Um filme para voltar no tempo (Sobre Corumbiara, de Vincent Carelli)

June 4, 2017 | Autor: Renato Sztutman | Categoria: Cinema Studies
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Um filme para voltar no tempo

Corumbiara (2009), de Vincent Carelli, é um filme de toda uma vida. Não apenas porque demorou mais de vinte anos para ser filmado e finalizado, mas também porque guiou-se por duas ou três perguntas que ainda aguardam resposta. Que teria acontecido exatamente no massacre de índios isolados da gleba Corumbiara, sul de Rondônia, em 1985? Que sabemos dos índios sobreviventes, estes que há pouco mais de dez anos aceitaram travar contato com o homem branco? E mais: qual o papel da câmera de vídeo diante disso tudo? Corumbiara, lançado no Festival É Tudo Verdade de 2009, chega às telas em momento oportuno. Ao lado de Terra Vermelha (2008), de Marco Bechis, “ficção” sobre a trajetória de famílias guarani kaiowá em seu conflito com proprietários de terra do Mato Grosso do Sul, o documentário sinaliza a impossibilidade de nos mantermos alheios ao processo recorrente de expulsão dos povos indígenas de seus territórios, aliado não raro de seu extermínio físico e moral. Há pouco comemoramos o reconhecimento da demarcação contígua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, bem como a solicitação de retirada dos produtores agrícolas. No entanto, esta vitória indígena veio acompanhada de uma série de protestos quanto à legitimidade da manutenção destes territórios. Carelli, indigenista militante, filmou Corumbiara contra a impunidade e o esquecimento de mais um caso de extermínio na Amazônia. Sua obsessão em descobrir toda a verdade sobre o massacre dos isolados de Corumbiara, levada a cabo por mais de vinte anos – densidade temporal que se faz notar pelo mosaico de imagens de qualidades diversas –, bateu de frente com discursos de fazendeiros e advogados antiindígenas, alegando que os índios vitimados em 1985, quando da abertura de uma rodovia que favoreceria madeireiros, sequer teriam existido. A primeira tentativa de fazer Corumbiara, nos anos 1980, partiu de uma vontade de denúncia: recolher provas e reconstruir a história do massacre. Mas esta foi aos poucos frustrada, dada a insuficiência das evidências, bem como o desaparecimento dos índios. Foi apenas em 1995, com a frente de atração liderada pelo sertanista da Funai Marcelo Santos, que a trama pôde ser desenrolada. Carelli pôde filmar o “primeiro contato” com um homem e uma mulher (os irmãos Purá e Txinamanty) da etnia, que seria mais tarde confirmada como Kanoê. A cena, que foi

veiculada no Fantástico, é bastante impactante: ambos se mostram ao mesmo tempo assustados e amigáveis, tocam os corpos dos brancos, cheiram a câmera. Combinam em seu vestuário artigos ocidentais e indumentária nativa, como colares e adornos de penas. Conduzirão, num segundo encontro, toda a equipe à sua aldeia, onde se encontram outros poucos conterrâneos, e farão conhecer um outro povo isolado, os Akuntsu, também vitimados pelo massacre, e com os quais mantêm relação algo tensa. A marca de bala no braço Kunibu, chefe dos Akuntsu, bem como tentativas de tradução por um intérprete servirão como confirmação do massacre. Corumbiara é sobretudo um filme sobre a dificuldade de fazer um filme sobre um crime que aconteceu mas que carece de provas, segundo os critérios de nossa justiça. Esta dificuldade cede lugar para a meditação do diretor, que comenta em voz over as imagens captadas. À diferença de boa parte da produção mais recente do projeto “Vídeo nas Aldeias”, coordenado por Carelli e que tem como foco principal a formação de cineastas indígenas, interessados em contar eles mesmos a história de suas vidas, Corumbiara é construído do ponto de vista de um realizador branco perplexo, pronto para trazer à luz a imagem de vítimas tornadas invisíveis. Carelli envereda em uma reflexão sobre a sua própria trajetória como documentarista. 1985, ano do massacre, coincide com o período de nascimento do “Vídeo nas Aldeias”, hoje tornado uma ONG independente e com uma produção reconhecida internacionalmente. As primeiras imagens que vemos de Corumbiara são, não por acaso, as de Festa da moça (1987), vídeo de Carelli sobre um ritual de iniciação dos Nambikwara e, ao mesmo tempo, sobre o confronto destes com as imagens capturadas pela câmera. Carelli confessa, em diferentes momentos, o seu imenso incômodo diante das filmagens em busca de provas. Duas situações em meados dos anos 90 são, nesse sentido, especialmente impactantes. A primeira delas, filmada com uma câmera escondida, é o depoimento de Dona Eleni, habitante de um vilarejo próximo à fazenda onde ocorreu o massacre. Em imagem em preto e branco e distorcida, a vemos contar para Carelli o pouco que sabe, mas o suficiente para comprovar o massacre. O nervosismo do realizador, ciente do risco ao qual está expondo a mulher, o confunde e ele perde o áudio, tendo de refazer a entrevista apenas com um gravador. O que vemos, depois do corte comentado por Carelli, é a imagem “muda” de Dona Eleni justaposta ao som da entrevista fora de sincronia. Ficamos

sabendo, no final desta cena, pelo comentário do diretor, que ela acabou por abandonar o vilarejo, temendo alguma retaliação. A outra situação – antológica, digamos assim – é a tentativa de contato com o assim chamado “índio do buraco”, que, ao que tudo indica, passou a fugir sistematicamente de qualquer forma de contato, depois de seu povo ter sido exterminado. O rastro por ele deixado é de um tipo peculiar de habitação: um buraco cavado na terra e escamoteado por uma espécie de esconderijo de palha. Seria ele integrante de um povo que sempre habitou moradas subterrâneas? Ou seria esta uma saída desesperada para se tornar invisível aos olhos dos brancos? Não é possível saber. A câmera de Carelli volta a acompanhar a equipe da Funai, desta vez sob a missão de trazer uma foto deste índio, capaz de provar – mais uma vez, provar – a sua existência naquele território de modo a lhe garantir alguma proteção. O “índio do buraco” é, então, localizado e como que cercado pela equipe da Funai e por Carelli, que tentam propor um contato amigável. Mas a resposta é hostil. Conseguimos visualizar, num quase-close, o rosto aterrorizado deste homem por entre a palha. Imagem que se alterna com a da ponta de uma flecha. A equipe e a câmera, diante de tamanha reação, se afastam. Carelli lamenta que talvez tenha sido a câmera a responsável pela hostilidade. Ela que poderia ajudá-lo acabou por separá-los para sempre. Ele associa aquela situação a um pesadelo que tivera dias antes, no qual ele se via num safári na África, indo ao encontro de leões. A impossibilidade de reunir provas suficientes, o perigo representado pela câmera fazem com que Carelli desista mais uma vez de fazer Corumbiara. O filme teria de esperar os anos 2000 para retornar, agora confortado em apenas contar histórias. As últimas imagens de Corumbiara concentram-se no reencontro, nos 2000, do cineasta com os Kanoê e Akuntsu, que retomam suas vidas apesar dos traumas. Sua terra foi finalmente demarcada em 2002, mas o medo ainda ronda. Na aldeia dos Akuntsu, o chefe Kunibu continua a realizar suas sessões xamânicas, balançando seus chocalhos e cantando. Na aldeia Kanoê, Txinamanty brinca com o filho pequeno, fruto de sua relação com Kunibu. (É impossível não evocar a longa seqüência – na metade do filme, nos 90 – em que Kunibu e a então Txinamanty entram em transe xamânico depois de inalarem juntos um rapé amarelo. Eles se

atiram no chão, sopram e conversam com espíritos.) O irmão de Txinamanty, Purá, permanece na aldeia dos Akuntsu, namora a filha do chefe, mas não pode viver com ela assumidamente, já que os dois povos, apesar da proximidade, ainda se estremecem. (Carelli comenta mais uma vez incomodado um caso de morte que resultou de uma briga entre eles.) O final do filme exprime o deslocamento do foco investigativo inicial para um plano mais contemplativo. Mesmo que permaneçamos sem obter todas as respostas esperadas, temos a impressão de que apesar de todo o trauma da história os Kanoê e Aksuntsu continuam vivendo uma vida que vale a pena ser vivida. A última cena de Corumbiara acompanha o canto agudíssimo de Purá, deitado em sua rede. Carelli e sua câmera interrogativa como que se calam diante da situação. (Alguns minutos antes, ele teria evocado o canto de um uirapuru.) Esbarramos aqui no encontro de um filme de autor com o melhor legado do “Vídeo nas Aldeias”: o filme investigativo deixa então que os índios, em seus gestos mais corriqueiros, roubem a cena e redefinam o próprio cinema.

Renato Sztutman (texto publicado no Jornal “Atual”, maio de 2009)

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