Um gosto de cada lado da tela - Relatos do front publicitário

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Texto originalmente apresentado no 9º Encontro Internacional de Música e Mídia ­  USP / 2013    Um gosto de cada lado da tela: relatos do​​  front publicitário    José Guilherme Allen Lima  Universidade de São Paulo – Programa de Pós­graduação em Música  [email protected]      Resumo    Trabalhar  com  som  e   música  para  publicidade  tem  gosto  de  esgotamento.  Esgotar   a  paciência,  a   saúde,  as  opções,  os sons possíveis e até o gosto por eles. Esgotar as opções de  delivery,  do  cardápio  da  padaria  da  esquina,  do  cardápio  da  padaria  da  outra  esquina  algumas  ruas  abaixo  e  sentir  saudade  do  gosto  do  cereal  que  mora na sua cozinha. É tentar  dar  gosto  à  nova  encarnação  do  suco  em  pó,  e  dar  refrescância  a  uma  bebida  que  você   nunca  bebeu.  Finalmente,  é  o  gosto  do  pão  na  chapa  com  uma  média  voltando  pra  casa  depois  de  uma  noite  em  claro,  pensando  seriamente  em  mudar  de  emprego.  Nesta  apresentação,  o  participante  fala  de  suas  experiências  como  técnico  de  som  e  produtor  de  áudio  e  música  para   publicidade,  e  das  relações  deste  tipo  de  trabalho  com  os  gostos  dos  comeres e beberes em ambos os lados da tela.    Palavras­chave    Publicidade; Trilha sonora;​ ​  Jingle; Comercial.    Um aperitivo, ou aviso    Antes  que  seja  tarde,  gostaria  de  avisar  que  o  presente  trabalho  está  mais  próximo  de  um  relato  pessoal  do  que  propriamente  de  um  artigo  acadêmico.  Explico­me:  vou  discorrer  aqui  sobre  assuntos  e  experiências  que,  no  mais  das  vezes,  se  relacionam  com  a  minha  produção  recente  por exclusão, uma vez que o meu retorno às atividades acadêmicas  está  diretamente  relacionado  com  uma  decisão  individual  de  abandonar terminantemente –  ao  que  os  anos  e  as  condições  financeiras  vindouras  podem  eventualmente  acrescentar  um  ma  non  troppo  –  o  trabalho  em  produtoras de áudio e música para publicidade. Os motivos  desta  decisão,  ainda   que  não  ocupem  uma  posição  central  neste  texto,  poderão  ser 

 

 



encontrados  nas  entrelinhas,  por  estarem  de  alguma  forma  relacionados  com  os  gostos,  o  comer e o beber envolvidos neste​ métier.  Não  que  fazer  música  e  cuidar  do  som  de  comerciais  tenha  sido   a  minha  principal  ocupação  por  um  período  muito  extenso.  Na  verdade esta experiência consistiu muito mais  em  um  hiato  nas  minhas  atividades  regulares  de  músico,  pesquisador  e  professor – e numa  forma  de  resolver  imperativos  financeiros  do  dia­a­dia  frente  a  uma  nova  cidade  e  uma  nova  configuração  domiciliar  –  do  que  propriamente  em  uma  carreira  em si. Não obstante,  a  natureza  intensa  destas  experiências,  e  algumas  de suas características, revelam possíveis  discussões  a  respeito,  caso  haja  possíveis  interessados  em contribuir para este mapeamento  teórico e para as discussões acadêmicas da produção sonora e musical para publicidade que,  salvo engano da minha parte, ainda estão por serem feitos.  Parte  desta  constatação,  acredito,  deve­se  ao  fato  de  ser  muito  difícil  pensar  a  respeito  de  publicidade  enquanto  se  está  envolvido  com  o  trabalho  em  publicidade  em  si.   Se  no  cotidiano  desta  atividade  sequer  sobra  algum  tempo  para  se  subsistir  de  forma  mais  ou  menos  estável  –  e  desempenhar  tarefas  triviais  como  tomar  banho com calma,  conviver  com  entes  queridos  ou planejar sua próxima refeição – que dirá criar  um espaço de reflexão  sobre  os  comos  e  os  porquês  de  se  realizar  este  tipo  de  trabalho.  Para  dar  início  à  série  de  metáforas  e  analogias  com  comer  e  beber  – pelas quais eu  me desculpo de antemão caso se  revelem  insossas  ou  mesmo  indigestas  –  que  uso   para  delinear  este  texto,  o  mundo  da  publicidade  constantemente ​   lhe  convida  a  se  tornar  uma  espécie  de  Mr.  Creosote1,  personagem  do  filme  O  sentido  da  vida  que,  por  não  conseguir  negar  as  ofertas   de  um  insistente  mâitre,  acaba  comendo  até  explodir.  Aqueles  que,  como  eu,  pedem  licença  e  abandonam  a  mesa  antes  da  inevitável  explosão  comumente  o  fazem  por  sentir  um  certo  enjôo que inibe futuros retornos, ainda que teóricos, ao restaurante.    O menu   

  Disponível  em:  .  Acesso  em  20  de agosto  de 

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2013.   

 

Uma  produtora  de  áudio  para  publicidade  trabalha  com  alguns  itens  diferentes  em  seu  cardápio.  Além  da  música,  cuida  também  da  criação  de  paisagens  sonoras  específicas  para  o  comercial em questão, e de gerenciar as vozes  que nele vão ser ouvidas – que podem  ter  sido  captadas  junto   com  as  imagens,  no  caso  dos  filmes,  ou  gravadas  em  estúdio  por  locutores,  atores  ou  cantores.  Dispor­se  a  fazer  uma  destas  atividades  é  dispor­se  a  fazer  todas  elas,  invariavelmente  ter que lavar pratos com uma mão e  fritar  batatas com a outra, e  esta  concepção  mais  abrangente  da  noção  de  trilha  sonora  é,  no  mínimo,  bastante   esclarecedora para quem vem “da música”.  Assim  como  nos  restaurantes  mais  metidos  à  besta,  o  ​plat  du  jour   varia  de  acordo  com  as  tendências  vigentes  do  mundo  dos  criadores  descolados  e  seus  anuários  de  publicidade  gringa:  na  minha  época  se  enfatizava  muito um modelo de ​comercial­vérité no  qual  os  depoimentos  de  atores  e  de  pessoas “comuns” são misturados, e onde ninguém fala  propriamente  do  produto  em  si mas de aspectos de uma suposta “vida real” que aproximam  as  inquietações  do  espectador  das  benesses  oferecidas  pelo  produto,  seja  ele  uma  linha  de  crédito  ou  um  creme  antirrugas2.  Aqui  a  pedida  é  fazer  com  que  o  comercial  não  tenha  gosto  de  comercial,  mas  de  cinema  ou  de  “viral”  do youtube, e a música e o som seguem a  receita de acordo.  Já o jingle é o equivalente do espaguete à bolonhesa ou do filé com fritas: pratos que  todo  mundo  conhece  e gosta mesmo sem admitir, e que são certeza de encher barriga. Nada  é  mais  antiquado  e   característico  da  publicidade  stricto  sensu  do  que  o  jingle,   e  tampouco  mais  eficiente  na  sua  capacidade  de  vender  e   de  permanecer  vivo  e  sonoro  na memória do  consumidor,  ainda  que  décadas  tenham  transcorrido  desde  que  sua  respectiva  campanha  saiu  do  ar.  Nesse  sentido,  o  jingle  compartilha  boa  parte  das  características  da  canção  fonográfica  e  radiofônica,  ao  buscar  equilibrar  elementos  que  o  tornam  generalista  o  suficiente  para  satisfazer  todos  os  paladares  com  as  devidas pitadas  de individualidade que  o distinguem dos demais. 

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  O filme  “Identidade”,  criado  para  divulgar  um  novo  produto  da  empresa  Natura,  é  um  dos  exemplos  deste  modelo,  no  qual   o  autor  trabalhou  com  edição  de  áudio  e  mixagem.  Disponível  em:  .  Acesso  em  24 de agosto de 2013.   

 

Na  seção  das   sobremesas  podemos  encontrar  algumas  aventuras,  como  gravar  uma  pequena  orquestra  ou  grupo  de  câmara  e  até  fazer  música  junto  com  artistas  consagrados  que  você  eventualmente  admira.  Não  é  todo  dia  em  que  é   permitido  se  lambuzar  nos  itens  desta  seção  do  cardápio,  mas  eles  certamente  vão  garantir  alguns  breves  momentos  de  prazer  que  compensam  as  calorias  e  gorduras  ingeridas  ao  longo  da  refeição.  Nas  sobremesas  esquecemos  por  um  instante  que  aquilo  que  estamos  produzindo  ainda  é  um  metaproduto,  vendido  indiretamente  para  que  alguém  que  normalmente  não  conhecemos  venda seus produtos, eventualmente para nós mesmos.  Canais  cooptados  mais  recentemente  para  a veiculação publicitária, como a internet  e  os  jogos  eletrônicos,  estão  ajudando  a  alimentar  uma  certa  experimentação  com  novos  formatos  de  modo  semelhante  ao  que  faz  a  gastronomia  molecular  –  ainda  não  se  sabe  exatamente  se  o  que  muda  são  os  ingredientes,  seu  preparo  ou  sua  apresentação,  mas  certamente o acesso a estas novidades requer algum investimento financeiro.    A cadeia alimentar    Da  descrição  do  cardápio  sigo  para  tentar  descrever  o  funcionamento  da  cadeia  alimentar  que   rege  este  tipo  de criação, adiantando que a  produtora de áudio está em algum  lugar  entre  o capim e os herbívoros mais indefesos, e como estes precisa de  olhos e ouvidos  treinados  para  perceber  mais  o  predador  do  que  a  presa.  O  primeiro  predador,  ou  talvez  a  presa  mais  volumosa  com  a  qual  compartilhamos  o  pasto,  é  a  produtora  de vídeo, criadora  das  imagens  que  a  produtora  de  áudio  sonoriza.  Se  é  verdade  que  às  vezes  pastamos  sozinhos  criando  peças   para  o  rádio,  esta  tem  se  mostrado  uma  vegetação  cada  vez  mais  curta e pulverizada, onde se pasta mais pelo hábito do que propriamente pela nutrição.  Mas  na  maior  parte  do  tempo  estamos  contando  com  a  benevolência  dos  peixes  grandes  do  vídeo,  e  retribuímos  o  favor  engordando  sua  narrativa  e  compensando  suas  carências.   Não  é  raro  o  som  ter  que  vitaminar um roteiro desnutrido ou glacear uma edição  mal­feita,  como  certa  vez  em  que  eu  passei  a  maior  parte  de  uma  noite  em  claro  tentando  criar  a  impressão  de  sincronia  entre  o  som  direto  captado  no  set  de  filmagem  e  um  corte 

 

 

para  a  boca  da  atriz  bem  no  meio  de  uma  vogal,  lembrando   que  tantos  dias  sem  juros  no  cheque  especial  tornam  você  uma  pessoa  bem  mais  descolada,  ainda  que  invariavelmente  afogada  em  dívidas3 . Em outro episódio semelhante, viramos a noite com alguns assistentes  de  direção  e  o  departamento  de  marketing  de  uma  montadora  tentando,  por  meio  de  umas  quatro  trilhas  sonoras  diferentes,  dar  graça  à  vida  de  um  hipotético  moleque  criado  por  robôs em uma linha de montagem4 .  No  topo  da  cadeia  alimentar  alternam­se,  a depender das época observada, agências  de  publicidade  e  seus  clientes.  Minha  geração  ouviu  diversas  histórias  de  infinitos  smörgasbord  em  uma época glacial  de soberania inconteste das agências, ao passo que hoje  em  dia  a  concorrência  acirrada  devolveu  boa  parte  deste  poder aos clientes, sempre cientes  de  que  haverá  alguém  por  aí  disposto  a  fazer  o  mesmo  serviço  por  um  bife  um  pouco  menor.  Num  ecossistema  cuja  dogma  parece  ser  “farinha  pouca,  meu  pirão  primeiro”,  o  pessoal do som volta e meia precisa se virar na base da sopa de pedras.    E afinal, qual o gosto da música pra publicidade?    Na  sua  comunicação  com  o  consumidor,  o  som  e  a  música  na  publicidade  buscam  reforçar  os  atributos  fundamentais  do  produto  ao  qual  estão  atrelados,  e  o  doce  sabor  de  integrar  o  grupo  dos  que  podem  adquirir  estes  privilégios.  Caberia  aqui  sugerir  uma  possível  análise  da  linguagem   sonora  e  audiovisual  na  publicidade  a  partir  da  ideia  de  imagem  técnica  e  seu  processo  de  transcodificação  de  teorias  em  cenas  (FLUSSER,  2011,  p.  60).  O  vídeo  e  o  áudio  publicitário  criam  cenários  e  paisagens  que  buscam  traduzir  ou  transcodificar  –  por  meio  da objetividade aparente que caracteriza estas imagens técnicas –  as  teorias  que lhes são apresentadas pelos escalões superiores da cadeia alimentar, na forma  de  estratégias  de  marketing  direcionadas  para  porções  específicas do mercado consumidor:  o  que  se  vê  na  tela  não  é uma cerveja ou uma bebida energética, mas a dimensão imagética 

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  Não  foi  possível localizar  uma  versão online deste filme em particular, mas o estilo de edição de vídeo pode  ser   observado  em  outros  filmes  da  mesma  série.  Num dos  filmes,  uma  senhora  adverte  sobre  os  perigos  de  contrair  dívidas junto a outros  bancos. Disponível em: .  Acesso em 24 de agosto de 2013.  4  Disponível em: . Acesso em 24 de agosto de 2013.   

 

e  sonora  do  nosso  possível  desejo  por  estes  produtos,  de  acordo  com  as  crenças  de  um  grupo de criadores a respeito de como este nosso desejo se manifesta comercialmente.  Daquele  lado,  ou  deste  –  posicionando­me  de  acordo  com  o  meu  jejum  de  publicidade  –  o  importante  não  é  tanto  o  gosto  em  si,  mas  criar  a  necessidade de prová­lo,  algo  que  não  percebemos  tanto  em nós mesmos como consumidores em potencial, mas que  qualquer  adulto  reconhece  facilmente  ao  ter  de  lidar  com  uma  criança  baratinada  pela  vontade  de  consumir  –  e  deixar­se  consumir  por  ­  doces  ou  refrigerantes   que  eram  absolutamente  desconhecidos  até  cinco  minutos  atrás.  Convidados  pelo  desenho  animado  ou  pela  apresentadora  infantil  a  visitarem  nossa  sala  de  estar,  tornam­se  instantaneamente  items  básicos  para  a  sobrevivência  humana,  sem  os  quais  não  se  pode  passar  sem.  Esta   perigosa  relação  entre  comunicação  publicitária  e  alimentação  infantil  é  explorada  extensivamente   no   documentário  “Muito além do peso”5, de 2012, onde é possível perceber  o  real  impacto   das  imagens  técnicas  geradas  em  estúdio  sobre  os  hábitos  alimentares  e  de  consumo em diferentes parcelas da população.  De fato, o som e a música inseridos  no  contexto da linguagem no campo audiovisual  colaboram  na  criação  de  imagens  técnicas críveis com as quais o consumidor em potencial,  almeja­se,  virá  a  se  identificar,  aproximando­o  e  inserindo  em  sua  realidade  a  necessidade  do  consumo.  Como  dizer  não  a  um   pozinho  cor­de­rosa  que,  uma  vez  misturado  ao  leite,  vira  algo  próximo  do  iogurte e ainda por cima transforma a sala de  estar da sua casa em um  videogame6 ?  Como  não  concordar  com  o  potencial  verdadeiramente  sinfônico  de um novo  carrão,  capaz  de  arregimentar  músicos  os  mais  diversos  para  trombetear  com  pompa  e  circunstância sua passagem – sob as devidas ordens de um regente­guarda de trânsito7?  Do  outro  lado  da  tela  e  do  alto­falante,  o lado de quem produz, trabalhar  com áudio  para  publicidade  tem,  antes  de  quaisquer  outros,  gosto  de  esgotamento  e  de  café  requentado.  Esgota­se a paciência, a criatividade, o físico, o mental  e o espiritual. Esgota­se 

 Disponível em:​ . Acesso em 20 de agosto de 2013.   Disponível em: . Acesso em 24 de agosto de 2013.  7   Acredito que o  processo de produção da trilha sonora  deste comercial  em particular merece um texto à parte,  devido  às  suas  relações  com  o   imaginário  associado  à  música  de  concerto.  No  vídeo   aqui  apresentado,  é  possível  assitir   ao  comercial  em  si,  precedido  por  um  Making  Of.  Disponível  em: 
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