UM \'GIRO LINGUÍSTICO\' EM TORNO DE CARLO GINZBURG, HAYDEN WHITE E ERIC AUERBACH

July 21, 2017 | Autor: Beatriz Vieira | Categoria: Teoria e metodologia da história
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Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

UM 'GIRO LINGUÍSTICO' EM TORNO DE CARLO GINZBURG, HAYDEN WHITE E ERIC AUERBACH Beatriz de Moraes Vieira* “Os historiadores (e, de outra maneira, também os poetas) têm como ofício alguma coisa que é parte da vida de todos: destrinchar o entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício que é a trama do nosso estar no mundo” (GINZBURG, 2007:14). Tal destrinchamento é característico da preocupação de Carlo Ginzburg em distinguir perguntas legítimas, respostas plausíveis e possibilidades válidas, para avaliar os muitos modos como se emaranham a vida humana, o tempo histórico, os relatos e o conhecimento, e isso pode ser considerado o ponto central de sua relação com o assim chamado giro linguístico e o decorrente impacto na historiografia desde as últimas décadas do século XX. Fazer inúmeras perguntas, recusar clichês e estereótipos, enfrentar problemas, dissecá-los a fundo e “buscar alhures”, dialogar intensamente com as questões teóricas, metodológicas e políticas que compõem os debates intelectuais de sua época, são marcas fundamentais da forma de trabalho desse autor, que acabou por criar uma historiografia muito própria. Para isso contribuíram, entre outros fatores, suas interdisciplinares leituras formadoras, que incluem Marc Bloch, Eric Auerbach, Antonio Gramsci, Sigmund Freud, Claude Lévi-Strauss, Roman Jakobson, Mikhail Bakhtin, Theodor Adorno e Walter Benjamin, bem como os grandes romancistas dos séculos XIX e XX de diversas nacionalidades, aos quais mais tarde se juntou o historiador Arnaldo Momigliano. Somam-se a esses autores os estudos dos historiadores da arte ligados à biblioteca de Aby Warburg, compondo um conjunto de referências que lhe permitiu discutir extensamente os problemas da representação do mundo sensível e a ambiguidade dos documentos, escritos ou figurativos, artísticos ou não, e ensejando-o a refletir não apenas sobre o uso de discursos orais, textos literários e imagens como testemunhos ou fontes históricas, mas também sobre as questões formais estruturantes das obras, para além do contexto em que surgiram. Em suas análises, busca compatibilizar o * Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Profa. Adjunta na área de Teoria da História; doutora em História Social. Este trabalho vincula-se ao projeto “A dor da história I: estudos de história, historiografia e literatura”.

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Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

que há de especificamente estético e o que há de histórico nas representações artísticas, para superar a oposição entre a abordagem sócio-histórica e a abordagem formal ou estilística, e propõe, de modo geral e por mais difícil que seja, superar dicotomias e criar os recursos metodológicos e modelos cognitivos que possibilitem articular criteriosa e adequadamente temporalidade e estrutura, acontecimento e representação, indivíduo e coletividade, conteúdo histórico e forma artística, verdade e ficção, micro e macro dimensões. Em virtude dessa postura teórico-metodológica e política – que assimila ou debate com autores da historiografia social, da cultura e da arte, da história da historiografia e da filosofia, do marxismo, da psicanálise, da escola dos Annales e da escola de Frankfurt, do estruturalismo e do pós-estruturalismo – Ginzburg foi recebido nos EUA como historiador “pós-moderno” e envolveu-se nas polêmicas contemporâneas, buscando explicar as diferenças entre seu modo de pesquisar e narrar história, no qual se cruzam arte/literatura e realidade, e o relativismo ou ceticismo epistemológico que se disseminou nos meios acadêmicos e artísticos desde os anos 1970-80. Os principais problemas desde então debatidos configuram os pontos nodais do que chamamos de pensamento historiográfico ou uma teoria da história específica, e que tem ela própria uma longa história desde a antiguidade. Na visão de Ginzburg, o fim do longo período de desenvolvimento econômico iniciado no pós-guerra, derivando na proliferação de concepções desconfiadas quanto ao progresso e aos ideais de modernidade iluministas, gerou uma mudança no clima intelectual nos anos 197080, com diferentes respostas da historiografia, ou melhor: em diferentes vertentes e autores, de Furet e Vovelle aos “pós-modernos” White ou Ankersmith, passando pela micro-história italiana, o novo contexto suscitou perguntas e mesmo diagnósticos semelhantes, mas as respostas eram distintas (2007:275ss). Reconhecendo a legitimidade das perguntas colocadas pelos pensadores estruturalistas e pós-estruturalistas, mas divergindo de suas propostas, o autor dedicou-se a enfrentar tudo que diga respeito ao método de pesquisa e à construção do conhecimento histórico, de modo que a discussão desses problemas veio a alicerçar toda sua obra. Já no prefácio a O queijo e os vermes, constatava que a incerteza metodológica derivada da “exasperada consciência da violência que pode estar oculta por trás da mais normal e, à primeira vista, inocente operação cognitiva”, unida ao medo ao positivismo ingênuo, propiciara nos meios intelectuais europeus um certo neopirronismo ou mesmo niilismo

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Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

cognitivo. Em debate com ideias de Foucault – e sua radicalização por Derrida ao afirmar a impossibilidade de se conhecer a loucura ou os excluídos numa linguagem historicamente participante da razão ocidental –, avaliava que estes em última instância fechariam qualquer via para interpretar a alteridade, correndo o risco de um irracionalismo estetizante ou do “êxtase do estranhamento absoluto” que torna o discurso dos indivíduos e grupos “diferentes” irredutível à análise e à compreensão (1987:22-23)1. Em Relações de força considera que a retomada sofística realizada por Nietzsche – revalidando os discursos gregos antigos em que o uso da força e as injunções do poder eram defendidos como lei natural; considerando a origem metafórica de todo conceito e o conhecimento humano como uma pretensão ilusória; bem como buscando na retórica um instrumento para refletir “sobre a verdade e a mentira em sentido extra-moral” – fazia sentido na luta para remover os preconceitos etnocêntricos de sua época, porém teve desdobramentos que,

somados

à

tradição

da

filosofia

idealista

da

linguagem,

permitiram

ao

desconstrucionismo de autores como Paul De Man, Roland Barthes, Jacques Derrida etc., postular uma versão anti-referencial da retórica, ou seja, uma autonomia do significante/forma em relação ao mundo a que se refere. Ademais, a vinculação entre retórica e eficácia foi transferida para a historiografia, de modo que isso passou a pautar o valor do saber e da história, o que abriria caminho para justificar a superioridade das armas de fogo e da civilização dos conquistadores, inegavelmente eficazes. Em suma, algumas décadas de circulação de teses céticas generalizaram os pressupostos de que finalidade da historiografia é o convencimento, não a verdade; de que os textos historiográficos e os ficcionais são autoreferenciais por estarem articulados internamente por uma dimensão retórica; de que uma obra historiográfica constrói um modelo textual autônomo à maneira de um romance, sem nenhuma relação demonstrável com a realidade extratextual à qual se refere, isto é, sem vínculo com evidências ou provas. No entanto, diz ele, é possível sustentar que o conteúdo dos textos está ao mesmo tempo dentro e fora deles (“é preciso descobri-lo e fazê-lo falar”) e que o nexo entre poder e conhecimento popularizado por Nietzsche e Foucault, remontando aos sofistas gregos, pode conduzir a conclusões distintas das que se tornaram habituais, pois as forças desejantes (ou 1 Ainda que Ginzburg tenha considerado posteriormente que esse prefácio era um tanto agressivo, o cerne de suas concepções teóricas e decorrentes críticas se manteve.

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Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

vontade de poder) não excluem obrigatoriamente o princípio de realidade, o qual permite enxergar as relações de força vigentes numa sociedade que condicionam os próprios acontecimentos envolvidos na feitura e legado da documentação, logo, a imagem que uma sociedade deixa de si, bem como condicionam sua interpretação: “é preciso aprender a ler os testemunhos às avessas, contra as intenções de quem os produziu. Só dessa maneira será possível levar em conta tanto as relações de força quanto aquilo que é irredutível a elas”. (GINZBURG, 2002:43). Para isso, é preciso transferir para o âmago da pesquisa histórica as tensões entre narração e documentação e diminuir a grande distância vigente atualmente entre a reflexão filosófico-metodológica e a prática historiográfica baseada em demonstrações documentadas, ou seja, é preciso resgatar a noção aristotélica de prova como parte integrante da retórica2, e que essa evidência, malgrado esquecida, “implica uma concepção do modo de proceder dos historiadores, inclusive os contemporâneos, muito mais realista e complexa do que a que está hoje em voga” (2002:13). Infere-se daí que os limites do relativismo, e sua tácita aceitação da interpretação nãoreferencial da retórica que conduz ao ceticismo epistemológico, são ao mesmo tempo cognitivos, políticos e éticos. Tais problemas foram tratados em “Unus testis - o extermínio dos judeus e o princípio de realidade”3, em que o autor discute a questão do testemunho e faz a crítica a Hayden White, cujo percurso exige que se entendam suas relações de juventude com o idealismo italiano, filiando-se diretamente a Croce na questão da tropologia e do subjetivismo, ideias estas que se fortaleceram posteriormente quando White encontra a obra de Foucault e Barthes. Entretanto, esses autores foram decodificados por White mediante as reflexões de Vico e, sobretudo, de Gentile e suas formulações teórico-políticas de respaldo ao uso da força pelo fascismo italiano. Diferentemente da leitura gramsciana, que debate com Gentile o futurismo e o tema marxiano da filosofia da práxis – o problema da relação entre 2 Segundo ele, uma leitura cuidadosa de Aristóteles mostra dois raciocínios fundamentais para a teoria da história: que ao tratar dos recursos de construção de discursos eficazes, a Retórica inclui demonstrações e provas, e que por isso a história vincula-se mais propriamente à Retórica do que à Poética, embora se tenha tornado clássica a citação desta última sobre a diferenciação e maior amplitude da poesia, que se refere ao que poderia ter sido e ao verossímil, em relação à história que concerne apenas aos fatos ocorridos. 3 Ginzburg anota que este texto deriva de um paper apresentado em congresso sobre o extermínio dos judeus e os limites da representação (Los Angeles/1990; publicado por S.Friendlander/1992), modificado posteriormente para publicação no livro O fio e os rastros. A primeira versão tem também tradução brasileira, no livro organizado por Malerba. Cabe notar que a crítica de Ginzburg a White deve muito a A. Momigliano, como aponta Lima (2007:104-05).

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Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

sujeito/objeto e entre pensamento/ação no conhecimento e na história –, White reitera o subjetivismo transcendental da visão gentiliana. Na virada dos anos 1960-70, avalia Ginzburg, esse subjetivismo tinha sabor de esquerda radical ao sobrepor o desejo à realidade e ao atacar simultaneamente as ortodoxias liberais e marxistas. Entretanto, quando White debate com Vidal-Naquet sobre a revisão histórica do Holocausto, apesar de considerá-la “moralmente ofensiva e intelectualmente desconcertante” e recusar a “desrealização” do evento, identifica verdade com eficácia e propõe que ceticismo e relativismo proporcionem as bases epistemológicas e morais da tolerância4 – o que é insustentável tanto do prisma histórico (a tolerância foi teorizada por pensadores com fortes convicções intelectuais e morais), quanto do lógico (o ceticismo absoluto entra em contradição consigo mesmo, salvo se remeter a um princípio regulador externo, como a tolerância; ademais, se as divergências cognitivas e éticas não estão ligadas em última instância à verdade, nada há a tolerar). (2007:225-227). Na concepção de Ginzburg, ainda que a convivência e o choque de culturas, intensificado no mundo moderno e contemporâneo, ponham em xeque o etnocentrismo e permitam a composição de muitas perspectivas num mesmo quadro, como se vê em Picasso, ou que um mesmo acontecimento seja narrado validamente de distintas maneiras, inclusive pela literatura, isso não significa que os costumes e valores de culturas diferentes devam ser aceitos incondicionalmente “sempre e de qualquer maneira”, diz ele, ou que a história possa ser reduzida à sua dimensão narrativa e retórica (2002:13ss). Com efeito, a “política da interpretação histórica” de Hayden White, partindo do ensaio “O discurso da história” em que Barthes desafiava a distinção entre discurso ficcional e histórico (“a falácia da referencialidade”), inclui a ideia de que a narrativa histórica, ao organizar os acontecimentos para além de uma lista cronológica, estabelece dois níveis de codificação e referência, um primeiro relativo a agentes, eventos e forças, e um segundo relativo às estruturas de enredo vigentes em uma dada cultura, ou seja, a produção de sentido depende da lógica da figuração ou tropologia e do gênero literário escolhido. Considerando que “qualquer conjunto de eventos reais pode ser encadeado de diversas maneiras”, afirma que “nenhum tipo de conjunto ou sequência de eventos reais é intrinsecamente trágico, cômico ou farsesco […], é a escolha 4 “muitos teóricos consideram que o relativismo do qual sou geralmente acusado implica aquele gênero de niilismo que convida a um ativismo revolucionário de um tipo particularmente irresponsável. […] o relativismo é o equivalente moral do ceticismo epistemológico; além disso, penso que o relativismo é a base da tolerância social, não a licença de fazer aquilo que se quer.” White, apud Ginzburg (2006:221).

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Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

da tipologia e de sua imposição aos eventos que os dota de sentido.” (WHITE, 2011:467). Ademais, é uma operação imaginativa de “repetição” (cf. Heidegger) que permite ligar passado e presente num fio de continuidade temporal, fisicamente inexistente, o que configura uma “metafísica da narratividade”. Não fosse o cientificismo impregnado na cultura ocidental moderna, e o teor literário-imaginativo da narrativa histórica não seria problema, pois a noção do que constitui um acontecimento real reside “não na distinção entre o falso e o verdadeiro (que é uma distinção que pertence à ordem dos discursos, não à ordem dos acontecimentos), mas antes na distinção entre o real e o imaginário (que pertence tanto à ordem dos acontecimentos como à dos discursos).” (Ibidem:482-83). Como se vê na frase que abre este trabalho, para Ginzburg é basilar que as distinções sejam mais precisas e amplas. Além da incoerência presente no fato de se afirmar a relação intrínseca de forma e conteúdo dos enredos, ao mesmo tempo em que se afirma que os mesmos eventos podem ser narrados dentro de qualquer gênero – implicando a questão ética de usar o gênero cômico para tratar de catástrofes –, há que se discutir o lugar da mentira e da contra-verdade e, sobretudo, desfazer a identificação imediata estabelecida entre narrativa histórica e narrativa ficcional, que ao negar a possibilidade da prova, nega igualmente a possibilidade da verdade histórica. Não se trata de eliminar uma correspondência entre ficção e história; ao contrário, Ginzburg exalta desde sempre o potencial cognitivo da literatura, inclusive para a produção de conhecimento histórico, tanto no que concerne ao conteúdo semântico das obras quanto às formas literárias ou procedimentos estruturantes dos textos, como os tropos metafóricos, metonímicos, antitéticos, comparativos, ou as vozes narrativas singulares ou plurais, ou a organização dos discursos de modo direto ou indireto, ou ainda os brancos ou silêncios entremeados às palavras. No entanto, nada disso permite eliminar as distinções entre ficção e realidade, pois a diferenciação entre ambas é exatamente o que as constitui enquanto tal, sine qua se cai numa aporia epistemológica. A proposta ginzburgiana reside em desnaturalizar e problematizar, ou seja, admitir enquanto problema e discutir o acesso à verdade, a narratividade da história e a validade de múltiplas perspectivas, sem contudo abrir mão da existência do real e da verdade possível, ainda que lacunar, segundo as provas permitidas pelos documentos. Sua leitura da micro-história refuta o que considera um lugar comum difuso que identifica tacitamente a narração do romance

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Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

naturalista do séc. XIX com toda narração histórica e recusa igualmente os expedientes historiográficos que, conforme acusara White, escondem seu caráter construtivo – e que vão para além dos recursos narrativos e retóricos, envolvendo também as escolhas temáticas e documentais, as interpretações teóricas e todas as demais fases da pesquisa –, postulando que as lacunas da documentação na historiografia sejam mantidas e exploradas suas implicações gnosiológicas, transformando-as num elemento narrativo, isto é, a busca da verdade é incorporada como parte da exposição, deixando-a incompleta (2007:271), assim como o narrador do romance do séc. XX incorpora incertezas, pois não é onisciente como o narrador oitocentista, conforme ensina Auerbach. Em outras palavras, demonstra-se, no próprio corpo da narrativa, os limites do trabalho em andamento e suas implicações para a produção de conhecimento histórico válido. Para este, é fundamental enfrentar a memória e as destruições da memória que ocorrem repetidamente na história e na historiografia (2007:230); assumir que a relação com o passado é precária mas possível; compreender que “tradutibilidade e relativismo não são sinônimos”, e estabelecer cuidadosamente a distinção “entre a verdade, como um princípio regulatório, e os critérios de verdade” (GINZBURG, 2011:358). No artigo “Enredo e verdade na escrita da história”, creio que se pode perceber que Hayden White (2006) procura dialogar com as críticas recebidas de diversos intelectuais e, de certa forma, ameniza sua posição cética ao tratar do cerne das questões, qual seja, o problema epistemológico e ético das teses de (ir)representabilidade do Holocausto5. Considerando a argumentação de autores como S.Friendlander ou B.Lang, que denunciam a estetização sadomasoquista do horror e/ou buscam o tom certo da representação realista da catástrofe (mediante a “escrita intransitiva” ou a “voz média” propostas também por Barthes), White afasta-se da “falácia da referencialidade”, mas reafirma a determinação do enredo na construção do sentido, uma vez que a narrativa histórica não é um “container neutro”, como queria a historiografia do século XIX, cujo discurso era pautado pelo realismo. Sem negar a realidade e a experiência histórica do Holocausto, recusa tanto o realismo tradicional quanto o postulado de sua indizibilidade, bem como argumenta que, no que se refere às narrativas que competem pela interpretação do nazismo e aos modos inaceitáveis de narrá-lo, os enredos cômicos ou bucólicos estariam fora de questão, salvo se comportam um corte irônico como 5 Para muitos autores, neste texto White resume as ideias de seus principais livros; contudo, o longo debate com a questão da representação e realidade do Holocausto permite-nos outra leitura.

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Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

componente metacrítico, não sobre os fatos mas sobre as versões. Seria o caso de Maus, a amarga sátira em quadrinhos na qual Art Spiegelman traz uma visão irônica e aturdida sobre o Holocausto, uma obra-prima de estilização, figuração e alegorização em que não há, porém, estetização, pois a mistura absurda do “gênero baixo” típico das convenções cômicas com eventos da maior significância levanta questões cruciais sobre os limites da representação responsável e seus usos pela ficção ou poesia (2006:195-96). A conclusão de White aponta que no mundo contemporâneo, a ordem da experiência está além ou anterior àquela que se exprime nas oposições ente fato/ficção, sujeito/objeto, figurativismo/literalismo, história/mito. Termos polares são úteis para representar algumas relações reais, mas não todas as experiências do mundo, cuja modernidade pede um modo novo e distinto de descrever, conceitualizar, imaginar. Embora aproxime essa ideia do que chama “projeto modernista de filosofia” de Derrida e seu conceito de différance, ele recorre a Auerbach para defender uma necessária mudança na historiografia, cuja concepção de realismo é inadequada para representar eventos modernos per se, como o Holocausto, e dessa inadequação derivam as anomalias, enigmas e impasses de sua representação. White enumera como características estilísticas distintivas do modernismo as mudanças narrativas do séc. XX apresentadas por Auerbach: desaparecimento do escritor como narrador de fatos objetivos; dissolução de qualquer ponto de vista fora do romance; tom de dúvida e interrogação na voz do narrador, mesmo quando a descrição é objetiva; recursos como o fluxo de consciência para propósitos estéticos que obscurecem a impressão de realidade objetiva; novas técnicas de representação da experiência de tempo e temporalidade (liberação de processos de consciência desde uma ocasião propícia, indistinção entre tempo interior e exterior, eventos representados como ocorrências do acaso, e não como episódios sucessivos de uma estória). Não se quer dizer que a história não seja representável realisticamente, nem que se deva abrir mão do esforço de fazê-lo em relação ao Holocausto, insiste ele, mas de ver que as concepções do realismo e da história têm mudado6. Em suma, a história que o modernismo confronta não é 6 Isso poderia levar a uma rejeição radical da história, da realidade como história e da própria consciência histórica, diz White, mas não é o caso de Auerbach, voltado a diferenciar o realismo e um modernismo “ainda preocupado em representar a realidade 'realisticamente' e em identificar realidade com história (ibidem:205-06). Tal raciocínio deixa entrever certa oscilação de White quanto à referencialidade, marcando seu texto de contradições. Gombricht e Auerbach são autores referenciais de White (e de Ginzburg) para reverter as perguntas sobre a relação entre história e arte e pensar os elementos estéticos da historiografia. (LIMA, 2007:104).

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mais aquela tratada pelo realismo do séc. XIX, dadas as transformações radicais na ordem do mundo contemporâneo, de maneira que o modernismo significa menos uma rejeição do projeto realista e negação da história, do que antecipação de uma nova forma de realidade histórica7. A ideia de que é preciso rever as formas de representação para adequá-las às experiências específicas do séc. XX, e a leitura de Auerbach para compreender essa dinâmica, coincidem parcialmente com o projeto ginzburgiano. Henrique Lima (2007:108) observa que Ginzburg sempre reconheceu a importância de Auerbach para sua formação, mas passa a enfatizá-la mais recentemente, em virtude de seus combates epistemológicos, frisando o potencial da indicação metodológica embutida na concepção de “mimesis”, que Auerbach não trata teoricamente, mas no seio mesmo de suas análises literárias. Em 1984, em “Prova e possibilidade”, Ginzburg propunha: “Auerbach indicou um caminho que não foi continuado. Valeria a pena fazê-lo...” (2007:319). O caminho consiste em compreender que a representação da realidade na literatura ocidental foi marcada pela transgressão da doutrina clássica da separação dos estilos operada pelo cristianismo, que a crônica de fatos extraordinários e os livros de viagens contribuíram para o nascimento do romance e, “através desse intermediário decisivo”, para a historiografia moderna. Foi negligenciado que em Mímesis alternam-se análises de romancistas, poetas e historiadores, de modo que sua proposta consistia em refletir sobre o teor mimético também da história, e não só da ficção: “Auerbach tinha um senso fortíssimo da realidade e, em primeiro lugar, da realidade social. Sua visão 'perspectivista', que se inspirava em Vico […] se baseava na ideia de que o desenvolvimento histórico tende a gerar enfoques múltiplos da realidade.” (2007:171). Ele era um “mestre do perspectivismo”, mas não em absoluto um relativista. Por meio dos relatos inventados, “procurava alcançar uma verdade histórica mais profunda”, atitude esta compartilhada com romancistas do séc. XIX, mas sobretudo e de forma menos óbvia com os do XX, como Virgínia Woolf e Marcel Proust, que “também inspiraram os princípios formais com base nos quais o próprio livro foi construído, pois dele Auerbach retirou a ideia então inusitada de que “que através de um acontecimento acidental, uma vida qualquer, um trecho 7 Esta inclui “entre seus supostamente […] impensáveis e inexprimíveis aspectos, o fenômeno do hitlerismo, a solução final, a guerra total, a contaminação nuclear, a fome em massa e o suicídio ecológico”, bem como uma profunda desconfiança na capacidade das ciências explicarem e controlarem tais fatos e na capacidade dos modos tradicionais de representação até para descrevê-los adequadamente. (WHITE, 2006:206).

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tomado ao acaso, se possa chegar a uma compreensão mais profunda do todo” (2007:173)8. Aprende-se do autor de Mímesis que o mergulho nas profundezas de uma individualidade permite penetrar nos grandes fenômenos da sociedade e do pensamento; que perspectivismo e relativismo são relações distintas com o conhecimento e o mundo9; que a representação literária e o fragmento possuem força heurística e cognitiva para ler o tempo histórico; que a mimese como modus operandi da história não é questão meramente retórica, mas de poiesis no sentido mais amplo de fazer estético e social, que inclui práxis no sentido originário dos termos: ação/reflexão que lidam com a potência e limites da forma e da liberdade. A coletânea de ensaios de O fio e os rastros volta-se eminentemente a essas discussões, recuando no tempo para mostrá-las em outros contextos e defender a crítica interna que constitui conhecimento desde dentro do erro dos documentos e dos vestígios rotos do passado invisível, de modo que a partir dos fragmentos erodidos pelo tempo, do erro, da imperfeição e da ficção, se pode construir a contrapelo “a história verdadeira a partir da falsa” (2007:93). Esta, que pode ser almejada sem se incorrer em historicismo, depende dos historiadores enfrentarem o desafio de uma “áspera verdade”: que formas artísticas e ficcionais oferecem algumas verdades históricas que apenas se deixam desvelar mediante procedimentos formais, que pedem ser conhecidos e dominados por meio de diálogos interdisciplinares. O debate Ginzburg e White, que talvez indique uma disputa de em torno de Auerbach e soa por vezes como um diálogo de surdos, tem seu ponto de ancoragem, como já dito, no problema a (ir)realidade e (ir)representabilidade das experiências históricas de violência extrema. O cuidado de Ginzburg com as situações-limite e a relação entre sofrimento e história permite formular a hipótese de que experiência histórica dolorosa é um ponto fundante de suas concepções de história e historiografia e, como tal, um critério norteador e diferenciador de sua obra. Sua atenção à dor mostra-se em numerosas ocasiões, ao opinar como leitor de Borges, p.e.x., que este “não explorou seu talento completamente [...] não se 8 Ele diz que sua aproximação da micro-história é devedora de eruditos como Auerbach, “que desenvolveram interpretações de artefatos literários e pictóricos baseados em pistas que outros consideraram insignificantes” (GINZBURG, 2007b:97). 9 Em “Distância e perspectiva: duas metáforas”, Ginzburg analisa em um processo de longa duração a argumentação que vincula a perspectiva “como uma metáfora cognitiva poderosa” à verdade, observando a formação de três tradições perspectivistas ou modelos cognitivos diferentes – respectivamente sob o signo da adaptação (derivado de Sto.Agostinho); do conflito (desde Da Vinci e Maquiavel); e da multiplicidade (desde Leibniz) – cujas marcas estão nas concepções de história de Hegel, Marx e Nietzsche e que, combinadas em doses variadas, compõem as principais formas historiográficas atuais. (2001:194-98).

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comprometeu com a representação e com a experiência da dor” (2011:s/p); ou ao constatar que os céticos tanto buscam um alívio subjetivo do excessivo peso da história, como queria Nietzsche, quanto uma fuga a um passado sentido como doloroso, o que denuncia certa autoindulgência e mesmo irresponsabilidade contida no que seria uma “retórica da inocência”, pois diferentemente do que faz Conrad em O coração das trevas – no qual apesar e mediante a multiplicidade dos pontos de vista narrativos se transmite um juízo cognitivo e moral sobre o caso narrado, condensado na exclamação final que qualifica o colonialismo como “horror!” –, o modelo relativista não contribui para compreender o processo histórico em curso, em que se intrincam homogeneidade e diversidade cultural, subordinação e resistência em escala global (2002:passim). Tais concepções derivam certamente de sua experiência pessoal – ante as condições de morte de seu pai sob o nazismo –, bem como de sua relação com a psicanálise, a qual sustenta em boa parte suas elaborações sobre si mesmo e sobre a história em geral, por ter-lhe dado a compreender, com os casos analisados por Freud, os processos inconscientes que fazem parte dos comportamentos, crenças e palavras dos indivíduos, e sobretudo, a importância de enfrentar as verdades, ainda que dolorosas, e a tensão entre razão e desrazão, isto é, a possibilidade de “desvendar a racionalidade do irracional” (2000:283-87, 295-301). Assim, para Ginzburg, a relação entre documento, sofrimento e realidade, presente nos embates de esquecimento e memória ao longo da história, entendida como experiência e como historiografia, exige um tratamento crescentemente mais complexo. “A vida é feita de muitas conexões, mas a pergunta é: 'quais conexões'?”, diz ele (2000: 277). A experiência de dor inegavelmente faz parte dos fios enovelados das boas respostas.

Referências Bibliográficas

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