Um grito no asfalto

June 13, 2017 | Autor: Weslei Candido | Categoria: Poesia Brasileira
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Weslei Cândido

Um grito no asfalto

2015

À maneira de prólogo

O que é poesia? O que torna um texto poético ou não? Seria a organização das palavras em versos? Mas isso garantiria a poesia? Não é apenas uma forma de organizar as ideias, esse suporte dos versos e das estrofes? O fato é que há muitos anos o estatuto do texto literário vem sendo questionado. E o estatuto da poesia também entra nessa discussão, afinal de contas a poesia não está apenas no poema, mas no romance, no conto, na música, em uma peça de teatro, em uma apresentação de dança. O eu-lírico no poema “Poesia”, de Carlos Drummond vive o conflito de não conseguir se livrar dos versos que quer escrever, mas o sentimento do poético, “(d)a poesia deste momento/inunda minha vida inteira”; assim percebe-se nitidamente que há um sentimento de poesia difícil de se expressar em palavras, de ser transformado em versos, porém, ali, está a poesia, viva, pulsando dentro do homem, inundando-lhe a vida. É desse sentimento de poesia que o presente livro partilha. Encontrar a poesia nos sentimentos, nas coisas miúdas, no cotidiano, que pode ser olhado pelos olhos da poesia, que pode despertar todo um estado poético dentro do ser humano. A poesia democratiza o homem. Nela todos são iguais e estão sujeitos à experiência literária; nela se encontram homens e mulheres, independentemente de suas opções sexuais, religiosas e partidárias. Diante do poema o homem está nu, enfrenta o desafio de encontrar nos versos um momento de fuga, de realização ou de despertar para realidade; paradoxalmente, um despertar ativado pela fantasia, pelo sentimento de poesia que implode o espaço da página em branco e salta diante dos olhos do leitor. Nessa sociedade submersa na tecnologia, assolada pelas imagens, curtidas e compartilhamentos em Facebook, Instagram, WhatsApp, Messenger, de celulares de última geração e tablets, a poesia nos obriga à contemplação, ela nos convida ao desentranhar das imagens despertadas pela palavra, ela nos provoca a experimentar, mesmo que por poucas linhas, o sentimento de solidão proporcionado pelos versos. Essa retirada momentânea do mundo pode transformar o homem. A experiência com as palavras nunca permitirá que sejamos os mesmos. O próprio tema “poesia” se nega às palavras, não se entrega fácil, negaceia com quem a desafia. Explorar a poesia é uma aventura do homem com seu interior mais

obscuro, onde ele não encontrará a explicação de seus conflitos, mas será confortado por encontrar outros homens na mesma situação que a sua. Além disso, poesia é imagem, depende dela. O poema forma um quadro em versos, onde as imagens despertam no leitor uma emoção, um estranhamento; esse é maior ainda porque estas imagens não estão ali de verdade, mas estão mediadas pelas palavras, pela associação muitas vezes deturpada da realidade natural e, justamente, por isso chamam a atenção. O leitor é preso à página que desafia no preto e branco a encontrar as cores de que o eu-lírico diz haver. A poesia, sobretudo, é estranhamento. Tudo nela remete o leitor a uma relação diferente da que ele encontra no mundo real. A sensação, muitas vezes, de mal-estar nada mais é do que o impacto que as imagens presentes no poema causam em quem o enfrente despreparado. O próprio poeta estranha, em alguns momentos, as imagens que cria. Essa voz chamada eu-lírico que se torna o porta-voz do vate, perturba aquele que escreve o poema antes mesmo de se concretizar e ganhar independência na forma literária. Muitos chamam de inspiração esse sopro, essa ideia que os invade de uma hora para outra, quase em um transe do poeta, que vê mundos novos, conexões inimagináveis, até poucos segundos antes, entre as palavras e as converte em poesia. São desses sentimentos que se partilham nesse livro. Há nos versos das páginas que se seguem uma tentativa de se relacionar com o Outro por meio dos poemas, de torná-los a ponte entre o pretenso leitor e o poeta ou o eu-lírico, que é quem realmente vive no poema, possui voz, sentimentos, angústias. Muitas vezes, esse eu-lírico emprestará os olhos também para que se veja o mundo por uma ótica estrábica, desfocada da realidade comum. Mas engana-se quem aqui procurar por respostas. A poesia não tem repostas, ela traz mais dúvidas, errâncias, obscuridades, descaminhos que fazem o homem se reconhecer neles ou então rejeitá-los de maneira tácita. Só não é possível ficar indiferente ao material que se tem diante dos olhos. Esse é o maior desafio deste livro causar inquietação no leitor. Enfim, essa conversa inicial sobre poesia pouco esclarece, pois se apresenta uma série de ideias sobre o que é poesia ou como deve ser lida a poesia, mas isso não

substitui os versos. Neles sim o leitor poderá questionar se o que lê são poesias mesmo ou apenas alguns poemas. Cabe ao leitor o julgamento ou o deleite.

Weslei Candido Fevereiro de 2015 Maringá –PR

“A poesia é um jeito especial de pensar, um pensamento por imagens; esse jeito proporciona certa economia das forças mentais,

uma

‘sensação

de

leveza

relativa’, e o sentimento do estético não é senão um reflexo dessa economia” Victor Chklóvski

I A chave estava sobre a estante lembrando que havia portas fechadas pelos labirintos da memória. Ousei tocá-la, mas tive medo de quem poderia encontrar no quarto povoado de lembranças.

II

Há pratos e copos quebrados. Em minha memória ainda cortam seus cacos, velhos punhais de brilhantes lâminas no escuro.

III Há um buraco ele é negro nebuloso e insano parte intocável do ser. Ali se encontram memórias, pesadelos, medos mascarados pelo sorriso sócio-cotidiano das manhãs.

Um suspiro uma dose de si a angústia da incompreensão. Vi todos girarem em torno da poesia. Dança frenética, ritual da chuva, cerimonia genésica no ventre dos versos.

O corpo se arrasta todos os dias entre carros, motos, outros corpos. Tomba da cama pela manhã esperando o dia que tombará pela última vez na terra. O corpo se ritualiza, entre escovas e esponjas se higieniza civiliza-se para outros corpos. Veste-se, sai e agora corpo fechado igual outros corpos dança o baile da sociedade.

Oh, Deus, por que deixaste o pecado deitado à minha porta? Por que mandaste que eu me controlasse se o pecado é tão belo e atrativo? Por que cabe a mim e não a Ti resisti-lo? Por que a mim esta tarefa tão árdua? Sinto-me só e fraco, tentado a ceder. Por fim, abraço o pecado e vivo com ele um romance intenso e banal.

À meia noite sob a luz do poste a encontrei iluminada como num palco. Atriz principal de uma peça monólogo arriscado na calçada. E eu, figurante menor, a acompanhava, cada gesto, cada movimento dos dedos que apertavam o cigarro levado calmamente aos lábios vermelhos. Segui-na pelas ruas, pelos postes, pelas calçadas e fiz as mesmas paradas. Contemplei-na à beira da orla. Encostou-se no parapeito, gestos calmos subiu e atirou-se para sempre nas ondas negras de uma noite infinita.

I Há um poema não escrito. Ideal, mental perfeito. Sua sonoridade atravessa a eternidade.

II

Demorei a acordar demorei a perceber que o poema dentro de mim despertou ranzinza e chato a reclamar a ausência de um sol ainda sem luz.

I No espelho de tuas unhas azuis descobri-me velho. Teus dedos morenos qual adornos barrocos destilam de tuas unhas uma prisão incansável de me possuir.

II

Tremi quando me reconheci em você soube que ser igual é quase insano. Compatibilidade: maldita palavra moderna desesperadora da fragmentação do eu. Ritual globalizante de um mundo formatado e comandado por títeres desarticulados.

III Violentei tua boca com um beijo estava exausto de teus versos que flutuavam de teus lábios, assim não enlouqueci com tuas metáforas metaflores, metalábios de eruditos versos negros.

Dancei sozinho, baile canhestro, (mas afinal sempre dançamos a sós com nossas fantasias). Te iludes ainda a pensar que teu parceiro dança a mesma música? Na contraluz do salão percebi teu olhar de soslaio a cobiçar outros ritmos.

I O desafio da página em branco a ausência de sentidos na face limpa do papel. Devo macular esta folha com minha tinta negra de tantas épocas?

II

Risquei a página com o estilete de minha alma sangrei-na sem saber que sangrava a mim. Pacto de sangue e papel. Desenho brutal da pré-razão.

III

A poesia gritou dentro de meu peito fez dele caixa de ressonância bateria empolgada de escola de samba fui obrigado a soltá-la na avenida cheia de negaça e rebolados sensuais.

I Sou homem: originado do barro. Não estou na lama, sou lama barro que suja, emporcalha e vai secando até o fim da vida. Aí, passarei a ser barro, terra seca, pó...

II Carrego uma pasta com flores secas não são minhas as pétalas. Mas roubei-nas de diários antigos. Provas de um donjuanismo juvenil que pretendo apagar de meus arquivos.

III

Cortei as mãos nos espinhos das palavras. Essa cerca viva de poucas possibilidades fez-me duro como aço, diamante não polido de setas agudas disparadas pela língua.

I Cantei a rosa imperfeita vácuo e ausência de mim nos dias passados pela vida. Rosa sem pétalas, negra carcomida de saudades e dores causadas pelos aguilhões cravados no peito.

II

Canto a rosa de vidro perfeita em seu contemplar mudo cristalizada e fossilizada pelo tempo. Jarro de vidro barato sobre a mesa lembrando consolos e batalhas que não atravessam a materialidade da redoma de vidro e água.

I

Brinquei de roda com o anjinho do cemitério. Dei voltas e voltas ao redor do túmulo. Porém, ele de asas congeladas nem se mexeu. Dei-lhe uma rosa, nem sequer me olhou. Girei, girei, girei e quando vi estava adormecido para sempre no canteiro de rosas guardadas pelo anjinho.

II No ar um clima de velório prenúncio de muitas dores morte física e espiritual ritual de passagem para o oculto. A luz do sol contrasta com o negro da vida. A menos a terra me deixará em estado de igualdade com os homens.

Poesia fuga, poesia maldição de quem escreve Condição indigna para quem a realidade tem o peso insuportável da vida. Poesia sonho e fantasia lugar de criação do ser espaço de demiurgos para quem a insatisfação é dom demoníaco de querer outra vida.

Gerundiais

Escute a vida pulsando a chuva caindo, as pétalas abrindo, as aves piando litanias, as meninas cantando velhas cantigas de roda. Faço dos batentes da janela moldura e vejo o quadro vivo dos momentos lá fora. A vida rolando, o tempo passando. Descubro que o quadro sou eu estático diante dos motivos da vida.

Nostalgia do tempo

Girei os ponteiros do relógio nostalgia de um tempo passado de dar corda ao despertador de girar a manivela da vitrola. Impressão e ilusão de fazer o mundo girar um pouco mais lento,

quando o som ainda não era tão limpo nem a imagem tão nítida.

Da obscura essência do ser amado afogo-me em densas escuridões de um jardim noturno medonho e nefasto. Caminho desconhecido. Brincadeira de João e Maria, deixando migalhas comidas pelos corvos. Desta senda não voltarei ficarei perdido no escuro da noite eterna treva no pio das aves de mau-agouro.

Pintar com palavras, maldição de quem não sabe de pincéis. É como ser cego em meio a tintas. É só ter significantes para apontar as lâminas coloridas. Pincelar com palavras é depender sofridamente da imaginação alheia, é ser eterno dependente de quem lê.

Enferma

A moça branca no hospital vestida de branco em lençóis brancos espera a morte chegar. Será a morte preta ou branca? Verá a luz clara ou a noite escura? Assim, a moça branca, em lençol branco, vestida de branco, é posta em uma gaveta escura.

I Teu corpo em curva me enfeitiçou! Odiei teu rosto. Graças ao antídoto de tua face libertei-me do encanto e deixei teu corpo sinuoso resvalar só pela vida.

II

A vaga impressão de teu sorriso me devolveu à adolescência. Descompasso da vida que se chocou contra o incompreensível sentimento do amor.

A escrivaninha em desordem, cercado de livros de incompletas leituras. Histórias interrompidas, poemas deixados pela metade, cartas rascunhadas e jamais enviadas, deixam-me a amarga impressão das relações rotas que não habitarão minha biografia.

Angústia do biografado

Jamais saberei como será composta a última linha de minha história ou será estória, inventada ou interpretada por alguém que me compõe de tinta e papel? Terei minha voz presa em escrita alheia minha vida, não mais minha relida por alguém que só dosou os goles mas nunca sofreu as consequências dos tombos. Assim será minha biografia alheia a mim e à minha vida.

I As flores rosas do ipê estenderam seu tapete no asfalto dando as boas-vindas aos transeuntes ocupados demais para olhar o céu e ver que sobre o fundo azul havia flores rosas que tingiam a tela celestial.

II

O poeta vê borboletas no asfalto, põe na escrita o corpo amado, transcendendo a matéria em seus significados. O poeta não vê o mundo, sente-o rabisca-o com suas visões. Distorce o mundo em um torcicolo malandro e sarcástico. Desconfie daquilo que vê o poeta, pois jamais estará nos olhos dele.

I Vejo em teu rosto lábios de pedra a me ignorar mas, eu, qual onda do mar arrebento contra a rocha fria indiferente momentaneamente ao meu toque de sal e veludo. Lentamente trinco teus lábios insiro neles minha língua e de tua boca jorram lavas de desejos antigos, de épocas imemoriais.

II

Teu olhar: Todo brilho. Todo lâmina marcada. Todo faca afiada. Cortante relâmpago alma, corpo e âmago se distinguem nele.

Carência Recolhi do vento partículas azuis de prazer afagos momentâneos de lascívia, fazer não diferente da vida. Beijos secos e frios, mera lambida. Instantes de carinhos efêmeros

logo desiludidos pelos golpes duros de folhas secas a me esbofetear.

Marquei um encontro comigo e me desencontrei. Perdi o passo de mim. Em que etapa da vida me perdi, desconheço. Mas há anos não me encontro. Uma parte de mim atirou-se da ponte enquanto meu eu olhava o corpo que boiava lentamente no remanso das águas. Quando ensaiei um aceno este corpo, não mais meu, desconhecido de mim perdeu-se na sinuosidade do leito do rio.

I

No enjambement de nossos corpos encontrei a extensão da vida muito mais que a vida. Agarrei-me às rimas ricas de teus lábios e num gesto de elipse engoli tua voz. Língua convulsa que roubou parte de ti engolindo lasciva saliva de mil Sherazades em uma noite.

II

No cristal sujo de batom mordi teus lábios. Rompi o vidro em um canibalismo imperfeito misturei o sangue dos meus lábios à digital vermelha impressa na borda da taça.

III

No céu de tua boca explodiram estrelas que embora mortas, brilham.

Por isso este desassossego obrigando-me a fechar os olhos ao cair lento da noite.

Isaque e Ismael

Explodiram pedras do asfalto romperam vozes de revoluções antigas. Estilhaços arranharam as peles; choro e ranger de dentes o inferno urbano assolando mulheres e crianças. Enquanto os homens digladiam-se por antigos ciúmes inexplicáveis.

Desilusão

Quero um vaso, não de flores; sanitário. Nele darei a única contribuição possível ao jardim de flores: minhas fezes. E todas as vezes que olhardes as belas flores coloridas, espalhadas com suas pétalas macias sabei que nessa maciez conhece-se a profundeza de meu ser.

I Na cantilena das horas mortas encontrei-me com o vício da poesia. Noite de pactos e sangue liturgia fúnebre de uma alma parada na encruzilhada das veredas, entre o afago das asas brancas e a sedução dos cornos de bronze. Poesia: maldição da sibila que vê claramente na escuridão e declama enigmas em versos lúgubres.

II

À meia noite os gritos de desespero ecoam mais livremente. Vozes vazadas atravessam venezianas, tocando acordes diminutos de violões imaginários, lamentando por fados a solidão vista da janela.

Minha revolução é de uma entidade só. Um eu-lírico armado de versos cortantes, rimas atiradas com uma funda na fronte de Golias. Suspeito de toda revolução que o homem tenha de usar outras máscaras que não a própria anteface do rosto. A primeira revolta é interna guerra de entranhas explosão vulcânica das profundezas do ser.

Suor

Sinto a face derreter em gotículas de leve sensualidade. Percebo a flacidez dos músculos encharcados marcando a camisa. Uma liquidez quente desce pelo abdômen abrançando-me a cintura. Sinto o leve incômodo da calça molhada como se eu estivesse em um charco. Sinto que meu ser se esvai pelos poros e afogo-me nesta água salgada sem praia, sem mar, sem a quente areia.

Efemeridade Olhei a manhã embaçada pela janela de vidro. Olhar ao longe, sorvi o café. A golada desceu fria como aquele amanhecer de inverno.

Jornadas

Quando vim ao mundo desembarquei com a passagem de regresso. Visto com data, dia e hora marcados para novamente ser desterrado. Na primeira viagem vim de olhos fechados abrindo-os na chegada; na segunda jornada irei de olhos abertos e serei embarcado de olhos fechados. Da primeira vez não tinha consciência para compreender. Porém, na segunda vez, terei consciência demais para cerrar os olhos em paz.

Temas da poesia

I

Na correria do dia fiquei alheio à poesia. Em meio a papéis sem sentido (indiferentes ao lirismo) preenchi protocolos bestas; presidiário das lacunas de formulários. Quanto desperdício de papel! A folha quando castrada de sua liberdade aborta o poder poético do Gênesis.

II

Escravo de mim não me componho em versos. Sou carne, osso, sangue, desejo de vida longa. E morte breve. Aceito tacitamente o desejo; o verso é apenas ensejo do prazer em palavras, deliciosamente saboreadas, pronunciadas ciciando

sílabas "eróticotônicas" na explosão bilabial; projeto de beijos sonororeal. Nada de verso vocábulo, signo; só carne, dentes, saliva.

As velhas grávidas invadiram o mundo. Estão prenhes de vida. As bocas escancaradas pedem sonhos e não terra que as cubram. As gengivas cobrem-se de próteses dentárias prontas para desfrutar a carne do prazer. Não ao leito ineludível da morte e sim ao tálamo do prazer "gozivivo" Ávidas da langonha que molhe as paredes secas e umedeça as entranhas dos prazeres falsamente juvenis. O gozo verdadeiro está na certeza de que a vida acaba no derradeiro gemido.

Morte do palhaço

O palhaço com seus malabarismos no farol, tendo a faixa de pedestres como palco e o sinal vermelho como luz esborrachou-se no asfalto quente. Seu salário de moedas espatifou-se, tocando a única canção fúnebre executada em seu velório. A multidão expectante de motoristas esperou o palhaço se levantar; e no silêncio sepulcral não perceberam que seu coração explodira como rojão em dia de São João. Quando o farol abriu, ninguém viu a última lágrima arlequinal escorrer pela face muda e triste do palhaço; quem sabe saudade de Colombina, quem sabe esperava o adeus daquela mina, que arrancou com o carro em alta velocidade.

Das ruas com jardins de carros desabrocham pétalas negras de fumaça e óleo. Tingem narinas e pulmões de fuligem pegajosa. Os escapamentos atiram contra os homens aformigados em sua mesquinhez, sonhando que conduzem máquinas e têm o governo do mundo.

Arranquei teus olhos com uma navalha: colei-os na tela em branco, mas fugiu-me teu olhar. Radicalizei a perspectiva, redirecionei a luz, em nova tela preguei teus olhos. Mas.... perdi aquele instante fugaz, como se me olhasses do avesso, tocando os matizes rubros de meu corpo.

Repetição

O olhar [ tímido da primeira vez] o toque [ o entrelaçar de mãos] o beijo [ a comunhão dos corpos] o choque [ as primeiras desavenças] o pranto [ a primeira desilusão] a separação [ derradeira frustração].

Pagode

Um corpo sambou; jogou os quadris. Uma performance de ancas aproximou-se entre negaças e gingados de capoeira. Estacou e perguntou: - Qué dançá, piá? - Sei sambá não! - Tá cum medo, piá? - To cum medo não! - Tá cum quê' ntão, piá? Rodou sobre os calcanhares, rebolou insanamente pelo salão como uma lua negra, brincando entre nuvens.

A volta

Subi as escadas. Rocei de leve os degraus. Sob meus pés anos passados, pequenas farpas acariciavam velhas feridas. Enquanto subia lembrava a última vez que desci para jamais voltar. Como dói esta escalada, mais do que as malas, pesam-me os sonhos frustrados, os adeuses deixados atrás da porta que se fechou e os ecos dos passos, que golpeavam fundo o asfalto molhado.

I

Indizível, inapelável momento dos fatos. Deixaram-me nu no meio da rua, olhado de lado. Atravessado por preconceitos, conheci a mim mesmo despido da máscara. Traje de gala herdado de séculos para a festa da vida.

II

Frio, lâmina dura. Dentro de mim vazio, oco que o vento vara, atravessando meu ser.

III

Colar cacos, atividade diária. Taças estilhaçam, chocam-se falsos brindes, celebram-se a divisão, discussões céleres

dos homens pelo mundo.

Fácil perder o jogo quando não se conhece as cartas da vida. Embaralhei os caminhos, dei as cartas erradas, equivoquei-me na estratégia... Perdi a mão e o jogo. Quebraram a banca e tive de pagar a aposta. A vida é um jogo em que a última cartada é dada pelo vazio da morte.

I

Nos dias de chuva chuviscam milhares de poemas de chuva... gotas de sílabas espalham-se pelas páginas molhando versos nas goteiras dos telhados. Dia de chuva bom para comer bolinhos de chuva com chá. Chávenas quentes que molham os lábios como a chuva deixa a terra molhada. O chuvisco, a chuva, a chuvarada trazem dias de quadros pelas janelas. Em cada apartamento se abre um quadro triste e melancólico, que se expõe aos caminhantes da rua.

II

Guarda-chuvas ambulantes perambulam pelas ruas. O voyeur da janela triste imagina rostos nunca vistos. Tem de se contentar com o prazer ligeiro das pernas. Baile entrechocado de tendas misteriosas multicores, guardadoras de prazeres vedados ao obcecado observador.

III

A chuva no poema não molha não exige capa, nem guarda-chuva. As tempestades nos versos não arrastam casas, nem causam prejuízos. São enxurradas de palavras articuladas, molhadas apenas pela saliva da boca. No entanto, desfaço-me em gotas de palavras e tremo de frio na noite escura, ao som da chuva que bate à minha janela

A bailarina azul admirou-se no espelho. Viu sua saia de copo azul e mergulhou em sua cintura. Nas ondas frenéticas de um mar convulso, agitado pelas virações da lua, a bailarina deslizou pelo palco, saltando ondas imaginárias. Por fim, aportou no cais dos braços do marinheiro que a admirava do alto do observatório do farol.

Desfilam rostos estranhos diante de mim; alguns sorriem, outros conversam; alguns estão mudos em um mundo alheio. Cada rosto uma história, uma vida que caminha sobre pernas inquietas. O mais tenebroso: a caixa craniana guarda uma massa cinzenta; caverna que oculta o grosso intestino do mundo, fossa negra de maledicências, arquiteturas de mortes, traições e vinganças. Descaiu-me o semblante, aí sonhei um mundo só de cabeças esquizofrênicas, sem pernas, sem braços, presas nos escuros labirintos de suas faces.

Cartas de ninguém

Nunca escrevi cartas nem as recebi. Na infância desejei escrevê-las, porém, no pequeno mundo que encerra a inocência, não conhecia pessoas. Pai, mãe e irmão para mim não eram pessoas, eram seres domésticos. Quando os portões se abriram, conheci pessoas e definitivamente perdi a vontade de escrever cartas. Jamais recebi uma carta de amor, tampouco as enviei. Não colecionei selos nem envelopes coloridos ou perfumados. Não participei da ansiedade de esperar no portão o carteiro pedalando sua bicicleta. O homem de calça azul e camisa amarela à minha porta, traz correspondências banais. E quando me perguntam: Quem era? Respondo molemente: Ninguém! Só o carteiro.

Olho a saia plissada assemelha-se a uma cortina encarnada em seus leves movimentos. Pergunto-me aflito: Quando ela abrirá a cortina? Deixará que eu veja a luz do desejo brotar dos portais de sua alma? Mas pode ser (ilusão da vida), que ao abrir as cortinas haja uma leve cheiro de terra molhada. Anúncio de chuvas torrenciais a matar minha sede de suas águas.

Palavras e literatura

I

A palavra falada ou escrita nega-me a ausência sentida. O vazio preenche-se de sons pronunciados ou imaginados e já não sou mais só. Sou eu e minhas palavras. Posse indevida dos signos, que marcam minha comunhão com o mundo.

II Aos que faltaram à aula de literatura só lhes resta o sexo real. Ilusão das horas despedaçadas em segundos agônicos de orgasmo. Desconhecem que o sexo começa nas palavras e desemboca na cama das ilusões fugidias. Na cama, o sexo é leito de rio assoreado. Na literatura, o sexo ainda é cachoeira e sua força não tem limites.

I Encontrei na poesia o gesto das horas. Fôlego necessário à vida. Fuga ao tédio e ao banal dos dias. Água de fonte estranha, inacessível aos que veem demais o cotidiano. Poesia: flor mística entreaberta regada pelos dedos gotejantes de palavras. Poesia: salvação e perdição; expiação dos hereges, condenação dos santos.

II

Poesia: ilustre desconhecida que passeia de salto alto pelas ruas. Não lhe pedem autógrafos, não reconhecem-na em seu luxo. Bela e solitária, indigente entre as gentes soberana em seu pulsar.... tripudia do cegos à magia da realidade.

III

A poesia sem olhos fala no silêncio. Suas lacunas são quartos abertos aos amantes sedentos de amor. Dipostos a pagar pouco, ficam pouco, deixando o rastro úmido de seus corpos. Sem escrúpulos a poesia abre suas janelas, seduz outro desavisado que passa pela praça.

Sua cama tem perfumes e bálsamos e pressa de novos amantes.

Dos silêncios

I

Devaneio, esta é minha oração; prece de lábios mudos e olhar perdido na imensidão do infinito. Não vejo a luz nem sinto a escuridão, meu ser se desfaz em articulações miúdas, até restar apenas murmúrios e ressonâncias de ladainhas antigas.

II

Negação

Esta noite as canetas estão secas. Abandonadas no porta-lápis, baratas esferográficas me olham. Um lápis desponta sob o papel lancetando-me um olhar seco. Desafio-o a compor uma página cheia de versos novidadeiros. Oferto-lhe a folha branca, mas, desafeto meu, dá de ombros. Esfolo uma palavra, mordo-lhe as vogais, mas elas contêm os gritos, abandonando-me ao silêncio, enquanto observo suas vísceras em minhas mãos ensanguentadas.

Aprendizado Quando era criança, tinha medo do escuro. Fantasias povoavam o espaço negro e não abria meus olhos. Na adolescência, controlei o medo da escuridão. Tentei convencer-me de que não havia nada quando a luz se apagava. Agora sou adulto, não posso dizer que perdi o medo do escuro, mas imerso nele, abro os olhos e minto para mim mesmo que na escuridão não há nada e estes seres que me fazem companhia, são memórias da escuridão da infância.

Precisei da tua ausência para saber o que é o amor. E agora que não te tenho, como amo a tua falta! Como amo a sensação do amor, este sentimento desconhecido, só revelado em tua partida. Então, abro a janela e aspiro o ar de tua ausência e mais amo a tua falta do que a tua presença.

Ali estava ela [a modelo] doentia, magra, pálida, esquelética, esquálida. Desfilava ancas femurais pela passarela ensandecida. Flashes disparados, cliques, quase radiografias da beleza moderna se esvaindo. Modelo de fome e abstinência, privação para caber entre colunas da capa da próxima revista de moda. Enfim, ainda somos românticos, admiramos a forma cadavérica, semi-morte que se exibe para nós, enquanto lhe oferecemos uma rosa.

A menina pedalou a bicicleta, a coroa girou lentamente. Senti a corrente de meus nervos correrem pelos dentes da catraca e girei meu ser ao sabor de seus pés, rodando com ela pelas ruas. Correia-corrente-catraca e eu atado a esse sistema, preso por vontade ao olhar raiado dessa menina que pedala feliz sem saber que [eu, roda] giro aos seus pés feliz também, colhendo pétalas roxas que caem de seus olhos raiados de arco-íris.

Descaminhos Você que vem e salta diante de meus olhos dançando essa longa música silenciosa, que meus olhos não cessam de seguir ligeiros no vão esforço de te apreender e prender num instante.

Meus passos seguem após os teus doidamente sem rumo, faço caminho em teu andar inocente perco-me por vontade e desejo, sem saber onde chegar após os passos teus como se o futuro não existisse.

Não tenho mais pernas e não procuro indicações na estrada que possam guiar-me ao destino traçado no início dessa doida viagem.

Abandonei os mapas, as bússolas, estou sem latitude desgovernado de mim, por prazer e volúpia de um corpo que salta e dança diante de meus olhos.

Não sei dançar Não sei dançar, Também não sei cantar. Não fumo, não sei tragar. Meus passos são ligeiros e inquietas minhas mãos. Então danço, rodopio, arrocho um maxixe de palavras e meu poema dança, gira por um salão branco e tira para dançar o solitário leitor. Meu poema declama ao pé do ouvido uma balada antiga e sem ter o que fazer o leitor dança esse maxixe encarnado de desejos em núpcias com o poema.

Canteiros da solidão A flor da recordação desabrochou pétalas cinzas e sem cheiro no jardim das parcas lembranças familiares. Nessa praça outonal experimentei o frio da solidão e a ausência daqueles que partiram. O tempo, esse jardineiro incansável, cultivou todas as flores mortas desidratadas para o momento da visitação a essa praça vazia dos meus anos de infância quando as ambições eram apenas sonhos.

Bordado estereotipado A realidade a idade esta louca vaidade de anos perdidos na frente do espelho. Há uma transformação muda da pele em mapa de dores e ausências que se desenham na geografia da face explícita, despudorada em seus envelhecimentos envilecimentos agudos que desenham com a agulha do tempo o bordado dos anos.

Borboleta Voou da praça dos sonhos para as linhas de minhas mãos essa geografia de caminhos ainda não trilhados e história desconhecida. Bateu levemente as asas com seu leque colorido de esperanças e de sonhos de quem já foi lagarta. Essa borboleta espreita minha vida com os olhos de suas asas.

Não quis o mar quis a prisão de amar este cárcere voluntário em que cedemos a chave ao carcereiro sem relutar. Preso por vontade o homem vive voos alheios sonha terras distantes e mesmo com a porta aberta não parte em busca de novos horizontes. Amar é esta prisão sem portas, sem muros que negamos ultrapassar.

Esta dor de amar esta dor de estar sempre a esperar. Este encontro na ausência a presença dessa flor constante a desabrochar. Sempre esta dor de esperar por estar, por amar por tocar com os dedos esta ausência tão cheia de significados. Amar é essa dor dor constante, frequente que me arranha a garganta em soluços noturnos de tua ausência que me lembra a dor que é amar.

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