Um gênero nas bordas ou sobre a indistinção epistemológica da biografia

June 24, 2017 | Autor: Alexandre Avelar | Categoria: Biography and Life-Writing
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Um gênero nas bordas ou sobre a indistinção epistemológica da biografia (Alexandre de Sá Avelar – Universidade Federal de Uberlândia)*

Por que é que o historiador repensa sua incompetência de biógrafo através de figuras estranhas, enceguecidas pela própria natureza? Não será com a ajuda e

o

apoio

dessas

imagens

fantasmagóricas que se deve avaliar a competência do biógrafo? Todo biógrafo não será monstruoso por definição? Cada um, a seu jeito, não será cego de um olho e estrábico do outro? Não enxerga o que pode, não reproduz o que quer e não engendra só o que é conveniente? (SANTIAGO, 2014, p.24)

Gostaria de iniciar chamando a atenção para os títulos de três referências das mais citadas e comentadas entre nós. Trata-se de O desafio biográfico, livro de François Dosse (2009), e dos artigos A biografia como problema (1998) e A biografia como problema historiográfico (2010), de Sabina Loriga e Jacques Revel, respectivamente. Se admitirmos que os títulos revelam algum grau de autoconsciência, podemos concluir que, para esses autores, a legitimidade do gênero biográfico na atualidade parece sempre estar acompanhada de incertezas e desconfianças, expressas nos termos “desafio” ou “problema”. O estudo de trajetórias singulares, deste modo, se caracteriza pela incessante reafirmação de suas virtudes e importância, como se essa recorrente ênfase fosse necessária para afastar os olhares ainda reticentes dos historiadores. Os problemas e desafios da biografia não estão deslocados de uma percepção mais ampla de crise e da transformação do conhecimento histórico disciplinar. Assim, a *

Este texto foi originalmente apresentado no I Encontro Nacional de História Política, realizado

na Universidade Estadual do Ceará e uma iniciativa do GT de História Política da ANPUH. Sou particularmente grato ao Professor Altemar Muniz pela generosidade do convite.

desconfiança em relação aos estruturalismos de todo tipo redimensionou o papel da agência humana, ao mesmo tempo em que os historiadores passaram a demonstrar uma crença cada vez menor em um modo de escrita realista que representaria, com poucas mediações, o que efetivamente aconteceu no passado. A biografia, situada epistemologicamente entre suas ambições de verdade e seu caráter inventivo e com sua aposta no papel do indivíduo, arrastaria para si todas as dúvidas epistemológicas que a história carrega O desafio de reflexão sobre a escrita biográfica é também um exercício de aproximação em relação a alguns dos debates mais recentes do campo historiográfico e as tensões da disciplina histórica são levadas ao paroxismo na biografia. Como sugerido pelo título desta apresentação, esforçar-me-ei para sustentar a tese da fluidez epistemológica da biografia que, ademais, não é nova e há muito já foi pressuposta por biógrafos e escritores como André Maurois (1929) ou Virginia Woolf (2014). Se a originalidade pode não ser o argumento mais convincente, talvez o da oportunidade seja mais atraente. Após mais de quatro décadas de debates e estudos em torno do narrativismo e dos impactos do chamado “giro linguístico”, a dimensão escriturária do ofício do historiador tem sido reconhecida como um aspecto também produtor de escolhas ideológicas e éticas. Sem o descuido da evidência documental do passado, o ato de representação de experiências de outros tempos aproxima o historiador do ficcionista sem, é sempre importante frisar, igualá-los. O desafio talvez seja aquele lançado por Maria Helena Werneck: Como conciliar, por um lado, o ímpeto de tratar materiais como fontes das quais se retiram informações para ampliar os limites da história particular de um indivíduo e de sua obra, e, por outro, movimentar-se sob as ordens da curiosidade resvalando entre o potencial narrativo de todo arquivo e sua infinita abertura para novas leituras e agenciamentos? (WERNECK,

2014, p.26) Para avançar sobre essas questões, apoio-me em autores que produziram argumentos convincentes em defesa da natureza híbrida da biografia e, posteriormente, teço algumas considerações teóricas pessoais em prol desta hipótese. Ao final, espero que o leitor tenha conseguido perceber que as fronteiras pouco discerníveis da biografia é mais um sinal de vitalidade deste gênero, cujo sucesso editorial nunca parece ter esfriado, do que a evidência de uma fragilidade. Em Respiração artificial (2010), o escritor argentino Ricardo Piglia narra o esforço de Marcelo Maggi, personagem que tenta, a todo custo, retraçar a vida de

Enrique Ossorio, político que viveu na segunda metade do século XIX. Ossorio era bisavô de Esperancita, ex-mulher de Maggi, o que proporcionou ao desventurado biógrafo herdar um conjunto significativo de documentos pessoais do seu biografado. Os infortúnios da escrita biográfica são continuamente desnudados por Maggi em correspondências trocadas com Emilio Renzi, seu sobrinho. Numa passagem, Renzi revela o conteúdo de uma dessas cartas:

Na realidade, [...] por trás das polêmicas paródicas que travávamos de vez em quando, o que acabou se transformando no centro da correspondência de Maggi comigo foi seu trabalho sobre Enrique Ossorio. Fazia tempo que estava escrevendo aquele livro – e os problemas que encontrava começaram a permear suas cartas. Estou me sentindo como se estivesse perdido na memória dele, escrevia-me, perdido numa selva onde tento abrir caminho para reconstruir o rastro dessa vida entre os restos e os testemunhos e as notas que proliferam, máquinas do esquecimento. Sofro da clássica desventura dos historiadores, escrevia-me Maggi, embora não passe de um historiador amador. Sofro dessa desventura clássica: ter querido me apropriar daqueles documentos para decifrar neles a certeza de uma vida e descobrir que são os documentos que se apoderaram de mim e me impuseram seus ritmos e sua cronologia e sua verdade particular. (PIGLIA,

2010, p.22-23) A crença na capacidade de apropriar-se da vida do personagem até ser apoderado por ele; a imersão em uma memória outra que produz a sensação de desorientação, de ausência de sentido ou de rumos incertos; a alteridade que se recusa a se tornar semelhança; a árdua batalhar para re-presentar uma vida que não mais é do nosso tempo, que está depositada em registros esparsos, em fragmentos que são submetidos forçosamente à condição de fontes documentais; a dolorosa constatação de que tais fontes podem ser mais aprisionadoras do que libertadoras; todas essas agruras, tão aguçadamente percebidas por um ficcionista talentoso como Piglia, remetem a questões centrais da reflexão epistemológica sobre as biografias escritas por historiadores e nos convidam a enfrentar, mais uma vez, e talvez ainda insuficientemente, o trânsito incômodo do gênero entre as expectativas de verdade e a fantasmagoria da ficção. A tensão entre o desejo da biografia em se estribar no verídico e a ilusão de fornecer um relato coerente e uniforme sobre a existência levou muitos biógrafos a realçarem a posição intermediária que o gênero ocupa entre a ciência e a ficção, entre mimesis e vidas imaginárias (DOSSE, 2009, p.55). O gênero biográfico é uma mistura de erudição, criatividade literária e intuição psicológica e sua natureza consiste

exatamente nessa fluidez epistemológica. A proximidade com o romance moderno não é fortuita e o reconhecimento da influência da literatura sobre a biografia histórica foi, arrisco-me a dizer, até bastante tardio. A ficção já havia antecipado o caráter difuso de uma experiência individual e o romance nos obrigou a reconhecer a natureza descontínua da realidade, composta por elementos justapostos, imprevistos, aleatórios, cuja reconstrução em uma unidade de sentido só pode ser efetuada como um exercício, em larga medida, imagético. A impureza e o hibridismo da biografia, como poderíamos imaginar, são ainda temas-tabu para os historiadores-biógrafos. Mesmo que não estejam mais sequer próximos de qualquer escrita condensadora de uma ilusão biográfica, no sentido consagrado pela clássica expressão de Pierre Bourdieu (1996), constroem seus personagens ainda segundo uma perspectiva integradora do indivíduo. Desvencilhar-se desse esquema, adverte Sabina Loriga, é ainda um desafio, pois o estudo do passado continua a privilegiar uma concepção aritmética do indivíduo, pré-psicanalítica e mesmo pré-dostoievskiana – concepção que não oferece ao personagem homem senão uma alternativa: desempenhar o papel de um ser consciente e coerente ou, então, o de um peão no tabuleiro de xadrez da necessidade. (LORIGA, 1998, p.245) A biografia, neste caso, instala-se em um regime de verdade que pressupõe um modelo de racionalidade pouco flexível. Sobre este aspecto, são prudentes as palavras do historiador italiano Giovanni Levi:

[...] raramente nos afastamos dos esquemas funcionalistas ou da economia neoclássica; e estes supõem atores perfeitamente informados e consideram, por convenção, que todos os indivíduos têm as mesmas disposições cognitivas, obedecem aos mesmos mecanismos de decisão e agem em função de um cálculo, socialmente normal e uniforme, de lucros e perdas. Tais esquemas levam, pois, à construção de um homem inteiramente racional, sem dúvidas, sem incertezas, sem inércia. A maioria das biografias assumiria, porém, outra feição se imaginássemos uma forma de racionalidade seletiva que não busca exclusivamente a maximização do lucro, uma forma de ação na qual seria possível abster-se de reduzir as individualidades a coerências de grupo, sem renunciar à explicação dinâmica das condutas coletivas como sistemas de relação”. (LEVI, 1996, p.180-

181) O uso dos recursos ficcionais na escrita de biografias quase sempre aparecia como um desvio a ser justificado, como uma falha com o método que precisava ser explicada a todo o momento, como se a prática historiadora devesse ser advertida da

invasão da indesejável ficção. Assim, uma autora da sofisticação intelectual de Nathalie Zemon Davis alerta que, diante das lacunas encontradas para retraçar a trajetória de Martin Guerre, se viu na contingência de fazer uso da “imaginação controlada”, ou seja, aquela que possa ser sustentada por possibilidades abertas pelas fontes pesquisadas. Sendo os registros documentais capazes de responder a todas as questões postas pelo historiador, não há razões para nos preocuparmos com a dimensão ficcional de toda biografia. (DAVIS, 1987) Numa conferência em 1928, André Maurois já situava o gênero biográfico a meio caminho do procedimento científico e da dimensão estética. Ainda que defendesse um enfoque cronológico, aproximava a biografia do romance, na medida em que a intriga criava no leitor a expectativa do futuro. Como na literatura, o apreciador de biografias era impulsionado a acompanhar os medos, os sofrimentos e as incertezas do personagem. A escolha dos materiais a serem usados pelo biógrafo era outro procedimento assemelhado aos praticados pelo artista: aqui a comparação era com o retratista, que realizava suas escolhas sem descuidar do que era essencial para a tela. Ao mesmo tempo, os cuidados do cientista não poderiam abandonar o biógrafo, pois este manteria com o seu leitor um pacto de verdade. Trata-se de um gênero difícil, pois, para Maurois, “exigimos dela (da biografia) os escrúpulos da ciência e os encantos da arte, a verdade sensível do romance e as mentiras eruditas da história”. (MAUROIS, 1929, p.199-203). De modo similar, sua aliada na condenação da biografia vitoriana de viés moralizante, Virginia Woolf, afirmava que, se a verdade da ficção e a verdade dos fatos são incompatíveis, o biógrafo deve, mais do que nunca, tentar conciliá-las, sem se perder em qualquer um dos dois planos. Desde que consciente desse trabalho artesanal, o biógrafo pode se tornar um artista. “Contando-nos os fatos verídicos”, afirma Woolf, “o biógrafo faz mais para estimular a imaginação que qualquer poeta ou romancista, posto de parte os maiores”.( WOOLF, 2014, p.401) Mais de sete décadas depois, em 2003, encontramos uma passagem bastante similar em Alain Gerber, autor de uma biografia sobre Chet Baker: A única resposta é a prática cotidiana, ou quase, daquilo que seria, nem tanto uma biografia ‘romanceada’ (como por algum tempo pensei), mas antes uma biografia romanesca, ou seja, culpada em relação às suas fontes de uma desenvoltura que constitui não apenas sua liberdade, mas também sua razão de ser – de certa maneira, seu ideal. Minha tarefa mais penosa, a que menos me convinha, terá sido curvar-me à lei da preguiça, cultivar a boa vida, a inexatidão, o abuso da linguagem, o travestimento, a sublimação, a mentira, a transposição onírica desbragada, a escolha da visão contra a observação dos fatos e, por fim, a atitude inculta. Munido dessa presunção,

sem a qual nada seria possível (quer dizer, tolerável em sã consciência), tentei descobrir uma certa verdade para além do real. Em suma, quis proclamar o falso para exprimir, apesar de tudo, um verdadeiro que permanece, e sem dúvida deve permanecer, inexprimível. Infelizmente não sou poeta, mas apelei para a poética, ou pelo menos espero ter apelado. (Apud DOSSE, 2009, p.79)

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Passo à outra obra fascinante: Como Shakespeare se tornou Shakespeare, de Stephen Greenblatt (2011). O título alude ao percurso investigativo essencial do livro, ou seja, compreender os caminhos que levaram Shakespeare à sua obra, a sua trajetória até se tornar o maior dramaturgo de seu tempo. Essa preocupação se mescla à outra: a de desfazer a ideia de que suas peças sejam resultado de uma ação sobre-humana, quase mítica. Reconstruir os campos de possibilidades nos quais se deram os projetos de Shakespeare e recuperar as múltiplas relações que estabeleceu em seu espaço social possibilita que o autor escape dessa imagem de ter sido um homem absolutamente genial e mesmo fora do seu tempo. Shakespeare é localizável por meio da reconfiguração de múltiplos contextos: das obras que circulavam em sua época, das peças encenadas e das lutas religiosas daqueles anos. Até então podemos ser levados a pensar que se trata de uma biografia ao estilo tradicional, com a elucidação das camadas contextuais que servem de pano de fundo para as ações do indivíduo estudado. Mas trata-se de uma trajetória construída sobre lacunas, falhas na documentação e registros precários. O autor faz então uso sistemático da imaginação como forma de superar as insuficiências documentais e o resgate impossível do passado. Se a obra do dramaturgo foi largamente estudada, bem como a fase da vida em que já era autor consagrado, são esparsas as referências ao período-alvo do livro, ou seja, aquele da transformação do personagem em um escritor excepcional. Greenblatt adverte seu leitor de que há “imensas lacunas que tornam qualquer análise biográfica de Shakespeare um exercício de especulação”. (GREENBLATT, 2011, p.16) Daí o recurso a expressões tais como “provavelmente”, “é possível”, “talvez”, entre outras atestadoras da dúvida e da incerteza. Um exemplo: ao escrever O mercador de Veneza, Shakespeare teria refletido sobre a função social do riso tendo por base a peça O judeu de Malta, de Marlowe, e uma cena que possivelmente vira: a execução do Dr. Lopez, médico da rainha e conspirador judeu que, em seu derradeiro momento, afirmou amar Jesus tanto quanto a soberana, o que produziu intensos risos entre os presentes. Diz Greenblatt:

Já no século XIX existiam boas biografias [de Shakespeare], ricas em pormenores e bem documentadas, e cada ano traz uma nova safra delas, às vezes complementadas com um novo detalhe descoberto a duras penas, ou algum novo achado de arquivo. Depois de examinar as melhores delas e filtrar com toda a paciência a maior parte dos vestígios existentes, dificilmente o leitor se sentirá mais perto de entender como se deram as realizações do dramaturgo. É possível que Shakespeare pareça uma pessoa ainda mais hermética e abstrusa, e as fontes íntimas de sua arte se mostrem mais obscuras do que nunca. Essas fontes já seriam bem difíceis de detectar mesmo que os biógrafos pudessem contar com cartas e diárias, memórias e entrevistas da época, livros com anotações reveladoras, notas e rascunhos. Nada disso chegou até nós, nada que proporcione uma ligação clara entre a obra eterna com apelo universal e uma vida particular que deixou tantas marcas nos tediosos documentos burocráticos de seu tempo. [...] Para entender quem foi Shakespeare, é importante seguir as pegadas verbais que ele deixou atrás de si na vida que viveu e no mundo para o qual estava tão aberto. E, para entender como Shakespeare usou a imaginação para transformar sua vida em sua arte, é importante usar nossa própria imaginação. (GREENBLATT, 2011, p.11-12)

A estratégia narrativa se organiza na tentativa de estabelecer contato entre os contextos sob os quais Shakespeare viveu e a obra posterior do biografado, isto é, localiza os vetores possíveis que formatam as possibilidades de inserção do autor. Além disso, procura retraçar aspectos da vida do dramaturgo tendo como fundamento suas obras, como quando, por exemplo, as primeiras peças de Shakespeare são usadas para entender como se deu sua alfabetização ou quando a análise das representações sobre a aposentadoria em A tempestade e Rei Lear enseja a especulação sobre a velhice do biografado. Não se trata aqui de estabelecer uma rede de vínculos lógicos entre autor e obra. O exercício imaginativo também deve ser capaz de captar, na criação artística, elementos que são desprezados pela persona do criador, afinal, Shakespeare fora capaz de satirizar com rara felicidade as atitudes da nobreza britânica sem deixar de desejar se tornar, ele mesmo, um cavalheiro. Já próximo do fim de nossa trilha, talvez seja o momento de assentar bases mais sólidas para que, talvez, outros caminhantes possam tentar se aventurar nas mesmas curvas sinuosas da narrativa biográfica. O caráter “problemático” da biografia está, a meu ver, marcado, entre outras razões, pela própria dificuldade dos historiadores em conceber a escrita como uma dimensão incontornável do seu trabalho e ato performativo. Blanchot (1927, p.20) fala na escrita como eterno recomeço, como passagem do Eu ao Outro. É no ato da escrita que se forma o espaço privilegiado para a investigação das relações e fronteiras entre ficção e história. O discurso da história

enfatiza a presença de uma ausência que pode ser documentada e referenciada no real. A verdade, sob essa lógica, é delimitada à verdade do “passado” e, se não é possível estar imune às forças do presente, deve-se mantê-la a maior distância possível, o que implica, ainda, a distância e a objetividade como valores epistêmicos do bom historiador. Ao expor as razões pelas quais decidiu investigar seu biografado, o biógrafo não tenta delimitar uma distância, não estabelece um contrato de leitura com seu público, sustentado em uma separação em relação ao personagem cuja vida será narrada? Dosse assinala duas sérias contradições inerentes à biografia. Sua competência e seu discurso tendem a ocultar ou mascarar os fundamentos ideológicos do seu projeto. A outra contradição, ainda menos percebida, é a de que o resgate de uma vida só poderia ser pleno com base em uma visão totalizante, impossível de ser alcançada pelo texto forçosamente lacunar do biógrafo. Daí, para Dosse, a tendência ao psicologismo, “para tapar buracos, dando ilusão de resgatar a plenitude da pessoa” (DOSSE, 2009, p.96) Como nós, nossos personagens existiram concretamente no mundo, deixaram vestígios de sua passagem, teceram relações com o passado e com o futuro. Recompor esses passos equivale a uma prática de pesquisa, que compõe, ao lado da escrita e do lugar social de produção do conhecimento histórico, a conhecida operação historiográfica. Mas perceber “a operação que faz passar da prática investigadora à escrita” torna-se uma questão de máxima importância na medida em que a história ocidental é uma história escrita, uma historiografia. Restituir uma vida é ambição que dá sentido ao trabalho biográfico, mas também é sua aporia maior. A delimitação da temporalidade adequada para compreendermos a vida de um sujeito poderia ser outra questão a ser lançada. A biografia pressupõe que um personagem só possa ser convincentemente estudado se nosso recorte temporal recuar até o seu nascimento para, a partir daí, seguirmos seus passos. Falar de alguém desde a sua infância até a vida adulta significaria compreendê-lo melhor do que, por exemplo, se estudássemos um único dia de sua existência? A dilatação temporal é indício seguro de conhecimento do passado ou se trata de uma noção moderna de tempo histórico que talvez necessite ser reavaliada em nossa época? Espera-se de uma biografia a comprovação documental da descrição da vida do personagem e o seu registro em quadros contextuais que o localizem, emprestando sentido às suas ações e feitos. No alinhamento a uma concepção que valoriza tanto a veracidade extraída das fontes quanto a força imaginativa da narração, as noções de

contexto e documento, tradicionalmente empregadas pelos biógrafos, conformam uma temporalidade dialógica e intempestiva que explora o passado de maneira tal que ele não atua simplesmente como causa ou precedente do presente, mas se mostra disposto a invadir, alarmar, dividir e desapropriar o lugar em que o atual se determina como futuro. (PINTO e VALINHAS, 2010, p.11) Os historiadores quase sempre tomam o contexto como a moldura de referência histórica que conforma o texto, este entendido como expressão recuperada e comprovadora das experiências humanas no passado. O contexto produz, deste modo, efeitos de realidade. O texto testemunha o que houve antes dele e que existiria sem ele. O risco, para uma biografia, é uma supervalorização do contexto como instância explicativa. Uma possível saída é aquela apontada por Dominick LaCapra (1983), que sugere que a própria noção de contexto ou de realidade está implicada num processo textual. A textualidade não é uma chave analítica restrita ao livro ou à esfera semântica. Ela cobre as estruturas ditas reais – econômicas, sociais e políticas. É impossível recompor a plenitude de um contexto, pois ele é ilimitado. Assim, lembra LaCapra: não se trata de suspender todos os referenciais ou de postular a existência de indivíduos vagando sem contexto. Texto e contexto são suplementares entre si, se adicionam, substituindo e suprindo faltas e ausências mutuamente, fornecendo o excesso que é preciso ao processo de interpretação. (LACAPRA, 1983, p.26) Seguindo por esse caminho, somos conduzidos a perceber que o documento, tal como já mostrara Le Goff (2003), é monumento e não há algo como um documentoverdade. O que está presente no documento – seu aspecto informacional – mescla-se com o que não está ou com o que poderia ter estado. O que nele há se combina com o desejo do que poderia estar. Por isso, mais uma vez, deve o biógrafo ter cautela ao estabelecer um contexto que demarca o palco de atuação de seu personagem e dos outros que o cercam. Recortar um contexto é mutilá-lo, pois define um limite que não existe. Ele se torna muito mais estimulante se engendrar, por sua imbricação com o texto, um diálogo criativo com o leitor, fazendo-o perceber que o significado de uma vida é um misto do registro factual de experiências com a força imaginativa do biógrafo. Iniciar este texto com um fragmento de uma obra assumidamente situada nas fronteiras entre a ficção e o factual não foi um mero floreio retórico para introduzir uma argumentação de fundo ou uma abertura sofisticada que pudesse cativar os leitores mais suscetíveis aos fascínios da narrativa literária. Trata-se, sobretudo, de uma preocupação

epistemológica e, de algum modo, também estética: a alegação tão corriqueira de que a biografia é um gênero híbrido, a meio caminho entre a história e a ficção, impõe quais desafios para a compreensão do passado? O que essa fórmula difusa quer dizer? A dimensão ficcional da biografia está presente sob quais aspectos? No uso da imaginação? Na incorporação de figuras de linguagem e recursos narrativos? Como perguntas historicamente constituídas, suas respostas variaram ao longo do tempo e meu admitido interesse pelo uso das formas literárias pelos historiadores e as maneiras pelas quais o texto literário, como já afirmara Barthes (2005, p.18), funciona como a correção da distância entre a dureza da ciência e a sutileza da vida seria apenas o esboço de mais uma resposta. Autores como Piglia, já mencionado nas páginas anteriores, ou Sebald (2008), com sua escrita digressiva pontuada pelo gosto da pequena escala, dos detalhes cotidianos, das memórias e das biografias, são as sombras que pairam por este ensaio que pretendeu revisitar alguns aspectos de um gênero impuro e híbrido como é a biografia. Não há problemas, pois como já assinalado por Jacques Bouveresse (2008), a função da literatura não é justamente revelar essas zonas cinzentas e opacas inacessíveis às ciências humanas? Deixo para o leitor a especulação sobre a possibilidade de a biografia ser uma dessas zonas. Como as gerações anteriores, a nossa continua realizando a aposta biográfica. Se a tonalidade “problemática” ou “desafiante” do gênero é, talvez, uma questão incontornável, a escrita biográfica tem cada vez mais alertado o historiador para a ambivalência de sua disciplina, forçosamente tensionada entre suas pretensões de verdade e o polo imaginativo que subsiste em toda narrativa do passado (WHITE, 1994). Seja como for, seguimos narrando e lendo vidas na expectativa – vã? – de compreendermos nós mesmos e os outros.

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