UM MENINO PERFUMADO: QUESTÕES ESTÉTICAS E IDENTITÁRIAS DE CRIANÇAS AFRO-BRASILEIRAS EM UM COTIDIANO ESCOLAR

June 21, 2017 | Autor: Claudia Queiroz | Categoria: Currículos E Práticas Escolares, Estudos Afro-Brasileiros
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UM MENINO PERFUMADO: QUESTÕES ESTÉTICAS E IDENTITÁRIAS DE CRIANÇAS AFRO-BRASILEIRAS EM UM COTIDIANO ESCOLAR

Cláudia Queiroz UERJ/PROPED Resumo Este pôster tem como objetivo apresentar alguns dos resultados da pesquisa de mestrado, que resultou na dissertação: De uma chuva de manga ao funk de Lelê: imagens da afrodiáspora em uma escola em Acari (QUEIROZ, 2011). A pesquisa finalizada em 2011, teve como problemática o espaço escolar, mais especificamente, da escola Pública Municipal J.I Ana de Barros Câmara, em Acari, periferia do Rio de Janeiro. O pressuposto era que, neste tempoespaço escolar, se estabelecia uma tensão entre as invisibilidades e visibilidades de imagens de heróis e heroínas e suas narrativas africanas e afro-brasileiras em relação às identidades. Naquele espaço escolar, a representação do humano que era escolhida para estar nas paredes das salas de aulas, dos corredores da escola e artefatos era, preferencialmente, eurocêntrico-branca, embora os indivíduos que frequentavam àquele espaço - crianças e educadoras – eram, em sua grande maioria, afro-brasileiros. O desenvolvimento da pesquisa buscou alternativas epistemológico-metodológicas articuladas com as pesquisas do cotidiano (ALVES, 2001, CERTEAU, 1994) e com os estudos da recepção de imagens (BARBERO, 2009). Na escola pesquisada junto aos estudantes de duas turmas com 25 alunos nas idades de 4 e 5 anos e suas respectivas professoras, a leitura da história Cabelo de Lelê (BELÉM, 2007) e a produção fotográfica das crianças deram origem a um videoclipe, o que resultou em várias narrativas como a do menino Lucas, que ao se ver no vídeo, se sente perfumado. Este fragmento narrativo trouxe reflexões sobre as questões identitárias, os modos de recepção de imagens pelas crianças afro-brasileiras no contexto da escola em questão. Palavras chaves: alteridade – identidade - relações étnico-raciais

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Introdução Este pôster tem como objetivo apresentar alguns dos resultados da pesquisa de mestrado em 2011, que resultou na dissertação: De uma chuva de manga ao funk de Lelê: imagens da afrodiáspora em uma escola em Acari (QUEIROZ, 2011). Este trabalho articula-se ao eixo temático do congresso em questão nas problemáticas da diversidade cultural, étnico-raciais e na ideia por uma proposta epistêmica / metodológica que instigue a alteridade/identidade dos sujeitos do cotidiano escolar. Nesta pesquisa o objetivo principal foi discutir a imposição estética nos espaços de infância, mais especificamente, na escola Pública Municipal J.I Ana de Barros Câmara, em Acari, periferia do Rio de Janeiro. A pesquisa teve como pressuposto que, neste tempoespaço escolar, se estabelecia uma tensão entre as invisibilidades e visibilidades de imagens de heróis e heroínas e suas narrativas africanas e afrobrasileiras em relação às identidades. De forma que naquele espaço escolar, a representação do humano que era escolhida para estar nas paredes das salas de aulas, artefatos e corredores da escola era preferencialmente eurocêntrico-branca, embora os indivíduos que frequentavam àquele espaço - crianças e educadoras eram, em sua grande maioria, afro-brasileiros. Minha preocupação como pesquisadora e educadora primeiramente foi pensar outras formas de ver, sentir, perceber e escrever o mundo, que possam contribuir para o alargamento da experiência social (SANTOS, 2008). Assim como refletir sobre as questões identitárias, os modos de recepção de imagens pelas crianças afro-brasileiras na escola em questão. O

desenvolvimento

da

pesquisa

buscou

alternativas

epistemológico-

metodológicas articuladas com as pesquisas do cotidiano (ALVES, 2001, CERTEAU, 1994) e com os estudos da recepção de imagens (BARBERO, 2009). É neste cotidiano escolar que desenvolvi uma pesquisa/intervenção, articulando brincadeiras e tecnologias com literatura infantil da contemporaneidade. Na escola pesquisada paralelamente ao meu estudo de mestrado, emergiram personagens, heróis e heroínas da literatura infantil contemporânea. Vieram dos livros Os Reizinhos de Congo de Edmilson Pereira, do livro Chuva de Manga de James Rumford, e da leitura de Cabelo de Lelê de Valéria Belém, junto aos estudantes de duas turmas com 25 alunos nas idades de 4 e 5 anos e suas respectivas professoras. Tal abordagem me instigou a investigar e a discutir as questões de relação étnico-raciais

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dessa escola e as emergências de heróis e heroínas da afrodiáspora, assim como refletir e investigar um caminho, no qual, Santos (2008) tem chamado de “sociologia das ausências e sociologia das emergências”. A primeira noção, a sociologia das ausências, propõe um auto-refletir sobre o que tem sido invisibilizado e o que tem sido hiper-valorizado. Quais sujeitos são representados com suas histórias, memórias e experiências? E a segunda noção, a sociologia das emergências, baseia-se em uma ampliação do tempo presente, visibilizando as experiências voltadas para um projeto emancipatório (SANTOS, 2000, apud OLIVEIRA, 2006, p. 127) que dê valor aos processos de formação identitários individuais e coletivos. A estruturação da pesquisa de campo seguiu em duas etapas. A primeira etapa, o trabalho com as imagens e com a literatura infantil de temática africana ou afrobrasileira foi realizado primeiramente na busca de sair do eixo eurocêntrico em que, muitas vezes, as escolas se fixam. E a segunda etapa a utilização da câmera de vídeo e da máquina fotográfica na escola como mediadores de produção de conhecimento, registrando, projetando as falas, as entrevistas, os sons, os movimentos, os saberes e os sentidos dos sujeitos do cotidiano.

1.1-

A Representação de cabelos em histórias infantis em Acari virou Funk de Lelê

Na escola pesquisada quase todo o espaço físico era decorado. No espaço central da escola havia um grande painel da Branca de Neve. Os artefatos, como as chamadas de madeirai, contendo os nomes dos(das) alunos(as), penduradas no interior das salas de aulas, os livros, as pastas, os bonecos, as mochilas, os murais, os pequenos objetos que saiam e entravam na escola eram na sua maioria figuras que representam indivíduos loiros e brancos. Essas representações somadas a outras figuras do mundo da Disney espalhadas pelos corredores, salas e refeitório, como os painéis pintados dos cães aristocratas do filme 101 Dálmatas, do Mickey, do Pato Donald, da Margarida e do Pinóquio, os quais todos anos eram pintados e retocados e recomprados e refeitos, formavam o que poderia se chamar de “currículo imagético” da escola. São usos de imagens carregadas de uma representação, de um tipo de classe, de uma etnia, de uma identidade, agregando a isso modelos e padrões corporais

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eurocêntricos/americanizados, que eleitos para privilegiar determinados modos de conhecer o mundo, estão muito longe de ser ingênuos e impossíveis de ser pensados como neutros. Ou seja, estas figuras têm uma forte exposição visual, o que nos leva ao entendimento de que as múltiplas relações imagéticas são impregnadas de conteúdos, valores, corporeidades, gêneros, conceitos e preconceitos que vão tecendo e hierarquizando determinados tipos de identidades. Giroux (1995) diz que o logotipo da Disney, as histórias e seus personagens são atravessados por uma “pedagogia de inocência” e que por meio dela legitimam ideologias sexistas, racistas e discursos coloniais. Por trás da nostalgia e da política da inocência, entende-se aqui como uma pedagogia que nos ensina modos de ser, de se vestir, de ver, de viver, de sentir.

Nos ensina, de uma maneira refinada e sutil,

determinados conteúdos como se fossem naturais e não inventados. Portanto, desejava potencializar a participação das crianças nesse contexto e a reafirmar os sujeitos no lugar de narradores, não somente consumidores de imagens, mas também produtores. Surgiu, então, a ideia de se fazer um videoclipe com as crianças da escola. Na intenção de redefinir esse espaço, os referenciais de beleza e de discutir com as crianças da Educação Infantil e as professoras sobre uma presença estética afrobrasileira positiva, resolvemos trabalhar com o livro infantil “O cabelo de Lelê”, no qual uma criança afro-brasileira vive a dificuldade de aceitar o seu cabelo crespo até encontrar um livro com penteados afros. Assunto complexo é esse de cabelo, principalmente o cabelo crespo, característico das populações afro-brasileiras, que ao longo do tempo foi recebendo diferentes denominações, na maioria das vezes pejorativas. São termos que, ditos de modo desrespeitoso ao tipo de cabelo, afetam diretamente os processos identitários e servem como golpe na autoestima dos donos e das donas dos cabelos. Na escola, esses nomes, apelidos sobre a aparência da criança negra com o seu cabelo e em relação ao seu corpo, são reconrrentes e têm afetado as relações afetivas e socias. Gomes (2008), que analisa os salões de beleza direcionados para o tratamento e penteado dos cabelos afros na cidade de Belo Horizonte, lugares estes, segundo a autora, de redefinição, de autoafirmação, de resistência e de valorização do sujeito das populações afro-brasileiras, afirma que: “Esses apelidos recebidos na escola marcam a história de vida dos negros. São talvez, as primeiras experiências públicas de rejeição do corpo vividas na infância e na adolescencia” (p.187). O que vem resultando desse

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processo é uma projeção negativa de algumas constituições de identidades e pertencimentos étnico-raciais. A escola impõe padrões de currículo, de conhecimento, de comportamento e, também, de etética. Para estar dentro da escola, é preciso se apresentar fisicamente dentro de um padrão, uniformizar-se. A exigencia de cuidar da aparência é reiterada, e os argumentos para tal nem sempre apresentam um conteúdo racial explícito. Muitas vezes esse conteúdo é mascarado pelo apelo as nomas e aos preceitos higienistas. Existe, no interior do espaço escolar, determinada representação do que é ser negro, presente nos livros didáticos, nos discursos, nas relações pedagógicas, nos cartazes afixados nos murais da escola, nas relaçõesprofessor/a e alunos/a e dos alunos/as entre si. (GOMES, 2008. 186, 187)

Na contemporaneidade existem as contraditoriedades do sujeito afrobrasileiro(a), que na e da diáspora trança os cabelos, que deixa longo o black, enfeitado, armado, rastafari, esticado, amaciado, com chapinha, com dreads, comprado ou simplesmente deixado ao natural da raiz da cabeça. Gilroy (2001) contribui para o estudo das relações étnico-raciais defendendo a ideia de uma identidade em constante atualização e multifacetada, afastada de essencialismos ou de fixidez. O que me preocupa não é a mudança de estilos que uma pessoa faz no decorrer da sua vida, tanto para as pessoas consideradas brancas, como as das populações de negros e de indígenas, e sim a imposição estética histórica nesses espaços de infâncias que tendem a uma cristalização de um padrão de cabelo liso, loiro. Durante todo o processo, na leitura, na produção de artefatos (vídeos, cartazes, um livro de fotografias das crianças), na dramatização da história, O Cabelo de Lelê, na realização de um videoclipe: funk de Lelê, ocorreram conversas com os estudantes, o que resultou nas análises de alguns fragmentos narrativos. Veja abaixo um diálogo sobre a explicação de como iria acontecer à filmagem.

Cláudia- O que você acha, Julia? Eu vou entrevistar você, eu vou filmar você E aí, oh! Você vai aparecer aqui dentro (apontado para o visor da câmera) Julia(5 anos)- E quando é que eu vou sair daí de dentro? “Cada pessoa, hoje em dia, pode reivindicar o direito de ser filmado” (Benjamin, 1994, p.183). De fato o que se observa é que vivemos em um mundo cada vez mais imagético. Devemos este legado visual, talvez, àquelas comunidades primitivas que criaram, ainda nas cavernas, as primeiras imagens e figuras, os desenhos rupestres.

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Estes primeiros “videomakers” desenhavam, imprimiam símbolos, dando sentidos ao seu cotidiano, suas caçadas, seus medos, seus modos de viver e suas espiritualidades. Benjamim (1994) considera que a reprodutibilidade técnica da obra de arte sempre existiu nos períodos da história da humanidade, mas de maneira sempre crescente, pois na essência a humanidade sempre teve a capacidade de imitar. O sentido tanto imediatista quanto de profusão de imagens, comparado aos primeiros inventos da técnica fotográfica por Nicéphore, e mais tarde aprimorada por Daguerre, seriam deles os primeiros aparelhos a concretizar esta reprodução que é, hoje, infinitamente maior, tanto na rapidez quanto na capacidade de reprodução de imagens, devido à manipulação digital e aos artefatos tecnológicos da informação e da comunicação e quanto à recepção em dialogo Benjamim pode-se falar que existem novas competências para uma nova sensibilidade marcada por um novo sensorium. Na contemporaneidade, com o crescimento tecnológico digital, da internet e da multiplicação de inúmeros aparelhos especializados em captura de imagens, mudou a ideia de processar, de transmitir e de guardar a informação e do uso/consumo das imagens cotidianamente. Hojé é possível gravar um Cd (compact disc) em casa, ter programas de gravação de audio, edição de imagens, fazer um vídeo no laptop. É importante lembrar que, para se produziru um disco (long Play) ou vídeo na década de 1950, era necessário uma grande companhia de discos e de filmagem, um investimento de capital maior ainda. A simplificação, por meio da popularização dos microcomputadores, o surgimento de programas e softwares livres e os sujeitos do cotidiano com melhor habilidade para seu uso, culminaram na simplificação de produtos, antes rstritos ao âmbito das incorporações. Esse processo criou uma rede de praticantes, no qual se produzem milhares de artefatos culturais, políticos e sociais. Sendo assim, educadores e crianças conseguem em poucos minutos produzir um Cd áudio, um vídeo, que logo estarão nas praças, nas ruas, nas escolas sendo compartilhados nas redes, emprestados, copiados, armazenados, mixados, reeditados, circulando e sendo consumidos.

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1.2-

Produção do Clipe - Funk de Lelê e a Câmera como um instrumento de alteridade -Como você se sente, Lucas, se vendo no Vídeo? -Hummmm! - Perfumado! (Lucas, 5 anos)ii.

Na escola pesquisada o vídeoclipe foi pensado como uma montagem artística de valorização estética das crianças deste cotidiano. Ao serem fotografados e filmados os alunos e alunas exibiam os seus vários estilos de cabelo e de penteados, se enfeitavam e faziam poses frente à câmera. A partir do momento que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponhame a posar fabrico-me instantaneamente outro corpo metamorfoseio-me antecipadamente em imagem essa transformação é ativa. Sinto que a fotografia cria meu corpo ou o mortífero (BARTHES, 1984, p.22).

A utilização da câmera na escola e na pesquisa suscitou questões e desafios principalmente no modo como este instrumento passou a se integrar no cotidiano como mediador de produção de conhecimento e ao mesmo tempo, na criação de vídeos projetanto as falas, as entrevistas, os sons, os movimentos, os saberes e sentidos dos sujeitos do cotidiano. No que se refere à alteridade mediada pelos aparelhos tecnológicos, Souza (2003), em diálogo com Bakhtin no campo da criação estética, analisa o uso da câmera na produção acadêmica e os inúmeros desafios epistemológicos, éticos e metodológicos que estes instrumentos e imagens técnicas trazem para a pesquisa nas ciências humanas. A autora compreende que são insipientes as discursões sobre o uso desses aparelhos no âmbito acadêmico, mas que, cada vez mais, há uma apropriação desses recursos nas pesquisas. Nesta perspectiva estas práticas começam a exigir a criação de modos de usar e investigações sobre os imapactos desses artefatos nas subjetividades e nos discursos produzidos na presença deles, assim como a experiência de se ver e de ser visto através das câmeras. Na frase da epígrafe, quando Lucas responde à minha pergunta, enquanto professora, dizendo que se sente perfumado, é que percebo que de todas as imagens que chegam a mim, por meio destes aparelhos, câmeras digitais, filmadoras somente algumas provocam mais emoção do que outras ( comoção, indignação, tristeza, alegria, beleza). Barthes (1984), cita Sartre e diz que “as fotos de um jornal podem muito bem nada dizer-me o que quer dizer que eu as olho sem por-las em posição de existência” (

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p.36). De todas as imagens que circulam ao meu redor, apenas algumas arrastam o meu olhar para algum “Punctum” (BARTHES,1984, p.46). Isso ocorre porque somente algumas delas dizem algo diretamente para cada um de nós, dizem a respeito da nossa subjetividade, do nosso imaginário, produzem sentidos ao sabor dos nossos gostos e desgostos de nossa história de vida. Ou seja , no conceito de Barthes (1984) “punctum” é aquilo que te toca, é aquilo que te afeta. É aquilo que é um detalhe na imagem, mas que te atinge suficientemente, a ponto de te revelar e te entregar. Fica cada vez mais claro entender, pela fala do menino Lucas, que as questões identitárias, e as que cercam a visibilidade ou não de heróis africanos negros ou afrobrasileiros nos sistemas representativos nas escolas vão além do órgão da visão, do sentido empregado do ver, passam da “superficialidade” e percorrem camadas profundas, táteis e olfativas. É de outra dimensão: da estética, da ética do desejo, de sentir-se valorizado e de sentir-se cuidado, diante de um contexto sócio/histórico que deprecia os sujeitos das populações negras com palavras como “negro sujo”, “negro encardido” ou, como eu mesma escutei de uma professora da escola em questão, me interpelando em tom de piada, se eu sabia o nome de alguma flor de cor preta, e ela mesma me responde dizendo: “onde já se viu um negro cheirar bem!”. Na frase de Lucas não tem somente um movimento de autoestima “de se ver perfumado”, mas nesse processo, a partir do contato com a câmera, podemos refletir sobre as interlocuções que os sujeitos fazem com estes objetos. Através da câmera, por exemplo, vem o olhar do outro, os olhares allheios e o olhar sobre si mesmo, emerge a alteridade. Desse modo, Souza (2003) afirma que primeiramente a tomada de consciência de si no mundo, do lugar que se ocupa, daquilo que minha visão não consegue enxergar é determinado pelos olhares e pela palavra do outro. “A compreensão que o sujeito tem de si se constitui através do olhar e da palavra do outro”. (SOUZA, 2003, p.83). Outra questão que a autora traz de ordem alteritária é sobre a imagem de si próprio reproduzida na tela, “É como se estivéssemos diante de um eu que é, ao mesmo tempo, um outro” (SOUZA, 2003, p. 85). Isto proporciona paradoxalmente uma estranheza sobre aquilo que é familiar. O sujeito se dá conta daquilo que nele é diferente, não reconhecível como parte de si próprio. Entretanto, posteriormente, pode assimilar esta nova visada de si como própria e incorporá-la em sua consciência, assumindo-a como familiar. Neste momento constatamos que houve uma transformação da consciênica de si. (SOUZA, 2003, p.85).

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A autora diz que, entre a pessoa que se vê na tela ou o sujeito que se deixa ser filmado, existe uma tensão ambivalente. Ao mesmo tempo em que há uma sensação de perda de controle da sua imagem (pois, fica-se à mercê de uma infinidade de interpretações, a julgo de outrem), há também o desejo de permanência da nossa imagem, do registro de nossa presença no mundo, da possibilidade de duplicação, de recriação, de produção e isso nos conecta a uma dimensão lúdica. Nesta

dimensão

entendo que os sujeitos envoltos de princípios dialógicos e de alteridade compõem uma proposta epistêmica/metodológica que suscite a emergência das diversidades estéticas, culturais, a visibilidade de crianças afro-brasileiras nos inúmeros cotidianos escolares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considero as questões identitárias das crianças afro-brasileiras na Escola Pública Municipal, J. I Ana de Barros Câmara de uma complexidade enorme, pois diante dos resultados da pesquisa de mestrado pude entender que existe uma imposição estética histórica nesses espaços de infâncias fixando um modelo do tipo branco europeu. Não só na super valorização de filmes e contação de histórias de principes e princesas, de contos de fadas de origem européia através de um binárismo (bom e mau - feio e bonito), assim como nas escolhas das figuras e imagens a serem estampadas nas paredes das salas de aula, portas e pelos corredores da escola são quase sempre determinados por pessoas, que no

lugar de poder, selecionam o que é reconhecido como

imagem/conhecimento, como saberes oficiais em detrimento de outros. Estas questões podem ser verificadas nas práticas cotidianas e nos saberes prescritos

pelos

currículos

escolares



territórios

políticos/cognitivos/simbólicos/imagéticos em que muitos negros se sentem, por vezes, deslocados, não pertencentes, não representados. Um caminho feito por muitas escolas que, para muitos negros, tem sido quase impossível, mas não de todo, pois, como nos afirma Certeau (1994), haverá sempre uma brecha na qual os “fracos”, frente aos “fortes”, encontrarão maneiras de tirar algum proveito. Portanto, na frase de Lucas está todo o desejo, um movimento de alteridade “de ser visto perfumado” pelo Outro, de se ver representado e, sobretudo, de se autorepresentar nesse contexto. O menino Lucas e sua fragrância não perfuma somente a

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ele, mas perfuma a todos a sua volta e nos coloca reflexões sobre uma imposição imagética eurocêntrica em sua escola e se opõe ao predomínio de uma literatura ou de uma mídia que, por vezes, desconsidera, quiçá, desprestigia a criança negra nos inúmeros cotidianos escolares.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Nilda e BARBOSA, Inês de (Org.). Pesquisa no/do cotidiano: sobre redes de saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. BARBERO, Jesus Martins. Dos Meios às Mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BELÉM, Valeria. Cabelo de Lelê. São Paulo: Nacional IBEP, 2007. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994 CERTEAU, M. De. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. FREITAS, Maria Teresa; SOUZA, Solange Jobim e; KRAMER, Sonia (Org.). Ciências humanas e pesquisa: Leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2003. GIROUX, Henry. Memória e pedagogia no maravilhoso mundo da Disney. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 1995 GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2008 GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Boaventura & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. PEREIRA, Edimilson. Os Reizinho de Congo. Ilustração: Graça Lima. São Paulo: Paulinas 2007. QUEIROZ, Cláudia. De uma chuva de manga ao funk de Lelê: imagens da afrodiáspora em uma escola em Acari. Dissertação (Mestrado em Educação - Faculdade de Educação, Universidade Estadual do Rio de Janeiros, RJ. 2011. RUMFORD, James. Chuva de manga. São Paulo: Brique-Book, 2005.

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SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008. i

Artefato de madeira para a chamada de presença dos estudantes na escola pesquisada

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O menino perfumado – banco de imagens

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