Um médico inglês no Reino de Marrocos: ciência e corpo numa narrativa de viagem (século XVIII)

July 25, 2017 | Autor: M. J. de Oliveira... | Categoria: History of Medicine, Natural philosophy, Morocco, Arabic Medicine
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Um médico inglês no Reino de Marrocos: ciência e corpo numa narrativa de viagem (século XVIII) MARINA JULIANA DE OLIVEIRA SOARES* No início da chamada “Modernidade” europeia, a medicina estava tanto sob a influência da redescoberta do conhecimento grego, e também do árabe, assim como sob o impacto de um processo que acumulava mudanças empíricas. Havia, portanto, um amplo domínio de discussões teóricas, que inseriam as preocupações filosóficas no ensino da medicina1, e, de igual maneira, o alargamento das preocupações técnicas. Nesse cenário, a distinção entre o conhecimento médico profissional e especializado e o conhecimento humanista tornava-se mais evidente2. A ambivalência entre “tradição” e “inovação” pode ser exemplificada pela obra médica árabe mais conhecida na Europa a essa época: O Cânone de Medicina, de Ibn Sīnā (980-1037). Se havia, por um lado, o esforço de tradutores e editores em apresentar a obra a estudantes de medicina3, por outro, havia intensas críticas ao seu autor, dentre as quais se levantava a inadequação de suas ideias e interpretações sobre o pensamento médico grego4. Ainda que não fosse usual, uma das edições do Cânone, preparada por Champier e Rustico, em 1522, lamentava, num breve prefácio, o fato de Ibn Sīnā ser seguidor da “seita Maometana”5. Voltarei a essa questão adiante. A discussão a respeito da importância da teoria, de um lado, e do valor da prática empírica, por outro, pode ser encontrada também na obra do autor de que me ocuparei aqui. O cirurgião inglês, William Lempriere (?-1834), foi chamado pelo príncipe do Reino de Marrocos, Muley Absulem, para tratar um problema que afetava a sua visão. Persuadido a viajar para uma região pouca conhecida dos europeus, Lempriere aceitou o convite e embarcou, em Gibraltar, em 14 de setembro de 1789. Apesar de sempre se orientar por um exame físico de seus pacientes, e ressaltar as * Universidade de São Paulo, mestre em “Língua, Literatura e Cultura Árabe”, doutoranda em História. 1 Ver “Aristotle among the physicians” In WEAR, A. et al. The medical renaissance of the sixteenth century. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. p. 1-15. 2 SIRAISI, N. History, Medicine, and the Traditions of Renaissance Learning. Michigan: University of Michigan Press, 2007. p. 3. 3 Entre 1500 e 1674, houve, ao menos, sessenta edições do texto completo ou parcial do Cânone. Todas essas publicações estavam em Latim. Ver SIRAISI, N. G. “The changing fortunes of a traditional text: goals and strategies in sixteenth-century Latin editions of the Canon de Avicenna” In WEAR, A. op. cit. p. 17. 4 Ibid. p. 22. 5 “Mohammedan sect” In Ibid. p. 34.

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diferenças de compleição física entre as pessoas, o médico deixara anotado em seu livro – resultado de sua viagem –, a afirmação de que alguns pacientes o viam como um “empirista ignorante” que não sabia nada de sua profissão6. O sentido de empirista, aqui, remete, possivelmente, a um praticante da medicina não treinado em universidades. A julgar por um outro livro escrito por Lempriere, e publicado em 1827, a sua concepção de medicina estava assentada, certamente, no pressuposto de que a filosofia era um conhecimento essencial à prática médica. Logo, ele diferenciava os médicos com formação teórica daqueles com conhecimento eminentemente prático. Esse princípio aponta um direcionamento universal da prática médica, em Lempriere, mas, não consegue abarcar todas as suas posições teóricas. Ou seja, ainda que se possa encontrar no autor um entendimento voltado a um modo de proceder médico, é possível, de igual maneira, verificar o espaço aberto às particularidades da sociedade visitada, no conjunto de suas ideias. Examinar esses elementos em perspectiva pode nos ajudar a dimensionar o cenário de debate sobre a medicina, no início da “Modernidade” europeia. A primeira postura aparece em Lempriere, no momento em que ele afirma que o Universo é composto por várias peças, cada uma com funções diferentes, mas, todas contribuindo para com a harmonia do mundo. Essa ordem se devia a um “agente superior”, sendo que todos os seres eram uma “parte pequena e subordinada de um sistema regulado inteiramente por esse agente superior”7. Nesse sentido, todos os corpos seriam aproximados em virtude de sua origem, e, no caso do ser humano, em razão de características que os assemelham entre si e os diferenciam dos outros seres. O segundo elemento pode ser notado quando Lempriere faz anotações sobre as doenças que ocorriam, com frequência, nesse Reino. Dentre elas, figuravam a oftalmia – inflamação dos olhos – e a hidrocele. Contudo, enquanto a primeira era explicada em virtude da ausência de guarda-sol, a hidrocele – doença que atinge os testículos – era justificada pelo grande relaxamento induzido pelo calor do clima, e também pelo fato de os mouros tomarem banhos quentes imediatamente após saciarem seus desejos8. Não é demais lembrar que a tradução francesa da obra, de 1801, acrescenta a afirmação sobre o “uso imoderado de 6

LEMPRIERE, W. A tour from Gibraltar to Tangier, Sallee, Mogodore, Santa Cruz, and Tarudant; and thence over Mount Atlas to Morocco. Including a particular account of the royal harem. 3ª edição. Richmond: Published by William Pritchard, 1800. p. 100-1. 7 LEMPRIERE, W. Popular lectures on the study of natural history and the sciences, vegetable physiology, zoology, the animal and vegetable poisons, and on the human faculties, mental and corporeal. 2ª edição. Londres: Published by Whittaker, Treacher and Co. Ave Maria Lane, 1830. p. 298. 8 Em nota, Lempriere afirma que o “leitor médico” verá a relação entre os desejos do corpo e a doença. Ibid. p. 20.

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mulheres”9. É dentro dessa chave de leitura que se abre espaço para um entendimento particular da medicina árabe. O conhecimento médico e cirúrgico no Reino de Marrocos, praticado tanto por mouros quanto por judeus, é visto como “muito limitado” pelo médico inglês10. Lempriere o desqualifica por duas grandes razões. A primeira devia-se ao fato de esses médicos pautarem-se em manuscritos árabes antigos. Somado a isso, verificava-se que tais médicos usavam esses manuscritos para apontar alguns “remédios simples” que seriam, depois, aplicados a várias “intemperanças”11. O médico nota que os mouros faziam uso, sobretudo, de remédios tópicos e, raramente, de remédios internos12. Aliado a isso, havia outros métodos para tratar as doenças como a sangria, a escarificação e o uso de decocções de ervas. Por fim, havia as próprias operações, não presenciadas por Lempriere, mas das quais ele pudera ver um instrumento usado nessas ocasiões: tratava-se de um fio de latão de certa espessura, que terminava, gradualmente, numa ponta afiada13. A visão de reprovação das práticas médicas árabes pelo médico inglês é, em alguma medida, resultado do cenário fluido sentido pelas discussões médicas na Europa. A polêmica entre o vitalismo e o mecanicismo, o uso de textos da “Antiguidade Clássica”, a teoria dos humores e a aplicação de remédios quimicamente manipulados constituem quatro eixos de debate que aparecem no conjunto da obra de Lempriere e que pretendo delinear em seguida. Todos eles compõem um quadro maior de teorização e prática referente ao conceito de filosofia natural.

Lempriere e o Experimentalismo No livro já citado de Lempriere, sobre a filosofia natural, não resta dúvida de que o mundo ordenado é resultado da “Criação” por Deus. Assim sendo, a filosofia natural exibe a tarefa de explicar a “operação relativa” à criação dos seres14. Ou, em outras palavras, a filosofia natural é a base sobre a qual se assentam as artes, as ciências e todo o conhecimento

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LEMPRIERE, W. Voyage dans l'empire de Maroc et le royaume de Fez, fait pendant les années 1790 & 1791. Paris, Tavernier, Legras & Cordier, an IX, 1801. p. 23. 10 LEMPRIERE, W. A tour from Gibraltar to Tangier…p 21. 11 Ibid. p. 21. 12 Ibid. p. 21. 13 Ibid. p. 21. 14 LEMPRIERE, W. Popular lectures on the study of natural history and the sciences…p. 3.

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humano15. A influência do mecanicismo, advindo, sobretudo de Isaac Newton, não é encontrada nas posturas teóricas sobre a fisiologia, no médico inglês16. A explicação sobre o desenvolvimento do ser, seja ele vegetal ou animal, é feita através da partilha de um único e mesmo elemento: o princípio vital17. Importante destacar, aqui, que o princípio vital de que fala Lempriere refere-se ao “sopro”, àquilo que daria origem à vida e que recebia, dentre os gregos, o nome de thymos. Mais tarde, o princípio vital seria nomeado de pneuma, na fisiologia galênica18. A reiteração de um conceito grego, há muito empregado, não deve ser entendido como adoção integral das teorias médicas antigas. Como lembra Thomas Broman, “se o papel da teoria médica como um símbolo de identidade profissional era relativamente estável, o conteúdo de tal teoria não era”19. É a partir de tal pressuposto que se pode entender a postura do médico inglês diante de uma prática de diagnóstico médico muito encontrada no Reino de Marrocos: a tomada do pulso. É sabido que, desde Hipócrates, o pulso do paciente era tomado como um meio de diagnosticar possíveis doenças20. Lempriere, contudo, não acreditava que o exame do pulso pudesse dizer muito sobre o estado de saúde, ou doença, dos pacientes. Um episódio ilustra o seu entendimento sobre essa prática. Assim que chegara a Arzila, cidade situada na costa atlântica do Marrocos, o médico inglês registra que fora visitado por muitos pacientes, “cujos casos eram, em geral, muito lamentáveis”21. Lempriere prossegue, afirmando que “fora em vão assegurar a esse povo desafortunado e ignorante que suas queixas estavam além do alcance da medicina”. Mas, como os pacientes insistissem que um “doutor cristão” poderia curar qualquer doença, e ofereciam suas mãos para que se pudesse sentir seu pulso, o médico conclui, ironizando, que “as doenças de todo tipo, nesse país, pareciam ser descobertas, meramente, por meio da verificação do pulso”22. O médico mostrou sua insatisfação com esse tipo de comportamento no Marrocos, em várias passagens de seu livro. No primeiro contato com o príncipe Muley Absulem, paciente 15

Ibid. p. 15. Sobre isso, ver ROE, S. A. “The Life Sciences” In Porter, R. (ed.). The Cambridge History of science. Eighteenth-Century Science . p. 397 17 LEMPRIERE, W. Popular lectures on the study of natural history and the sciences…p. 84. 18 LLOYD, G. E. R. Greek Science after Aristotle. New York: W.W. Norton & Company, 1973. p. 140 19 BROMAN, T. E. “The Medical Sciences” In Porter, R. (ed.). The Cambridge History of science. EighteenthCentury Science. Volume 4. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 468. 20 SPEAK, G. “El licenciado Vidriera” and the Glass Men of Early Modern Europe. The Modern Language Review. vol. 85, nº. 4, outubro 1990, p. 858. 21 LEMPRIERE, W. A tour from Gibraltar to Tangier…p. 15. 22 Ibid. p. 16. 16

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que motivara sua viagem, a situação se repetiu, e o príncipe desejou que o médico examinasse tanto seu pulso, quanto seus olhos, afligidos por catarata. A resposta de Lempriere ocorreu como no contato com outros pacientes: ele somente poderia emitir sua opinião, quando considerasse o caso mais intensamente23. Essa desconfiança em torno do diagnóstico pelo pulso não impedia, contudo, que Lempriere lançasse mão de outro princípio médico grego amplamente utilizado pela medicina na Europa até então: a teoria dos humores. Já se fez notar a explicação dada sobre a origem da hidrocele, qual seja, o calor do clima e os banhos quentes. Afora essa referência, é possível encontrar algumas poucas menções à palavra “humor”, na obra de viagem de Lempriere. Curiosamente, é na tradução francesa que se consegue verificar um largo emprego do conceito de “humor”. No trecho referente ao uso de remédios tópicos pelos árabes, o texto em francês acrescenta que esse tipo de procedimento não possuía “qualquer efeito sobre os humores que causam a maior parte das doenças”24. A última polêmica, enumerada acima, diz respeito à indicação de remédios internos pelos médicos. Em sua primeira consulta com o príncipe de Marrocos, Lempriere concluiu que haveria a necessidade de se empregarem tanto remédios tópicos quanto internos. O médico inglês chegou mesmo a elogiar o seu paciente, porque vira nele um “apto discípulo”, capaz de entender que um “remédio introduzido no estômago poderia causar algum alívio para o seu olho”25. Em virtude dessa prática, o pai de Muley Absulem, Sidi Muhammad, em reunião com o médico inglês, não só acusou Lempriere de administrar remédios internos para a doença no olho de seu filho, como registrara que essa prática era “totalmente nova e inexplicável” para eles26. Havia, ainda, a acusação de que os “remédios europeus eram sempre fortes e violentos”27, o que poderia sugerir que se tratava de um plano para envenenar o príncipe28. Embora o imperador falasse sobre os “remédios europeus”, é importante lembrar que o emprego de medicamentos mais fortes do que aqueles usados por herbalistas tradicionais era uma discussão que se travava na Europa desde o século XVI, sobretudo, após a influência médico-química de Paracelso (1493-1541).

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Ibid. p. 88. LEMPRIERE, W. Voyage dans l'empire de Maroc et le royaume de Fez, fait pendant les années 1790 & 1791. p. 25. 25 LEMPRIERE, W. A tour from Gibraltar to Tangier…p. 92. 26 Ibid. p. 128. 27 Ibid. 28 Ibid. 24

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O médico no harém Como se pôde verificar até o momento, as influências da medicina antiga se encontravam com as discussões dos séculos XVI e XVII na teoria e na prática médica de Lempriere. As mudanças nos procedimentos de diagnóstico e tratamento seriam estimuladas, mais uma vez, com a entrada do médico inglês no harém real. O chamado para cuidar das mulheres, no harém, ocorreu tanto em relação ao palácio do príncipe, quanto em relação ao palácio do rei. No primeiro contato com uma das mulheres do príncipe, Lempriere confrontou-se com uma dificuldade que, ao que tudo indica, seria a primeira na sua carreira de médico-cirurgião: a sua paciente não lhe revelou o rosto. Ao invés disso, pediu que o médico examinasse seu pulso, apresentado a ele através de uma cortina. Uma vez que o médico insistisse na necessidade de examinar a sua língua para entender a natureza da doença, a paciente planejou fazer um buraco na cortina, para, através dele, apresentar sua língua para exame. Ao final da observação, o médico deixaria registrado o seu desapontamento por não ver o rosto da paciente29. Com a sua permanência no harém, que abrigava as quatro esposas do príncipe, além de, aproximadamente, vinte concubinas, Lempriere chega à conclusão de que precisaria adaptar o seu comportamento às “capacidades” de suas pacientes. É certo que o médico se referisse, aqui, à diferença de prática diagnóstica entre ele e os árabes-muçulmanos, especialmente, no tocante à tomada do pulso e à forma de conduzir o tratamento. Em virtude dessa diferença de entendimento médico, Lempriere considerou suas pacientes como “problemáticas”30. Um episódio ocorrido no harém é exemplar dessa diferença de terapêutica entre o médico e as mulheres do Marrocos. Lempriere havia indicado o uso de um medicamento para uma das concubinas do rei, a qual reclamara de uma leve dor no estômago31. Como lembra o médico, esse remédio deveria ter uma natureza suave, de modo a não gerar dor ou qualquer outra inconveniência na paciente32. O médico, então, preparou o pó, que, em suas palavras, poderia ser dado a um bebê recém-nascido – dado o seu caráter inofensivo –, e o entregou à paciente. Desconfiada, a moça, cujo nome não é identificado, obrigou a sua irmã mais jovem

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Ibid. p. 99. No original, “troublesome patients” In Ibid. p. 100. 31 Ibid. p. 269. 32 Ibid. p. 269. 30

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a ingerir o remédio primeiro, porque, caso não lhe fosse nocivo, a paciente poderia também usá-lo. Ocorre que a moça, a quem fora administrada a dose de remédio, tornou-se muito doente, o que levou a paciente original a repreender o médico com a mais severa linguagem. Diante disso, a paciente, que dizia ter a melhor opinião sobre os cristãos, perguntava ao médico inglês se ele era a pessoa adequada para cuidar da sultana, que era, originalmente, a paciente que motivara a entrada de Lempriere no harém. A resposta a essas “censuras ignorantes e imerecidas”33, como nomeou o médico, veio em seguida. Ele, primeiramente, reiterou o caráter “suave” do remédio, para uma pessoa com a constituição física de sua paciente. Em seguida, repreendeu a moça, perguntando como ela poderia ser destituída de afeição e sentimento a ponto de obrigar a sua irmã a ingerir o remédio, sem se atentar para “a diferença de idade, ou de estado de saúde”34. Por fim, ele comenta que seu comportamento poderia desencorajá-lo a atender outras mulheres no harém, cujas queixas poderiam exigir mais atenção do que as dela. A moça, então, desculpou-se e desejou um bom retorno ao seu país de origem35. A compleição física dessas mulheres é um assunto destacado pelo médico. Para ele, o número de mulheres “corpulentas”, no Marrocos, era muito considerável. E isso se devia ao modo de vida que as mantinha confinadas e inativas dentro do harém, além de sua própria alimentação. Como anotou o médico, essas mulheres estavam impossibilitadas de usufruir “o ar fresco e o exercício” que, na sua visão, eram muito “necessários para o desenvolvimento da saúde e da vida”36. Essa forma de entender o binômio saúde-doença vai ao encontro de aconselhamentos médicos desenvolvidos desde a chamada “Antiguidade clássica”. As práticas voltadas à saúde do corpo deveriam compreender uma associação de fatores como o ambiente, a dieta, o sono e a vigília, o exercício e o repouso, as retenções e as evacuações [incluindo a liberação sexual], e as “paixões da alma”. Importante destacar que essa “receita de saúde” não vigorou, apenas, nos textos greco-romanos, mas, pode ser encontrada, do mesmo modo, no médico islâmico Ibn Sīnā, em seu livro “Poema da Medicina”37. Não é demais ressaltar a afirmação de Shapin que acredita que tais práticas só estavam disponíveis para as classes que possuíam recursos

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“ignorant and unmerited reproaches” In Ibid. p. 270. “difference of her age, or to the state of the health” In Ibid. p. 270. 35 Ibid. p. 270. 36 Ibid. p. 103. 37 AVICENNE. Poème de la Médecine. Paris: Société d’édition “Les Belles Lettres”, 1956. 34

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para escolher, ou seja, a elite38. O uso de uma teoria geral para lidar com os pacientes do Reino mouro não se sustenta na narrativa de Lempriere. A abordagem mais afeita a práticas “universais” entra em conflito com a sua visão valorativa sobre esse Reino. Essa posição é moldada, sobretudo, pela crença na interferência maléfica da religião islâmica e da política tirânica na vida social. Aliado a tais elementos, figurava também o efeito do clima. Para o médico, elementos como a excentricidade, os caprichos, o estado de saúde e o clima contribuíam para “moldar a mente humana”. Elementos esses que já não eram mais encontrados na Europa, ou existiam em grau inferior. O governo arbitrário e o clima excitavam as “paixões viciosas” e, por sua influência debilitante e relaxante, enfraqueciam as “mais nobres energias da mente”. É certo que, para compor esse quadro, a religião, que ele nomeia de “absurda e cruel”, também foi adicionada. O retrato dessa sociedade é, de forma ampla, aquele relacionado mais aos vícios do que às virtudes. Por serem menos afeitos do que qualquer outro povo “não iluminado” às sensações delicadas, os mouros do Marrocos precisavam mais do que um excitamento ordinário para torná-los sensíveis ao prazer ou à dor. Dentre os vícios tão reprovados pelo médico inglês, figurava a luxúria. Para ele, a devassidão era tão estimulada na educação dos jovens, que, ao começar o tratamento do príncipe, Lempriere deixara assinalado que o quadro geral do seu paciente fora agravado pelo curso da libertinagem. Fato que levou o médico a prescrever um regime rígido para o paciente, relembrando-lhe a necessidade de observar tais instruções, de tempo em tempo, através de textos traduzidos para o árabe. Curiosamente, se o médico inglês ficara incomodado com o fato de não ter descoberto a face de sua primeira paciente no harém, a sua segunda experiência dentre as mulheres mouras – dessa vez, no palácio do rei – caminharia na direção contrária. Convidado a cuidar de uma sultana em especial, que se mostrava muito debilitada em razão de um envenenamento, o médico se viu cercado por várias outras mulheres. A fim de que Lempriere encontrasse a causa de suas queixas, essas mulheres – dizia ele – exibiam a beleza de seus membros com tanta liberdade, que soaria indecente em outros países39. Essa declaração é assim feita porque um grande número de mulheres havia rodeado o médico, quando de sua entrada no harém. De acordo com esse relato, cada uma das mulheres 38

SHAPIN, Steven. 2000. “Descartes the doctor: Rationalism and its therapies”. British Journal for the History of Science 33(2), p. 144. 39 LEMPRIERE, W. A tour from Gibraltar to Tangier…p. 251.

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ali presentes queixava-se de algum incômodo, e as que não puderam inventar um – completa o médico – pediam a ele que tomasse seu pulso. O médico avaliou tal situação como altamente desagradável, pois, era necessário “descobrir” as doenças de cada uma das mulheres. A descrição sobre o comportamento das mulheres, no harém, no momento em que elas se veem diante de um médico, revela o entendimento de Lempriere sobre a saúde delas: o seu corpo, assim como o próprio Reino em que elas viviam, estava debilitado. Com uma má alimentação, além da restrição de mobilidade física, a ausência de qualquer outro passatempo que não fosse a conversa e educadas para servirem aos propósitos lascivos do soberano, essas mulheres são vistas ora pelas lentes da piedade ora pelas lentes da censura, na narrativa do médico.

Considerações Finais A narrativa de viagem de Lempriere é sintomática do cenário de discussões médicas que vinha se projetando na Europa desde, ao menos, o século XVI. Se havia, de um lado, a reabilitação do conhecimento clássico, havia, da mesma maneira, um crescimento de posições críticas a seu respeito, como a que questionava, por exemplo, a “teoria dos humores”. A medicina árabe-islâmica, especialmente aquela lida no Cânone de Medicina, ao mesmo tempo em que se via disseminada através de traduções e comentários, acumulava também questionamentos40. Disputas envolvendo, de um lado, profissionais formados em faculdades de medicina, e, de outros, cirurgiões, barbeiros, boticários e parteiras, continuavam em ebulição. Os recursos de que cada um dispunha para tratar os doentes eram também matéria de embate. Sobre isso, basta lembrar o profundo mal-estar causado pelo uso de remédios químicos, na medicina, mesmo entre os europeus41. Esse quadro não impedia, contudo, que um médico europeu, num país islâmico, marcasse a diferença de prática médica assentada em aspectos sociais, políticos e religiosos. Se as discussões suscitadas na Europa ocorriam no âmbito da prática e da teoria 40

Ver SIRAISI, N. G. “The changing fortunes of a traditional text: goals and strategies in sixteenth-century Latin editions of the Canon de Avicenna” In WEAR, A. et al. The Medical Renaissance of the sixteenth century. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. p. 16-41. 41 Sobre isso, ver DEBUS, A. G. “The Chemical Philosophy and the Scientific Revolution” In HELLYER, M. (ed.). The Scientific Revolution: The Essential Readings. Oxford: Blackwell Publishing, 2003.

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médica, em que seus personagens, constantemente, ressaltavam implicações relacionadas ao corpo, à dieta, à terapêutica e até ao papel da alma nesse processo de busca pela saúde, de que maneira se poderá ler os autores que punham em evidência elementos como o clima, os vícios de caráter, e a sensualidade, para não dizer lubricidade, dos povos islâmicos? Uma vez que tais discussões eram feitas no terreno da “ciência”, os limites estabelecidos entre esse tipo de conhecimento e um outro, ordinário, deveriam ser marcados. Mas, de acordo com o que notamos até aqui, por meio da obra de Lempriere, é possível pensar que a “ciência médica” ainda buscava seus pressupostos teóricos, e isso afetava, certamente, o entendimento de sua própria prática. Uma das ambiguidades aí expressas se referia ao corpo. Começa-se a verificar, nesse período, uma preocupação com o corpo, inserido na natureza, mas, distinto dessa. Ou seja, se ainda era possível encontrar uma posição que entendia o corpo como um microcosmo, aquele que resultava da interação das forças e dos elementos do Cosmos42, de outra maneira, via-se o nascimento de uma postura que pretendia separar e diferenciar o homem da natureza. Na obra do médico inglês, essas duas esferas de representação do corpo estão presentes. Ou seja, a teoria do médico inglês pode ser lida como universal, no sentido de assemelhar todos os corpos ordenados segundo a vontade de um agente superior, mas, em igual medida, pode ser tomada como particular, no momento em que se volta às condições sociais específicas para falar do corpo. Nesse sentido, um ponto que não se poderá perder de vista é se e de que modo os elementos particulares às sociedades estrangeiras entraram na composição de um quadro de prática médica, ao longo do século XVIII. Esse processo poderá apontar a formação do conceito de corpo, dentro das teorias médicas, revelando sua ligação ou desvinculação de componentes específicos a sociedades externas à Europa. Não apenas isso. A figura feminina também fez parte de tal debate. Desse modo, fica a pergunta: de que corpo falavam os médicos quando pensavam no corpo?

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CORBIN, A. et al. Histoire du Corps. De la Renaissance aux Lumières. Paris: Éditions du Seil, 2005. p. 331.

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Referências Bibliográficas AVICENNE. Poème de la Médecine. Paris: Société d’édition “Les Belles Lettres”, 1956. CORBIN, A. et al. Histoire du Corps. De la Renaissance aux Lumières. Paris: Éditions du Seil, 2005. HELLYER, M. (ed.). The Scientific Revolution: The Essential Readings. Oxford: Blackwell Publishing, 2003. LEMPRIERE, W. A tour from Gibraltar to Tangier, Sallee, Mogodore, Santa Cruz, and Tarudant; and thence over Mount Atlas to Morocco. Including a particular account of the royal harem. 3ª edição. Richmond: Published by William Pritchard, 1800. _____________. Voyage dans l'empire de Maroc et le royaume de Fez, fait pendant les années 1790 & 1791. Paris, Tavernier, Legras & Cordier, an IX, 1801. _____________. Popular lectures on the study of natural history and the sciences, vegetable physiology, zoology, the animal and vegetable poisons, and on the human faculties, mental and corporeal. 2ª edição. Londres: Published by Whittaker, Treacher and Co. Ave Maria Lane, 1830. LLOYD, G. E. R. Greek Science after Aristotle. New York: W.W. Norton & Company, 1973. PORTER, R. Disease, Medicine and Society in England, 1550-1860. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. __________ (ed.). The Cambridge History of Science. Eighteenth-Century Science. Volume 4. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. SHAPIN, Steven. “Descartes the doctor: Rationalism and its therapies”. British Journal for the History of Science 33(2), p. 131-154, 2000. SIRAISI, N. History, Medicine, and the Traditions of Renaissance Learning. Michigan: University of Michigan Press, 2007. SPEAK, G. “‘El licenciado Vidriera’ and the Glass Men of Early Modern Europe”. The Modern Language Review. vol. 85, nº. 4, outubro 1990, p. 850-865. WEAR, A. et al. The medical renaissance of the sixteenth century. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.

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