Um lugar próprio para a educação: o discurso oficial sobre o Curso de Pedagogia no contexto da Reforma Universitária

July 6, 2017 | Autor: Leticia Meira | Categoria: Curso de Pedagogia no Brasil, RBEP, Reforma Universitária - 1968
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Um lugar próprio para a educação: o discurso oficial sobre o Curso de Pedagogia no contexto da Reforma Universitária Leticia Mara de Meira / UFPR [email protected] Resumo O presente trabalho tem por objetivo analisar o discurso de transição do Curso de Pedagogia da estrutura da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras para a Faculdade de Educação, criada no contexto da Reforma Universitária de 1968, por meio da edição de nº 114 da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos – RBEP editada em 1969 e dedicada integralmente à esta temática. A RBEP é desde 1944 o principal periódico publicado pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos – INEP e teve, principalmente até a década de 80, a característica de veicular o discurso oficial do estado na área da educação. O período compreendido entre os anos de 1962 e 1971 é marcado pela discussão da Reforma Universitária e do ensino de 1º e 2º graus, com forte influência do Conselho Federal de Educação e de Anísio Teixeira, reconhecido como intelectual do campo educacional desde a década de 1930. O ensino superior e principalmente a reforma universitária foram assuntos privilegiados nesta revista durante a década de 60 e a dedicação da edição nº 114 de 1969 à temática da Faculdade de Educação, demonstra a relevância desta nova configuração institucional para o projeto educacional em curso. Conclui-se que foi envidado no Brasil um grande esforço discursivo para a consolidação da proposta de substituição das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras pelas Faculdades de Educação na tarefa de formar professores e técnicos em nível superior, o que demonstra a preocupação do estado em complementar os atos normativos com outras formas de argumentação que, utilizando a estratégia da oposição binária entre modelos – um considerado inadequado e o outro moderno e promissor –, garantissem uma maior aderência ao novo projeto. Percebe-se, pelo esforço em constituir uma nova estrutura institucional para a formação de professores no contexto da Reforma Universitária de 1968, que esta questão é relevante na implantação e consolidação de um projeto de educação e de sociedade. PALAVRAS-CHAVE: Curso de Pedagogia, Faculdade de Educação, Reforma Universitária, RBEP. É notável que a formação de professores no Brasil é temática que figura com destaque a historiografia da educação do século XX e que continua pertinente nestes primeiros anos do século XXI. O percurso demonstrado longitudinalmente por Tanuri (2000) desde o período imperial e as primeiras experiências com a escola normal, passando pela reorganização modernizadora do ensino iniciada em 1920 com Afrânio Peixoto e potencializada em 1930 com Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, o Movimento pela Escola Nova, a criação dos Institutos de Educação, da Escola de Professores e do Curso de Pedagogia como sessão da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, as leis orgânicas no Estado Novo, o período desenvolvimentista dos anos 50/60, a primeira LBDEN em 1961, as

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reformas do segundo período ditatorial até o processo de remodelação do Curso de Pedagogia que inicia no final dos anos 60 e segue em forte debate até os primeiros anos do século XXI é recortado de diversas maneiras, buscando novas nuances sobre a formação dos professores no Brasil. Importantes pesquisadores brasileiros já dirigiram seus esforços para esta temática, podendo-se destacar, além de Maria Tanuri (2000), Demerval Saviani (2008 e 2009) e Leda Scheibe (2012). A obra de Silva (2003) retrata a história deste curso no Brasil e seus dilemas identitários e artigos como o de Meira e Daniel (2011) demonstram que a discussão sobre esta identidade profissional ainda é pertinente, apesar dos esforços já envidados na construção de novas propostas. O presente trabalho tem por objetivo analisar o discurso de transição do Curso de Pedagogia da estrutura da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras para a Faculdade de Educação, criada no contexto da Reforma Universitária de 1968, por meio da edição de nº 114 da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos – RBEP editada em 1969 e dedicada integralmente à esta temática. A RBPE é uma fonte privilegiada para análise do discurso oficial sobre educação em diferentes épocas. Criada em 1944 como veículo de difusão do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos – INEP, vinculado ao Ministério da Educação e Saúde, atuou principalmente até a década de 80 como importante meio de influência na formação das concepções de educação no Brasil. Surge assim, no momento próprio, REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS PEDAGÓGICOS, para congregar os estudiosos na observação dos fatos educacionais, exame dos princípios e doutrinas, e cuidadosa análise das mais importantes questões de aplicação. Em suas páginas, terão acolhida artigos de colaboração, em que se exponham e debatam opiniões. Aqui se registrarão, cada mês, resultados de trabalhos realizados pelos diferentes órgãos do Ministério, dados estatísticos, os textos de lei e as decisões administrativas de maior relevância. (RBEP, nº 1, 1944, p.5-6, grifos do autor)

O Editorial do nº 100 referente ao período de outubro-dezembro de 1965 reafirma a importância histórica da revista que era distribuída para “bibliotecas de escolas normais, faculdades de filosofia, órgãos administrativos especializados, educadores de todo o País, além de assinantes internacionais” na construção de uma desejada modernidade pedagógica: Nesses cem números, a Revista vem procurando manter o mesmo padrão científico e técnico, no propósito de formar um pensamento sempre renovado e uma esclarecida mentalidade pública diante da problemática do ensino. [...] A revista se tornou, como seria de esperar, o veículo autorizado para elucidação das teses relativas à filosofia política da Lei, seu sentido

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de modernidade pedagógica, sua adequação à realidade brasileira em mudança. (RBEP, nº 100, 1965, p. 217-219)

Pesquisas acadêmicas têm utilizado a RBEP como objeto e como fonte de pesquisa, sendo que lhe são dirigidas as mais diversas perguntas. Marc Bloch (2001) demonstra o quanto é importante saber interrogar as fontes para que os documentos tragam as respostas relevantes para a compreensão dos fatos históricos. Muitos hábeis perguntadores, entre eles José Carlos Rothen (2005), dirigiram sua atenção à RBEP e ainda assim percebe-se que a mesma, pelo lugar que ocupou e ocupa e pelo fôlego editorial, continua sendo um material importante para a história da educação brasileira. Este artigo tem como foco de análise o período em que Anísio Teixeira exerceu maior influência no editorial desta revista (1962 a 1971), sendo que neste intervalo de nove anos foram publicados trinta artigos. Mesmo com a sua destituição da diretoria do Inep por ocasião do golpe de estado de 1964, sua influência não foi neutralizada. Anísio Teixeira (e o Inep sob sua direção) era tomado pelas alas mais conservadoras como esquerdista e nunca foi bem aceito pela igreja que chegou a pedir a sua exoneração deste cargo em 1959. Anísio Teixeira entendia que a “revolução de 1930” foi um marco para a modernização do país interrompido pela implantação do modelo centralizador do Estado Novo. (ROTHEN, 2005, p. 198) Nos primeiros anos da ditadura militar, Anísio Teixeira representava um pensamento moderno que não coadunava perfeitamente ao novo projeto político. Segundo Ferreira Jr. e Bittar (2008) os técnicos eram tidos como a melhor solução política para a administração do estado porque eram rápidos e eficientes nas tomadas de decisões. Anísio Teixeira, sem prejuízo a seu inquestionável lugar de intelectual da educação que influenciou toda uma geração, cumpria em muitos aspectos uma função técnica no cenário que então se configurava. Portanto, a defesa dos intelectuais orgânicos da ditadura militar sobre o papel dos tecnocratas no âmbito do Estado brasileiro estava diretamente relacionada à supressão das liberdades democráticas e à célere modernização das relações capitalistas de produção, isto é, sem democracia era impossível criticar, fiscalizar e controlar as decisões econômicas e sociais adotadas pelos tecnocratas, em relação às políticas implementadas pelos governos que se sucederam entre 1964 e 1985. A consequência daí derivada foi a institucionalização do tecnicismo como ideologia oficial de Estado. [...] Desse modo, podemos afirmar que foi depois de 1964, com a implantação da ditadura militar, que a tecnocracia começou a tomar vulto no âmbito do Estado brasileiro. Ou seja, o regime militar primou por estabelecer um governo de técnicos, com base no fortalecimento centralizador do Poder Executivo e pautando as ações administrativas pelo

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primado do econômico sobre os aspectos políticos e sociais. (FERREIRA JR.; BITTAR, 2008, p. 342-343)

Além de Anísio Teixeira, outros autores tiveram um espaço privilegiado neste período, o que reforça o peso institucional desta revista. A pesquisa de Rothen (2005, p. 205) aponta os principais autores que estavam vinculados ao Inep e ao Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (Jayme Abreu, Nádia Franco da Cunha, Lourenço Filho, Lúcia Marques Pinheiro e Carlos Pasquale), ao Conselho Federal de Educação (Newton Sucupira e Valnir Chagas) ou a ambos (Anísio Teixeira, Dumerval Trigueiro e Péricles Madureira de Pinho). A Reforma Universitária foi amplamente discutida nos primeiros anos do período ditatorial, denominada por Codato (2005, p. 83) como “fase de constituição do regime político ditatorial-militar, correspondente, grosso modo, aos governos Castello Branco e Costa e Silva (de março de 1964 a dezembro de 1968) ”. Os autores seguiam uma linha argumentativa que não contrariava o projeto em curso, que determinava as reformulações institucionais por meio de decretos e leis, mas que tinha uma identidade bastante marcada. Resumindo, os editores da Rbep utilizam como princípios básicos na elaboração da linha editorial da Revista, principalmente em relação ao ensino superior, a ideia da necessidade do planejamento da educação. Coerentemente com essa ideia, entendem que a formação de profissionais deve atender às necessidades de desenvolvimento do País, que deve ocorrer a expansão das vagas e não das universidades, e que a formação profissional seja articulada com a utilitária. Para a implantação dessas concepções deve ocorrer a substituição do sistema de cátedra pelo sistema departamental, além de o CFE ser considerado o fórum adequado para as discussões referentes à Reforma Universitária. (ROTHEN, 2005, p. 209)

Um projeto de educação implantado por meio ditatorial, utilizando como principal veículo a promulgação de decretos e leis, precisa de recursos de outra ordem para complementar a abordagem e construir de fato a realidade projetada. Percebe-se então que os veículos oficiais colaboram na construção discursiva de um projeto, de forma que os sujeitos aos quais são endereçados os atos normativos acreditem ser necessária e desejável a consolidação das mesmas em novas formas de estruturação institucional. A RBEP, pelo seu posicionamento, cumpria uma função de intermediário entre os decretos federais e os ideais dos técnicos e pensadores da educação que compunham o Conselho Federal da Educação. Nos editoriais da Rbep é explícita a posição dos editores contrária ao estabelecimento das Reformas Educacionais através da promulgação de legislação. [...] Os editores procuram conciliar, na linha editorial da Revista, a tese contrária à postura de fazer a Reforma Universitária mediante decretos-leis com a valorização da urgência do CFE na sua elaboração. Deve-se entender esta tentativa como tensão entre as teses

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contrárias à promulgação de legislação e as que valorizam a participação do CFE. (ROTHEN, 2005, p. 209)

Cumprindo esta função intermediária, uma vez que a nova estrutura da Faculdade de Educação já estava decretada e que o Parecer do CFE nº 252/69 que redefine o Curso de Pedagogia já havia sido aprovado em abril do ano corrente, a RBEP lança a publicação de nº 114, integrante do volume 51, referente ao período de abril a junho de 1969, dedicada a nova Faculdade de Educação. A edição que contava com 243 páginas obedecia à estrutura convencional da revista que consistia em: Editorial, Estudos e Debates (quatro artigos assinados), Documentação (quatro documentos oficiais), In Memoriam (homenageando Rodrigo Melo Franco de Andrade), Resenhas de Livros (quatro livros), Através de Revistas e Jornais (cinco artigos), Atos Oficiais (11 normativas: 10 decretos e 01 portaria) e Resumos (de três artigos assinados da sessão Estudos e Debates e um da sessão Documentos, redigidos em português e traduzidos para o francês e inglês). A direção do INEP neste ano estava a cargo de Guido Ivan de Carvalho e a do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais de Elza Rodrigues Martins e ambos encabeçavam a ficha técnica da edição, seguidos pelo Conselho de Redação, que além dos próprios contava com a presença de Jayme Abreu, Lúcia Marques Pinheiro, Péricles Madureira de Pinho e Regina Helena Tavares. Constam também os nomes do redator-chefe, profissionais da redação, revisão, documentação e tradução. O Editorial é assinado por Elza Rodrigues Martins e inicia apresentando a questão da implantação da Faculdade de Educação e do Curso de Pedagogia como muito problemática, colocando a presente edição como uma contribuição aos estudiosos do assunto. Um tom pessimista quanto ao lugar pregresso e a configuração do Curso de Pedagogia antes da Reforma Universitária é perceptível já nas primeiras linhas: Os estudos sobre a implantação das faculdades de educação entre nós vêm assumindo grande relevância, pela necessidade da formação de pessoal qualificado numa área em que nosso país apresenta insuficiências e deficiências até agora insuperáveis. Em verdade, oriundas essas novas unidades dos cursos de pedagogia das faculdades de filosofia, arriscam-se, como provavelmente se arriscarão por algum tempo ainda, a permanecer como cursos meramente residuais ou remanescentes destes, conservando os mesmos erros, e às vezes os mesmos fracassos dos cursos destinados à formação dos profissionais da educação. (RBEP, nº 114, 1969, p. 233, grifos nossos)

O editorial, compreendido entre as páginas 233 e 236, também se ocupa de

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caracterizar o Curso de Pedagogia como produtor de técnicos de educação com características não muito definidas que provocariam nos seus estudantes “indagações angustiantes sobre o que lhes reservaria o futuro, quanto ao exercício de uma atividade” em um mercado considerado como dos mais problemáticos. Os currículos deste curso também não estariam de acordo com as necessidades de uma sociedade em modificação, onde as meras informações não seriam suficientes. O retrato do contexto representa uma época caracterizada pela complexidade e pela multiplicidade de funções, num momento universitário de grandes expectativas, de conflitos e renovação cultural. Sobre os cursos em si, representava justaposição de matérias, transmitidas com maior ou menor profundidade, não oferecendo, contudo, direções definidas para a formação especializada, fosse quanto à atividade docente nas disciplinas do curso normal ou secundário, fosse quanto à formação dos quadros de administradores escolares ou orientadores de educação, com as especificações que estes campos poderiam sugerir. Assim permaneceram os cursos de pedagogia, ao longo dos anos, sugerindo, de quando em vez, tímidas iniciativas para a sua reformulação, sem que, todavia, fossem afetados substancialmente. (RBEP, nº 114, 1969, p.234)

Na esteira da reestruturação da universidade, a reconfiguração da Faculdade de Educação é apresentada como inadiável e imprescindível para o desenvolvimento do país, tencionando o curso de pedagogia para que incorpore uma forma mais definida e moderna. A crítica ao modelo antigo é visível e estará presente no decorrer da publicação ao mesmo tempo em que se interpelam as instituições a construírem um novo modelo. A Faculdade de Educação criada em Santa Catarina em 1963 é citada como referência, bem como a Missão da UNESCO que seria relatada mais adiante. Surgiram as faculdades de educação, procurando-se definir o papel fundamental que estão destinadas a exercer dentro das universidades, fertilizando todas as áreas destas. Reconhece-se a responsabilidade que assumem no estabelecimento de nova política do ensino superior, considerada a educação como investimento no contexto de desenvolvimento econômico e social, a reclamar a preparação de quadros especializados. Isto implica a ideia da valorização do homem e da democratização das oportunidades de trabalho na área do ensino, planejamento, experimentação e pesquisa, atividades científicas e técnicas relacionadas com educação. (RBEP, nº 114, 1969, p.235)

O apelo pela modernização do Curso de Pedagogia e a superação de um modelo considerado ultrapassado presente no Editorial será o fio condutor deste número. A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras é desqualificada como antítese do pensamento universitário moderno. Segundo Koselleck (2006, p. 270-271) o moderno se caracteriza em grande medida pela oposição à uma situação já existente, a uma dada configuração social e

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cultural. A modernidade traz em si a valorização do novo e da posição de vanguarda. A modernidade deseja ser moderna e por isso mesmo ela não se fixa em um dado recorte temporal. A modernidade é, pela sua própria natureza, sempre reinventada. Sendo esta a regra, Anísio Teixeira apresenta no primeiro artigo denominado “Escolas de Educação” uma argumentação diferenciada: retoma o projeto de “Escolas de Professores” criada em 1932 no Instituto de Educação do Rio de Janeiro, na época Distrito Federal e incorporada à Universidade do Distrito Federal em 1935. A criação das Faculdades de Educação foi uma oportunidade de evocar a memória do projeto pioneiro de Anísio Teixeira de formação de professores em nível superior, e a oportunidade de retomar inclusive os detalhes de organização e de funcionamento prático da mesma. A experiência, embora breve, dessa Universidade, marcou o sentido do que é uma escola profissional de educação, destinada à licença do magistério de nível primário, médio e superior e ao preparo de especialistas em educação, cujos graus universitários correspondem ao bacharelado e ao título de licenciado em magistério e em especialização profissional no campo de educação. Em nível pós-graduado, ministra os graus de Mestre e o de Doutor. (TEIXEIRA, 1969, p. 239)

Segundo Tanuri (2000, p. 73), a Escola de Professores que havia sido incorporada à Universidade do Distrito Federal - UDF com o nome de Faculdade de Educação em 1939, com a extinção da UDF volta a ser integrada ao Instituto de Educação. Movimento semelhante aconteceu em São Paulo orquestrado por Fernando de Azevedo, sendo que o Instituto de Educação de São Paulo, pela sua Escola de Professores foi incorporado em 1934 à Universidade de São Paulo. O Estado Novo (1938-1945) reduz as possibilidades de continuidade dos projetos de São Paulo e do Distrito Federal e em 1939 surgia o curso de Pedagogia como sessão da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Em outro contexto político, ainda que também ditatorial, ao que parece Anísio Teixeira vislumbra na Faculdade de Educação a possibilidade da retomada de seu antigo projeto de formação de professores em nível superior. Nesse sentido, é importante destacar que o primeiro Parecer do Conselho Federal de Educação referente ao currículo mínimo do Curso de Pedagogia (Parecer CFE 251/62) deixa entrever que “nele se apoiarão os primeiros ensaios de formação superior do professor primário”, prevendo a superação próxima do modelo de formação em nível médio nas regiões mais desenvolvidas do país. Já o Parecer CFE 252/69, que modifica o referido currículo mínimo, retoma essa posição e vai mais além, procurando garantir a possibilidade de exercício do magistério primário pelos formandos em Pedagogia, mesmo em cursos de menor duração, que realizarem estudos de Metodologia e Prática de Ensino Primário. (TANURI, 2000, p. 79)

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O trabalho de Anísio Teixeira para a construção do estatuto profissional da educação nem sempre obteve sucesso, mas sua argumentação sempre foi incisiva. Segundo Clarice Nunes (2000, p. 2) o objetivo de Anísio Teixeira era instituir a educação como área de investigação acadêmica, sendo que não se tratava de criar uma ciência da educação, mas criar condições para o exercício científico da atividade educativa. A Universidade seria o lócus de aproximação entre as ciências-fonte da educação (psicologia, antropologia e sociologia) e as práticas educativas, constituindo desta forma os seus problemas de estudo. Na continuidade de seu artigo, o autor descreve o que entende ser uma escola de educação, os níveis de formação que deveriam atingir, e como deveriam ser organizadas. Aponta a necessidade de distingui-las “das escolas acadêmicas por campo de conhecimento, cujo objetivo é a busca desinteressada do saber” uma vez que a sua vocação é a aplicação especializada dos conhecimentos humanos. Apresenta então um modelo ideal para a configuração que é o modelo da Medicina e o método ideal que é o método científico. A escola de educação que ora se pretende criar deve ser o ponto de encontro entre dois grupos, devendo o educador de hoje ser um familiar da organização e processualística de toda atividade educacional, trabalhando na escola como o médico trabalha no hospital dentro de um mesmo campo de saber unificado e harmonizado, embora servido por um sem-número de especialistas e técnicos de toda ordem. A multiplicidade de saberes envolvidos na educação decorre da extrema complexidade dessa atividade, que compreende o homem, a sociedade e todas as culturas dessa sociedade. (TEIXEIRA, 1969, p. 245)

Newton Sucupira, então conselheiro do CFE, assina o próximo artigo desta sessão denominado: Da Faculdade de Filosofia à Faculdade de Educação. O argumento central deste é que as Faculdades de Educação são uma nova oportunidade de efetivar o trabalho de formação de professores, que esteve a cargo das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, mas que, salvo para “alguns nostálgicos da unidade do saber”, falhou. É de todos conhecido o destino que tiveram as faculdades de Filosofia. Em três decênios se multiplicaram com rapidez impressionante por todos os recantos do País, elevando-se o seu número a mais de uma centena. Daí a situação um tanto paradoxal dessas faculdades. Orientadas para a pesquisa científica e alta cultura, tornaram-se, na realidade, uma instituição de massa, abrigando atualmente cerca de trinta por cento da população do ensino superior. É lugar-comum proclamar-se, hoje, o fracasso das Faculdades de Filosofia. Acusam-nas de terem falhado em seu duplo objetivo de desenvolver a pesquisa fundamental e formar professores. Consideradas no âmbito da Universidade, são criticadas por não haverem realizado a integração dos estudos básicos. (SUCUPIRA, 1969, p. 264)

São várias as citações em que se repete e reforça o argumento de que as Faculdades de Filosofia representam um modelo que fracassou, e esta insistência argumentativa dá

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mostras de quanto era importante reforçar o novo modelo implantado nas Faculdades de Educação. A desqualificação do modelo antigo, neste caso, trabalha como oposição binária a um novo modelo que se desejava estabilizar. Florestan Fernandes e Valnir Chagas são citados como autoridades acadêmicas que corroboram o argumento, assim como o contexto normativo da Reforma Universitária. A atual reestruturação da universidade brasileira ao determinar o desdobramento da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, extinguiu portanto uma instituição já ultrapassada pelo estado presente das ciências e pelos princípios da moderna organização universitária. (SUCUPIRA, 1969, p. 272)

O Curso de Pedagogia ganha destaque no decorrer deste artigo, uma vez que os cursos normais são julgados insuficientes para uma sociedade em desenvolvimento e uma “explosão escolar em todos os níveis”. Para o autor o novo contexto educacional exige, além de professores, técnicos capazes de planejar, organizar e administrar escolas e sistemas escolares. Várias razões são elencadas para a criação de uma Faculdade de Educação, podendose destacar a necessidade da valorização da ciência e do método científico, da emergência dos recursos tecnológicos, da complexidade das sociedades modernas, e da necessidade de profissionalização docente. E em tom de questionamento embrenhado em denso argumento de base filosófica e epistemológica o conselheiro pergunta: “que outro campo da existência humana é mais vital do que a Educação para merecer um lugar próprio dentro da Universidade? ” Com efeito, a educação, hoje, não se limita apenas à formação individual e a conservar e transmitir o acervo cultural de cada sociedade, mas exerce um conjunto de funções extremamente complexas e de importância decisiva para o desenvolvimento total do homem. (SUCUPIRA, 1969, p. 275)

SILVA (2003, p. 14-15) relata que o Curso de Pedagogia tinha muitos problemas que o conselheiro Valnir Chagas, relator do Parecer 251/62 e 252/69 bem como de muitos outros no período de 18 anos em que esteve à frente das questões mais relevantes do CFE, elencava com frequência: por julgar que faltava ao curso conteúdo próprio, propunha que a formação do professor primário deveria se dar ao nível superior e a de técnicos em educação em estudos posteriores ao da graduação. O Conselheiro chegou a propor a extinção deste curso, mas não obteve sucesso. Talvez este seja o momento em que toma força a interrupção da tradição liberal da universidade brasileira para uma tendência predominantemente tecnocrática.

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A administração pública e privada, em diferentes setores, submetia-se as exigências do projeto de desenvolvimento nacional visado pela ditadura militar. Consequentemente, no âmbito do curso de pedagogia, ganhava espaço a ideia de que o técnico em educação se tornava um profissional indispensável à realização da educação como fator de desenvolvimento. (SILVA, 2003, p. 23)

O artigo “Sentido e Objeto das Faculdades de Educação” assinado por José de Faria Góis Sobrinho da Universidade Federal do Rio de Janeiro, por sua vez, inicia trazendo as Faculdades de Educação como uma proposta já consolidada nos países desenvolvidos e coloca a mesma como uma solução nova para a educação brasileira. O aspecto que é enfatizado neste artigo é a divisão de pós-graduação e pesquisa que compõe o projeto das Faculdades de Educação. Cedo terão as Faculdades de Educação que enveredar pelo caminho da oferta dos cursos de pós-graduação. É tarefa que necessita ser prioritariamente enfrentada. Cabe-lhes preparar, em alto nível, os elementos com a necessária vocação de liderança; os que se votem à formulação de um pensamento diretor e de uma política de educação; os que se destinem à administração de unidades e de sistemas de ensino, à supervisão e coordenação dos trabalhos escolares, à orientação educativa das crianças e adolescentes. E os que se aplicarão à pesquisa e ao ensino superior das matérias pedagógicas; à experimentação de novos métodos, novos processos de aferição do rendimento escolar; ao levantamento e apuração de novos dados sobre reclamos e necessidades do meio social. (GÓIS SOBRINHO, 1969, p. 278)

A pós-graduação teria a finalidade de formar uma elite pedagógica indispensável para a crescente necessidade de formação dos quadros de liderança e de governo da educação. O mestrado aparece como etapa de evolução ao bacharel, que retornaria à Faculdade para consolidar a sua formação. O modelo norte-americano é apontado como exemplar. É uma impressionante revolução, a maior de todos os tempos, o que se está a operar, interessando a filosofia mesma da educação norte-americana que – até aqui – atenta, convictamente, ao empenho nacional de bem servir a uma ordem democrática de índole igualitária, sempre se baseou na valorização do homem comum, como validação e suporte do seu estimado sistema social e político. Como que derrogado este pensamento básico da educação nacional, a nova escola americana aplica-se a desenvolver valores que serão antes atributos de uma elite. Objetiva, prioritariamente, desenvolver e destacar talentos. Dar largas à promoção do poder criador. (GÓIS SOBRINHO, 1969, p. 282)

A sessão Estudos e Debates do nº 144 da RBEP foi encerrada com a transcrição de um discurso proferido por Lawrence D. Harkew na Conferência dos governadores americanos sobre Educação no Estado de Utah em dezembro de 1965 e a sessão Documentação inicia com o relatório da missão da Unesco no Brasil assinado por J. Lauwerys, da Universidade de Londres.

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Segundo Xavier (1999, p. 87) “a Unesco estava destinada a ampliar as bases da educação no mundo e levar os benefícios da ciência a todos os países, estimulando o intercâmbio e a divulgação cultural”. Por solicitação do governo brasileiro foi encaminhada uma missão com a finalidade de orientar as Faculdades de Educação no período de 15 de agosto a 22 de setembro de 1968. A missão atuou em diversas universidades brasileiras junto aos reitores e aos professores encarregados dos Cursos de Pedagogia. Foi realizado um amplo diagnóstico destas instituições e estabelecido um plano de trabalho ideal a ser seguido contendo os principais aspectos de organização universitária em diferentes níveis de ensino. A conclusão da missão foi pessimista quanto as condições para a implantação das Faculdades de Educação como pode-se perceber nos seguintes excertos: Tentamos apresentar aqui o esquema geral do que é preciso fazer para criar no Brasil faculdades de educação no sentido que tais instituições possuem no mundo moderno. Isso quer dizer que elas devem constituir unidades de pesquisa e de ensino onde se preparem professores e especialistas do tipo que o país necessita e onde é necessário empreender pesquisas no verdadeiro sentido da palavra. [...] Somos de opinião que será ilusório admitir a possibilidade de organizar-se nos dez próximos anos, em meia dúzia de cidades do país, faculdades onde venha a ser executada mais do que uma parte mínima do programa por nós preconizado. E ainda para realizar esse mínimo, esforços enormes precisam ser desenvolvidos. [...] Quanto aos cursos para preparação de técnicos e especialistas, é preferível não organizá-los nos primeiros anos vindouros, deixando-os para daqui a uns dez anos. (LAUWERYS, 1969, p. 335)

Logo após a apresentação desta avaliação desalentadora, a sessão Documentação apresenta a íntegra do Parecer CFE n.º 252/69 – Graduação em Pedagogia – Currículo Mínimo e Duração, incluindo o voto vencido da Conselheira Nair Fortes Abu-Merhy e o Projeto de Estrutura para a Faculdade de Educação da UFBA, assinado por Mary C. G. Woortmann. Conclui-se, ao analisar os principais artigos deste número 114 da RBEP dedicado às Faculdades de Educação, que foi envidado um grande esforço discursivo para a consolidação da proposta de substituição das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras na tarefa de formar professores e técnicos em nível superior, o que demonstra a preocupação em complementar os atos normativos com outras formas de argumentação com o objetivo de ampliar a aderência ao novo projeto. Os artigos do número 114 da RBEP permitem entrever que nos dois períodos ditatoriais vivenciados no Brasil houve alteração na proposta de formação de professores,

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sendo que no Estado Novo houve a interrupção de uma proposta em andamento – a Escola de Professores – e na Ditadura Militar a determinação via atos normativos de um novo modelo – a Faculdade de Educação. Percebe-se também, pelo esforço em constituir uma nova estrutura institucional para a formação de professores no contexto da Reforma Universitária de 1968, que esta questão é determinante para a implantação e consolidação de um projeto de educação e de sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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