo: Cultrix. Palamin, F. G. (2011) Breves considerações sobre a Edda Poética e a Edda em Prosa [Resumo Completo]. In Anais do V Congresso Internacional de História – LabTempo, Maringá, Paraná. 171

Palamin, F. G. (2015). Bifrost. Em J. Langer (Org.). Dicionário de mitologia nórdica. São Paulo: Hedra. Palamin, F. G. (2015). Muspell. Em J. Langer (Org.). Dicionário de mitologia nórdica. São Paulo: Hedra. Pieri, P. F. (2002). Dicionário Junguiano. Petrópolis: Vozes. Poilvez, M. (2015). Yggdrasil. Em J. Langer (Org.). Dicionário de mitologia nórdica. São Paulo: Hedra. Samuels, A. (1988). Dicionário Crítico de Análise Junguiana. São Paulo: Imago. Silveira, N. (2011). Jung: vida & obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Sturluson, Snorri (2006). The Prose Edda. Translation from the Icelandic to English and with an introduction by Arthur Gilchrist Brodeur. New York: Dover Publications. Zimmer, H. (1946). Myths and symbols in Indian Art and Civilization. Princeton University. Wanner, K. J. (2008). Snorri Sturluson and the conversion of cultural capital in medieval Scandinavia. Canada: University of Toronto Press.

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ANEXO I

Glossário

Æsir: O principal panteão dos deuses do mundo nórdico. Este clã de deuses reside em Ásgard. Álfheimr: A morada dos Elfos da Luz. Andlangr: Espécie de céu mais ao sul, conforme retratado por Hárr. Angrboda: Giganta com quem Loki teve três filhos: A Serpente de Midgard, Fenris e Hel. Ása-Thor: Outro nome para o deus Thor. Ásgard: a morada dos deuses Æsires. Askr: Primeiro homem, criado pelos deuses para povoar o mundo. Ásynjur: Sinônimo de Æsir. Aurboda: Giganta das montanhas, mãe de Gerdr. Baldr: Segundo filho de Odin e Frigg. É o mais justo, piedoso e belo dos deuses. Barrey: Lugar onde Freyr teve sua noite de núpcias com Gerdr. Beli: Gigante que posteriormente foi morto por Freyr. Bergelmir: Único gigante de gelo que restou após a morte de Ymir. Bestla: Esposa do deus Borr, mãe de Odin. Bifröst: Ponte que conecta a morada dos deuses, Ásgard, ao mundo dos homens, Midgard. É associada ao arco-íris. Bilskirmnir: Salão do deus Thor, localizado em seu reino Thrúdvangar. 173

Borr: Filho do deus Búri e pai de Odin. Bragi: Deus da poesia e da arte escáldica. Breidablik: Morada do deus Baldr. Búri: Primeiro deus da mitologia nórdica. Pai de Borr e avô de Odin. Drómi: Segunda corrente mágica com que tentaram prender Fenris. Elli: Anciã que desafia Thor para uma luta em Útgarda-Loki. Embla: Primeira mulher, criada pelos deuses para povoar o mundo. Escaldo: Nome dado aos poetas e contadores de estórias na Escandinávia da Era Viking. Fenris: Lobo inimigo dos deuses, filho da giganta Angrboda e do deus Loki. Fir: Æsir curandeira. Forseti: Deus nórdico da paz, do conhecimento interior e da justiça. Filho de Baldr e Nanna. Freki: Um dos lobos de Odin. Freya: Deusa Vane filha de Njördr. É a mais importante deusa da mitologia escandinava. Deusa do amor e da volúpia. Freyr: Deus Vane filho de Njördr. Deus da fertilidade, da paz e da riqueza. Frigg: Deusa Æsir esposa de Odin, mãe de Baldr e madrasta de Thor. Fárbauti: Gigante pai de Loki. Gangleri: disfarce adotado por Gylfi quando ele parte rumo a Ásgard. Garmr: Cão gigante que lutará contra Týr no Fim dos Tempos. Gefjun: Deusa da família dos Æsir, que enganou Gylfi. Gerdr: Giganta e deusa muito bela, por quem Freyr se apaixonou e com quem se casou. 174

Geri: Um dos lobos de Odin. Gimlé: Espécie de paraíso onde os homens justos e puros de coração continuarão habitando após o Destino dos Deuses. Gimlé: Morada nos céus, espécie de paraíso. Ginnungagap: Era o Grande Vazio que existia antes de tudo, até mesmo da ordem divina. Gjallar-Horn: Trombeta do deus Heimdallr, que pode ser ouvida por todos os nove mundos. Gjöll: Rio que antecede o reino de Hel. Gleipnir: Corrente mágica com que tentam amarrar o lobo Fenris. Glenr: Casou-se com Sol. Glitnir: Salão em que mora o deus Forseti. Gná: Cuida dos assuntos de Frigg ao redor do mundo. Gylfi: Protagonista do capítulo. É rei do território conhecido como a Suécia atual. Após ser enganado por Gefjun, partiu rumo à morada dos deuses em busca de respostas. Gýmir: Gigante das montanhas, pai de Gerdr. Haenir: Deus do grupo dos Æsir. Hati: Lobo gigante que corre atrás de Lua, querendo devorá-lo. Heidrún: Cabra que fica em Valhall. De suas tetas sai o Hidromel que alimenta os homens de lá. Heimdallr: Conhecido como deus branco. Guardião dos deuses e da ponte Bifröst. Hel: Filha de Loki e Angrboda. É a deusa do Reino dos Mortos, que recebe seu nome.

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Hermódr: Filho de Odin e membro dos Æsir, conhecido por sua bravura.

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Himinbjörg: Lugar localizado entre o fim do Céu e o começo da Bifröst. Hlidskjálf: Trono mágico de Odin, onde ele senta e de lá é capaz de observar tudo o que acontece no universo. Hlín: Protetora dos homens. Hrymir: Gigante que comandará o barco Naglfar no Fim dos Tempos. Hræsvelgr: Gigante capaz de se transformar em águia, responsável pelo vento. Huggin: Um dos corvos de Odin. Seu nome significa pensamento. Hugi: Oponente de Thjálfi no desafio da corrida em Útgarda-Loki. Hvergelmir: Grande poço de onde brotaram vários rios, antes do mundo existir. Hymir: Gigante com quem Thor vai pescar até que encontra a Serpente de Midgard. Hárr: “O Elevado”. É um dos que responde as perguntas de Gangleri quanto este vai para Ásgard. Hödr: Deus irmão de Baldr. Apesar de cego é extremamente forte e potente. Idunn: Esposa do deus Bragi. É protetora das maças da juventude, das quais os deuses se alimentam. Jafnhárr: “Igualmente Elevado”. É um dos que responde as perguntas de Gangleri quando este vai para Ásgard. Jörmungandr: A Serpente de Midgard. Segundo filho de Loki com a giganta Angrboda. Foi jogada no oceano por Odin. Jötunheim: É o mundo onde residem os gigantes, tanto os de gelo quanto os de pedra. Kvasir: Deus sábio que, segundo a mitologia nórdica, nasceu da saliva de todos os deuses (conciliação dos Æsir com os Vanir). Laedingr: Primeira corrente mágica com que tentaram prender Fenris. 177

Laerádr: Árvore que alimenta a cabra Heidrún. Lofn: Deusa do matrimônio. Logi: Oponente de Loki no desafio da comida em Útgarda-Loki. Loki: No Gylfaginning, Loki é tido como um deus Æsir. É um deus controverso, conhecido por travessuras, disfarces e enganações. Líf: Mulher que sobreviverá ao Fim dos Tempos e repovoará o mundo. Lífthrasir: Homem que sobreviverá ao Fim dos Tempos e repovoará o mundo. Magni: Filho de Thor. Midgard: A “terra do meio”. É o lugar onde habitam os homens. Midgard: Na mitologia nórdica, a moradia dos homens. Mjöllnir: Martelo mágico, arma do deus Thor. Mundilfari: Pai de Sol (deusa do sol) e Lua (deus da Lua). Muninn: Um dos corvos de Odin. Seu nome significa memória. Mímir: Um deus/gigante, guardião da fonte de sabedoria localizada na base de Yggdrasil. Módgudr: Guardiã da ponte para Hel. Módi: Filho de Thor. Múspell: Referido outras vezes pela mesma obra como Múspellheim. Primeiro mundo que surgiu depois do Grande Vazio, ao sul. Extremamente brilhante e quente. Naglfar: Barco que fica em Múspell. É feito de unhas dos homens mortos. Nanna: Deusa Æsir esposa do deus Baldr. Narfi: Gigante que mora em Jötunheim. Pai da Noite. 178

Nida Fells: Salão onde morarão todos os bons e puros de coração. Niflheim: Mundo escuro, do frio e da névoa. Existia antes mesmo da criação do mundo e era separado de Múspell pelo grande abismo Ginnungagap. Njördr: Deus do grupo dos Vanes. Controla os ventos e o mar, trazendo riqueza àqueles que navegam e pescam. Nál: Deusa relacionada às árvores. Mãe de Loki. Nári: Filho de Loki. Nástrand: Grande salão coberto de serpentes, onde habitam os homens assassinos e quebradores de juramentos. Nídhöggr: Enorme dragão que mora em Niflheim. Ele rói a base de Yggdrasil, tentando derrubá-la. Nóatún: Morada do deus Njördr, no mar. Odin: Deus Æsir, divindade suprema dos escandinavos. Odur: Deus por guiar a carruagem do dia pelos céus. Ókólnir: Lugar sagrado onde nunca há frio e a comida é sempre farta. Öku-Thor: Outro nome para o deus Thor. Pai de Tudo: Outro nome atribuído a Odin. Ratatöskr: Esquilo que corre acima e abaixo da Yggdrasil, trocando mensagens principalmente entre a águia Hraelsveg e o dragão Nídhöggr. Rindr: Suposta deusa ou giganta com quem Odin teve seu filho Váli. Röskva: Filha do fazendeiro que Thor encontra e que depois será sua serva. Selund: Pedaço de terra que Gefjun obteve de Gylfi por meio de sua artimanha.

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Sif: Esposa do deus Thor.Deusa relacionada à guerra, principalmente à leveza em combate. Sigyn: Segunda esposa de Loki. Deusa da constância e da fidelidade, relacionada também ao submundo. Sjöfn: Deusa do amor. Skadi: Filha de um gigante, esposa do deus Njördr. Deausa do inverno, da caça e das montanhas. Skaldi: Uma das Nornas que determina o curso da vida dos homens, relacionada ao futuro. Skirnir: Servo e mensageiro do deus Freyr. Skrýmir: Gigante com quem Thor se encontra a caminho de Útgardr. Skídbladnir: O barco mágico dos deuses. Skóll: Lobo gigante que corre atrás de Sol, querendo devorá-la. Sleipnir: Cavalo mitológico de Odin. Possui oito patas, é o cavalo mais rápido do mundo e pode andar sobre o ar e a água. Surtr: Gigante de fogo que guarda o reino de Múspell. Svadilfari: Cavalo que tentou ajudar o gigante obreiro a terminar as obras em Ásgard a tempo. Svásudr: Pai do Verão. Syn: Guardiã das portas dos mundos mágicos. Sæhrímnir: Javali de cuja carne infinita os homens se servem em Valhall. Thjálfi: Filho do fazendeiro que Thor encontra e que depois será seu servo.

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Thor: Um dos principais deuses Æsir e o mais forte deles. Deus dos trovões e também o maior matador de gigantes. Thridi: “O Terceiro”. É um dos que responde as perguntas de Gangleri quando este vai para Ásgard. Thrymheimr: Casa de Skadi nas montanhas. Thrúdvangar: Reino do deus Thor. Thökk: Giganta que se recusou a chorar por Baldr, mas que na verdade era Loki metamorfoseado. Týr: Deus Æsir, filho de Odin. Deus da guerra e da bravura. Ulr: Filho da deusa Sif. É um excelente arqueiro e extremamente ágil em combate. Urdr: Uma das Nornas que determina o curso da vida dos homens, relacionada ao passado. Útgarda-Loki: É o gigante, mestre do castelo de Útgardr. Útgardr: Castelo de gigantes, governado pelo rei Útgarda-Loki. Valaskjálf: Morada de Odin, onde fica seu trono Hlidskjálf. Valhall: Salão de Odin situado em Ásgard. Valquírias: Deidades femininas menores que escolhiam os mortos em batalha que iriam ser conduzidos para Valhall. Vanes: Os Vanes ou Vanir são um grupo de deidades nórdicas associadas particularmente a boas colheitas, ao florescimento do sol, da chuva e do bom tempo. Vanir: Os Vanir ou Vanes são um grupo de deidades nórdicas associadas particularmente a boas colheitas, ao florescimento do sol, da chuva e do bom tempo.

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Verdandi: Uma das Nornas que determina o curso da vida dos homens, relacionada ao presente. Verdrfölnir: Falcão que rodeia a Yggdrasil. Vili: irmão de Odin. Vindsvalr: Pai do Inverno. Vingólf: Salão onde as deusas se reuniam. Alguns homens mortos em batalha eram levados para lá. Váli: Filho de Loki. Váli: Também chamado de Áli. É filho de Odin e Rindr. Conhecido por sua destreza e boa mira ao usar arcos. Vár: Deusa dos juramentos e acordos. Vé: irmão de Odin. Vídarr: Deus filho de Odin, associado á vingança e ao silêncio. É quase tão forte quanto Thor. Vídbláinn: Lugar onde Gimlé se localiza. Vígridr: Grande planície onde acontecerá a batalha final entre os deuses e seus inimigos. Vör: Deusa da curiosidade e da busca por conhecimento. Yggdrasil: Árvore colossal que é o eixo do mundo. Está localizada no centro do universo e conecta todos os nove mundos da cosmogonia nórdica. Ymir: Primeira criatura viva, gigante primordial de quem se derivou toda a estrutura do mundo.

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