Um Milhão de Melódicos Melodiosos - Uma História da Música Popular de Porto Alegre, Capítulo XII

June 4, 2017 | Autor: Arthur de Faria | Categoria: Music, Music History, Popular Music, Musica, Música Popular Brasileira, Música Popular
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Um milhão de melódicos melodiosos – ou: os anos de transição

O melódico síntese: Norberto Baldauf - registre-se: ainda em atividade

Como o título diz, este é um capítulo de transição. De uma transição mais de alma do que de cronologia, ainda que se possa situá-la entre os anos 1950 e 60 – nem exatamente Era do Rádio nem encaixável no que nos vem à cabeça quando se fala em “Os Anos 60”. A palavra é: glamour.

Erico, ao tempo em que traçou estas linhas

São três horas da tarde e as calçadas, numa extensão de pelo menos cinco quadras, acham-se tomadas por uma multidão que se agita num vai e vem de formigas diligentes. O forasteiro quer saber se hoje é dia de feriado nacional. Eu respondo que não, que é um dia igual aos outros. (…) Quando as mulheres vêm às compras, os “moços bonitos”, com suas roupas bem cortadas, com seus cabelos lambidos e lambuzados de brilhantina, postam-se nas ruas, ao longo das calçadas, como numa fila de atiradores, e ali ficam vendo as beldades. Erico Verissimo, Lembrança de Porto Alegre, 1954 Eu me lembro do meu primeiro encontro com Porto Alegre. A família vinha de Bagé, de carro, era noite. Eu cochilava no banco traseiro. Acordei quando entrávamos na Avenida Borges de Medeiros, ao lado da Avenida Praia de Belas, e aí eu vi imponente, monumental, maior do que a Igreja Nossa Senhora Auxiliadora e a de São Sebastião juntas, mais alto do que a Ponte Seca, mais bonito do que a

casa do meu avô, o Viaduto Otávio Rocha. Depois, pela vida afora, vi outros espaços monumentais impressionantes: a Piazza San Marco, em Veneza, o Arco do Triunfo, o Coliseu de Roma, o Parlament House com o Big Ben, mas nenhum deles me fez o coração disparar como aquela visão dos meus oito anos. O Viaduto Otávio Rocha foi o meu primeiro alumbramento. Eu me lembro que o Pão dos Pobres ficava nas margens do Guaíba, lá onde a cidade acabava. Eu me lembro que a lancheria das lojas Americanas era o ponto chique da cidade. Eu me lembro que tinha até banana split. Eu me lembro que eu sabia de cor todas as transversais da Avenida Independência, do Colégio Rosário à Praça Júlio de Castilhos: Rua Barros Cassal, Rua Thomaz Flores, Rua Garibaldi, Rua Santo Antônio, Rua João Telles. Eu me lembro da Pantaleão Teles, da Cabo Rocha, American Boite, Maipu, Gruta Azul. Eu me lembro do conjunto Norberto Baldauf, da Orquestra Espetáculo Cassino de Sevilha, do Conjunto Farroupilha, dos Quitandinha Serenaders: “Felicidade foi-se embora e a saudade no meu peito ainda chora...” Lembro da tristeza da minha mãe quando emprestei o violão do meu irmão para um baiano que estava passando uns tempos aqui em Porto Alegre. Eu me lembro que o meu violão nunca mais voltou e que o baiano se chamava João Gilberto. Lembro do Hino Rosariense. Lembro que Maria Della Costa era garota da capa da revista O Globo, e tinha as pernas mais lindas do mundo. Lembro dos festivais Tom & Jerry nas manhãs de domingo no cinema Avenida, das matinês do Cinema Victória, dos cinemas Rex, Roxi, Imperial, Cacique. Lembro do mezanino do Cinema Cacique, que servia a última novidade em gelados, o Peach Melba. Lembro que todo o mundo detestava os filmes do Cecil B. de Mille, exceto o público. Lembro que no abrigo dos bondes da Praça XV podia-se beber o caldo da salda de frutas, sem frutas, apenas seus vestígios. Aquela

água era néctar dos deuses. Lembro do Vicente Rao, do Bataclan, do brique Ao Belchior, do Senhor Joaquim da Cunha, do Farolito e do China Gorda. (...) Eu lembro do Pervitin que a gente tomava para passar a noite estudando e tirava nota ruim no dia seguinte. Lembro do rodouro metálico e seu jato gelado que fazia tudo girar. Lembro do Gin Fizz, do Hi-Fi, do Alexander, da mistura de CocaCola com cachaça que levava o nome apropriadíssimo de Samba em Berlim. Lembro do footing da Rua da Praia, onde a gente exibia a camisa volta-ao-mundo, de nylon, e que diziam que iria revolucionar o vestuário masculino. Lembro das calças de brim-coringa farwest. Lembro que a deusa da minha rua era a Maria Thereza Goulart, que não era ainda Goulart. Ela morava no edifício Glória e recebia visitas misteriosas de um João, este, sim, Goulart, que era invejado por toda a garotada da Barros Cassal. Eu me lembro do tempo em que futebol se jogava com goleiro, com dois beques, três na linha-média e cinco no ataque e que, em geral, faziam-se gols. Eu me lembro do time do Inter, imbatível, nos anos 50: La Paz, Florindo e Oreco, Paulinho, Salvador e Odorico, Luizinho, Bodinho, Larry ,Jerônimo e Canhotinho. Eu me lembro de um tempo sem malícia, quando o estádio dos Eucaliptos torcia, gritando em coro: Co-Co-Colorado, Co-Co-Colorado, Co-Co-Colorado. Eu me lembro do Café Andradas, onde a gente ia matar aula e encontrava o Henrique Fuhro. O Abujamra, que anunciava tragicamente: “O homem é uma paixão inútil!.. mais um café, Macedo”. Eu me lembro do Bar Matheus, na Praça da Alfândega, da Pavesa, do Treviso, da cadeira pendurada na parede, onde sentou Chico Viola. Da sopa, do mocotó levanta-defunto do mercado Público, do sanduíche-aberto do Bar Líder, daquela mostarda amarela do

Galeto do Marreta e, por fim, do cachorro-quente da praça do Colégio Nossa Senhora do Rosário, sem favor nenhum, o melhor do mundo. (...) Eu me lembro de Ildo Meneghetti, o candidato invencível, e me lembro de sua quase absurda honestidade, quando declarou: “Meu maior erro foi ter derrotado Alberto Pasqualini, ele tinha um plano de governo e eu, não”. Eu me lembro do dia 24 de agosto de 1954. A morte de Getúlio se alastrando pela cidade, incendiando a Rádio Farroupilha, empastelando o Diário de Notícias, destruindo a sede da UDN, depredando tudo que tivesse nome americano: o Consulado, as Lojas Americanas, até a American Boite... Eu me lembro do P.F. Gastal, criador do Clube de Cinema e que me apresentou a alguns gênios da tela. Um deles, contava Gastal, se apresentou para uma plateia de apenas quatro pessoas, em Berlim, dizendo: “Sou ator de teatro, cinema, escrevo contos, programas de rádio, TV, dirijo filmes, peças, sou ventríloquo, ilusionista, mágico. Pena eu ser tantos e vocês tão poucos. Meu nome é Orson Welles”. Eu me lembro do Teatro de Equipe, na General Vitorino, do Teatro de Belas Artes, na Senhor dos Passos, e da Confeitaria Atlântica, na Praça Dom Feliciano, ponto de encontro e desencontros dos artistas do Theatro São Pedro. Eu me lembro que nós, Luiz de Matos, Ivete Brandalise, Peréio, Nilda Maria, Mário de Almeida e tantos outros, trabalhávamos como diretores, cenógrafos, figurinistas, maquiadores, contra-regras. Eu me lembro que, às vezes, eu tinha a sensação de que éramos tantos e vocês tão poucos... Mas, eu me lembro que “qualquer prazer me diverte e qualquer china me interte!” Eu me lembro que a Livraria do Globo era uma loja que vendia livros... Eu me lembro do Loxas, do Janjão, do Sunda... Mas, sobretudo, eu me lembro do Mário, aquele... Eu me lembro que: “Não adianta bater, que eu não deixo você entrar”. (...) do rum Creosotado e dos

reclames dos bondes da Carris: “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado, e, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o Rum Creosotado”. Eu me lembro, sempre, de não confundir capitão-de-fragata, com cafetão-de-gravata. Eu me lembro que até os craques da locução confundiam “alhos com bugalhos”. Ernani Behs, a máxima voz da Rádio Farroupilha, uma noite anunciou, solenemente: “Transmitindo do alto do Viadeiro Borges de Meduto...”. Eu me lembro que “Bartolo tinha uma flauta, a flauta era do Bartolo, sua mãe sempre lhe dizia: toca a flauta meu Bartolo”. “Coelhinho, se eu fosse como tu, tirava a mão da boca e botava a mão no...”. Eu me lembro que: “O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar...” Eu me lembro do Programa Maurício Sobrinho, do Clube do Guri e de uma caloura que diziam ser a nova Ângela Maria. Eu me lembro que ela morava na zona Norte e se chamava Elis Regina. Eu me lembro de uns versos: “Elis, quando ela canta me lembra de um pássaro, Mas não é um pássaro cantando, Me lembra um pássaro voando”. Eu me lembro de uns quintanares: “Olho o mapa da cidade como quem examinasse A anatomia de um corpo (É nem fosse o meu corpo). Sinto uma dor infinita Das ruas de Porto Alegre Onde jamais passarei... Há tanta esquina esquisita, Tanta nuança de paredes

Há tanta moça bonita Nas rua que não andei (E há uma rua encantada Que nem em sonhos sonhei...) Quando for, um dias desses, Poeira ou folha levada No vento da madrugada, Serei um pouco do nada Invisível, delicioso Que faz com que o teu ar Pareça mais um olhar, Suave mistério amoroso, Cidade do meu andar (Deste já longo andar!) E talvez do meu repouso...” Paulo José, ator, discurso ao receber o título de cidadão portoalegrense, em 1999 1955. Porto Alegre. Leite entregue na porta de casa, bondes, fachadas neoclássicas, confeitarias com mesas de mármore, dezenas de cinemas de calçada, um centro fervilhante de atrações diurnas e noturnas, uma ânsia de parecença com as cidades europeias mais próximas: Buenos Aires e Montevidéu. A cidade tem então 400 mil habitantes, 25 mil deles operários – mais 10 mil comerciários e 2.500 profissionais liberais. O trânsito – uau! – já tem 14 mil veículos circulando. Indo para 89 (!) bibliotecas, 137 igrejas, 35 cinemas, 333 escolas primárias, 36 secundárias, 31 clubes de futebol (!!), 47 hotéis e 10 exemplares da novidade do momento: a boate. Outra novidade, chamada supermercado, causa sensação. 1955. Ano de nascer a Feira do Livro, em plena Praça da Alfândega, point absoluto. Caía de madura uma empreitada na área – afinal, como já vimos, desde os anos 1930 – e até os 60 –, a portoalegrense Editora Globo era referência nacional, com tradutores da pesada, como Mario Quintana, e editores do porte de Erico Verissimo.

Publicando tanto livros (inclusive de Erico e Mario) como a prestigiosa Revista do Globo. Era a casa de toda uma geração de escritores que se reunia fisicamente às voltas de seu prédio, na Rua da Praia (não chame de Rua dos Andradas!), quase esquina com a Borges de Medeiros.

Não chame de Rua dos Andradas!

A feira surgiu da empolgação de Say Marques, diretor do Diário de Notícias, que voltara do Rio impressionado com o fato de livros serem vendidos a céu aberto na Cinelândia. Antes disso, em 1952, Henrique Bertaso – o mítico diretor da Livraria do Globo – tentara angariar parceiros livreiros pra fazer em Porto Alegre algo parecido com a Feira do Livro de Lisboa, que acabara de visitar.

Em fotos do Leo Guerreiro, registros das duas primeiras edições da Feira

Cruzando ambas vontades, a coisa engrena quando o Diário de Notícias resolve encabeçar o projeto. Dia 16 de novembro tá lá ela: 14 barracas em torno da estátua do General Osório, Praça da Alfândega, à sombra dos jacarandás. Nunca mais parou. Em 1963 é fundada a Câmara Rio-Grandense do Livro; em 1965 já são 52 barracas e, a partir dali, a cada ano é escolhido um patrono, sempre entre escritores já mortos – preferencialmente gaúchos (levou mais duas décadas pra chegarem aos vivos). Porto Alegre tinha então apenas três rádios (Gaúcha, Farroupilha e Difusora), mas 14 jornais e 31 revistas, algumas delas de circulação nacional. Brizola era o prefeito (de 1956 a 1958) e, logo em seguida, sairia da prefeitura para eleger-se governador.

O começo da lenda

Ligando a província ao mundo, em 1940 havia sido inaugurado o Aeroporto Salgado Filho. E, ainda que Porto Alegre fosse proporcionalmente uma das capitais brasileiras que menos utilizaria o transporte aéreo nessa época, caminhos foram encurtados para cidades como Uruguaiana ou Bagé – rotas aéreas hoje praticamente abandonadas, onde intrépidos músicos iam tocar nos finais de semana, saindo da Capital em qualquer coisa que voasse: de DC-3 até cargueiros ou teco-tecos remanescentes da Segunda Guerra. Em meados da década de 1960, por exemplo, o Conjunto Melódico Norberto Baldauf comemoraria 70 mil quilômetros voados dentro do Rio Grande do Sul – sempre de VARIG. Até pra Imbé (praia do litoral norte, a míseros 120 km de distância da capital) o pessoal ia de avião.

Varig, varig, varig...

Em 1957 é inaugurada a rádio que vai ser uma espécie de portavoz de todo esse espírito: a Guaíba – que seguiria no mesmo mood até mesmo na passagem de AM pra FM, em 1980 (mas aí o sabor já é de nostalgia). Em sua inauguração, no sábado 20 de abril, dois grandes diferenciais saltaram aos ouvidos nos primeiros segundos de transmissão: a primeira coisa que se ouve não é um grupo tocando ao vivo num auditório solene, mas um disco. E um disco da então novidade Frank Pourcell e sua orquestra. Estava instituído o padrão “Música da Guaíba”, que regerá a emissora até seu fim, e onde os melódicos terão papel fundamental. Graças a dois poderosos aliados: os programadores Osmar Meletti e Fernando Veroneze. No ano seguinte, enquanto a Farroupilha incrementa sua área de dramaturgia e chega à espantosa cifra de 11 radionovelas diárias, na Difusora Glênio Reis vai inaugurar uma nova profissão: disk-jockey – ou, abreviado: DJ. Um cara que animava e descontraía, pondo discos pra tocar. O programa que inaugura o conceito se chama justamente Falando de Discos, e vai ao ar de segunda a sexta, das 9h30 às 11h30. Logo Glênio criaria outro, só de raridades, o Sherlock do Disco. E aí, em 1959, o sucesso já é tanto que ele é contratado pela Farroupilha pra levar pra lá a novidade. Rapidamente se torna o campeão de cartas do rádio local. Em 65, tá na TV Gaúcha. E aí, na virada pros anos 60, já um senhor, assume o Programa da Pesada,

que vai apresentar aos ouvintes de rádio de Porto Alegre gente como Led Zeppelin, Steppenwolf e Jimi Hendrix.

Glênio Reis: taí um cara que prefere ser uma metaforfose ambulante...

Vocês tão entendendo o quão rápido o mundo estava mudando? Em 1959, pleno clima JK, Porto Alegre é a primeira cidade do país a ter Plano Diretor, definido por lei municipal: pra organizar a coisa, construam-se grandes artérias radiais, avenidas perimetrais, aterremse trechos da orla do Guaíba e construa-se a ponte que vai ligar a cidade à metade sul do estado. O prefeito era o esquecido Tristão Sucupira Vianna (como esqueceu-se um nome desses?!??!).

Brizola passa a bola para Tristão, que não se anima muito...

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Cheguemo-nos mais pro lado da música. Na indústria, a grande novidade é o long-playing. O primeiro LP brasileiro sai pela gravadora Sinter em 1951. O formato é de 10 polegadas e oito músicas, e assim seguiria até o final da década. O Brasil era o terceiro país do mundo a estrear a novidade – antes mesmo do Reino Unido, logo depois da França. A invenção aumentava em quatro vezes a capacidade de se ouvir música num mesmo objeto. A tecnologia do microsulco promovia o milagre. Ela tinha sido criada em 1944, nos Estados Unidos, pela equipe do engenheiro Peter Goldmark, da gravadora CBS. Era a primeira revolução na música gravada desde a passagem do sistema mecânico pro elétrico, 20 anos antes. A Philco se encarregou de lançar o aparelho pra tocar a novidade. Além do som, muito melhor, e da maior capacidade de “armazenamento de informação” (como se diria hoje), o LP quebrava muito menos e as agulhas de seus tocadiscos duravam muitíssimo mais.

A mesma quantidade de música na pilha da esquerda, de 78rpms, e da direita, de LPs de 10´

Possivelmente o quinto LP a sair no país – já em 1953 – foi do Conjunto Farroupilha, quando a novidade começava a se popularizar. O formato de 10 polegadas e oito faixas dura até caras como João Gilberto inaugurarem – em 58 – o 12 polegadas: agora eram seis músicas de cada lado (claro que quando se fala em “músicas” entenda-se a canção popular de três minutos que, como vimos capítulos atrás, era o padrão do produto discográfico desde os anos 1910). Como todo objeto de vanguarda, o LP não tornou imediatamente obsoleto seus antecessores: até o final dos anos 1960, 57% das vendas seguiriam sendo de compactos – simples, com duas músicas (33, 45 ou 78 rpm); ou duplos, com quatro –, bem mais baratos que o LP). E o stereo só iria se tornam efetivamente popular no começo dos anos 70.

O mítico LP de estreia do Conjunto Farroupilha

Correndo por fora vinha o conceito de alta fidelidade: high fidelity ou Hi-Fi. As eletrolas já tinham substituído os gramofones e, desde o final dos anos 40, em vez de na imprecisa cera, a música passou a ser gravada diretamente em fita magnética. Tudo isso junto tirava do terreno da utopia a possibilidade de se escutar, em gravações, sutilezas tímbricas que até então passavam batidas. Por exemplo: a soma dos timbres da guitarra (ou violão elétrico), vibrafone e acordeom, marca registrada dos conjuntos melódicos. ….Vamos somando ingredientes. Paralelo a essa sofisticação técnica, do final dos anos 1940 até o final dos 50, o baixo-astral musical brasileiro foi caindo a níveis subaquáticos. Pra fazer sucesso fora do carnaval, uma canção tinha de ter, antes de qualquer outra coisa, dor. Sofrimento. Desgraça. Não por acaso, era o tempo áureo de Lupicínio Rodrigues. Também não por acaso parte da juventude passou a procurar uma saída mais ensolarada nos discos de música americana, italiana ou francesa… Essa mesma juventude só poderia ver como a salvação de suas almas o surgimento do rock e da Bossa Nova, na segunda metade da década de 1950.

Diga: Lupicínio combina com isso?

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Mas um grande perigo se aproximava. Roberto Dillemburg, Os Anos Dourados do Rádio em Porto Alegre: Sociólogos, psicólogos, professores, jornalistas, donas de casa e sacerdotes recomendavam prudência com o excesso de cenas apresentadas na pequena tela luminosa do aparelho e indagavam até que ponto era lícito a invasão das imagens em nossa própria casa, para, como uma forma quase analgésica, nos induzir a virar número consumidor de produtos e um agente passivo diante de histórias e situações até então guardadas como verdadeiros tabus. Junto com a decadência do rádio, a ascensão da TV e a rápida modificação dos costumes sexuais das moçoilas casadoiras, vem o consequente ocaso dos cabarés. Eles entram em concorrência com as boates, que tinham a vantagem (ou desvantagem, dependendo do ponto de vista) de receber casais, e não apenas homens em busca de sadia diversão com profissionais de vida difícil. Até meados dos anos 1960, foram decaindo uma a uma as casas que povoavam a Voluntários da Pátria – popular “Volunta“ –, desde o Mercado Público até o começo da Zona Norte: Castelo Rosado, Mocambo, Tropical, Saint Claire, a boite da Mãezinha. A última a manter algum glamour foi o American Boite, com atrações musicais como a típica de Juvenal da Paula Guedes e o jazz do Swing. Mais as garotas internacionais, claro. O que salvava o emprego dos músicos é que nunca se dançou tanto. Também, nunca foi tão necessário ao ser que pretendesse empreender relação com um espécime do sexo oposto saber o ritual das danças de acasalamento. Mesmo que não fosse muito adiante, era uma possibilidade de sentir – de graça! – o calor de outro corpo junto ao seu. De preferência o de uma (ah, fetiche absoluto!) nor-malis-ta. E pra tirar a moça pra dançar já não precisava casar com ela depois. Bailes em clubes, salões, sociedades, reuniões dançantes e soirées acompanharam o fim do reinado das orquestras, cedendo terreno para a república dos melódicos. Para os instrumentistas acostumados a sentar atrás de estantes de partitura, esses eram grupos formados por músicos menores. A maioria dos integrantes dos

melódicos não lia música, e muita gente então só chamava de “músico” quem lesse. No começo eram ainda vistos com a complacência com que se trata um mal necessário. Afinal, ajudavam as orquestras, tocando nos intervalos dos bailes – que, por contrato, duravam cinco horas ininterruptas (geralmente das 23h às 4h). Podiam até ser músicos da própria orquestra que ganhavam um extra acumulando função. Mas todos – orquestras e melódicos – teriam um tardio ataque de solidariedade quando se deram conta do inimigo em comum: os temíveis cabeludos, com seus conjuntos de guitarra! Pobres coitados que, registre-se, acabaram levando a culpa que precisava ser depositada em alguém. Mas isso já foi no fim daquele mundo, quando os anos 60 fechavam as cortinas. Vamos com vagar. *

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É do período entre 1955 e 1970, de transição entre a Era do Rádio e o começo dos festivais universitários gaúchos, que falaremos neste capítulo. Ali teve seu reinado um tipo de formação instrumental que floresceu no Estado de forma epidêmica: o conjunto melódico. Pelo Brasil inteiro se chamavam com esse nome grupos pequenos de músicos que não eram nem uma orquestra, nem um regional. Por exemplo: em 1952, a gravação de Nunca (Lupicínio Rodrigues) por Dircinha Batista, declara no selo do 78 rpm: Acomp. de Conjunto Melódico. E o que se ouve ali, além da voz de Dircinha, é uma combinação de violino, clarinete, guitarra, piano e contrabaixo. Fosse nos anos 1920 ou 30, um grupo médio como esse teria alguns sopros e seria chamado de… jazz. O jazz do fulano, o jazz do sicrano. Tivemos um capítulo sobre isso. Mas, agora, mais do que a instrumentação – que tinha lá suas variações – o que os identificava essasmiddle bands era a execução contida, cool, sofisticada e, para muitos, precursora da Bossa Nova (se bem que, de tanto que se fala nisso, às vezes parece que a Bossa Nova teve mais precursores do que bossanovistas…). Mas sigamos: Salvo engano, nenhuma outra cidade teve tantos agrupamentos de cinco a oito músicos tocando suavemente – e em diferentes combinações – acordeom, vibrafone, guitarra, piano, contrabaixo,

bateria e percussão. Não se tem uma lista exata, mas pode ter passado de meia centena o número de grupos assim em Porto Alegre. Numa cidade então com meio milhão de habitantes, isso dá um melódico para cada 10 mil cidadãos. Uma digressãozinha técnica: acordeom, vibrafone, guitarra e piano são instrumentos que podem fazer tanto a melodia – uma única voz – quanto harmonia (várias vozes instrumentais simultâneas). E muitos arranjos eram feitos basicamente de vozes harmonizando a melodia e o ritmo, sem um instrumento específico levando a “base”. A lógica, portanto, seria batizá-los de conjuntos harmônicos e não melódicos. Mas tudo bem, porque usavam muito os uníssonos (vários instrumentos tocando a mesma melodia ao mesmo tempo), num resultado que destacava a melodia da música e definia a sonoridade sem precisar muito volume. Traduzindo: dava pra dançar e falar ao pé do ouvido, coisa bem mais difícil tanto com as antecessoras big bands quanto com as futuras bandas de guitarra. Essa combinação, reconhecível a quilômetros de distância, garantia um baile chique, mesmo tocando os standarts mais batidos da música pra dançar da época: boleros, mambos, sambas-canção, canções italianas, francesas ou americanas. Pra completar, um detalhe nada desprezível. Eles tocavam, basicamente, música instrumental. Gênero que, nos primeiros anos da década de 1960, vai ter um surto nacional de popularidade como não se via desde ao anos 1920. Seriam dezenas de grupos – basicamente de samba-jazz – como o Zimbo Trio, o Tamba Trio, o Rio 65, Meirelles e os Copa 5 etc., etc. Surto que os melódicos gaúchos precedem em quase 10 anos. E ainda há mais uma sincronicidades: os primeiros grupos do gênero são contemporâneos à estada porto-alegrense de uma figura muitíssimo peculiar. Simplesmente o cara que criou a mesma Bossa Nova que eles adotariam, prioritariamente, na década seguinte: João Gilberto. *

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João Gilberto pouco antes de ir morar em Porto Alegre. Reparem: é o único buço no meio dos bigodões (é o mais de cima).

Joãozinho da Bahia, como era conhecido, passou a primeira metade de 1955 (janeiro a agosto) hospedado no chiquérrimo Hotel Majestic, em Porto Alegre. Fora levado para a cidade por seu amigo gaúcho Luiz Villas Boas Telles Ferreira (Porto Alegre, 23/3/1915, Porto Alegre, 11/9/1984). A Bossa Nova ainda estava a três anos de distância. Telles era um dos vocalistas do conjunto vocal Quitandinha Serenaders, de quem já falamos. Batizado originalmente como Quarteto Quitandinha e criado pelo produtor Carlos Machado para ser atração fixa do hotel-cassino Quitandinha, em Petrópolis, Rio, dos seus quatro integrantes, três eram gaúchos: Telles e os irmãos Paulo e Alberto Ruschel. O outro era o grande violonista e compositor Luiz Bonfá. João quase entrou pro Quitandinha, na época em que ainda imitava Orlando Silva e/ou Lúcio Alves (só não rolou porque, como conta Ruy Castro no seu Chega de Saudade, teve um surto de lucidez e não conseguiu aceitar as camisas floreadas). Desde então, Telles – 15 anos mais velho – virou uma espécie de pai adotivo de Joãozinho. Justamente na fase mais difícil de sua vida.

A única foto que registra João na sua meteórica passagem pelo Quitandinha. Ele é o que tá acocado.

Com sua personalidade, digamos, única – e bastante afeito a uma certa erva do norte –, o baiano de 24 anos não estava se dando bem no Rio de Janeiro. Pra falar bem a verdade, nesse momento Telles não era seu melhor amigo. Era quase que o único. Depois de ter sido convidado a se retirar de várias outras casas onde morou de favor, era na de Luiz que Joãozinho acampara. Como o Quitandinha tinha acabado, ele resolve ir para Porto Alegre, levando consigo o “filho” adotivo (e vai trabalhar onde? Na Guaíba, claro). Conhecendo bem a figura, prefere lhe pagar um quarto no Majestic a levar o carinha pra dentro de casa. Algo lhe dizia que havia ali um imenso talento bruto que só precisava de paz e sossego para depurar sua inquietude e canalizá-la – para quê, ninguém sabia. Evidentemente, nos oito meses que durou seu idílio portoalegrense, João não arrumou nenhum trabalho. Com total apoio do padrinho, passava infindáveis horas enfurnado no hotel, testando novos acordes e batidas pra seu violão. Mas cantou num programa de auditório da Rádio Gaúcha, fez um show no Clube do Comércio, algumas apresentações no bar Farolito (na Rua da Praia, perto do Majestic) e até atacou de crooner em pelo menos um baile, na cidade serrana de Bento Gonçalves. Isso sem falar no ponto batido com assiduidade no Treviso, bar do Mercado Público, ou nas horas que passava nas cabines das lojas de disco do centro da cidade. À noite, honrava o convite que havia recebido pra integrar o seleto Clube da Chave. Ou seja: não sobrava tempo pra trabalhar. No Clube, idealizado pelo jornalista, músico e compositor Ovídio Chaves, João já tocava e cantava de um jeito diferente. E também já não admitia que conversassem enquanto ele se apresentava. Mesmo

assim, e por mais que o pessoal fizesse silêncio, ele praticamente nunca cantou uma música até o fim – a única exceção era Solidão, composta no ano anterior por seu amigo Tom Jobim, então um total desconhecido. Sensibilíssimo, dava o pouco dinheiro que ganhava pro primeiro mendigo que visse pela frente, e compensava todas suas idiossincrasias com uma queridice e um charme inigualáveis. Não era só comida e bebida de graça que nunca lhe faltavam: foi dos amigos do Clube que ganhou seu primeiro violão com cordas de nylon (novidade essencial para a Bossa Nova, escolhido na loja de instrumentos pelo guitarrista e violonista Raul Lima, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf). João agredeceu muito, mas claro que voltou depois na loja pra escolher outro violão de nylon mais do seu agrado. Também dava récitas informais em casas de família – casas escolhidas por pura amizade ou por alguma peça com acústica privilegiada. Em ambos os casos, a cozinha da jornalista e professora Boneca Regina parecia perfeita. Era seu retiro mais assíduo, onde passava horas tocando a mesma música (sim, ele já fazia isso). Foi Boneca Regina que teve a ideia de que aquele baiano adorável e meio doido ia se dar muito bem com outro amigo seu, igualmente doce e excêntrico: o pianista e compositor erudito Armando Albuquerque. João e Armando passaram longas tardes de trocas musicais na casa do segundo, no bairro da Cidade Baixa. Um vinha de Dorival Caymmi, o outro rebatia com Debussy. Um ensinava um truque no violão, o outro dava informais aulas de harmonia. E no andar da carroça tudo se ajeitava às maravilhas. Segundo o discípulo maior de Armando – o compositor erudito, pianista e professor Celso Loureiro Chaves – é certo que, mais do que trocar experiências, João estudou com Albuquerque: embora seja difícil precisar o quê. Armando, compositor idiossincrático e personalíssimo, jamais se filiou a escola alguma e sempre teve um estilo inconfundível. Como João. Mas as lendas em torno do baiano e suas excentricidades – como deixar cascas de bergamota (tangerina) no quarto, pras formigas virem lhe fazer companhia – começaram a crescer e ser apontadas com riso. E aí Telles achou que tava na hora de aconselhar João a ir passar uns tempos na casa da sua irmã mais velha, em Diamantina, Minas Gerais.

Foi o que ele fez. Pouco se viram depois. Mas mantiveram até a morte de Telles uma amizade estranhíssima: João retribuía a gentileza de 1955 hospedando o amigo em hotéis luxuosos mundo afora pra passarem uns tempos juntos. Pagava a conta antes… e muitas vezes não aparecia. É bastante provável que João Gilberto tenha achado em Porto Alegre e na convivência com seus músicos algumas das respostas que procurava. Assim como também é possível que algumas das sugestões musicais de João influenciassem o fato de que se ouviria e se faria muita Bossa Nova no Rio Grande do Sul nos anos 1960, quando tanto rádios quanto bailes teriam no novo ritmo a peça de resistência do seu repertório. *

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Falta falar do acordeom, que passou a ser muitíssimo usado, mas num contexto totalmente alheio ao mundo dos vanerões, xotes ou outros regionalismos locais. É preciso registrar que o instrumento era a grande febre nacional dos anos 1950. Muito por causa de dois caras: de um lado, o talento do gaúcho Chiquinho do Acordeom, que fazia miséria em discos e em rádio – na Nacional do Rio de Janeiro, brilhando tanto nos grupos de Radamés Gnattali quanto com seu Trio Surdina (mais sobre Chiquinho no capítulo sobre Radamés. De outro, Mário Mascarenhas. O cara fabricava acordeons em larga escala, editava métodos para o ensino do instrumento e ainda liberava franquias pra escolas que rapidamente se espalharam por todo o país. Só em 1960 foram formados desse jeito nada menos do que 25 mil novos acordeonistas!!! A cada final de ano, um concerto no Teatro Municipal do Rio de Janeiro reunia, religiosamente, mil acordeons. E assim a coisa ia. Dominguinhos deu um depoimento muito esclarecedor sobre ele, e ainda sobre a cena toda: Mário Mascarenhas foi o mais importante professor que tivemos de acordeão no Brasil. (…) Não tinha uma cidade que não tivesse uma academia Mário Mascarenhas. Quem quiser vai dizer que ele não tocava bem e que não era bom professor, mas ele tinha muitos professores bons e o negócio era todo ele. Ele era de uma força incrível para o instrumento. A maioria das pessoas na minha época

aprendeu com ele. Toda mocinha tocava e era acordeão azul, verde, rosa, amarelo, roxo. Isso nos anos 50, auge do acordeão no Brasil. Em 60, 61, quando apareceu a Bossa Nova, os Beatles, o violão passou a ser o instrumento central. O órgão saiu da igreja e foi para o iê-iê-iê e quem tocava acordeão passou para o órgão. Ninguém queria mais saber da sanfona, todo mundo colocou a sanfona embaixo da cama. Ali foi a morte do acordeão.

O famigerado ´método mascarenhas´ e um dos infinitos recitais de final de ano com o ataque dos acordeons assassinos!

Mas, mais que Mascarenhas ou Chiquinho, a influência maior pra toda essa turma de músicos era de um mestre que luzia naquele momento: o acordeonista americano Art Van Damme. Art tinha o melódico matriz dos sonhos dourados da maioria de seus insuspeitados discípulos gaúchos: acordeom, vibrafone, guitarra, contrabaixo e bateria. Ele era, mais do que todos, o referencial do instrumento para aquela geração que se formava. E não era pra menos: era um virtuose e tanto. Desde o final dos anos 1940 seu grupo soava ao mesmo tempo absolutamente sedutor e diferente de tudo.

U-a-u. Martini Time, com garotas de biquíni!

Bem, nem tudo. Lembrava um pouco a outra grande referência dos melódicos: o pianista cego inglês George Shearing, líder de um grupo com a mesma formação de Van Damme, só que trocando o acordeom pelo piano. Ambos faziam uma espécie de jazz easy listening: meio pop, meio cool, meio light. Tudo baixos teores.

Mais compostura... afinal ninguém é inglês impunemente

Zuza Homem de Mello, via e-mail (eita texto elegante!):

No inicio dos anos 50 no Brasil, dois conjuntos americanos estabeleceram o timbre considerado modelo para o que se tocava em bares e clubs, cocktail music e dança. O primeiro foi o quinteto do acordeonista Art Van Damme (que foi ídolo de Dominguinhos, Sivuca) e combinava acordeom (num registro de timbre diferente da sanfona nordestina brasileira e que se tornou o padrão dos acordeonistas e grupos do gênero no mundo), vibrafone e guitarra. Pode-se teorizar que esse timbre poderia ser uma herança de outro conjunto anterior, o trio The Three Suns, que combinava acordeom, guitarra e órgão de Hammond e era muito muito tocado nos bailinhos animados com discos de 78 rpm em casas de família paulistanas. O outro conjunto mais influente no Brasil foi o quinteto de George Shearing que também estabeleceu um padrão de sonoridade ao combinar piano (tocado em block chords), vibrafone e guitarra. A sonoridade de ambos dominou a musica dos clubs e bares do Rio, São Paulo e logicamente Porto Alegre. (…) Tudo isso acontece nos Estados Unidos e no Brasil por volta de 1952 e dura vários anos. Foi o que detonou a chamada onda do acordeom nas 3 cidades: Rio, São Paulo e Porto Alegre. Cenário armado, cortinas descerradas. Vamos aos melódicos.

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O pioneiro foi o Conjunto de Aderbal D’Ávila, pianista fera da Rádio Farroupilha. Como bem lembra o acordeonista do grupo – o mesmo Tasso Banguel do Conjunto Farroupilha – não tinha contrabaixo, já que, nestes tempos pré-amplificação, ninguém ouvia o baixo mesmo… Mas em compensação o quarteto se completava com Porto Rico na bateria e Raul Lima na guitarra. Já ouviram falar nele, ouvirão muito mais: Raul – que segue na ativa, beirando os 90 anos – seria sócio-fundador do mais famoso de todos os melódicos, o… …Conjunto Norberto Baldauf.

Baldauf, Baraldo, Raul, Léo, Canella: O Quinteto Fantástico

O mais imitado e incensado dos melódicos, não por coincidência, é também seu último sobrevivente. E segue liderado pelo pianista Norberto João Baldauf (Porto Alegre, 10/8/1928), firme e forte em pleno século XXI, mais de dois mil bailes depois. Norberto estudava piano erudito desde os quatro anos de idade, quando sua mãe morreu e ele foi morar com a tia-madrinha, que era professora do instrumento. Mais tarde, passou pelo mestre Adolph Fest (pai do grande pianista cego – de quem falaremos – Manfredo Fest) e chegou a fazer uma especialização em Mozart na Europa: mais especificamente, no Instituto Haydn, Alemanha. Só que Mozart não era o lance. Seu lance era, sim, sambas, valsas e boleros – tendo como ídolo o espalhafatoso pianista Carmen Cavallaro. Sua vida profissional de músico começara na Casa Beethoven, especializada em venda de partituras, e que funciona até hoje (em outro endereço). Ele ficava ali, a postos. Na dúvida entre quais partituras levar, em vez do freguês ficar catando notas pra decifrar cada pentagrama, dava pro pianista da casa tocar (profissão então nada rara, mas que pagava pouco e exigia muito: leitura de partituras à primeira vista era essencial). Aí em 1948 pinta uma vaga na gloriosa Orquestra de Ernani & Marino, big band que trabalhava na Rádio Difusora. Eram 13 músicos, liderados pelo saxofonista Marino dos Santos e pelo trompetista Ernani Oliveira. Na guitarra, um velho colega do Colégio

Julio de Castilhos: o mesmo Raul Lima com quem seguiria tocando pelos 64 (em 2012) anos seguintes. Raul, porto-alegrense nascido em 23 de fevereiro de 1924, era guitarrista desde os 17 anos. Foi nessa data, 1941, que construiu com ajuda de amigos que entendiam os mistérios da eletricidade um pioneiro instrumento elétrico – o que o coloca ao lado de Antoninho Gonçalves como o primeiro guitarrista gaúcho, um dos primeiros do Brasil. Ainda antes disso, entrando na adolescência, tinha estudado violino e teoria musical com o mítico Octávio Dutra (mais sobre Octávio no capítulo sobre ele). Pois tudo andava bem com Baldauf até que ele é convocado pelo pai pra ajudá-lo… na farmácia! Sim. O pai, imigrante suíço, linha dura, trabalhava de sol a sol como farmacêutico. E pior: acreditava em condenação hereditária. Norberto chega a abandonar a música – não que não gostasse de farmácia, afinal faria carreira acadêmica na área. Mas aquela aposentadoria musical precoce era inconcebível. (Curiosa coincidência farmacêutica: Túlio Piva, o sambista lançado pelo futuro grupo de Baldauf, também dividiu por anos o expediente de boêmio com o balcão da Drogaria Piva).

Túlio, Baldauf e o homem da gravadora.

Quem o salva é justamente a irrecusável bolsa pra especializarse em interpretação de Mozart, em Munique! Aí ele passa todo o ano de 1952 na Alemanha. Só que em vez de focar na carreira de concertista, prestava cada vez mais atenção ao jazz americano e europeu. Principalmente… adivinha? Sim, George Shearing e Art Van Damme. Norberto saíra de uma cidade onde quem mandava eram as orquestras (em formato de big bands) e se deparara com uma febre de grupos pequenos, camerísticos. Ficou doido, num insight muito parecido com o que tivera, mais ou menos à mesma época, Astor Piazzolla – também vindo de um mundo de orquestras, e em uma temporada europeia de estudos. Só que Astor se encantara com o octeto de Gerry Mulligan e Norberto, com esses sons mais simples e suingados que eram, em última instância, parte do pop da época. Na volta da Europa, cheio de moral e novas ideias, é recontratado pela Rádio Gaúcha, mas com mais status: agora é o titular de Um Piano Dentro da Noite, programa diário, das 23h30 à meia-noite. Reencontra então Raul Lima e se aproxima de outros dois nomes de prestígio na emissora: o acordeonista Victor Canella e o contrabaixista Léo Cunha Velloso (Porto Alegre, 14/12/1924 – 5/3/1979). Léo fora colega de Norberto e Raul no Julio de Castilhos e, no futuro grupo, acumularia as funções de músico, mestre de cerimônias e empresário (eram dele os cartões de visita em nome do conjunto, com a frase Uma garantia para sua festa). Já o suave e virtuoso Canella, catarinense de Meleiro (16/10/1929), conhecera Norberto numa temporada do pianista na praia gaúcha de Torres. Durante toda a carreira do grupo (e até morrer, em Porto Alegre, em 14/8/2000), foi o único da turma a viver só de música – Raul era oficial administrativo da Secretaria de Educação e Léo, escriturário do Banco do Brasil. Canella, acordeom; Raul, guitarra; Norberto, piano; Léo, contrabaixo: estava montado o quarteto. Um quarteto imediatamente disputado pelos cantores da emissora para acompanhá-los com maestria e inovadora delicadeza. Logo se animam para o inchamento de sua máquina administrativa: um baterista seria essencial para tornar a sonoridade do grupo mais viável em bailes e eventos maiores. O homem ideal

para o posto era uma fera de um metro e meio de altura chamada Wilson Baraldo (Porto Alegre, 18/12/1924 – 2/9/1994). Só que Baraldo já era um nome conhecido, tarimbado em várias orquestras, jazz e pequenos conjuntos. Tocava também banjo, violão e piano e, naquele momento, alternava-se como baterista entre os prestigiados American Boite e Boite Marabá – onde integrava o conjunto de um sujeito de que ainda falaremos muito: Breno Sauer. O problema maior era o American, elegantérrimo cabaré da rua Voluntários da Pátria, onde o contrato ainda estava longe de vencer. Ou seja: me querem? Então esperem. Resolvem esperar, e entra de interino Guttemberg Porto, o Porto Rico (Rio Grande, 24/1/1924, São Paulo, 17/4/1973). (A família Baraldo era um celeiro de bons músicos: Cadiz Baraldo tocava violino e piano pelas boates e casas noturnas portoalegrenses desde a década de 1940. Nilton Baraldo era guitarrista – em bom porto-alegrês um baaaita guitarrista! E havia ainda Sumerval Baraldo, baterista virtuose. Dá pra conferir o desempenho dos últimos dois no disco Seleção Dançante, de Primo & Seu Conjunto – 1957, Gravadora Mocambo, facilmente achável na internet). Aí, na tardinha do dia 17 de maio de 1953, pode-se dar como inaugurada uma era: estreia, no Centro Acadêmico da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, um quinteto de charmosos rapazes. Todos, sem exceção, com os clássicos bigodinhos a Clark Gable. Elegantemente distribuídos ao redor de uma bateria cujo bumbo ostentava o nome: Conjunto Melódico Norberto Baldauf.

A vasta - e esquecida - discografia baldaufiana, nunca relançada.

O quinteto passa a tocar pelos bailes da cidade e, a partir de 1955, conciliam as férias de seus empregos “oficiais” com temporadas de verão na badaladíssima praia uruguaia de Punta Del Este, onde tocam para o jet set internacional – e dali seguem para Montevidéu, Buenos Aires e várias cidades do interior da Argentina. Tournées armadas geralmente em tempos de Carnaval, onde eram apresentados como Norberto Baldauff y Sua Orquestra Carioca ou mesmo Norberto Baldauff y Conjunto Brasileño, la maravillosa sensación de Rio (!!!). Pouco antes disso, uma curiosa carta aberta publicada em junho de 1954 pelo radialista Paulo Deniz, responsável pela coluna Discos no jornal Folha da Tarde, rende um pequeno milagre.

Sem mais nem menos, a linhas tantas, Deniz escreve: Srs. Diretores de Gravadoras Brasileiras. (…) Se baixarem os olhos ao extremo sul do país, encontrarão cinco rapazes reunidos num conjunto melódico, dotados de forma brilhante e classe na arte de “fazer música.(…) Esta mesma terra, que vos cedeu Radamés Gnattali, Edu, Chiquinho (acordeom), Dante Santoro e outros instrumentistas de renome, tem “em casa” mais estes, esperando sua oportunidade, pois, talento e virtudes não lhes faltam. Pensado aos olhos de hoje, um ato querido, mas completamente ingênuo. Pasmem: deu certo. Em poucos dias, duas gravadoras se interessaram em ver qual era. Acabam escolhendo a Odeon, sonho dourado daquele momento. O contrato só seria assinado no ano seguinte, mas aí estavam no Rio, nos estúdios da gravadora cujo diretor artístico e “regente de gravações” (nome que então se dava ao produtor) era um jovem promissor chamado Tom Jobim. E cujo time tinha nas cabeças André Midani e Aloysio de Oliveira. Essa seria a primeira das 12 viagens que fariam ao Rio de Janeiro para gravar. Vão e registram material para cinco 78 rpm a serem lançados pela Odeon entre agosto de 1955 e julho de 1957. É importante marcar o que representava, para um grupo gaúcho dos anos 50, ser contratado por uma gravadora. O Conjunto Farroupilha era o único a receber essa honra naquele momento. E nunca é demais lembrar que não havia estúdios em Porto Alegre desde que a Casa A Electrica quebrara, 30 anos antes. Quando voltam dessa primeira temporada carioca são festejados pela mídia como heróis desbravadores. Todos os 78 rpm vendem bem, recebem resenhas elogiosas no centro do país e garantem contrato pra mais dois compactos e um LP – naquele formato de então: 10 polegadas, 23 minutos de duração. Os rapazes davam pé. De valsa, no caso, que a etiqueta embaixo já esclarecia: Para Dançar.

O primeiro LP. Para dançar... com elegância.

O álbum Ritmos da Madrugada (1955) chega ao número um de vendas da Odeon. Tem, além de Felicidade Foi-se Embora (sic), de Lupicínio Rodrigues, duas pérolas do único compositor do grupo, Canella: Baião na Espanha e Duas Rotações. Canella compositor chegaria a ser gravado pelo maior acordeonista do Brasil, o também gaúcho Chiquinho do Acordeom. E sobre isso, uma curiosidade: quem era o número dois? Sivuca. O mesmo Sivuca que, certa vez, no programa Fantástico da Rede Globo disse que o maior acordeonista do Brasil morava em Porto Alegre e se chamava… Canella. O mesmo cara que recebeu ao longo da vida muitas propostas pra gravar discos seus, mas nunca topou, porque dizia que se sentiria traindo a trupe. É ele quem alça os voos mais altos nos poucos improvisos registrados em discos do conjunto. Afinal, Norberto mesmo se define: de vez em quando, me animo a fazer jazz, improvisar, etc., mas não é o meu feitio. Gosto mais de pegar uma melodia bonita e enfeitar aquela melodia. Raul também fica em volta do tema, mais variando do que recriando. Já Canella viajava, num fraseado bastante particular – nem completamente jazz nem completamente brasileiro. Um mestre.

Deu certo? Repete a idéia, melhora o time e lança um volume dois.

Ritmos da Madrugada Nº 2, do ano seguinte, terá (ao lado de Caymmis e Arys) uma versão suingada da folclórica Balaio e dois belos choros “locais”: Capricho em Ré, do pianista Délcio Vieira e mais uma pérola de Canella: Um Choro na Penumbra. Além, é claro, da primeira gravação de Tem Que Ter Mulata, do sambista Túlio Piva, recém-chegado de Santiago do Boqueirão e apresentado a eles pelo amigo em comum Paulo Deniz (vale ler a história no capítulo sobre Túlio). Das nove músicas, quatro eram de autores gaúchos. E foi mais um sucesso, mais um disco no Nº1 da gravadora Nº1. Cate aí a versão deles para Longe dos Olhos, de Cristóvão Alencar e Djalma Ferreira, e diga se aquilo não é 95% Bossa Nova. Na levada de

Baraldo com as vassourinhas, nas variações, no suingue quebrado da guitarra de Raul, no acordeom de Canela, cujas síncopes antecipam o futuro violão hard-bossa de Baden Powell… No meio disso, tanto Midani quanto Aloysio insistem pra que eles se mudem para o Rio ou, no mínimo, São Paulo. Não topam: era família, trabalho garantido, empregos “oficiais”, muita coisa pra arriscar. Nem os 100% músicos Canella e Baraldo se empolgam com a ideia. E também era muita gente: desde Ritmos da Madrugada Nº 2, o grupo tinha virado um septeto. Havia agora a percussão (na época dizia-se “o ritmo”) do caçula Fausto Roberto da Costa Touguinha – mais um filho da cidade de Rio Grande, nascido em 9/8/1935, vindo do Regional do Paraná da rádio Gaúcha, parceiro de Canella no Piano Drink e no Clube da Chave (aquele mesmo do João Gilberto). Durante o dia, barnabé do IAPETEC – Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Empregados de Transportes e Cargas. Touguinha atacava com as armas da época: pandeiro e agogô nos sambas. Bongôs, agê, congas e maracas no repertório mais latino. E ainda dava uma encorpada nos vocais, que eram usados eventualmente e, mesmo assim, quase que só nos refrões. Pois então: vocais. Começou a ser essencial alguém que cantasse de verdade, como solista. Demorou alguns 78 rpm, dois compactos, um LP e muitos bailes, mas acabou aparecendo: Luiz “Alemão” Octávio Medeiros de Albuquerque Neto (Porto Alegre, 30/7/1933). Que vai estreando timidamente, na medida da importância do instrumental do som do grupo. Nesse seu primeiro disco, por exemplo, canta algumas frases em Eu Sem Maria (Dorival Caymmi / Alcyr Pires Vermelho), a segunda parte de Tem Que Ter Mulata e um curto solo em Faceira (Ary Barroso). E deu.

Baldauf, Luiz Octávio, Touguinha, Baraldo, Léo, Canella, Raul: O Septeto Fantástico

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A gravação baldaufiana de Faceira ‒ escrita 25 anos antes por Ary Barroso ‒, é um belo exemplo da sonoridade típica dos melódicos: piano, acordeom e guitarra, juntos, tocando a melodia da primeira parte do samba em blocos de acordes, com eventuais perguntas e respostas dos instrumentos. Infinitas variações melódicas e variados ornamentos enfeitam tudo. Aí modula (troca de tom) e os vocais finalmente entram, aos dois minutos de uma música de 3’. Em uníssono, cantando o refrão, uma única vez, em stacatto, sem alongar nenhuma nota, num clima bastante Bossa Nova ‒ e com aqueles “rr” tão deliciosamente datados. Na repetição, a maviosa voz de Luiz Octávio, num clima Dick Farney/Lúcio Alves, canta, variando a melodia, uma única frase: “Fooooooooi, nuuuum saaaaaamba, deeee gente baaaaaamba”. Só isso. O coro então volta: “que eu te conheci,

faceira, fazendo visagem, passando rasteira”. E pronto. Volta o instrumental e encerra. Só isso. Deu. Pra quê mais? Só João Gilberto faria menos ‒ e João, nessa época, ainda cantava imitando Lúcio Alves. Luiz Octávio, o Alemão, tinha sido convidado a integrar as hostes baldaufianas depois de uma canja arrasadora num baile no Clube Caixeiral de Santa Maria. O cara era galã total e ainda tinha aquela voz que misturava Dick e Lúcio com Nat King Cole e Frank Sinatra. Morava em Porto Alegre, mas estava naquela noite ali, a quase 300 km de distância da Capital, como representantecomercial de uma multinacional. Com sua entrada, o agora septeto começa a sedimentar sua fama. A data definitiva é 13 de dezembro de 1957: o primeiro dos míticos Bailes da Reitoria da UFRGS. Pelos anos seguintes, o amor seria como um laço para os 800 jovens que, a cada semana, sonhavam em amarrar-se ao som de um bolero – ou, dali a pouco, de uma bossa. Cuba libre na mão, pra dar coragem de enfrentar o olhar vigilante de mães, irmãos mais velhos, primos ou mesmo algum tio acompanhante. Três ambientes: salão, boate ou restaurante, geralmente sonorizados por dois ou três dos melhores melódicos disponíveis. No auge do sucesso, os rapazes ganham seis páginas da prestigiosa Revista do Globo. Pudera: num tempo em que a imensa maioria dos músicos locais só entrava em festas pela porta dos fundos, eles davam até autógrafo! Sem falar que, em paraísos da elite local, como o Clube do Comércio ‒ na Praça da Alfândega ‒, eram tratados melhor que sócio remido.

A matéria, com capa e tudo

A matéria só não falava, obviamente, das façanhas amorosas. Histórias como a da origem de um dos instrumentos mais famosos

de Touguinha: a frigideira (ganha da dona de um puteiro do interior que os recebia de pernas, digo, braços abertos). Marcello Campos, autor do fundamental Week-End no Rio, irretocável biografia oficial do grupo, conta:

O livro do Marcello: fundamental e divertidíssimo

Essa o “Toga” me contou, se mijando de rir… Certa vez o grupo distribuiu “santinhos” de divulgação durante um baile no Interior. Um rufião que batia o pezinho ao som dos uníssonos pegou os panfletos e levou para a zona, onde os pendurou em uma corda como se fossem bandeirolas de São João, indicando a entrada do puteiro… para o próprio Conjunto. Na noite seguinte, após o baile, até o comportadíssimo Canella sacou o acordeom e o pessoal, reforçado por outros gaiatos e gaiteiros, animou a festa madrugada adentro. Falando em Week-End no Rio, o disco com esse título é lançado em 1957, seguido de nada menos que três LPs em 58, o ano da Bossa Nova: Week-End no Rio nº 2, Ritmos da Madrugada Nº 3 e A Hora de Dançar. A eles se segue Encontro Dançante, gravado em 1959 e lançado em 1960. Trabalhos que os mantém como atração da Odeon, mas já não com a mesma popularidade. A relação se desgasta de vez quando são obrigados a gravar o insólito Rock on Big Hits – Melodias Famosas em Ritmo de “Rock” (1959). Versões pseudoroqueiras pra coisas como Only You e Estúpido Cupido. Ironicamente, o LP está etiquetado na série definida pela Odeon como HumorMusical dançante.

Algumas capas. Minha preferida? O didatismo metafórico de "A Hora de Dançar"

Esses LPs vão direcionando o grupo cada vez mais rumo à música de dança, qualquer uma. Daquela elegante pré-Bossa dos Ritmos da Madrugada para qualquer coisa que estivesse fazendo sucesso (como se viu, até rock). Mas ainda se pescam pérolas que brilham intactas meio século depois, como o arranjo que deixa quase irreconhecível Tu (Ary Barroso), abrindo o pot-pourri que ocupa todo o lado A de Week-End no Rio Nº 2. E é bom lembrar que os boleros, mambos e cha-cha-chas hoje facilmente classificados como de mau gosto, eram a delícia moderna de então (e fica-se pensando em como já nos soa meio estranha, em 2012, a fusão de Bossa Nova e drum’n’bass que era a coisa mais cool do mundo 15 anos atrás). Falando em Ary Barroso, uma prova definitiva do savoir-faire do grupo. Em 1959, Aloysio de Oliveira tem uma ideia de gênio. Juntar num mesmo disco os dois maiores compositores pré-Bossa ainda em atividade: Ary e Caymmi. Ary tocando as canções de Dorival Caymmi ao piano, Caymmi cantando e tocando as canções de Ary (o disco é apenas sublime, e foi relançado em CD década passada).

Pois sabe quem é a cozinha rítmica, não creditada no disco e só trazida à tona no livro Week-End no Rio? Léo Velloso no contrabaixo, Wilson Baraldo na bateria e Touguinha na percussão. Sim, na terra dos melhores músicos de samba do mundo, a cozinha é 100% gaúcha. Mas ainda tem o melhor! Quem os chamou para gravar Ary Caymmi & Dorival Barroso? Aloysio? Não. O próprio Ary, fã declarado das versões de temas seus feitas pelo grupo – em especial… Faceira.

Sequestre a mãe de alguém por este disco

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É nesse momento que Luiz Octávio abandona o barco. Segundo as boas línguas, pra ser comissário de bordo da Real Aerovias em linhas como Los Angeles-Tóquio (imagina o glamour disso em 1959). Segundo as más, pra fugir de uma fã mais afoita. No auge da sua popularidade, era uma das maiores estrelas do star system local. Uma cena basicamente radiofônica, mas coberta por quatro revistas especializadas. Mais uma vez, assume um interino: o paranaense Renê Martins (São Mateus do Sul, PR, 16/2/1925, Ponta Grossa, PR, 19/9/1994). Logo em seguida, caído do céu, aparece Edgar Pozzer – tão ou mais galã que Luiz Octávio, 21 anos recém-feitos, nascido (24/7/1938) em Galópolis, interior do interior da região serrano/italiana do Rio Grande do Sul.

E nem é bem do céu que ele caiu. Edgar ostentava então, um tanto constrangido, o apelido de Diabo Loiro – que lhe fora dado pelo radialista Salimen Jr. e dizia muito sobre o efeito que o rapaz causava no coração normalista das mulheres de todas as idades. Tinha recém ganho segundo lugar no concurso nacional A Voz de Ouro ABC, das Emissoras Associadas – e eleito cantor-revelação pela revista O Rouxinol. O prêmio da Rouxinol era um contrato com a Farroupilha, e é só por isso que ele permanece na cidade em vez de ir embora pra São Paulo. Logo é uma estrela no auge do brilho, garoto-propaganda dos mais requisitados, atração semanal em dois programas fixos na Rádio e quatro na TV Piratini, campeão de cartas da emissora.

O cara era galã de capa de revista, tá entendendo?

Mesmo assim, não escapou de um teste pra entrar pro grupo. Golaço. Em tempos de TV, a cara e a pinta de Pozzer iriam valorizar muito o passe do conjunto entre a audiência feminina. E, ainda que apenas meia década mais novo, ele era, com relação a Octavio, de outra geração musical. Se o primeiro “alemão” tinha bem a escola anos 50 pré-Bossa, Pozzer já é um cantor ligado no pop daquele momento – que era, basicamente, a canção italiana cantada a plenos pulmões e baladas americanas. Ironicamente, hoje o estilo de Octavio soa mais charmoso que o de seu sucessor. Só que não estamos hoje. Estamos ontem. E com as canções românticas italianas começando a tornar-se uma epidemia global. Pozzer era o cara perfeito. Tanto que virou especialista no gênero, seguindo até hoje como cantor romântico especializado em canzones,

lançando uma dezena de discos com esse repertório, fazendo shows e dirigindo, desde 1970, seu bar Girasole.

Volaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaareeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee....

A gente só não disse como se conheceram Pozzer e os Baldaufs. É que o conjunto tinha sido o grande presente de Natal da Farroupilha pra seus ouvintes. Estávamos em 1959 e, na nova emissora, iriam ombrear com outro melódico da pesada, o Flamboyant. Substituindo o recémdesfeito Primo & Seu Melódico em programas top de audiência, como o Ritmos da Panair ‒ que, nas noites de sexta, levava os ouvintes para viajar aos quatro cantos do planeta através de músicas da França, Itália, Japão… É justamente quando a rede de Assis Chateaubriand estreia a Piratini, primeira TV local. O conjunto de Baldauf e o Flamboyant estão nessa transmissão inaugural, recebendo o mesmo cachê das atrações nacionais que eles acompanhavam. Atrações que, por sua vez, seguiam a seu lado em tournées conjuntas pelo Estado. Imagina passar uma semana ao lado da estonteante Dóris Monteiro, no auge da forma física e vocal ‒ e ainda receber pra isso!? Na TV, teriam ainda um programa semanal de meia hora, com direito a esquetes teatrais comandados pelo gordo Léo, e seriam as estrelas do principal programa da Piratini: o domingueiro e noturno Grande Show Wallig. Só faltava uma coisa: um vibrafone. Instrumento inventado nos Estados Unidos, nos anos de 1920, que logo foi adotado pelo jazz, era

peça chave dos grupos de George Shearing e Art Van Damme e, em Porto Alegre, já brilhava no Conjunto Flamingo, o primeiro grupo da cidade a ter um exemplar. Pois, creiam, aí o telefone toca. Era um rapaz chamado Hélio Santos, paulista de Assis (nascido em 18/9/1938), que morava em Maringá, interior de São Paulo, onde era contratado de uma casa noturna. Um grupo de fãs gaúchos de Baldauf passara pela casa suspeita maringuense, acharam que tinha a ver, lhe passaram um número de telefone e o cara foi à luta. Adivinha que instrumento ele tocava? Pois é. Vibrafone. Maringá tinha um vibrafonista. E Porto Alegre, a capital dos Melódicos, só o do Flamingo! Para Hélio, o novo emprego era o paraíso. Afinal, o cara se virava mais que bolacha em boca de velho: até de acordeonista e ator na trupe circense do Mazzaroppi já se empregara. Mas gostava mesmo era de Lionel Hampton, Milt Jackson e… Art Van Damme. A saudade bateu depois de quatro anos, Hélio voltou pra Maringá, mas aí os Baldaufs não hesitaram: chamaram justamente o cara do Flamingo: Heitor Barbosa. Esse seguiria no grupo pelos 26 anos seguintes ‒ a partir de 1968 acumulando a função de organista. O problema agora era outro. O mundo estava mudando, e o som do mundo, idem. Eles bem que tentaram argumentar com Baraldo que a batida da Bossa Nova era indispensável naquele 1961. Mas o baixinho foi irredutível: com ele, o lance era “cruzar os paus” (aquela levada de bateria com vassoura na caixa na mão esquerda e frases nos tambores com a baqueta na mão esquerda ‒ síntese da batida do samba até então). Não adiantou insistir. Aí, o mesmo grupo que esperara por ele meses a fio, oito anos antes, o demite por consenso ‒ consciente ou inconscientemente, a partir daí o multi-instrumentista Baraldo passa a trabalhar cada vez mais como pianista, e não baterista.

Já septeto, ainda com Baraldo

No seu lugar, entra um porto-alegrense (1/11/35 – 17/4/77) criado no Rio, naquele momento tocando no elogiadíssimo grupo de Manfredo Fest: Léo Belloni. Um craque na sonoridade da bateria Bossa Nova. Feito! Isso, em si, já é um mérito pros já bem trintões sóciosfundadores: saberem adaptar-se a uma profunda mudança. Se você ouve a versão deles pra Wave (de 1968), jura que é um bando de garotos paridos nas ondas da Bossa Nova. Mas voltemos um pouco no tempo. Em 1962, a Philips estava se instalando no Brasil e resolveu contratar todos os melhores. Produtores, por exemplo, eram Aloysio de Oliveira e André Midani. Conhecidos de longa data do grupo, contratam os Baldaufs (inclusive, separadamente, como instrumentistas: são de Touguinha os bongôs da clássica gravação original de Influência do Jazz, de Carlinhos Lyra). O primeiro resultado é o LP Baldauf Retorna.

O disco da "volta"

Como assim “retorna”? É que eles tinham ficado três anos sem gravar! O disco faz muito sucesso local, e marca a estreia da nova formação: um octeto com Norberto, Raul, Canella, Leo, Touguinha, Helio, Pozzer e Belloni. Assumidamente influenciados pelo menos popular Breno Sauer, o disco tem um som bastante diferente dos seus antecessores. E leva uma ajuda extra na divulgação graças ao momento de especial popularidade dos oito, que agora tinham, nas noites de terça, um

programa na TV Piratini todinho pra eles, chamado Norberto Baldauf & Seu Conjunto. *

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Apesar de levar o nome de seu pianista ‒ nome, aliás, dado pelos estudantes de arquitetura que promoveram o primeiro show do então quinteto, em 1953 ‒ o Conjunto Norberto Baldauf sempre foi uma cooperativa democrática. Léo Velloso, por exemplo, além de grande músico, era o gerente. Ele e Canella também escolhiam a maior parte do repertório ‒ além, claro, do pessoal das gravadoras, que se metia muito na hora de escolher o que iria para um disco: pelo menos dois terços do repertório era selecionado pelos produtores. A soma disso tudo resultava no mais popular dos tantos melódicos que pipocaram a partir deles. Popularidade que vinha sendo testada ano a ano. Entre 1961 e 1968, o jornalista Walter Galvani – que mantinha a coluna Preto no Branco na Folha da Tarde – organizou o Festival de Conjuntos. Uma dezena de grupos do gênero, vindos de todo o Estado, davam o melhor de si frente a um corpo de jurados. No clima “amador” da época, a grana arrecadada não ia pro vencedor, mas para entidades assistenciais. Mas uma vitória garantia muitos bailes a mais e publicidade grátis. E o festival começara como uma brincadeira: um dia, Galvani sugeriu aos leitores que mandassem cartas apontando os melhores e piores melódicos do momento. Quando viu, parecia cena de filme: tinha 46.277 envelopes sobre a sua mesa. Abertos, davam vitória ‒ apertada ‒ a Baldauf: 8.372 votos, contra 8.262 do Renato & Seu Sexteto e 8.080 do Conjunto Flamingo. Daí veio a ideia do festival, onde seriam julgados por um time de especialistas, que incluía quatro maestros. Na primeira edição, Baldauf ganha ‒ seguido por, na ordem, Flamboyant, Flamingo e Renato e Seu Sexteto. O tempo os confirmaria efetivamente como os quatro grandes nomes dessa cena. Na segunda edição… Baldauf de novo. Na terceira… São impedidos de participar, passando (à força) pra desconfortável situação de hors-concours. É como conta o baterista, humorista e palestrante Renato Pereira no prefácio de Week-End no Rio – Cinco

Décadas (e Meia) de Conjunto Melódico Norberto Baldauf, o livro nunca por demais citado do jornalista Marcello Campos: “Mais que ouvi-los, ter os elepês ou comentar com amigos que já havia adquirido ‘o último, que acabou de chegar’ era prova de gosto elitizado. A Rádio Guaíba contava com o programador e discjóquei Osmar Meletti, que rodava o bolachão antes de o produto chegar às lojas. As músicas, esperadas com ansiedade, eram responsáveis por reuniões dançantes caseiras e motivavam até episódios de cleptomania, quando o ladrão de boa família surrupiava o LP da anfitriã, escondido sob a jaqueta.” A sacanagem é que estávamos então no fatídico 1963, quando entra em cena o videotape. Dia 10 de janeiro Baldauf e seus amigos eram demitidos da TV e, por tabela, também da rádio. A partir daí, o foco dessa geração seria os bailes, que ainda levariam décadas para serem assumidos pelos DJs. As mudanças na cena também se refletiram na discografia do grupo. Depois de Baldauf Retorna…, em 1962 (ano de explosão da Bossa Nova), só voltariam a gravar no tropicalista ano de 1968.

Ele Gravou Parole até Segunda-Feira. Isso é que é título tropicalista!

Em compensação, o resultado é um de seus melhores discos, ainda que esquisitíssimo no título: Ele gravou Parole Até SegundaFeira. A explicação (bizarra) é que o repertório incluiu desde a italiana Parole até Até Segunda-Feira, de Chico Buarque. A elas se somam Roberto Carlos a Tom Jobim, passando por Luiz Eça, Beatles, Francis Lai, Johnny Alf, Myriam Makeba e um jovem compositor gaúcho: Luiz Mauro ‒ com a canção Marcha para um Novo Amor, terceiro lugar no 1º Festival Sul-brasileiro da Canção Popular. Fala a verdade: uma grande seleção do que havia de melhor nas novidades do mercado local, nacional e internacional. Mais uma vez soavam diferentes, como a guitarra de Raul à vontade até nas levadas iê-iê-iê, e belíssimos timbres de órgão e vibrafone casados com acordeom. Isso que já eram quase velhinhos transviados (“velhinhos”quarentões, num mundo então tomado pela juventude). *

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O amadorismo (no sentido de ter, paralelo à música, um “emprego”), era característica comum a quase todos os integrantes dos melódicos, e rendeu um comentário saborosíssimo numa contracapa de disco: São músicos e ritmistas amadores (a maravilha!: ou é músico ou é ritmista!), que veem na música da madrugada o objetivo único da satisfação própria. Tocam porque gostam de tocar, sejam ou não tentados pela profissionalização (ironia: texto não muito diferente está na contracapa do primeiro LP dos jovens Almôndegas, em 1975). Pois então. Mesmo líder de um grupo com agenda cheia em palcos, salões de baile e estúdios de TV, até aposentar-se, em 2006, Norberto nunca abandonaria sua profissão de professor universitário na área de biociências. O que aconteceu foi o contrário: professor concursado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1967, no final de 1969 Norberto volta a Alemanha para estudar. Só que desta vez, não música: Medicina Nuclear (!!!). O grupo quase se desmonta, mas Canela, Touguinha e Heitor seguem, literalmente, o baile.

Incluem sopros e, surrealmente, continuam com o nome do seu nãopianista, só tirando o melódico. São agora o Conjunto Norberto Baldauf ‒ sem Baldauf. E, pior, ele não reassume seu posto quando, dois anos depois, volta da Europa. Se, antes, sua dedicação principal eram os bailes da reitoria da UFRGS, a agora sua dedicação exclusiva ‒ em contrato ‒, era com a mesma Universidade, só que no seu Instituto de Biociências.

O surreal disco de Baldauf... sem Baldauf!

Ele não está nem no LP gravado depois de quase 10 anos de seca: o setentão Norberto Baldauf e Seu Conjunto, lançado em 1977 pela gravadora Continental – mesmo ano em que sai, também pela Continental, o único disco da carnavalesca Super Banda do Touguinha (Touguinha que agora dirigia seu Centro Livre Musical, por onde passaram centenas de músicos, participava do grupo de folclore internacional Os Gaúchos e ainda liderava a Touguinha e Seus Velhinhos e A Banda Jovem do Touguinha). Figura queridíssima, um milhão de amigos e ex-alunos, ele morreria de leucemia, em Porto Alegre, dia 29/9/2006, pouco antes do lançamento do livro de Marcello Campos.

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E aí chegamos aos frenéticos Anos 80 ‒ nada mais distante dos idílicos Anos 50 da formação do grupo. A única rádio que ainda tocava seus discos era a Guaíba, já FM. E é nela que, em 1983, decidem anunciar o fim do conjunto, depois de 30 anos de atividade. Só que, mal começam a entrevista, a repercussão é imediata: ouvintes e entrevistadores, todos fãs de longa data (um deles era o velho amigo Paulo Deniz), protestam, veementes. Acabam então decidindo por, pelo menos, um baile de despedida. Resultado: 200 mesas do clube Sogipa esgotadas em menos de duas horas. The song remains the same. Ao menos para uma pequena legião de cinquentões saudosos. O caso chamou tanto a atenção que o baile acabou sendo transmitido ao vivo pela rádio e TV Guaíba, com direito a especial de TV editado para um repeteco uma semana depois. Como se não bastasse, virou o LP gravado ao vivo A Noite do “Lembra?”, novamente pela Continental. Como o baile tinha essa ideia de despedida, acabou reunindo pela primeira vez o grupo quase inteiro, com Luiz Octávio e Edgar Pozzer nos vocais, mais Wilson Baraldo na bateria ‒ e as canjas do também baterista Carlos Calcanhotto e Sadi da Silva (do Flamboyant) no baixo.

Dois discos saíram dessa noite: esse e um do Renato e Seu Conjunto.

O que seria uma cerimônia de adeus acabou virando um segundo advento baldaufiano. * * * Imediatamente voltam a ser chamados por bailes e clubes de todo o Estado ‒ retomando a formação mais próxima possível da original, com Carlos Calcanhotto na bateria e as duas estrelas vocais – Pozzer e Luiz Octávio – dividindo a noite. Dali pra cá, a formação teve muitas mudanças. Mas hoje, quase certamente, são o grupo brasileiro mais antigo em atividade ‒ com integrantes da sua formação original, e sem interrupção. Os octagenários colegas de colégio Norberto e Raul, remanescentes em franca atividade, estão até tentando entrar pro Guinness Book. Melhor que isso, só mesmo o sonho do CD. A ideia era fazer uma coletânea de seus melhores momentos. Mas, enquanto os discos de Breno Sauer, Manfredo Fest e Primo são atração de gravadoras especializadas internacionais e até eventualmente relançados no Brasil, as 24 faixas remasterizadas pelo grupo seguem submersas no inferno da burocracia fonográfica brasileira. Nem o livro Week-End no

Rio animou os departamentos (ir)responsáveis. O que é uma pena, só remediável pelos blogs onde se podem achar, pra baixar, os LPs, muitas vezes passados de qualquer jeito pra mp3. Mais do que uma pena: uma sacanagem.

Com a lady crooner convidada, Elis Regina, a cantora mais popular da cidade... aos 15 ou 16 anos.

O povo da formação mais clássica: Raul, Canella, Léo; Touguinha e Baraldo; Baldauf e Luiz Octávio.

O povo (quase) hoje, na época do lançamento do livro do Marcello: Heitor, Luiz Octavio, Pozzer, Touguinha (que morreu pouco depois), Marcello Campos e o fã Número 1, Pinduca. Na frente, os colegas de colégio e sócios-fundadores Raul e Norberto. *

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Até agora falamos quase que só de Baldauf e sua turma. Mas houve muitos outros melódicos – cada um dos grandes com sua sonoridade –, todos com muito trabalho: TVs, rádios e bailes, na capital e no interior do Rio Grande do Sul. *

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Fundado em 1958 – cinco anos depois do conjunto de Baldauf - , o Flamboyant seria apadrinhado por Glênio Reis e batizado por Paulo Deniz, que inspirara-se nas árvores que, na primavera, transformam a Praça da Alfândega de Porto Alegre num delírio impressionista. (Você, porto-alegrense, nesse momento se pergunta: – Ué, mas não são jacarandás? São. Mas, quando descobriram que tinham errado a árvore, o nome já tinha pego).

Flamboyant

Aquilo é um flamboyant. Isso é um jacarandá. Êita. O povo era daltônico?

Glênio os leva para a Rádio Farroupilha, pra concorrerem com Baldauf, então na Gaúcha. Só que, meses depois, os Baldaufs também vão pra Farroupilha, e ambos os grupos estariam na primeira transmissão de televisão no Estado, dia 20 de dezembro de 1959 – você lembra: Emissoras Associadas, TV Piratini. A partir dali, por meses, o Flamboyant teria seu programa semanal, em horário nobre. Era ainda a primeira formação: um octeto com o paulista radicado em Porto Alegre Wladimir Lenine Latuada no sax tenor e clarinete (sopros: uma variação importante de sonoridade), Norberto Alemão Rockstroh (Porto Alegre, 1/5/1936) no acordeom, Arnoldo Barbosa Ciganinho na guitarra, Adão Pinheiro no piano, o solicitadíssimo Sady Silva no contrabaixo e Sumerval Baraldo na bateria – logo substituído por um baterista Bossa Nova, sobrinho de Lupicínio Rodrigues e também compositor, cantor e violonista: Lupicínio M. Rodrigues, o Mutinho. O time se completava com Ney Lima de ritmista e, durante o ano de 1962, Breno Sauer no vibrafone. De todos os grupos dessa cena, o Flamboyant seria o maior celeiro de grandes instrumentistas. E também o maior exportador de integrantes para fora da cidade, do estado e até do país.

Mutinho em dois tempos: Flamboyant, década de 60; e, década de 70, na banda de Toquinho & Vinícius

Graças à briga entre Farroupilha e Gaúcha, no começo de 1960 um novo troca-troca. A primeira trouxera o Conjunto Norberto Baldauf da Gaúcha? Pois agora a Gaúcha lhes tirava o Flamboyant. Na nova emissora, uma das vantagens era contar com uma lady crooner das mais disputadas. Uma guria de 15 anos que era então das maiores starlets locais, a ex-menina-prodígio do Clube do Guri Elis Regina. Não tou dizendo que era um celeiro de craques? Elis também cantava – eventualmente – com outros grupos mais comportados, como o Flamingo e Baldauf, mas é no Flamboyant que teria sua escola de improvisação, suíngue e samba-jazz. Com ela à frente, enfrentam o próximo round da batalha entre as Emissoras Associadas e a Farroupilha: a inauguração da TV Gaúcha, em 1963. E é com Elis que seguirão até o momento em que, em março de 1964, a mocinha vai tentar a vida no Rio de Janeiro. Pra manter o diferencial de uma voz feminina, quem assume no seu lugar é a cantora Dalila, que faria sucesso meteórico e, pra não

fugir à regra, também iria embora – pra Europa. E aí entra mais uma garota, também egressa do Clube do Guri: Érica Norimar. Adivinha… Uns anos mais tarde – com disco solo lançado e tudo – essa também se manda, só que pros Estados Unidos. Ainda cantam no grupo a adolescente paulista Marcia Eliza (a futura cantora Márcia, cujos pais tinham vindo morar em Porto Alegre) e um único homem: Hermes Corrêa. Mas antes desse entra-e-sai de vocalistas, já tinham ganho o segundo lugar no primeiro Festival de Conjuntos, em 1961, e, no auge da popularidade, lançado pela Continental seu único disco.

Capa e pedaço da contracapa. Raridade total.

O LP – que, curiosamente, não tem nenhum dos cantores – se chama O Que Se Dança às Margens do Guaíba e sai num ano de efervescência discográfica gaúcha (com a própria Elis lançando Viva a Brotolândia, alguns melódicos gravando e mais a explosão de Teixeirinha). Mesmo assim, conseguem se destacar. Ainda que os maiores sucessos sejam uma versão em ritmo de beguine para O Sole Mio e o mambo-hit mundial La Mamadera (do uruguaio filho de cubano Osmar Safety, então radicado em Porto Alegre), o disco tem grandes momentos, como um Chopin em ritmo de samba-jazz e um belo e ingênuo samba de Mutinho, Moreninha - e foi eleito entre os melhores do ano em várias listas locais e hoje passa de 100 dólares em sites especializados.

Osmar Safeti, de Porto Alegre para o mundo. "La Mamadera", creia, foi gravada em dezenas de países.

É por essa época que ganham dos seus detratores o apelido de Esquadrilha da Fumaça – e não exatamente por alguém ali ter brevê de piloto. O codinome, posto pelos colegas mais velhos, pode até ser só ciúme da sua versatilidade: além de tocarem jazz – muitas vezes apenas para seu próprio deleite – também seriam dos primeiros artistas locais a tocar… rock! Tinham repertório para, numa noite, fazer um baile inteiro com ritmos degenerados da juventude, e na seguinte, animar um jantar de casais do Rotary com baladas, boleros, mambos e cha-cha-chas. Em 1962 são escolhidos pelo voto direto de quase 100 mil leitores do jornal Última Hora o Melhor Grupo do Rádio – mesma eleição que consagra Elis, aos 17 anos, como Melhor Cantora. No ano seguinte, morre, bastante jovem, o guitarrista Ciganinho. E deixa um buraco: tinha muita técnica e era bom tanto de arranjo quanto de improviso. Quem salva a pátria é um baixinho da cidade de Rio Grande. Lá, ele tocava no conjunto do pianista, tecladista e acordeonista Cidinho Teixeira, mas Cidinho foi embora (outro!) pra Nova York e aí o rapazinho resolveu tentar a vida em Porto Alegre. Seu nome? Ary Piassarolo. Idade: 19 anos. Mais um craque.

Ary hoje. Um craque.

(No final dos anos 1960, Ary, amadurecido no grupo, também parte. Primeiro pra São Paulo, onde se emprega na boate Night & Day e no programa de Moacyr Franco na TV Record. Em 1973, vai pro Rio e, pelos 12 anos seguintes, toca com o melhor da MPB, integrando por longos anos a banda de Gonzaguinha e reencontrando em palcos e estúdios a ex-colega Elis Regina. Em 1985, se manda pra Miami, onde vai estudar e tocar com caras do jazz fusion, como Ira Sullivan. Ainda morando lá, em 1997 lança no Brasil pela gravadora Velas o CD Memories, definido como brazilian jazz fusion. Gravado nos EUA, o disco tem na bateria outro rio-grandino fera: o baterista Portinho, a quem voltaremos. No final do milênio, Piassarolo voltou pro Brasil em busca de uma vida mais tranquila. Hoje mora em Registro, interior de São Paulo, onde dá aulas e de onde, eventualmente, ainda sai pra tocar.) Sempre exportando integrantes, o Flamboyant segue até o início dos anos 1970, adaptando-se como pode à mudança do cenário local. Em 2009, em entrevista pra esta pesquisa, o pianista Geraldo Flach, caçula dessa geração, definiu assim os caras: Na minha avaliação de guri, o Flamboyant reunia os “cobras” da época: Adão Pinheiro, Ciganinho, Mutinho, Wladimir Latuada – o Bigode… E era, sem dúvida, o grupo mais louco.

Abril de 1961. Os guris por cima da carne seca.

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Principal cidade portuária do Rio Grande do Sul, 300 km ao sul da capital, Rio Grande é uma impressionante fonte de grandes músicos. Só entre essa turma melódica, tem, rapidamente, Ary Piassarolo, Cidinho, Heitor Barbosa, Touguinha, Porto Rico e Portinho e o vibrafonista Garoto. E João Antônio Peixoto Primo. Primo nasceu dia 23 de março de 1933. Sua mãe era exímia pianista. Portanto, era natural que, mesmo começando com o acordeom, ele terminasse sentado no banquinho. Ainda em Rio Grande, montou uma orquestra que excursionava pela região, e aos 23 anos já estava em Porto Alegre, liderando o septeto Primo & Seu Conjunto no programa Radio Sequência – atração do meio-dia da Farroupilha.

Ainda que o som da gravação não seja lá essas coisas, um grande disco.

Esse vai ser o segundo grupo dessa cena a chegar ao disco – logo depois dos Baldaufs. Seleção Dançante é um LP de 10 polegadas, e sai pela gravadora Mocambo em 1957: Primo ao piano, o acordeom de Roberto Dantas, o contrabaixo de Adão Prado, o ritmo de Luizinho, o crooner Edypolo Brito e dois Baraldos da pesada: Sumerval na bateria e, na guitarra, o espantoso Nilton Baraldo, improvisando virtuosamente. No repertório, das oito músicas, cinco eram de gaúchos: o já citado mambo La Mamadera, do Osmar Safety; um choro moderno do acordeonista Roberto – Telegrafista no Choro – meio latino, cheio de improvisos e suingado; outro choro, mais clássico – Capilé, do virtuoso pianista Délcio Vieira (compositor

também gravado pelo Baldauf); Três Amigos, samba de Túlio Piva; e Na Solidão, bolero do próprio Primo. É dos melhores registros de toda essa turma, mas não evita a dissolução do conjunto em 1959. A partir daí, Primo tira seu nome da frente. Mas, em 1961, vai estar liderando um dos melódicos mais poderosos dessa história: o Conjunto Flamingo, grande atração tanto da Gaúcha quanto da TV Piratini. *

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Líder de um quarteto de gaitas-de-boca (harmônicas), que também contava (na gaita de boca!) com o baterista e futuro dono da maior fábrica de baquetas da América Latina Clóvis Ibañez, Rubem Grumann era um empreendedor. Conta Ibañez: Fiquei sabendo que Grumann estava desenvolvendo um baixo eletrônico com ajuda de um luthier. Ninguém conhecia esse instrumento em nosso Rio Grande, e depois de pronto foi preciso desenvolver amplificador especial para seu uso. Com o tal baixo revolucionário, Rubem iniciou um trabalho com alguns novos músicos que formaram um grupo sob o nome Cesar e Seu Conjunto. Isso era 1959. Os sócios-fundadores são o futuro compositor e arquiteto Cesar Dorfmann (Porto Alegre, 28/4/1941) no piano, seu primo Rui Dorfmann na guitarra, Norberto Bozzeti (mais um rio-grandino) no acordeom, Grumann no contrabaixo e João Carlos Forneck na bateria – mais o cantor Bonny Moraes. Rubem era mais velho que os garotos e funcionário do Banco do Brasil – como bem lembra Cesar, na época em que isso era sinônimo de status e grana. Segue Ibañez que, a essa altura, já assumira a bateria no grupo – que também já perdera o guitarrista Rui: Surgiu a oportunidade de lançar o novo grupo na TV, com um nome mais comercial. O tema de abertura do conjunto era a canção Flamingo, de muito agrado entre os músicos – e foi sugerido usar o mesmo nome para o conjunto. O primeiro programa na TV, já usando como logo um flamingo desenhado pelo Bozzetti, foi “Varig Apresenta Flamingo e Hebe Camargo”.

Esse time logo terá um programa semanal na Piratini, onde se apresentavam sozinhos ou acompanhando estrelas como a então cantora Hebe Camargo. Além disso, muitos bailes. No ano seguinte, Grumann viaja pra São Paulo e traz mais uma novidade… …o primeiro… …vibrafone! Sim! Pela primeira vez, alguém tinha o instrumento-fetiche do momento.

Coisa linda, de ligar na tomada: o tal vibrafone.

Como contou Cesar, nenhum de nós tocava o tal vibrafone, resolvi aprender, de forma autodidata. Com isso, chamam para o piano José Antônio Leite, um músico então já relativamente conhecido. Mas eram quase todos muito jovens e estudantes. E aí, na volta das férias de 1961 – sim, tão jovens que tiravam férias no fim do ano! – houve a cisão entre os que queriam se profissionalizar na música e os que não achavam necessário (ainda que os Baldaufs estivessem lá pra provar que dava pra conciliar as duas coisas). Saem então Cesar, Rui e Norberto. E é aí que entram Primo (no vibrafone e já assumindo como líder do grupo), o acordeonista Vilson Ayala e o percussionista José Selhane. A partir daí, o octeto é a grande atração das jam-sessions que rolavam no DCE da Faculdade de Medicina da UFRGS. Mais intensa agenda de bailes, três programas semanais de TV e eventuais participações em emissoras paulistas. Pra completar, ainda que caçulas da turma, levam o terceiro lugar do Festival de Conjuntos – vencido pelo Baldauf, seguido do Flamboyant.

Os flamingos.

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Clóvis Ibañez, hoje

Clóvis Ibañez, baterista do Conjunto Flamingo: O grupo voou alto e rápido devido à qualidade e modernidade de sua música, com apresentações em shows, festivais, bailes, televisão… E quatro discos para a gravadora americana Audio Fidelity. Famosa pela qualidade do seu som Hi-Fi Stereo, a Audio Fidelity estava entrando no Brasil, e os porto-alegrenses foram seus primeiros contratados. Deram-se muito bem: em apenas dois anos, lançam nada menos que dois compactos e três LPs. Em 1962, Apresentando o Conjunto Flamingo (LP), e os compactos Conjunto Flamingo em Compacto e Dançando com o Flamingo – com o seguinte time: Bonny Moraes no vocal, Ayala no acordeom, Primo no vibrafone, Leite no piano, Rubem Gruman no baixo elétrico, Ibañez na bateria e Selhene e Benatti na percussão. E aí, com a nova formação (Newton Baraldo, um craque, na guitarra, e Adilson na percussão), os LPs seguintes: Novamente o Conjunto Flamingo (1963) e Conjunto Flamingo (1964, já com Heitor Barbosa no lugar de Primo). O que se ouve é uma bossa de primeiríssima, com uma sonoridade própria, excelente qualidade de gravação e um repertório que vai de velhos sambas, como Morena Boca de Ouro, até novidades como as então recentíssimas Garota de Ipanema e O Barquinho. Baixo elétrico, bateria e percussões levam uma Bossa atemporal, enquanto piano, acordeom e vibrafone enroscam as suas sonoridades naquela deliciosa pasta de melodias feitas com acordes, onde timbres se misturam até que não se saiba mais quem está tocando o quê. E todos são grandes instrumentistas, ainda que dê pra destacar o espetacular acordeonista que era o Ayala – e Ibañez é um sultão do suíngue cool. Enfim: eram um sopro de modernidade na cena.

A Discografia Completa dos caras: nenhum deslize.

Mas logo Primo já não estava entre eles. (No seu lugar entrara mais um riograndino, Heitor Hiltl Barbosa (19/3/1938). Heitor lançou disco como líder de melódico já em 1959, comprou seu vibrafone em 1962, tocou com o Flamingo em 1963 e depois militou nas hostes de Baldauf de 1964 a 1980. Nesse meio tempo, fez dois discos com o Primo Quintet e a trilha sonora – lançada pela Continental em LP – do longametragem Negrinho do Pastoreio, dirigido por Antonio Augusto Fagundes e estrelado por Grande Otelo, em 1973. Segue na ativa, tendo trabalhado como tecladista até com o regionalista José Mendes e lançado alguns CDs independentes de alta rotação nos áureos tempos da Guaíba FM).

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Influenciado pela nova sonoridade dos trios de piano, baixo e bateria que incendiavam o samba-jazz, com muito mais possibilidades para um pianista mostrar sua técnica, Primo monta o Primo Trio em 1964. Começa bem, gravando para a Musidisc dois LPs que, meio século depois de seu lançamento, são obras de culto – o segundo, de 1965, Sambossa, foi remasterizado e reeditado em 2002, em vinil e CD (a 20 libras!), pela gravadora londrina Whatmusic.com. Tá lá no site (em inglês, né?): (…) Outros trios apareceram, vindos de outras cidades do Brasil. De Porto Alegre, no sul do país, vieram o Manfredo Fest Trio e o Primo Trio. Primo Jr. gravou dois LPs no clássico formato de piano/contrabaixo/bateria para a Musidisc. Este álbum, Sambossa, é o segundo dos dois, e mostra um bom número daqueles temas que fazem de um álbum de trio de bossa um clássico. (…) Tudo somado, Primo Jr. e seu trio soam muitíssimo competentes e relaxados na gravação que, feita originalmente em estéreo, soa tão atual hoje quanto soou em meados dos anos 60.

O disco relançado, novinho em folha

Como diz o site, o repertório dos discos (o primeiro, de 1964, se chama apenas Primo Trio mistura Bossa Nova e MPB com pitadas de samba, em arranjos com um toque meio boogie que o distinguia no enxame de piano-baixo-baterias que, naquele momento, orbitavam

pelo mesmo repertório: Arrastão, Balanço Zona Sul, Vivo Sonhando, Nanã, Preciso Aprender a Ser Só… Mas mesmo com o sucesso da nova empreitada, ele segue levando paralelo o emprego de bancário. Até 1966, quando resolve que é a hora de decidir-se entre a estabilidade e a música. Num impulso, pega o navio Rosa da Fonseca e se manda junto com o então popularíssimo cantor paulista Agostinho dos Santos pra acompanhar a torcida brasileira na Copa da Inglaterra. E… … água! O vexame futebolístico do escrete canarinho na Copa de 1966 foi tão grande que ninguém voltou de lá com mais prestígio do que tinha ido. Só que aí ele estava tão contaminado pelo vírus do mundovelho-sem-porteira que convenceu os amigos do Breno Sauer Quarteto a virar um sexteto (com ele, é claro) e irem tentar a vida no México. Na ida, ainda dá uma rápida passada pela Riviera Francesa, pra tocar com a orquestra do flautista Copinha no lendário baile Le Petit Blanc, que reunia o jet set europeu do momento, de Grace Kelly a David Niven. O vírus era contagioso, mas com ele não foi lá muito potente: Breno e sua turma seguiram no México, mas Primo volta rapidinho pro Brasil. Só que agora pra São Paulo, a capital do samba-jazz. Monta o septeto Primo 7 e lança mais um disco bacana, novamente pela Musidisc. O LP, de 1966, se chama Pinta o Sete, e é exatamente isso que eles fazem ali. Num clima animação-total-bossa-pop-samba-rocksoul, meio Ed Lincoln, se esbalda no órgão Hammond, cercado por trompete, guitarra surf-rock, vibrafone, baixo, bateria, percussão e vocais do pessoal todo. Numa palavra: Groovy! O repertório tem três músicas de Orlann Divo (o vocalista de Ed Lincoln), Nilo Sérgio (outro da turma samba-groove) e também jovens estreantes como Luis Carlos Sá e... Caetano Veloso. Esse foi não só remasterizado como também remixado pela Whatmusic, e igualmente relançado em LP e CD.

Pintando o 7. Discão.

Olha o que diz a Whatmusic: Nesse grande disco temos sete músicos que realmente sabem fazer. A nascente cultura da discothéque (sic!) começava seu impacto na cena musical local. Cantores italianos, a chanson francesa, pop da Costa Oeste e covers locais de hits do rock’n'roll somaram seus efeitos nos grupos que então dominavam os nighclubs na era anterior à tomada de poder pelos DJs. Em 1969, reduz a turma pra Primo Quintet pra tocar no navio Cabo San Roque, que viaja até Miami. Na volta, no Rio, gravam

de uma só vez dois discos, bem diferentes entre si, ambos para o selo Equipe: Um Homem e Uma Mulher e Vai lá Que Tem!.

Os dois discos. Quaaanta diferença.

O primeiro é de uma elegância ímpar, chega a 500 reais em sites especializados e tem um repertório baseado em clássicos americanos como Tenderly e Laura, além da faixa-título, tema do filme de mesmo nome e uma espetacular versão jazzística para Eu Te Amo, Te Amo, Te Amo, de Roberto e Erasmo. Já o outro… Basta dizer que é uma tentativa de pegar uma carona na pilantragem, gênero então na moda com Simonal, Erlon

Chaves e a Banda Veneno. Inacreditável seria um adjetivo bastante adequado…

Primo Quintet, 1969: Argus, Heitor, Renato, Primo e João (aqui no baixo acústico)

E aí volta pra Porto Alegre e sossega o pito uns tempos. O quinteto seguia formado por ele no piano e órgão, Renato Axelrud (sax alto, sax barítono e flauta), o também Baldauf e exFlamingo Heitor Barbosa (vibrafone e órgão), João Castanheira Filho (baixo elétrico) e Argus Montenegro (bateria). Renato e Argus, em especial, já eram músicos de exceção. O primeiro iria chegar a primeira flauta da Sinfônica Brasileira, no Rio. O segundo se tornaria o maior baterista dessa geração surgida nos anos 1960, viajando o mundo todo pra tocar e sendo um dos professores mais disputados nos 80, 90 e 00, tema de um documentário póstumo estreado nos cinemas em 2012 (Argus Montenegro e a Instabilidade do Tempo Forte). Só que o clima não tava nada bom pra essas sonoridades, que perdiam espaço após espaço. É quando, em 1972, Primo recebe convite literalmente irrecusável: ir a Brasília tocar no aniversário do presidente e general Emílio Garrastazu Médici – em pleno período mais terrível da ditadura militar. E aí o destino age: na festa,

reencontra um velho amigo: o gaúcho, músico amador e então ministro da Indústria e Comércio Pratini de Moraes. Pratini o convida para trabalhar em sua assessoria (num mundo que gera assessor de tanta coisa, por que não um para assuntos relativos a teclas e trilhas sonoras pra salgadinhos?). Ele topa – e nunca mais sai da Capital Federal. Passa a fazer apresentações solo ou com seu novo trio, o Primo Três. Anima jantares e recepções no Itamaraty, no Palácio da Alvorada e nas mais variadas festas de políticos de todas as cores ideológicas. É um dos fundadores do aclamado Clube do Choro de Brasília e até festa de aniversário da cachorrinha da mulher de Ministro da Aeronáutica sonorizou – mas também embalou gente como a Princesa Diana, Ronald Reagan, Carlos Menem, François Mitterrand, a rainha Sílvia da Suécia e o rei Juan Carlos da Espanha. E quem lembra do famoso Besame Mucho que denunciou o affair entre os ministérios da economia e da fazenda da Era Collor, Zélia Cardoso de Mello e Bernardo Cabral? Sim, era Primo no piano a fazer dançar o inusitado casal. No meio disso, entre o final dos anos 1970 e meados dos 1980, grava em trio e cercado de teclados eletrônicos uma série de LPs chamados Piano Espetacular para a gravadora CID. No 31 de dezembro de 2001 em que morreu, se dividia entre o Primo Três e o grupo Os Três de Brasília, que tinha seu filho Alexandre na bateria eletrônica e um saxofonista ou uma cantora. Acabava de lançar um livro de memórias – Festa acabada, músicos a Pé – , e estava prestes a completar 55 anos de profissão – 20 deles em Brasília. Nesse meio tempo, gravara 25 LPs, cinco CDs, e viajara por mais de 45 países. Ironia maldosa do destino: um dos raros músicos da turma a dispensar o álcool como combustível na carreira, Primo morreu de cirrose… medicamentosa (aliás, como outro não bebedor, o baterista Wilson Baraldo). *

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O jovem Manfredo Fest, ainda em Porto Alegre

Manfredo Irmin Fest (Porto Alegre, 13/5/1936 – Tampa Bay, Florida, EUA, 8/10/1999) era um eclético. Já começou dividido entre o acordeom – bem brasileiro, nada a ver com Art Van Damme – que tocava no Regional do Braguinha na Rádio Itaí e os ritmos jovens que embalava ao piano e saxofone no Stardust. Formado no Colégio do Rosário em 1952, a partir de fevereiro de 1957 o Stardust entregou-se de corpo e alma à novidade do momento. Bossa Nova? Não! O ameaçador rock’n’roll! Foram o segundo grupo a tocar a novidade em Porto Alegre. E não foi fácil. Partituras de rock não havia, nem os discos chegavam na cidade. O negócio era revezarem-se nas primeiras sessões gaúchas do filme Ao Balanço das Horas até aprenderem a tocar na íntegra – e em inglês – Rock Around the Clock. O fizeram com tanta maestria e pioneirismo que logo teriam até fã-clube, com carteirinha de sócio e tudo. Além de Manfredo, pelo Stardust passaram Aquiles Hemb (piano e bateria), Sérgio Maeso e Nestor Saul (acordeom), Cléo Bastarrica (pandeiro), Fernando José Tricerri (percussão) e João Carlos Bertussi da Silva (piano, bateria e gaita de boca). *

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Se o Stardust foi o segundo, quem foi o primeiro? Poposky e Seus Melódicos. Inspirado em Bill Halley & Seus Cometas, o grupo tinha três futuros grandes nomes dessa cena: na bateria, Carlos Calcanhotto (Porto Alegre, 28/9/1936, pai de Cláudio e Adriana Calcanhotto) que, depois, seria do conjunto Noblesse. No sax e

clarinete, o futuro Flamboyant Wladimir Latuada. E o grande guitarrista Olmir Stocker, o Alemão, de quem muito falaremos. Além de um contrabaixista (acústico) que tinha um imenso instrumento… branco! E, é claro, dos próprios irmãos Poposkis, Ethevaldo e Claudio. Todos muito elegantes com seus topetes mantidos em pé à custa de muito gel, fazendo rock com clarinete, acordeom, guitarra, baixo e bateria. Falaremos mais disso no capítulo sobre o rock em Porto Alegre. *

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Voltando a Manfredo: o menino nasceu praticamente cego. Com cinco anos de idade, começou a aprender piano com o pai, pelo sistema braile. Pai, aliás, que não era bolinho: Gustav Adolph Fest, nascido na Alemanha, era concertista de piano e maestro, tinha estudado com um aluno de Lizst, e no seu currículo de solista pululavam palcos europeus. Aí, pós-Guerra, Europa em crise, nos anos 1920 foi tentar a vida no extremo sul do Brasil, terra da alemoada. Acabou se estabelecendo em Porto Alegre, como professor do Instituto de Belas Artes (lembram, né? Deu aulas pro Norberto Baldauf, por exemplo). Mesmo Instituto em que – cego – Manfredo se formou em piano em 1961. Aos 25 anos de idade, já era um dos nomes mais respeitados do instrumento na cidade. Bastante influenciado por outro pianista cego. Adivinhem? Sim, George Shearing. Pois então. Formado pela academia e pela escola da vida – com o Stardust e um rápido Melódico de Manfredo Fest (onde estreia o baterista Léo Belloni, futuro Conjunto Melódico Norberto Baldauf) – neste mesmo 1961 se muda pra São Paulo. Começa revezando com o prestigiado Walter Wanderley no Moacyr´s, bar do também pianista e jazzista Moacyr Peixoto (irmão do Arakem e do Cauby Peixoto). Em menos de um ano está gravando seu segundo disco, pela RGE: Bossa Nova Nova Bossa (o primeiro, Clássicos dos Boleros, de 1961, é daqueles projetos encomendados por gravadora que mal vale registro).

Bossa Nova Nova Bossa: pura elegância

Acompanhado por um time que representava parte do melhor samba-jazz paulista – Toninho Pinheiro na bateria, Humberto Klaiber no baixo acústico e Hector Costita no sax e flauta, mais os vocais dos Titulares do Ritmo –, ataca com o melhor repertório de Bossa Nova e samba-jazz do momento: Garota de Ipanema (então uma novidade com meses de vida), Batida Diferente, Você e Eu e por aí vamos. A contracapa é profética: Esta é, efetivamente, Bossa Nova de exportação, daquela capaz de representar a nossa música em qualquer parte do mundo. Em 1965, funda o Manfredo Fest Trio: Manfredo no piano, o paulista Mathias Mattos no baixo acústico e o gaúcho criado no Rio Heitor Guy na bateria. Até 1966, lançariam três LPs: Manfredo Fest Trio, Os Sambeatles e Alma Brasileira.

Os três do trio

O primeiro e o terceiro são clássicos álbuns de trio desse momento, num repertorio que ia de Walter Santos e Edu Lobo a Menescal e Villa-Lobos (passando por temas de Manfredo e Mathias). Samba-jazz da pesada. Virtuoses em seus instrumentos, os três ainda usam e abusam das nascentes possibilidades do overdub (a técnica de sobrepor instrumentos numa gravação): Manfredo acrescenta a seu piano ele mesmo tocando sax e órgão. Heitor soma percussão à sua bateria, e Mathias vai de baixo e violão. Acabam soando como um grupo bem maior que um simples trio. E reforçam sua personalidade, muito bem definida pelo radialista Fausto Canova na contracapa de Alma Brasileira: Em que pese o número excessivo de trios adquirir ultimamente uma feição quase epidêmica, poucos são os que conseguem realmente cair no gosto do grande público pelas qualidades aparentes, que incluem criação (principalmente), impacto rítmico, harmonia atualizada e força individual. O Manfredo Fest Trio é um deles. Já o disco do meio dessa trilogia – Os Sambeatles – era daquelas ideias que tinham tudo pra dar errado: um LP com 12 rocksongs de Lennon & McCartney, vertidas para o idioma da Bossa Nova e do samba-jazz. Tarefa fadada ao kitsch. A única possibilidade de sucesso seria realizá-la por um intérprete que tivesse intimidade tanto

com o rock quanto com o jazz e a Bossa Nova. Pois era o caso: estávamos lidando com um bossanovista-jazzista-de-formaçãoerudita-fundador-do-Stardust! (Pra reforçar o pioneirismo do projeto – lançado pela Fermata, e não pela RGE, como os outros discos do trio –, é bom lembrar que os carinhas de Liverpool tinham começado a fazer efetivo sucesso no Brasil há menos de um ano.) Só a versão hard-bossa de Can´t Buy Me Love vale a procura dessa raridade jamais relançada, mas pirateada a torto e a direito. E há ainda grandes achados em Girl, Help, Ticket to Ride, And I Love Her e até, creia, A Hard Day´s Night – saltam aqui e ali sutis pitadas eruditas, amparadas pela suingadíssima cozinha recheada de improvisos. Graças a pequenas ousadias como essa, o grupo de Manfredo passa a ser um dos mais respeitados no fervilhante ecossistema dos trios que, mais do que em qualquer outra cidade brasileira, dominava São Paulo. E a concorrência era pesada: do virtuosismo clássico do Zimbo Trio ao efêmero e revolucionário Jongo Trio, passando pelo Sambalanço de Cesar Camargo Mariano… Enfim, dezenas de possibilidades. Assim, são escalados como uma das atrações do show coletivo Boa Bossa, de 1964, no Teatro Paramount. O espetáculo que apresentou São Paulo à então desconhecida Elis Regina tinha ainda Zimbo Trio, Nara Leão, Johnny Alf e outros nesse nível. No ano seguinte, ao lado novamente de Nara e o Zimbo, mais Cyro Monteiro, Edu Lobo e Baden Powell, eram a atração da estreia de… O Fino da Bossa, o popularíssimo programa de TV da já estrela Elis. O Manfredo Fest Trio acabou sendo o único grupo liderado por algum gaúcho a inscrever seu nome na história da Bossa Nova. Em parte, em função do já citado primeiro LP. Mas também graças a Evolução. Gravado em 1964, o disco é imediatamente anterior ao trio e o maior feito de Manfredo como arranjador até então: nele brilha uma orquestrinha milimetricamente desenhada em sutis achados tímbricos de seu curioso naipe de flauta, gaita de boca, trompete, quatro trombones e vibrafone – além de piano e órgão, baixo e bateria. São discos lembrados principalmente quando se fala no lado instrumental da Bossa Nova, e menos citados por cariocas do que por paulistas – como aconteceu na lista de discos fundamentais do gênero publicada em 2000 no jornal O Estado de São Paulo.

Cinco discos em cinco anos (sem contar aquele primeirão, de boleros): estávamos em 1967, e um disk-jockey americano chamado Herb Schoenbohm, em passagem pelo Brasil, apaixonou-se pela sonoridade de Manfredo. No ato, o convidou pra ir fazer a América, oferecendo emprego no night club onde ele trabalhava, em Minneapolis. Com a mesma cara e coragem de quem saíra de Porto Alegre sem medo de ser feliz, Manfredo topa. Ok, era casado com a também pianista e compositora Lili Fest, que inclusive o ajudava na hora de passar suas partituras escritas em braile pra escritura original e viceversa. Mas, além de ser cego, não conhecia ninguém por lá! Pensa que ele se importou? Nem titubeou: Vim para os Estados Unidos não só pra mostrar minha música, mas também pra aprender mais sobre jazz. O contrato era de um ano, mas ainda estava em vigência quando – já estamos em 1968 – é convidado pelo carioca Sérgio Mendes a mudar-se pra Los Angeles e integrar o então popularíssimo Brazil 66, grupo de Sérgio que fazia fortuna no mercado americano. Pelos três anos seguintes, Manfredo vai construir sua reputação tanto como tecladista e arranjador doBrazil 66 quanto liderando outro grupo, o Bossa Rio. Cuja principal atribuição era… abrir shows do Brazil 66. Em dois anos tinham atravessado algumas vezes os Estados Unidos, conhecido o Japão e circulado por vários países da América Latina. Muito, muito trabalho. Tanto que cansou e voltou pra Minneapolis, onde se aquieta com a família e passa tocar em clubes de jazz. À frente do Bossa Rio já tinha então lançado três discos (em edições americanas e europeias): Bossa Rio (1969, A&M Records), Alegria (1970, Blue Thumb Records, relançado em CD no Japão) e Bossa Rio in Japan (1970, A&M Records). Mendes é o produtor, Fest toca basicamente órgão e os vocais são de Gracinha Leporace e Pery Ribeiro.

Bossa Rio: dois anos, três discos, muito trabalho

Já de 1972 é seu primeiro trabalho solo na gringolândia: Introducing Manfredo Fest and His Piano Portraits: After Hours.Totalmente instrumental, o disco tem uma bela orquestra de sopros arranjada por Manfredo.

Introducing… Manfredo Fest na gringolândia

Em todos, um repertório totalmente sintonizado com o melhor da música popular planetária daquele momento, elegantemente arranjado e com ênfase brasileira: Burt Bacharach, Francis Lai, George Harrison, Lennon & McCartney, Jobim, Moacyr Santos. Mais os novatos Jorge Ben, Edu Lobo, Dori Caymmi, Milton Nascimento, Caetano Veloso e Marcos Valle. Em 1973 se muda pra Chicago, onde passa a transitar com desenvoltura pelo fervilhante circuito local de latin jazz. Monta um novo Manfredo Fest Trio, que lança em 1975 (com vocalises de Roberta Davis) o LP – independente – Brazilian Dorian Dream. Segue a década com mais três discos, onde participam alguns dos melhores instrumentistas do fusion jazz – Abe Laboriel e Lee Ritenour entre eles

– e do jazz latino, como o saxofonista cubano Paquito D´Rivera e o trompetista carioca Cláudio Roditi – que havia ido pros Estados Unidos com Breno Sauer. Paquito, por sua vez, grava a belíssima Seresta – parceria de Fest com o pianista de jazz Howard Levy – e se confessaria, num e-mail de 2004, un gran admirador de Manfredo, de su música y de su pianismo tan elegante y refinado. Mas a alegria maior ainda estava por vir: ninguém menos que George Shearing – sim! – incorpora a seu repertório um tema de Fest, That´s What Show Says. Que se torna, a partir de então, relativamente conhecido no cenário jazzístico americano. George Shearing gravando uma música de um portoalegrense… A gente podia fechar aqui o ciclo dos melódicos gaúchos, com a cobra mordendo o próprio rabo. Mas é nessa época que Manfredo é contratado pra um emprego de sonho: animar (como se fosse possível animá-las ainda mais) as festas da revista Playboy pelos Estados Unidos. Era o esfuziante Playboy Club Circuit – uma alma maldosa poderia dizer que ele fora escolhido por motivos óbvios. Mas obviamente, não o contrataram só por Fest não poder dedurar o que acontecia nas tais festas… Aí, depois de mais de 15 anos morando no frio norte dos Estados Unidos, em 1988 muda-se com a família pra Palm Harbor, Flórida. Terra de um grande público latino, o que lhe facilita imediatamente a vida. E não só a profissional: Pra mim, a Flórida é o melhor de dois mundos. Tem o american way of life combinado com um clima meio brasileiro. Em 1990 grava seu primeiro CD: Brasiliana. E aí, ao longo da década, seu trabalho passa por um grande reflorescimento. Com quase 60 anos e no auge da maturidade técnica e criativa, assina com a gravadora Concord Jazz e começa a lançar discos com assiduidade. O resultado é, como definiu o crítico americano Richard S. Ginell, do All Music Guide, uma série de energetic, brazilian-flavored, bopgrounded, small-group albums (não precisa traduzir, né?). Sempre cercado de excelentes músicos, como seu filho Phil Fest – guitarrista de mão cheia – o brasileiro Rogério Botter Maio (contrabaixo) e os velhos amigos Portinho na bateria e Cláudio Roditi no trompete e flugelhorn. Todos esses trabalhos seguem em catálogo e é só dar uma googleada que você acha uma dezena de títulos como Começar de

Novo ou Just Jobim. Sem falar que Braziliana, Oferenda (de 1993), Fascinathing Rhythm (1996) e Just Jobim (1998) têm a nota máxima na críticas de, por exemplo, o amazon.com. Manfredo faleceu aos 66 anos, em oito de outubro de 1999, no país que adotou para si. Em 1995, havia dado uma rápida passada por sua cidade natal, pra matar as saudades. Há 12 anos não via parentes e amigos porto-alegrenses e tinha esperanças de que seus discos fossem finalmente lançados no Brasil. Não aconteceu.

Manfredo, já coroa

Pior: sua morte passou em brancas nuvens no Rio Grande do Sul. E até hoje pouca gente sabe que Manfredo foi, depois de Elis Regina, o artista gaúcho mais conhecido no exterior. O fundamental site allmusic.com o define como (…) um dos segredos mais bem-guardados entre os Brazil´s Bossa Nova pioneers. Alguém que desenvolveu um estilo próprio, diferente, (…) desencadeando uma incessante corrente de notas tipicamente bop sobre um pulso rítmico brasileiro, deixando aparecer, ocasionalmente, suas raízes na música clássica. O que faz coro com o que havia escrito, na década de 1970, o barroco crítico Neil Tesser – da revista Playboy: Com suas ocupadíssimas mãos, ele ataca tão forte e brilhante que beira a rudeza, em notas que fluem numa consistente propulsão de pistões de um motor bem azeitado.

Ao que Howard Reich, do Chicago Tribune, emendava: brazilian brilliance blends with be-bop, argumentando que sua técnica de piano reunia as qualidades percussivas de McCoy Tyner com a essência erudita de (quem?) George Shearing. Rá.

Alguns dos muitíssimos títulos da discografia do cara

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Breno Sauer, 82 anos

As pessoas falam sobre o movimento musical em Porto Alegre no começo dos anos 60, Manfredo Fest, Primo Jr., Elis Regina. Mas eu não tenho muito o que dizer sobre isso… Na verdade, todo mundo tinha de ir para o Rio ou São Paulo. Hoje isso não é necessário, mas naquela época havia uma coisa acontecendo: a conexão Rio-São Paulo. E, bom, o Rio podia lançar a carreira de um artista novo, mas em São Paulo é que se ganhava dinheiro.(…) Rio e São Paulo eram realmente o ponto de referência para a música

brasileira fora do Brasil. E certamente essas idas e vindas entre Rio e São Paulo ajudaram os músicos a se preparar para a big move north para os Estados Unidos e o México. O cenário, infelizmente, não mudou tanto quanto crê o autor do depoimento acima: o veterano Breno Sauer – que, aos 82 anos, segue ativo, terceiro milênio afora, tocando… em Boston. Breno nasceu em São Sebastião do Caí, 60 quilômetros a noroeste de Porto Alegre, região de colonização alemã, em 03/11/1929. Mais um que começou tocando acordeom. Mas era de uma família de músicos que se revezavam entre a gaita, a bateria e o violão. Aí aprendeu os três – e, de lambuja, banjo. Começou a tocar profissionalmente em Porto Alegre, em 1952, alternando-se como acordeonista no Regional do Paraná − que acompanhava calouros na Rádio Gaúcha − e músico da noite, no respeitado conjunto da Boite Marabá. Até que, no ano seguinte, aconteceu a epifania obrigatória de sua geração: escutou pela primeira vez o quinteto do americano Art Van Damme. E, como costumava acontecer… deslumbramento.

O jovem acordeonista no maior clima Van Damme – o Art, não o Jean-Claude

Em busca de novos horizontes, entre 1954 e 56 se muda pra pequena (e promissora) Blumenau, em Santa Catarina, terra com tanta ou mais “alemoada” que a sua São Sebastião do Caí. Empregado na rádio e em uma boate locais, leva de Porto Alegre um quarteto estranhíssimo: ele no acordeom, um crooner – Edemar de Souza – e dois rio-grandinos (comprovando a impressionante quantidade de músicos gaúchos nascidos na cidade de Rio Grande): o vibrafonista − e também pianista, baixista, baterista, maestro e

arranjador Altivo da Luz Penteado, o Garoto, e o baterista Afonso Pirata Cid (nascido por volta de 1928). Voz, acordeom, vibrafone, bateria. Mas ainda não era o som que ele queria. Esse só vai se completar em 1957 quando são levados por um empresário da noite para Curitiba, onde fazem fama e lenda tocando nas boates Marrocos e La Vie En Rose. E é justamente nesse 1957, um ano antes do parto da Bossa Nova, que, em Curitiba, estreia o modernérrimo Breno Sauer Quinteto. Como ele mesmo contou em 2002: Totalmente influenciado por aquele som, o grupo tinha exatamente a mesma formação do Van Damme. Há um belo depoimento sobre o grupo num texto do pesquisador e crítico Roberto Muggiati: O gaúcho Breno Sauer, vibrafonista e acordeonista, revelou-se na boate curitibana La Vie en Rose. (…) intimista e sofisticado (…) lembrava o (…) inglês George Shearing. (…) A música casava com a atmosfera do bar. (…) A boate (…) era sofisticada, frequentada por gente importante. Muitos executivos de Santa Catarina vinham a Curitiba só para se divertir ali. Tinha uma pequena pista de dança, mas o público queria, mesmo, era conversar e ouvir boa música. A casa empregava algumas garotas para conversar com os clientes. Mas o forte era a música, (…) o jazz suave do grande Breno Sauer (e a guitarra de Olmir Stocker, o Alemão, que se tornaria um dos grandes instrumentistas brasileiros, e a bateria do Pirata, que anos depois comandaria o bar da piscina do Círculo Militar.) Breno no acordeom, Garoto no vibrafone, Pirata na bateria. Mais três novos gaúchos: Olmir Alemão Stocker na guitarra, Gabriel Turco Bahlis no contrabaixo, Fernando Collares de crooner. *

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Nascido em Bagé, dia 08/04/1933, Collares foi uma das grandes vozes da sua geração. Já falamos dele várias vezes, mas sempre de raspão. Entre os anos 1950 e 60, foi do cast da Rádio Farroupilha e teve seu passe disputado entre alguns dos melhores

melódicos: Primo, Flamingo e o grupo de Manfredo Fest quando este ainda morava em Porto Alegre (é curioso como, na vasta discografia melódica, pouco aparecem os cantores… os caras tinham muito trabalho nos bailes, mas parece que, na hora de gravar, os líderes dos grupos achavam que fazia mais sentido um registro o mais instrumental possível. Estética, noção de mercado ou a velha rixa entre os “músicos” e os “canários”? Boa pergunta). Collares passou temporadas no Paraná, Santa Catarina e São Paulo, sempre cantando – na capital paulista gravou seu único disco solo dessa fase, um 78 rpm lançado em 1956, com arranjos de Leo Peracchi. Até que voltou a Porto Alegre nos anos 1960, fez concurso para a Caixa Federal e passou a encarar a carreira de cantor apenas como hobby. Voltaria a gravar somente em 2003, quando lançou um CD chamado Rua da Praia, cantando músicas dos amigos Luiz Mauro, Tito Madi e Olmir Stocker – que lhe deu uma grande alegria: um troféu Açorianos de Música. Fernando, que começou como uma espécie de pré-João Gilberto e terminou a carreira cantando a plenos pulmões, morreu dia quatro de setembro de 2011, em Porto Alegre. De Garoto e de Olmir falaremos em seguida. Já Gabriel Bahlis, o Turco, porto-alegrense de 1933, era um velho companheiro de Breno na Boite Marabá e autor dos únicos solos de baixo encontráveis nos discos dos melódicos. Mas ele merecia: até hoje é um dos grandes baixistas do Brasil.

Bahlis, hoje, um craque turco.

Sim, porque Bahlis segue em atividade, radicado em São Paulo, onde é um professor da Escola de Música do Estado de São Paulo Tom Jobim − o antigo Centro de Estudos Musicais. Isso, além de tocar na Orquestra Jazz Sinfônica até os primeiros anos do terceiro milênio e orgulhar-se de um currículo que vai da Filarmônica de Londres a Roberto Carlos, passando pela conterrânea Elis Regina, Ednardo, Elton Medeiros, Eumir Deodato, Frank Sinatra, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Jards Macalé, Vânia Bastos e uma infinidade de artistas paulistas. *

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Mas voltemos a 1959, quando, recém-estreado, o quinteto recebe um excelente convite do dono do La Vie en Rose. Estavam abrindo uma filial em São Paulo, e o cara queria levar os rapazes pra lá. Vão, claro − e imediatamente impressionam. Contratados pela CBS/Columbia, em quatro anos lançam quatro discos que estão no topo do que de melhor produziu essa cena: Viva o Samba (1959), Viva a Música (1960), Viva a Bossa (1961, creditado a Breno Sauer e Seu Conjunto) e Viva o Ritmo (1962). Está lá, no final do imenso texto da contracapa do inaugural Viva o Samba, em texto de Kalil Filho: Aqui está o registro sonoro de uma nova dimensão, de um novo som para o samba. Samba de fraque, cartola, peito duro, sapatos de verniz, borboleta branca (…) sambas tipo segunda metade do século XX. O repertório tinha Noel, Jobim, Carlinhos Lyra e até Se Acaso Você Chegasse, de Lupicínio Rodrigues. Mas tudo soando muuuito cool. Já em Viva a Música, o texto (ao Breno Sauer Quinteto uma palavra se aplica com a maior propriedade – o equilíbrio) é do pesquisador e crítico musical Lucio Rangel. E o repertório se abre: de Prenda Minha a Pour Elise, de Beethoven… em ritmo de samba. Viva a Bossa tem muito Jobim, mas também Lupicínio, Carlinhos Lyra e por aí vamos. Viva o Ritmo, por fim, é 100% Bossa Nova, com mais Jobim e Lyra e Menescal. E assinado pelo Breno

Sauer Sexteto: finalmente assumiam Collares como integrante da formação. Quatro grandes discos, quase insuperáveis para essa formação.

Tanto que neste mesmo 1962 ele volta pra Porto Alegre, onde assume de vibrafonista do Flamboyant, numa tão rápida quanto marcante passagem pelo grupo. Marcante também para Breno foi botar o olho na jovenzíssima Neusa Terezinha Sauer (mais uma nascida na cidade de Rio Grande, em 13/05/1945), um pitéu de 16 anos que havia acabado de vencer o concurso A Voz de Ouro ABC, da rádio Gaúcha. Nunca mais se separaram. É nessa passagem que acontece uma das histórias mais folclóricas dessa turma: o cantor e futuro médico Sabino, naquele momento estudante de medicina, resolveu, pra ver no que dava, testar no peito de Breno um captador de som que estavam desenvolvendo no Renato & Seu Conjunto. Deu uma arritmia radical e a recomendação de procurar um cardiologista. Resultado: por problemas cardíacos – e cinquenta anos depois ele segue aí, firme! −, Breno tem de trocar de instrumento: sai o pesado acordeom e entra o vibrafone (que, claro, é ainda mais pesado, mas pelo menos não fica pendurado em ti). Monta então um novo quinteto: do original, ele e Stocker. E aí chama Oswaldo Carreiro (gaúcho de Passo Fundo) para substituí-lo no acordeom. O contrabaixista catarinense Ernoe Eger (Blumenau, 29/11/1940) entra no lugar de Bahlis e, na bateria, mais um (mais um!) filho da cidade de Rio Grande: Portinho.

Não saíram do nada: em Curitiba, Oswaldo, Ernoe a Portinho formavam um trio que revezava com o Breno Sauer Quinteto no La Vie en Rose. É essa turma − novamente Breno Sauer Quinteto − que vai se revezar novamente entre Curitiba e São Paulo e gravar Sambabessa, agora pela RGE. No repertório, Tito Madi, Jobim, e dois gaúchos: o sambista Túlio Piva, que colabora com o samba Três Amigos, e o próprio Stocker, autor da música-título. Ainda seriam chamados para acompanhar o cantor Agostinho dos Santos no LP Agostinho, Sempre Agostinho (mesmo Agostinho que, como já vimos, acabava de voltar da Copa do Mundo na Inglaterra, onde cantara acompanhado do grupo de outro gaúcho: Peixoto Primo). Aí estamos em 1964, Bossa Nova e samba-jazz a mil. É quando viram um quarteto: saem Alemão e Oswaldo, e Breno importa do sul o pianista virtuose Adão Pinheiro, seu ex-colega de Flamboyant. O grupo agora não é mais colado no George Shearing, mas sim tem a mesmíssima combinação de instrumentos do então aclamado Modern Jazz Quartet, a maior referência do refinado West Coast Jazz: vibrafone (Breno), piano (Adão), contrabaixo (Ernoe) e bateria (Portinho). E mandam ver num som que não era nem totalmente Bossa Nova, nem exatamente samba-jazz. Era outra coisa. Uma sonoridade muito particular. *

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Com essa sonoridade Modern Jazz Quartet, entre 1965 e 1966, o Breno Sauer Quarteto lança dois discos fundamentais pela Musidisc – gravadora que se especializava em samba-jazz e bossa, tinha um dos estúdios mais modernos da época e tanto Primo como Breno no seu cast: 4 na Bossa – de Bossa Nova (1966), claro. E 4 no Sucesso – com versões cool pra sucessos do momento, como as beatles Yesterday e Michelle, Canto de Ossanha, Strangers in The Night ou até mesmo o então inevitável Tema de Lara. 4 na Bossa é tão impecável que o mesmo Fausto Canova que tanto elogiara Manfredo Fest (um dos mais lendários profissionais de rádio de São Paulo, que seguiu na ativa até pouco antes de morrer, em 2009) os elege o Grupo Instrumental do Ano de 1965.

Parece bacana? É muito bacana.

Discaço

Só lembrando, que já falamos disso com relação ao Manfredo Fest Trio, os caras competiam com nada menos que Sergio Mendes & Bossa Rio, Edson Machado, Meirelles & Copa 5 e Zimbo Trio, todos em seu melhor momento. Os dois discos do quarteto (e Viva o Samba) estão entre os relançamentos de melódicos gaúchos feitos em CD e LP pela whatmusic.com. A gravadora inglesa se dedica à cena mundial de jazz-bossa-instrumental-groove dos anos 1950 a 1970, e o quarteto de Breno é referência pros amantes do gênero – desde a década de 1990 seus LPs originais custam pequenas fortunas em sites especializados. 4 na Bossa é assim definido no site da whatmusic.com: Imagine se o Modern Jazz Quartet tivesse nascido no Brasil e se misturado com o som do Tamba Trio. Uma lenda entre os colecionadores, esse LP apresenta um grupo liderado por um vibrafone, a mais jazzista face da bossa! Só a gravação de Sambossa, de Nilo Sérgio, valeria o disco: seus suingadíssimos contrapontos em cânone são um achado e tanto de arranjo. Nilo era o dono da gravadora e, certamente por coincidência, a mesma música seria gravada quase ao mesmo tempo pelo Primo Trio, igualmente contratado da Musidisc (por melhor que seja a versão de Primo, a de Breno é insuperável).

Glênio Reis, possivelmente o mais antigo radialista brasileiro em atividade ininterrupta, foi testemunha ocular e auditiva dessa cena (e personagem recorrente nos textos desta coluna). E comparte sobre Breno e seus grupos a opinião demuita gente: Era não só o melhor de Porto Alegre como o melhor do Brasil. (…) Breno foi o melhor músico que eu já ouvi e vi tocar acordeom. O multi-instrumentista Fernando do Ó, filho dessa geração, faz coro: Sem dúvida o do Breno foi o melhor som de conjuntos que eu já ouvi, principalmente da guitarra do Alemão, sensacional, o acordeom do Breno e o vibrafone do Garoto. Altivo Penteado, o Garoto, fica em São Paulo quando Breno passa para o vibrafone e ele perde o emprego no quinteto. Monta um sexteto com seu nome e, em 1966, lança um belo disco, pelo selo Farroupilha, de Tasso Banguel (o cabeça do Conjunto Farroupilha, também radicado então em São Paulo). O disco, de samba-jazz, se chama simplesmente Garoto + Sexteto, e tem Gabriel Bahlis no contrabaixo, mais sax, trompete, guitarra e bateria. Além de Garoto, é claro, mandando brasa no vibrafone. A partir dali ele vai tocar com muita gente, do jovem-guardista Eduardo Araújo a Tim Maia. Volta pra Porto Alegre nos anos 1970, onde acaba focando no mercado publicitário e hoje conseguiu concretizar sua maior paixão: uma big-band arranjada por ele, tocando música brasileira, a Orquestra Porto-Alegre de Espetáculos.

Garoto e sua orquestra *

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Entre 1965 e 1967, o cenário musical brasileiro mudou radicalmente. Com o advento da MPB, da canção de protesto, da Jovem Guarda e da Tropicália, o clima não ficou nada bom pros grupos instrumentais de samba-jazz e Bossa Nova. E lá vai o Breno Sauer Quarteto com Fernando Collares a tiracolo, de volta a Porto Alegre. Enquanto arrumam um melancólico emprego como a banda da casa do cabaré Queen´s Bar, grandes nomes do jazz americano se aproximavam da música, dos instrumentistas e dos compositores brasileiros. Alguns, como Stan Getz, fazendo fortuna com isso.

Collares, galã

É justamente nesse momento que o amigo Peixoto Primo aparece com uma proposta irrecusável. O Quartetoviraria sexteto: acrescentaria Primo, que revezaria piano e órgão com Adão Pinheiro, e o trompetista carioca Cláudio Roditi. Como é? Mas o que é que o cara viria fazer em Porto Alegre? Pois era aí que a proposta ficava mais tentadora: a ideia não era Porto Alegre, e sim o México, onde a música brasileira vivia um momento de imensa popularidade. E lá se vão Breno, com Neusa e o sexteto. Tinha sete discos lançados nacionalmente em pouco mais de uma décadade carreira. Mas ia começar vida nova, do zero (e é espantoso o quanto um grupo gaúcho tão importante, com seis discos só nos anos 60, cujos integrantes seguem vivos, foi tão completa e absolutamente esquecido). Convém lembrar que, por essa época, tanto pela situação musical quanto pela ditadura militar, houve uma emigração em massa – México, Inglaterra, Estados Unidos e Itália recebiam grande parte do melhor da música brasileira. Estavam partindo muitos dos que, nas décadas seguintes, se estabeleceriam e/ou fariam nome no exterior para sempre. Lá se iam Tom Jobim, Carlinhos Lyra, João Gilberto, Chico Buarque, Caetano, Gil, Edu Lobo, Francis Hime… E também Sérgio Mendes, João Donato, Manfredo Fest e, agora, Breno Sauer e Portinho.

Pelos próximos cinco anos terão agenda cheia no México, fazendo shows do grupo e acompanhando outros três grandes artistas brasileiros que por lá moravam ou passavam em turnê: Leny Andrade, Pery Ribeiro e Altamiro Carrilho. Além disso, Carlinhos Lyra, o Tamba Trio e João Gilberto também estavam sediados e/ou com grande presença no México naquele momento – e Breno e Neusa ficam muito amigos de Carlinhos e Luizinho Eça, do Tamba. Em 1966, o quarteto é a banda que acompanha o solista de nada menos que quatro discos gravados lá: com Leny, Pery, Altamiro e Rosana Tapajós.

O disco com Leny

Depois de um ano de alegres aventuras no México, Adão, Primo e o baixista Ernoe voltam pra casa. Roditi, por sua vez, vai tentar a vida em Nova York. Mas Breno e Neusa ficam. Sem seus dois pianistas, ele vai mais uma vez ter de mudarde instrumento – mas agora de forma definitiva. De agora em diante, Breno Sauer seria pianista – e de mão cheia. O primeiro passo é rebatizar o grupo, que vira Breno Sauer Quinteto del Brasil: Breno e o cada vez melhor bateristaPortinho agregam um baixista e um guitarrista e voltam a contar com uma voz solista. Questão resolvida em casa: quem assume é Neusa, aos 22 anos de idade, cantando melhor do que nunca. Em 1972, resolvem dar um passo adiante, atravessando a fronteira e indo encarar os míticos Estados Unidos. Breno e Neusa se decidem pela mesma Minneapolis por onde havia começado sua carreira americana o amigo Manfredo Fest. *

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Portinho, jovemzinho (na guitarra, Fernando do Ó)

Portinho quer tentar a vida em Nova York, onde já estava o amigo Cláudio Roditi. Depois de 10 anos e dois países de amizades e parceria, Breno e Portinho seguem cada um para um lado. Nos anos seguintes, o filho de Rio Grande nascido Thelmo M. Porto num 16 de junho de ano não revelado, se tornará um dos mais prestigiados e requisitados bateristas de Bossa Nova e latin jazz dos Estados Unidos. Para muitos críticos americanos, Portinho é o reigning master (o tal, o fodão, o soberano) of brazilian jazz drumming. Atua com destaque e/ou grava ao lado dos maiores: Tom Jobim, João Gilberto, Tânia Maria, Hermeto Paschoal, Don Salvador, Dom Um Romão e Eliane Elias. Mais, entre muitos outros: o argentino Gato Barbieri, os cubanos Arturo Sandoval e Mongo Santamaria, o francês Michel Legrand, e os americanos Ernie Watts, Ron Carter, Charlie Rouse, Gerry Mulligan, Steve Turre e Herbie Mann. Ao longo da década de 1990, se divide entre os grupos do cubano Paquito D´Rivera e de Manfredo Fest, quando este recomeça a gravar com regularidade. Como se não bastasse, é chamado seguidamente pra atuar como percussionista ao lado de dois dos maiores bateristas do planeta: Steve Gadd e Jack DeJohnette.

Portinho, hoje

E-mail de Paquito sobre Portinho: Portinho es uno de mis amigos favoritos. Me divierto mucho con su sentido del humor y su gracia personal, que transmite a la hora de tocar su instrumento. Nosotros lo llamamos Cortinho, por razones obvias (N.R. Portinho não é exatamente o sujeito mais alto do mundo), y ya perdí la cuenta de los proyectos que hemos trabajado juntos. (…) El Portinho es uno de esos bateristas exóticos, que como Grady Tate, Mel Lewis, Ben Riley y Mark Walker, toca intensamente sin romperte los tímpanos – ni las pelotas! Não por acaso, Portinho foi o batera de quatro CDs de Paquito –, um deles, Return to Ipanema, em parceria com Cláudio Roditi. *

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Voltando a Breno, Minneapolis acaba não se revelando lá uma loucura de trabalho. Aí, em 1974, ele e Neusa mudam-se para Chicago. E… Estamos aqui até hoje. (…) Fiquei doente e tive que operar o coração em 1977, fiquei legal e segui trabalhando sempre. Foi aí que formei o Made in Brazil. A nova formação era um septeto com um paisano de cada povo: os brasileiros Breno, Neusa e o baixista Paulinho Garcia. Mais um

saxofonista, um trompetista e um baterista americanos, um guitarrista japonês e um percussionista cubano. Começam a gravar quase que por acaso. Foram registrar uma gravação demo num estúdio local, só pra ver como soava. O dono adorou e os contratou imediatamente para seu pequeno selo, o Pausa Records. Resultado: quatro discos. Só que aí, pasmem, um chinês radicado na Califórnia já tinha registrado em seu nome a marca Made in Brasil. E processou Breno: that really was a painfull time – muito painfull… (fase realmente dolorosa). Pra se livrar do problema, ele muda o nome do grupo para Som Brasil, que começa a fazer sucesso no mesmo cenário latin habitado por Manfredo Fest, a partir de um de seus epicentros: Chicago. Desta vez a referência é o conceito hard-bop dos Jazz Messengers do baterista Art Blakey, adaptado para tocar música brasileira. É o quinteto clássico de jazz: trompete, sax, piano, baixo e bateria, acrescido de vocais. Lançam discos bastante elogiados, tocando num clima samba-jazz-funky temas de Jobim, Jorge Ben, Djavan e do próprio Breno, com direito a furiosas improvisações e brilhantes desempenhos individuais. Na década de 1980, agregam um detalhe novo e importante. Na bateria, um jovem talento recém-importado de Porto Alegre: Luiz Ewerling, ex-parceiro do cantautor gaúcho Gelson Oliveira. Em 1984… Outra operação do coração. Saí bem novamente, graças a Deus, sempre trabalhando. O Som Brasil durou 10 anos, gravou dois discos e foi importante peça de divulgação da música brasileira no norte dos Estados Unidos. Fez várias turnês pela Europa e pelo Japão e se estabeleceu no circuito costa-a-costa – muitas vezes contando com canjas luxuosas de Manfredo Fest.

Som Brasil

Em 1995, Breno sofre uma perda tão grande que acha melhor desmanchar o grupo: Um dos meus melhores músicos, Peter O’Neill, saxofonista, foi ao Brasil e conheceu, claro, uma brasileira. Depois dequatro meses se casou – e está no Rio desde 1996. Acho que estou ficando muito velho para formar mais grupos. Sigo trabalhando ainda muito, mas sem banda. Mas segue em forma, tocando e gravando com variadas formações. Entre elas, uma nova frente surgida também ao sabor do acaso, no final da década de 1990: um grupo de bailarinos e cantores argentinos de passagem por Chicago precisava de um músico que entendesse de tango e folclore sul-americano. Acabam chegando em Breno – because I´m a gaúcho from Porto Alegre. Tava no sangue.

Breno, hoje

A partir do sucesso da experiência inicial, ele começa a gostar dessa volta às origens – e monta um elogiado duo com o guitarrista chileno Armando Alvarez, que interpreta de Piazzolla a Violeta Parra – passando por Jobim. Os dois também formam um trio com o uruguaio radicado em Nova York Raul Jaurena, um dos maiores bandoneonistas da atualidade. Às vésperas de seus 80 anos, Breno se redescobria cavando suas mais profundas raízes: Eu nunca fui muito desse negócio de música gaúcha. Mas certamente nunca me senti menos gaúcho por causa disso! Breno e Neuza hoje têm duas filhas, um neto e um bisneto, e vivem no tranqüilo subúrbio de Niles, ao nordestede Chicago, de onde saem várias noites por semana. Pra tocar. *

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Um dos músicos mais impressionantes que passaram pelos grupos de Breno Sauer foi Olmir Stocker, o Alemão.

Alemão, hoje

O guitarrista é um exemplo claríssimo do que se chamaria, no Rio Grande do Sul, de “alemão-batata”. Nascido no dia 17 de junho de 1936 na germânica Taquari – 95 quilômetros a oeste de Porto Alegre – , Olmir por pouco não veio ao mundo num picadeiro: sua família era toda de circo, e foi num circo que ele veio ao mundo. Começou como acrobata e ator e, com seis anos, já tocava violão e cavaquinho. Aos sete, seus pais se separaram e ele teve de se virar como engraxate e músico de rua. Mas não se mixou. Aprendeu sozinho a ler e escrever e chegou até a estudar violão clássico no Uruguai – terra de grandes professores do estilo. Só que aí comprou uma guitarra e foi à luta. Como profissional da música o início foi já em Porto Alegre, na primeira metade dos anos 1950. Contratado da rádio Gaúcha, tinha uma vida dupla parecida com a de Manfredo Fest: divertia-se igualmente tocando tanto samba-jazz e a Bossa Nova em grupos como o Breno Sauer Quinteto quanto o também nascente rock, no Popovsky e Seus Melódicos. Toda sua vida ele passearia entre os estilos. Mas, num primeiro momento, o samba venceu. Foram anos de muito trabalho com Breno. Mas disso já falamos.

Breno Sauer Quinteto, Curitiba, anos 60

Quando, em 1964, o Breno Sauer Quinteto muda a formação para quarteto – sem guitarra –, Olmir decide ficar na cidade onde estavam: São Paulo. E, depois de seis LPs e incontáveis apresentações com o grupo de Breno, reaproxima-se do rock. No ano seguinte a Jovem Guarda explode, e ele coloca prontamente sua guitarra a serviço do melhor do iê-iê-iê paulista. Nada mais natural pra um cara que já era roqueiro quando aquela turma ainda aproveitava as jovens tardes de domingo pra jogar bola de gude. Milita especialmente nas bandas Os Wandecos e The Youngsters – sendo que a primeira foi formada para acompanhar adivinhem quem? Sim! Wanderléa: Wand-ecos, pegou?

Alemão, um wandeco

Numa ironia prévia pra quem seria conhecido como expert em ritmos brasileiros, foi n´Os Wandecos que Alemão teve seu maior sucesso como compositor: O Caderninho. A canção nasceu como samba, foi adaptada pro iê-iê-iê e acabou emplacando duasversões nas paradas (teve mais de 30 gravações): com Erasmo Carlos e com Wilson Simonal – esta com um arranjo soul-pilantragemdo próprio Olmir. Mas os Wandecos tiveram também seu hitzinho composto por ele: A Garotinha da Estação, lado B de um compacto lançado em 1968 – que, curiosamente, soa como um cruzamento de Jovem Guarda com o ainda não parido Clube da Esquina (o lado A era um tema instrumental cheio de humor, com diálogos sobre uma vovó que quer cortar o barato da netinha pianista). Sozinho ou em parceria, Alemão assinaria várias pérolas do gênero, entre as quais se destaca outra gravação de Erasmo:Cara Feia Pra Mim é Fome. Mas, provando que sempre foi um sujeito eclético, logo estaria num dos grupos mais inclassificáveis já surgidos no país. O ano era 1969, o nome da banda era Brazilian Octopus e o time era surpreendente: Stocker e o incendiário tropicalista Lanny Gordin nas guitarras e violões, o ex-Jongo Trio Cido Bianchi no piano e órgão, Hermeto Paschoal na flauta, Carlos Alberto Pereira, o Casé,

no sax e flauta, Nilson da Matta no baixo, mais Douglas de Oliveira na bateria e João Pegoraro no vibrafone. Tão cultuado quanto esquecido, o Brazilian fora montado pra ser a banda dos sensacionais eventos que a Rhodia vinha promovendo naquele final de década, verdadeiros hapennings que revolucionaram o mundo da moda e do showbizz em desfiles-show como o Momento 68, contratando estrelas como Rita Lee, ainda n´Os Mutantes. A ideia era do publicitário Lívio Rangan, o mesmo que concebeu esse grupo octopus como uma bizarra combinação de instrumentos e instrumentistas vindos das mais diversas áreas. Era, inicialmente, o Conjunto da Rhodia. Depois, mudou de nome. Instrumental, misturando de forma inédita o nascente jazz-rock com Bossa Nova, pop e tropicalismo, a banda gravou um único LP, em 1970. Disputado a tapa por colecionadores do mundo todo, antes de ser relançado em CD, o LP chegava a custar 500 dólares nos sebos internéticos. E o repertório é tão eclético quanto seria de se esperar: temas do erudito francês Fauré, Edu Lobo, Walter Santos e dos maestros Rogério Duprat e Cyro Pereira (gaúcho, como já vimos).

O mítico LP

Além, é claro, de Hermeto Paschoal. O bruxo lançava ali até um ritmo inventado por ele, batizado de Chayé (mistura de cha-cha-cha com iê-iê-iê!). No meio de tantos bambas, Olmir comparece com uma das faixas mais legais: o chamamé Canção Latina, parceria com o letrista Vitor Martins, que havia ficado em segundo lugar no Festival da Canção Latino-Americana. A mão direita de Alemão faz miséria num lascado chamamé. Talvez por culpa do excesso de inovação, o Brazilian Octopus não chegou propriamente a desenvolver uma carreira fora

dos desfiles da Rhodia. Mas chamou a atenção de gente como o saxofonista japonês Sadao Watanabe, que veio ao Brasil só pra gravar com eles – pro mercado japonês – o LP Sadao Watanabe & Brazilian 8 – Sadao meets Brazilian Friends (onde Olmir, curiosamente, está creditado como Olmir Seocaer e, em vez de Lanny e Hermeto, há um naipe de sopros). Com os estertores da Jovem Guarda, não emplacando no tropicalismo, Stocker foi entrando definitivamente pro time da MPB. Durante a década de 1970, sempre sediado em São Paulo, grava muito como músico de estúdio e passa a acompanhar figurões como a conterrânea Elis Regina, Ângela Maria, Gregório Barros, Nelson Ned ou Simone (no total, esteve na banda de mais de 90 artistas). A partir do comecinho dos anos 1980, resolve investir numa carreira solo de guitarrista e compositor de música brasileira instrumental, além de fazer parte do grupo instrumental Medusa e tornar-se membro ativo da Associação Internacional de Guitarras.

O disco mais clássico do Medusa

Seus primeiros discos solo saem pela gravadora independente paulista Som da Gente. Sua estreia, aos 45 anos, é com Longe dos Olhos, Perto do Coração, de 1981. Estreia em grande estilo: mais de 30 mil cópias vendidas, um feito e tanto pra um trabalho instrumental. A ele se segue Alemão Bem Brasileiro, de 1987, e Só Sabor, de 1990 – este já por uma multinacional, a BMG.

Discaços

Em 1992, encontra no então muito jovem violonista Zezo Ribeiro sua cara-metade musical. Montam a dupla Alemão e Zezo e um dos primeiros shows é já no Festival de Jazz de Montreal, no Canadá. Por mais de 10 anos vão trabalhar bastante, gravando três discos e fazendo shows em 23 países, tocando repertório composto por Alemão em cima de ritmos brasileiros – e, muitas vezes, gaúchos (repertório não falta a um autor de mais de 1.500 músicas). De quebra,

desenvolve uma linguagem de improvisação que buscava se distanciar do jazz na procura de um vocabulário brasileiro de música improvisada. No começo do novo milênio, Zezo vai pra Espanha, especializarse em violão flamenco. Olmir publica então seu bilíngue Método de Composição Popular e, ainda que eventualmente ainda toquem juntos, Stocker monta um novo duo, chamado Cordas Claras, em que toca violão ao lado de Jonas Santana, seu colega de Universidade Livre de Música.

Quem diz que ninguém ensina a compor música popular?

Sim, Alemão também é, há um bom tempo, requisitado professor universitário. Ensinando… guitarra brasileira. Nada mais justo.

Alemão, Hélio Delmiro e Heraldo do Monte – os três maiores guitarristas brasileiros dessa geração

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Voltando ao pago e aos anos 1960, chegou a hora do Renato & Seu Sexteto mostrar seu valor. Sobre o grupo há muitas histórias. Renato – aliás, Renato Maciel de Sá Júnior – era um multi-homem: baterista, advogado, executivo e autor da série de livros Anedotário da Rua da Praia, sucesso absoluto de vendas na Porto Alegre dos anos 1980. Nascido carioca, em 27 de abril de 1941, Renato veio para Porto Alegre moço, e era um sujeito cheio de causos pra contar – o que o fez até sua morte, dia 30 de julho de 1992.

Anedotários: as melhores histórias desse lugar e esse momento

Falando em contar estórias, quem era o saxofonista do grupo? Um rapaz chamado Luis Fernando Verissimo (Porto Alegre, 26/09/1936) que acabara de voltar dos Estados Unidos, onde tinha passado uns tempos com a família, levado por seu pai, o já então conhecidíssimo – e respeitado – escritor Erico Verissimo. Lá, Luis Fernando se dedicara com afinco ao jazz em geral e ao sax alto em particular. Afinal, ninguém vê Charlie Parker tocar ao vivo impunemente.

Foto rara de momento idem: Verissimo de FRENTE para as câmeras

Na falta de um grupo somente de jazz na Porto Alegre daqueles anos, ele acabou indo parar no sexteto. Que, então, já tinha sete integrantes (somaram o cantor Sabino Loguércio). Viram oito músicos, mantendo o nome original: Renato & Seu Sexteto. O que os tornava, sem falsa modéstia, O Maior Sexteto do Mundo. Verissimo já era aquele poço de extroversão conhecido de todos. Ia discretamente se enfiando pelos cantos do palco e, como quem não quer nada, achando um cantinho pra se esconder atrás dos outros músicos. Quando o pessoal se dava conta, tinha sumido o

instrumentista e o som do instrumento – que, sem microfone, quase desaparecia. Era preciso fazer algo pra resolver a situação. Reverter a personalidade do rapaz parecia menos viável. Quem resolve o problema é o contrabaixista Luiz Carlos Ballista. Ele já tinha inventado um captador elétrico para amplificar o som do seu baixo acústico e enfrentar a concorrência desleal do baixo elétrico do Conjunto Flamingo. Criou uma engenhoca parecida para o sax. Mais uma vez, funcionou. Vantagens de se ter um estudante de engenharia eletrônica na banda. Verissimo: Eu não tinha idéia de tocar em público quando o Renato me convidou. Participei apenas do primeiro ano do conjunto, 1961. Não peguei a sua melhor fase. Anos depois, o Renato reuniu outro grupo e descobrimos que havia um público saudoso daquele tempo. Voltei a tocar, depois de quase 20 anos parado. (A combinação de engenharia e medicina do grupo foi que detectou os problemas cardíacos de Breno Sauer. Sabino, que estudava pra ser médico, brincou de testar o captador do sax no peito de Breno, que estava por ali. O resultado, amplificado nas caixas de som, foi o diagnóstico de uma arritmia radical e a recomendação de procurar um cardiologista). O Renato & Seu Sexteto foi não só um dos primeiros melódicos, como também, enquanto durou, disputou com Norberto Baldauf o número 1 do panteão local, que se completava com os conjuntos Flamingo e Flamboyant. No andar da carroça, acabaram descobrindo cada um o seu nicho: Norberto e sua turma com o pessoal mais adulto, Renato e os seus com um apelo mais jovem. Também só perderam pros Baldaufs em longevidade, com várias reencarnações ao longo das décadas seguintes. O que os deixa menos presentes nessa história é a quase completa ausência de gravações – só um LP meio “póstumo”, de 1983, chamado Lembra?, que saiu pela Continental – e, mesmo assim, gravado na Sogipa na noite cuja grande estrela era quem? O Conjunto Norberto Baldauf, em sua despedida.

Lembra?

Despedida que, como se viu, acabou reativando, em plenos anos 1980, o interesse pelos melódicos. E fez com que o time do Renato se reunisse também para gravar um LP solo de Sabino, com direito a fotos e perfis de cada um. O nome, repleto de ironia, é Sabino & O Museu do Som e se acha fácil em sebos de vinis. Pois então. Além de Verissimo – que hoje toca jazz e bossa no grupo Jazz 6 (ao lado de Adão Pinheiro e outros grandes músicos) –, também começaram sua carreira no Renato & Seu Sexteto dois dos maiores músicos que Porto Alegre já conheceu: o percussionista Fernando do Ó e o pianista e compositor Geraldo Flach. Ambos com uma curiosidade em comum: Do Ó não era percussionista, e Geraldo – ao menos no grupo – não era pianista. Já falaremos deles. *

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Fernando do Ó (nascido em Santa Maria, 290km a oeste de Porto Alegre, no dia 3/5/1941) entrou no Renato e Seu Sexteto em 1963. Substituía o guitarrista original, Gilberto Brodt. Sim. Ainda que isso cause surpresa a quem o conhece como o percussionista mais importante na história do Rio Grande do Sul, Do Ó era gui-tar-ris-ta.

1959: Paulinho e Seu Melódico. Na guitarra: Fernando do Ó

Filho de um homem de rádio, ele também terá empregos dos mais variados no veículo por boa parte de sua vida e desde muito cedo: em dupla com a irmã, aos 14 anos já era funcionário da Rádio Imembuí de Santa Maria. Em Porto Alegre, enquanto levava paralelas as carreiras de músico, contato comercial, desenhista, projetista industrial e de ambientes, chegou a diretor artístico da Rádio Gaúcha nos anos 1980. E só parou quando saiu da rádio, em 1992. Voltando ao músico, Do Ó tocava guitarra desde os 18 anos, e seguiria no instrumento por toda a era dos melódicos, cumprindo a função com competência, mas sem maiores brilhos (eventualmente também atacava no baixo acústico e no vibrafone). Isso foi até o os anos 1970, quando os últimos remanescentes foram virando conjuntos de baile até murcharem e morrerem em quase sua totalidade.

A formação mais all star do Renato e Seu Sexteto, aqui com 10 integrantes. Entre outros: Breno Sauer no vibrafone, Portinho na bateria, Sabino de terno escuro, Rochinha no trompete, Geraldo no piano, Do Ó na guitarra, Poposki no trombone e Ernoe Eger no contrabaixo

Pois aí, um belo dia, Geraldo Flach, seu velho camarada e exparceiro de Renato e Seu Sexteto, o chamou pra tocar num show que seria uma superprodução que Geraldo estava montando. Mas com uma ressalva: Do Ó seria o… percussionista! Estávamos em 1980, e Fernando nunca tinha enfrentado peles e baquetas às ganhas. Mas havia pouco mais do que o faro do amigo a seu favor. Que, como tantas vezes, acertou.

Primeiro ensaio fotográfico do cara como percussionista… no seu primeiro ensaio musical como percussionista” Foto: Leonid Streliaev

No show, Do Ó descobriu, aos 39 anos de idade, que era um percussionista de mão cheia. Reinventou-se. Em dois anos, estava em palcos nobres europeus. Ao longo das quatro décadas seguintes, se transformaria no mais requisitado percussionista gaúcho, acompanhando em shows e estúdios praticamente todos os artistas gaúchos que importam, de todos os gêneros e gerações. Nem há como elencar aqui: pegue um disco qualquer gravado no Rio Grande do Sul de 1980 pra cá. Se há um percussionista, a chance dele ser Fernando do Ó é de pelo menos 50%. Isso sem contar um largo time de artistas de “fora” com quem tocou e/ou gravou: de Djalma Corrêa e Egberto Gismonti a Al Di Meola, Ivan Lins, Nana Caymmi e até Roberto Carlos com orquestra,passando por Ademilde Fonseca, Altamiro Carrilho… E discos, então? Já gravou em quase 800. Para qualquer músico brasileiro, um feito e tanto. Para um gaúcho que nunca morou em outro estado, provavelmente é um recorde. Ainda mais considerando

que achou sua especialidade com quase 40 anos de idade e mais de 20 de carreira. Mas muito pesa para isso. Afinal, Do Ó acabou se revelando um criativo percussionista, que usa a seu favor uma bagagem harmônica rara naqueles que se dedicam a instrumentos percussivos. E isso fica claro em dois tipos de projetos. Um deles eram os shows totalmente improvisados que ele fazia com Geraldo nos anos 1980, alguns ao lado do percussionista mineiro Djalma Corrêa. Os dois (ou três) partiam do nada e, mais de uma hora depois, haviam construído e demolido variados edifícios sonoros. O outro é o espetáculo O Universo Pelos Sons. Estreado em 2002, quando o jornalista Juarez Fonseca juntou os três para um projeto coordenado por ele, o show deu tão certo que nunca mais parou (ainda que siga inexplicavelmente inédito em CD ou DVD). É uma longa suíte de percussão composta por Do Ó e executada em trio com outros dois dos mais importantes percussionistas gaúchos: Giovanni Berti – discípulo confesso, com quem Do Ó já dividiu incontáveis discos e shows – e o também cantor e compositor Giba Giba.

Do Ó e Giovanni: quase pai e filho

Aprovado pelo Ministério da Cultura para uma turnê por 10 capitais em 2013, o show deve finalmente começar a rodar o Brasil. Nesse meio tempo, Do Ó deve finalizar o livro Santa Maria – O Tom, os Sons, Notas e Ritmos, onde viaja por suas memórias da cidade. Até então, seu único trabalho próprio em disco são as quatro excelentes faixas gravadas para o CD Três Percussionistas, raridade fora de catálogo lançada pela prefeitura de Porto Alegre em 1997 (disco que ele divide com Neri Caveira e De Santana). Na história da música da cidade que adotou para fazer sua vida, Fernando do Ó é o caso mais sério de O Homem Certo no Instrumento Errado…

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Geraldo Flach (Porto Alegre, 6/8/45 – 3/1/11) tinha apenas 19 anos quando, em 1964, conheceu Fernando do Ó, ao entrar pro Renato & Seu Conjunto. Renato era mais um dessa turma dos melódicos que queria muito – e não tinha – um vibrafonista. Por isso, foi justamente nesse

instrumento que o pianista Geraldo estreou. Só lá de vez em quando deixavam o garoto tocar o piano. Mas era uma sacanagem: afinal, ele já tinha um programa seu desde 1961: Um Piano em Destaque, na Rádio Difusora (em programas desse gênero – um pianista sozinho tocando no estúdio – havia despontado, uma década antes, Norberto Baldauf, na Gaúcha). Flach era o primeiro exemplar de pianista surgido depois do nascimento da Bossa Nova e da consagração do samba-jazz. Como Baldauf, sua formação era de piano clássico (que estudou dos cinco aos 20 anos, por influência da mãe, que também tocava). Mas sua praia era o popular. Aos 18, era um nome consagrado no cenário local. Além do Renato e Seu Sexteto, tinha agora seu próprio trio, que apresentava-se semanalmente na TV Piratini. Tinha sido convidado a integrar o badaladíssimo grupo de Renato quando ganhara o prêmio de Melhor Solista do insuspeito I Festival de Jazz e Bossa Nova do Atlântico Sul, na SAT (Sociedade Amigos de Tramandaí, cidade de veraneio do litoral norte do RS). O festival era organizado por – olha ele aí de novo! – Glênio Reis, e estrelado por uma Elis Regina às vésperas de ir embora pro Rio de Janeiro.

O exato instante em que Geraldo, de pé, pasmo, vê Fernando do Ó tocar pela primeira vez (no vibrafone). Atrás, Argus Montenegro (baterista). Rindo de tudo, Mathias Flach, o irmão de Geraldo. Tudo isso no Festival de Jazz de Tramandaí

Apenas quatro anos depois, esta mesma Elis será a intérprete de Um Novo Rumo (parceria de Geraldo com Arthur Verocai), quarto lugar no I Festival Universitário de Música Popular Brasileira da Guanabara, promovido pela TV Tupi do Rio. Já era, então, a principal cantora do País. Entre uma data e a outra, o Geraldo compositor estreara no I Festival Universitário de MPB, em Porto Alegre – repetiria presença na edição seguinte, em 1969. Também voltaria ao festival da Guanabara em sua terceira edição, em 1970. E, no meio disso, seguia com seus empregos de caixa num banco e vibrafonista do Renato, além de ser um dos mais ativos membros da Frente Gaúcha de Música Popular, de que ainda falaremos com vagar. Tudo estava muitíssimo bem encaminhado quando… …em 1970, Geraldo se forma em engenharia eletrônica – condição imposta pelo sogro para dar-lhe a mão da filha, a cantora e violonista Malu Pederneiras.

Clube do Comércio, 1964: Do Ó no contrabaixo, Malú voz e violão. Geraldo lá atrás, no piano, de olho comprido

Aí, teve de decidir que carreira seguir e ganhou a profissão mais estável. Larga a música e, estabilidade garantida, em 1971 já tinha duas filhas. Pelo menos levou o troço a sério: em 1972, num encontro de telefonia em São Paulo, foi considerado um dos seis melhores engenheiros brasileiros da área; em 1974, foi especializar-se em Estocolmo, na Suécia. Tudo estava tudo muitíssimo encaminhado quando… …em 1975, a convite do inseparável amigo Sepeh de los Santos (que trabalhava na agência de publicidade MPM), faz o jingle do Magnífico Verão J. H. Santos. O sucesso é tanto que os dois partem pra criar a produtora de áudio Plug, que seria uma das maiores do estado por 25 anos – até seu final, no começo do novo milênio.

Geraldão em 1975

Em 1977, assume a direção artística da efêmera Gravadora Isaec. E aí foi inevitável. Misturando o engenheiro com o músico, em pouco tempo transformou o tímido estúdio de dois canais no que havia de mais moderno em Porto Alegre: uma máquina de 16 canais, outra de oito. E tudo do mais bacana em volta. Retomaremos a saga da Isaec com muito mais vagar, em outro capítulo. Por hora, o que é importante é saber que, em pouco mais de dois anos, a gravadora terá produzido um número de discos que, conforme o cálculo, varia entre 80 e 120, em três diferentes selos. Resultado: meio-sem-querer-querendo, Geraldo era pela primeira vez músico em tempo integral. Em 1978, vence a linha de projeção folclórica da VIII Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana, com Sementes de Pedra, parceria

com Knelmo Alves, interpretada por Jerônimo Jardim. Ainda em festivais, participaria do MPB Shell (1981, com a canção Estamos Aí, parceria com Luís Coronel), do Festival dos Festivais (1985, Pátria Amada, com Jerônimo Jardim), do Grito de Alerta (1982) e do Musicanto Sul-Americano de Nativismo de Santa Rosa (1986). Mas entrara 1980 decidido a ampliar seus horizontes como músico. E o primeiro passo é, mais do que um show, um espetáculo instrumental – conceito até então inédito na música instrumental de Porto Alegre (e poucas vezes adotado desde então).

Clóvis Boca Freire, Geraldo Schuller, Bebeto Mohr, Paulinho Oliveira, Arthur Nestrovski, Kazú, Malu Pederneiras, Geraldo, Joceley Bohrer, Fernando do Ó. O timaço de “A Voz do Brasil”. Foto: Leonid Strelaiev

É aquele de que falamos há pouco, no qual Fernando do Ó estreou como percussionista. Se chama Voz do Brasil, e, em duas temporadas de Teatro Renascença lotado, impressionou o público com cenário, figurinos e roteiro envolvendo uma equipe de 33 pessoas – das quais 11 eram músicos em cima do palco. Entre outros, somavase a Do Ó a cozinha de Clóvis Boca Freire no baixo e Bebeto Mohr na bateria, mais o violão do hoje diretor artístico da OSESP, Arthur Nestrovski. Em 1983, outro show – RS, Brasil – repete o time Boca-BebetoDo Ó, acrescenta a guitarra roqueira de Marcelo Truda (então noTaranatiriça) e fica nada menos do que sete semanas em cartaz

no mesmo Renascença, fato até hoje raríssimo na música de Porto Alegre em qualquer época e gênero.

Boca, Do Ó, Geraldo, Bebeto, Truda: RS, Brasil

No ano seguinte, em meio às comemorações da reinauguração do Theatro São Pedro, é dele o primeiro show de música popular no novo/velho teatro. Correção: não só dele. Com Geraldo, no palco, o percussionista mineiro Djalma Corrêa. E os dois fazem pela primeira vez ali, frente a uma plateia hipnotizada, um show 100% improvisado, criando e desenvolvendo temas na hora, numa efervescente criação espontânea. Deu tão certo que Geraldo repetiria essa ideia muitas vezes, sozinho ou com alguns poucos parceiros capazes de enfrentar um desafio desse tamanho (quase sempre Djalma e Fernando do Ó, juntos ou separados). A capacidade improvisatória flachiana, aliás, sempre foi muito peculiar, principalmente se considerarmos que não eram shows de jazz ou que seguiam os clichês jazzísticos de improviso. Era outra coisa, quase que composição instantânea, experiência tão prazerosa para a plateia quanto parecia ser pra ele. A partir desse momento, Geraldo alternaria espetáculos criados na hora com shows totalmente estruturados, como os Suíte Brasileira I e II, de 1989/90, que lotou mais alguns teatros. Nele, velhos

companheiros (Do Ó, o saxofonista Geraldo Schüller, Bebeto Mohr e o flautista Ayres Pothoff) dividem o palco com dois novos parceiros que muito farão ao lado de Geraldo: o violoncelista Celau Moreyra e o contrabaixista paulista então radicado em Porto Alegre Evaldo Guedes. Mais um a comprovar que a vida começa aos 40, é a partir de 1986 que começa uma longa fila de shows e CDs em colaboração com artistas tão diversos como o grande amigo de longa data Ivan Lins, Nana Caymmi, Virgínia Rosa, Lucinha Lins, Luiz Carlos Borges, Lúcia Helena, Renato Borghetti, Vitor Hugo, a Orquestra de Câmara do Theatro São Pedro ou o grupo argentino de saxofones Los Cuatro Vientos. *

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Bom. Dezenas e dezenas de histórias e não falamos ainda em Aristides Villas-Boas ou no Noblesse. Não citamos o Melódico Mocambo, os autointitulados Baldaufinhos (tava até no cartaz!), que ficaram em quarto lugar naquela enxurrada de cartas na mesa do Walter Galvani, sobre a qual falamos aqui . Tampouco percorremos os que, mais tarde, virariam conjuntos de baile tradicionais, alguns em atividade até hoje, no interior ou na capital: Caravelle, Je Reviens, Itamone, João Roberto e Seu Conjunto e tantos outros. Nem mesmo contamos a história do Melódico Berimbau, composto por futuros padres do Seminário de Viamão (cidade da Grande Porto Alegre) e com um pé no rock. Mas antes de encerrar, a gente precisa de pelo menos um parágrafo para quatro grandes músicos já mencionados várias vezes, mas só de raspão: os pianistas Délcio Vieira e Adão Pinheiro, o saxofonista Wladimir Latuada e o baterista e compositor Mutinho. *

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O grande momento de Délcio foi como pianista da all star Orquestra de Karl Faust, a big band da Rádio Gaúcha. Não tocou em nenhum melódico, mas teve duas modernérrimas músicas gravadas por Norberto Baldauf (Capricho em Ré) e pelo Primo (Capilé) nos anos 1950. A partir dos anos 1970, foi um segredo bem guardado. Desconhecido do público, cultuado pelos músicos.

Morreu poucos meses depois de um festão de 90 anos onde tocou lindamente, revezando-se no piano com todos os grandes de sua geração (e de várias seguintes) que estavam em Porto Alegre na data. O grande comentário da noite era sobre como ainda soava moderno seu jeito de tocar e suas composições.

Adão hoje. Foto: Natália Arduíno

Já Adão Pinheiro segue moderno até hoje, em grande forma. Nasceu em Santa Maria, mas chegou a Porto Alegre em 1956, pra tocar acordeom no Regional da Rádio Itaí. Em 1959 é contratado pela Gaúcha e, três meses depois, já está no topo: a Farroupilha. Daí em diante, passou pro piano e, desde o momento em que descobriu Oscar Peterson, se transformou no mais jazzista dos pianistas dessa turma. Seu primeiro melódico é o Flamboyant, de onde é importado para integrar o Breno Sauer Quarteto em Curitiba, em 1964, brilhando nos dois excelentes discos que o grupo lançou (e seguem em catálogo no exterior). Em 1966, passa um ano no México com Breno. A partir daí, volta para Porto Alegre, onde se transforma, basicamente, num dos maiores músicos da noite da cidade.

No Breno Sauer Quarteto, um timaço

Em 1995, lançou seu único CD, Olhos de Elisa, dedicado à filha, também pianista, Elisa Pinheiro.

O único CD, que vale caçar, gravado com um time da pesada da noite da cidade

No mesmo ano, fundou o Jazz 6, que já lançou cinco CDs e que, na atual formação, é o menor sexteto do mundo (são cinco integrantes). Com ele, dois caras da turma: o saxofonista Luis Fernando Verissimo e o trompetista Luiz Fernando Rocha, o Rochinha. Mais dois músicos originalmente de outras praias: o baixista Jorge Gerhardt (ex-Hálito de Funcho) e o baterista Edinho Espíndola (ex-Liverpool e Bixo da Seda). Graças à combinação entre o prestígio extramusical de Verissimo e à qualidade dos seus integrantes, o grupo tem tocado bastante pelo Brasil afora.

O atual Jazz 6: Edinho, Jorge, Rochinha, Adão e Verissimo. Foto: Andrew Sykes

Adão, Verissimo e Jorge

Falando em saxofonista, Wladimir Lenine Latuada, o Bigode, nasceu em São Paulo e começou a tocar lá nos anos 1960 – onde acompanhou, em suas nascentes carreiras, Milton Nascimento e Gilberto Gil, além de Elis Regina e Dick Farney. Radicado em Porto Alegre, seguiu paralelas as carreiras de músico e radialista. De saída caiu em cheio no agrado dos melódicos que começavam a incorporar o saxofone em sua formação. Foi mais um que integrou o celeiro de craques que era o Flamboyant (é ele no LP O Que se Dança às Margens do Guaíba, dali saiu para o Renato e seu Conjunto, e depois esteve em conjuntos de baile como o Caravelle e o Itamone. Trabalhou mais de uma década como programador e gerente de programação de variadas rádios do grupo RBS, fundou o Sexteto Sul Bossa Jazz e segue tocando em restaurantes e eventos.

Mutinho, hoje

Já Lupicínio Moraes Rodrigues, o Mutinho (Porto Alegre, 4/2/1941), começou aos 15 anos na boite Vogue, na Avenida Farrapos, que era do seu tio Lupicínio Rodrigues. É ali que Adão Pinheiro o conhece e, em 1957, consegue levar o guri pra tocar junto com ele – primeiro na rádio Itaí e, em 1960, no… Flamboyant, claro, onde já emplaca de cara uma música no disco deles. Dali, logo estava no Flamingo. No final dos anos 1960, foi – ao lado de GibaGiba, Ivaldo Roque e João Palmeiro, um dos fundadores do Cantapovo, de que falaremos mais tarde. Dali para Buenos Aires (1968) e, a convite da pianista Tania Maria, Rio de Janeiro. Logo estava tocando novamente com Elis Regina (o que já tinha feito muitas vezes em Porto Alegre) e dois cantores de bossa-jazz que também trabalharam muito com Breno Sauer e Manfredo Fest: Leny Andrade e Pery Ribeiro. Em 1972, aparece a grande oportunidade de sua vida: acompanhar Toquinho & Vinícius, na fase de maior popularidade da dupla, circulando por todo o Brasil, Uruguai, Argentina, Equador, México e Venezuela. Em 1976, faz turnê pela Europa, reforçada por Maria Creuza. No ano seguinte, os convidados são ninguém menos que Miúcha e Tom Jobim, numa temporada de oito meses no Canecão, no Rio, que saiu em DVD nos anos 2000. E, dali, para Argentina, França, Itália e alguns países do Oriente Médio.

Mutinho, Azeitona, Vinícius, Toquinho…

Foi seu grande momento. Que seguiu mesmo depois da morte de Vinícius, tocando na banda de Toquinho solo até 1996. Mutinho sempre tocou violão e compôs, e é por aí que muita gente o conhece – ou, ao menos, suas músicas. São dele e Toquinho, pra ficar só em dois exemplos, Turbilhão e Escravo da Alegria. E, em 1983, já sem Vinícius, é o parceiro de Toquinho (geralmente música de Mutinho, letra de Toquinho) em 10 das 11 canções do sucessão que foi o álbum infantil e especial da Rede Globo Casa de Brinquedos, de onde saíram hits como A Bicicleta (cantada por Simone) e O Caderno (numa tocante interpretação de Chico Buarque). Hoje é músico da casa de um dos bares mais chiques do Brasil – o Baretto, em São Paulo – onde toca ao lado de Evaldo Guedes, que foi por anos baixista do grupo de Geraldo Flach.

Já é um trio, né? Num encontro nos anos 1980, pra rolar um som: Mutinho, Guedes e Herbie Hancock.

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Antes de concluir o capítulo até agora mais longo desta publicação, é bom recordar que, apesar de todas as excelências artísticas que essa geração produziu, o que faziam – como dizia, de forma explícita, o selo em muitos desses discos – era música pra dançar. Dançar nos clubes, dançar com os discos em casa, dançar nos gloriosos Bailes da Reitoria da Universidade Federal do RS. Tanto que foi exatamente isso que seguiu fazendo a maioria dos que não migraram pra fora do estado ou do país.

O quem é quem de 1968: cada conjunto tem seu preço…

O preço pago foi que todo esse mundo acabou relegado ao esquecimento, visto como uma coisa menor, datada, associada a universos como o da Rádio Guaíba FM de Porto Alegre – que, até

mudar a programação, em meados da década de 2000, tocava, basicamente, easy listening, lounge, música orquestrada, música de elevador ou seja lá o nome que se esteja usando no momento em que o amigo lê estas linhas: a música da Guaíba. E talvez todo esse povo ficasse mesmo destinado aos (por motivos óbvios, com um quórum cada vez mais reduzido…) Bailes da Saudade e Noites do “Lembra?” se não tivesse, no final dos anos 1990, começado a ser relembrado na Europa e nos Estados Unidos. Alguns americanos e europeus (como os da já citada gravadora whatmusic) encontraram nessa música algo muito particular, que, talvez pela proximidade, passou batido pelas gerações seguintes de gaúchos. E que também chamou a atenção de alguns especialistas brasileiros, como é o caso do músico Ed Motta e do pesquisador baiano Paulo Sá Pereira, que defende a tese que o samba feito pelos grupos gaúchos nos anos 1950 era muito mais sofisticado do que o de seus pares à época. Época, lembremos uma vez mais, imediatamente anterior à gênese da Bossa Nova. Peraí. Samba?! Paulo: Sim, tudo que os conjuntos citados faziam era samba, exceto raras exceções em discos do Norberto Baldauf, por exemplo. E o tal diferencial, qual seria? O acompanhamento rítmico é mais suave que o praticado no eixo Rio/São Paulo, onde se usavam muitos reco-recos, agogôs, tamborim, ganzás, pandeiros, etc. A marcação é feita apenas com a própria bateria e de forma muito mais adequada. Quanto aos demais instrumentos, aí é covardia: que sutileza utilizar acordeom e vibrafone num samba! No Breno Sauer, por exemplo, a distribuição das vozes (que é como são chamadas as partes da música que cada instrumento toca, sobrepondo-se ou não) é perfeita, e todos os instrumentos são tocados da região média para o grave, fazendo um efeito muito bonito. A grande novidade é o acordeom sendo tocado como instrumento rítmico (com muito molho) e não apenas como instrumento melódico. Isto só se ouve nos conjuntos do Sul – exceto um ou outro disco do paulista Orlando Silveira ou do pernambucano Sivuca.

Conversando com Breno, Adão e Garoto, num encontro armado numa das visitas de Breno ao Brasil, em janeiro de 2013, eles foram explícitos no conceito do projeto, que era tão direto quanto original: adaptar pura e simplesmente a sonoridade de Art Van Damme à música brasileira. Buscar novos arranjos para temas muitas vezes batidíssimos. Soar o-ri-gi-nal, ter uma assinatura. Voltando ao Paulo, ele arma uma tese que, talvez, um dia alguém ainda se dedique a confirmar – ou desmentir. E que fecha as pontas lá com o começo do nosso capítulo, quando contamos da passagem de João Gilberto pela cidade: Tenho absoluta certeza que (…) não foi ouvindo outros violonistas que João Gilberto desenvolveu sua famosa divisão rítmica que é a própria essência da Bossa Nova, e sim ouvindo Baldauf, Breno, Primo… Disto tenho certeza, só falta o próprio João Gilberto confirmar. Mas sobre este assunto ninguém comentou até hoje.(…) Uma pena que ninguém tenha se apercebido da importância dos melódicos no Brasil. Os ingleses da whatmusic (…) pretendem relançar todos eles. Claro, quem fazia este som altamente sofisticado além dos melódicos? “Como soou pra vocês a chegada da Bossa Nova?”, perguntei pra todos os caras dessa turma com quem tive a sorte de falar. Pra ninguém foi surpresa, nem choque. Foi apenas mudar a levada de bateria e guitarra/violão e seguir o que já vinham fazendo em arranjos e harmonias: aulas de contenção e sofisticação. Isso é Bossa Nova? Pra eles, isso era muito natural. Um resultado paralelo é que, ao longo de um quarto de século, em função disso, a música instrumental teve quantidade e variedade raras vezes vistas em plagas sulistas – com a possível exceção da cena de choros, valsas e schottischs do começo do século. Uma música que circundava o samba-canção, o bolero, o jazz e a Bossa, colorindo o canteiro onde floresceu Elis Regina (que saiu dessa turma direto para Rio e São Paulo já a mil como jazz-sambista).

Elis com o Renato & Seu Conjunto, comecinho dos anos 1960 Rochinha, Sabino, Carlos Calcanhotto, Fernando do Ó…

Ok, coisas parecidas aconteceram ao mesmo tempo em todo o Brasil. Mas a sonoridade resultante tem cara peculiar na cidade. Em nenhum outro lugar Art Van Damme e George Shearing foram tão cultuados. E, enquanto os grupos do Rio e São Paulo enveredaram rapidamente para um cada vez mais esfuziante samba-jazz que pouco ou nada tinha de Bossa Nova, os gaúchos fizeram da estética cool da bossa sua profissão de fé. Mesmo que fosse pra tocar o mais cafona dos boleros, o clima era cool. E muito disso sendo feito quase uma década antes da própria bossa ser patenteada. Enfim, garrafas jogadas ao mar, para que algum estudioso mais aprofundado desvende ou desmascare as pretensões deste texto como uma pequena ressalva à história oficial da Música Brasileira.

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