Um museu de história, um acervo em disputa: a reabertura do Museu Histórico e Pedagógico \" Major José Levy Sobrinho \" (Limeira-SP)

May 29, 2017 | Autor: João Paulo Berto | Categoria: Museum Studies, Curatorial Studies and Practice, Limeira
Share Embed


Descrição do Produto

Um museu de história, um acervo em disputa: a reabertura do Museu Histórico e Pedagógico “Major José Levy Sobrinho” (Limeira-SP) JOÃO PAULO BERTO*

INTRODUÇÃO O ensaio pretende apresentar algumas discussões em torno da única instituição museológica pública do município de Limeira, SP, o Museu Histórico e Pedagógico “Major José Levy Sobrinho”. Tendo reaberto suas portas à população1, procura-se entender aspectos da atual situação da instituição, fechada ao público desde 2006, graças a riscos iminentes de degradação do prédio sede e do acervo. Analisa-se as especificidades e o papel desempenhado pelo museu histórico e suas coleções no contexto da cidade de Limeira, tendo sempre no horizonte sua dimensão estratégica como local de disputas pela manutenção de uma determinada memória e forma de interpretar e ressignificar o passado da cidade – creditada como “berço da imigração europeia de cunho particular”, “capital da citricultura nacional” e “capital da joia folheada”. O Museu Major Levy foi fundado em 26 de janeiro de 1964, pelo Decreto no 42.987, de autoria do governador Adhemar Pereira de Barros (1901-1969), constituído no movimento do governo do Estado de São Paulo que almejava fomentar a importância paulista no imaginário republicano. Desenvolvida entre as décadas de 1950 e 1970, esta proposta levou à constituição de 79 instituições museais espalhadas pelo território do estado, compondo a Rede de Museus Histórico e Pedagógicos2. Este processo foi incentivado por variadas conjunturas históricas e culturais, em especial os festejos do IV Centenário da cidade de São Paulo, no ano de 1954, quando procurou-se configurar, tal qual ocorrera nos anos 1920 com o centenário da Independência do Brasil, um aparato histórico para reiterar a importância paulista, seus patronos e cidades, na construção do ideário nacional. *

Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas, Doutorando em História da Arte. 1 Apesar de estar apontado no resumo desta comunicação que a reabertura do Museu Histórico e Pedagógico “Major José Levy Sobrinho” teria ocorrido no mês de maio (conforme delineado pelo planejamento institucional), por uma série de fatores técnicos esta ocorreu apenas no dia 27 de junho de 2016. Para este texto, agradeço pela revisão realizada por Ana Cláudia Cermaria Berto e pelo apoio da equipe da referida instituição museológica: Ana Terezinha Carneiro Naleto (gerente do museu), Letícia França Machado (museóloga), Sara Rocha, Rosangela Souza, Luís Taschini e Veronice da Silva (equipe técnica). 2 Conforme Ana Carolina Xavier, os museus que passaram a integrar a Rede de Museus Históricos e Pedagógicos eram tanto instituições novas quanto já existentes nos âmbitos municipais e que, por solicitação dos gestores locais, passaram a integrar a rede. Para mais, XAVIER, 2014.

2

Entre os incentivadores deste movimento estava o então diretor geral do Departamento de Educação da Secretaria de Estado dos Negócios da Educação, Sólon Borges dos Reis (1917-2006), o qual propôs, em 1956, a implantação dos Museus Históricos-Pedagógicos no cenário paulista. A configuração desta que é, provavelmente, a primeira rede museal pública do Brasil, contudo, é creditada a Vinícius Stein Campos que, em 1957, assumiu a presidência do Serviço dos Museus Históricos, criado, oficialmente, em 1963. De um modo geral, inseridos em uma classificação pautada em períodos históricos (colonial, monárquico e republicano), tais museus procuravam garantir, por meio da cultura material, que o Estado de São Paulo tivera (e ainda tinha) prerrogativa na maior parte dos movimentos e episódios políticos que teriam moldado a Nação. Isto justificaria, por exemplo, que na maior parte dos conjuntos preservados por estas instituições museológicas, um dos principais é o que se refere ao movimento constitucionalista (1930-1932), considerado como um dos maiores eventos liderado por paulistas e que teria dado novos rumos para a política nacional. Contudo, mais do que isso, Tendo em vista a existência de um abismo na construção do imaginário republicano entre a população economicamente favorecida e a desfavorecida, os Museus Históricos e Pedagógicos assumiam o papel de símbolos do sucesso e honra republicanos, exaltando a participação paulista nessa transição política da Monarquia para a República, vinculado o povo, à margem desse processo, a esse acontecimento (XAVIER, 2014: 36).

Tais espaços de memória e história procuraram resguardar a cultura material das cidades em que se localizavam, bem como de suas regiões. Além disso, buscavam preservar a imagem do patrono ao qual o museu era consagrado, geralmente personalidades tidas como importantes no cenário paulista ou nacional, especialmente aquelas vinculadas ao movimento republicano. Porém, vale ressaltar, essas personagens poderiam ou não ter vinculação com o município no qual estava sediada a instituição museal, o que reforça o viés político, estratégico e simbólico do projeto. No caso do museu limeirense, o patrono escolhido foi o Major José Levy Sobrinho (18841957), natural da própria cidade de Limeira. Filho de Simão e Ana Quintus Levy, imigrantes alemães que chegaram à Fazenda Ibicaba em 1857 e que, em 1889, tornaram-se proprietários das terras, José Levy Sobrinho teve grande importância no cenário do município e do Estado. Ocupou diversos cargos políticos em Limeira, seja como vereador,

3

vice-prefeito e prefeito, além de dirigir e criar várias instituições nas áreas da saúde, esporte, cultura e lazer. Foi presidente do Diretório Municipal do partido Republicano Paulista, Juiz de Paz e suplente de Delegado, tendo também comandado o batalhão limeirense no Movimento Constitucionalista de 1932. Foi pioneiro na citricultura paulista, tendo iniciado a exportação de laranjas para a Europa no ano de 1926, além de ter contribuído no desenvolvimento da sericicultura – tal fator proporcionou com que assumisse a presidência da Comissão de Produção Agrícola do Estado, durante o governo do interventor Pedro Manuel de Toledo (1860-1935), e, em 1939, da Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio do Estado de São Paulo3. Mesmo tendo sido criado por decreto em 1964, um ano após a formatação do Serviço dos Museus Históricos, a instalação efetiva do museu de Limeira ocorreu apenas em 1973, nove anos depois. Neste período, teve forte atuação o professor de história natural e biologia e médico limeirense, Reynaldo Kuntz Busch (1898-1974), membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e responsável pela primeira obra abrangente sobre a história do município. A Busch é creditado o movimento que levou a criação do museu, bem como a formatação inicial de seus acervos. A primeira sede da instituição foi um imóvel na Avenida Ana Carolina de Barros Levy, onde repartiu espaço com a Guarda Municipal. A partir do ano de 1984, quando da desativação das atividades escolares do Grupo Escolar Coronel Flamínio Ferreira de Camargo, o museu histórico passou a ser ali sediado, dividindo espaço no prédio com a Biblioteca Pública Municipal e Infantil Prof. João de Souza Ferraz, o Centro de Memória Histórica e a Escola Municipal de Cultura e Artes (EMCEA). Importante apontar que muitos museus histórico-pedagógicos foram instalados em edifícios que tinham como função primeira a escolar, o que auxiliaria na manutenção de um espírito educacional e cívico dos espaços. O Grupo Coronel Flamínio foi construído pelo arquiteto belga José Van Humbeeck entre os anos de 1905 e 1906, no centro de um terreno doado pelo município ao Estado, conhecido como Largo do Rosário. Atualmente, em ação do ano de 2002, o prédio encontra-se tombado pelo CONDEPHAAT. “Nessas funções, além de estabelecer bases mais seguras de proteção à laranja e de mandar equipar a Casa da Laranja de Limeira com uma instalação piloto para produção de suco concentrado, incentivou o plantio de milho híbrido e apoiou o programa de abertura de paços artesianos como meio de abastecimento público de água. Também forneceu meias para que o I.P.T montasse uma usina de chumbo em Apiaí”. Para mais, ver GAZETA DE LIMEIRA, 1980. 3

4

No ano de 2009, o Museu foi desativado com o objetivo de restauro de sua sede, pendência finalizada em junho de 2016, quando de sua reabertura. Neste ínterim, o acervo foi alvo de infestação por insetos xilófagos e agentes biológicos, além de diversas polêmicas que envolveram acusações de sinistros de obras de arte e de abandono das coleções, levando a mobilizações por parte da população e das imprensas local e regional. Com o intuito da reabertura do espaço museológico, definiu-se uma agenda de atividades e estudos do acervo, bem como de reflexões acerca do ato e do fazer museológico.

UM ACERVO EM CONSTRUÇÃO E EM DISPUTA A história da formação do acervo do Museu Histórico e Pedagógico “Major José Levy Sobrinho” ainda é um estudo a ser feito, uma vez que pouca é a documentação existente sobre isso. Em um primeiro olhar, atualmente, o que se nota são conjuntos fragmentados que não configuram séries completas de documentos temáticos, tipológicos e autorais, e itens que não possuem registros capazes de confirmar, mesmo que minimamente, elementos como autoria, datação ou mesmo procedência. De um modo geral, estas questões estariam vinculadas à ausência de uma ação curatorial e de uma política de gestão e aquisição de acervos bem definidas. Vale ressaltar que, junto ao Museu Major Levy funcionavam também, de caráter municipal, mas integrandos na expografia e sem uma separação clara, os acervos do Museu de Artes Visuais (fundado em 1972), do Museu de Imagem e Som (MISLIM) e do Museu da Laranja4, totalizando cerca de 6500 itens, entre documentos textuais, bibliográficos, iconográficos, audiovisuais, sonoros e tridimensionais. Em linhas gerais, o acervo foi fruto de doações de várias famílias de Limeira e região, sobretudo as mais tradicionais, sejam de itens isolados ou de coleções de diversas procedências acumuladas pelos doadores. Apesar de o objetivo central da instituição ser a guarda de conjuntos que dialogassem estritamente com a história da cidade e região (levando em conta os atuais municípios de Cordeirópolis e Iracemápolis, antes distritos de 4

O Museu da Laranja foi criado por meio da Lei Municipal nº 1581, de 4 de outubro de 1977, durante o governo do prefeito Waldemar Mattos Silveira (1936-2001). Segundo o dispositivo legal, a instalação do referido Museu ficaria anexa ao Museu “Major José Levy Sobrinho”, e seu acervo seria constituído de “peças e documentos históricos, doados por firmas particulares, e órgãos governamentais ligados ao setor da CITRICULTURA” (LIMEIRA, 1977, caixa altar do autor). Apesar de possuir autonomia e acervo próprio, o Museu da Laranja esteve sempre dissolvido entre os demais museus, não possuindo, inclusive, livro de registro próprio, o que dificulta a identificação dos itens que o compõe.

5

Limeira), muitos artefatos não cumprem esta missão. Tal movimento poderia ser entendido, como apontam Solange Lima e Vânia Carvalho para o contexto do Museu Paulista da USP, seguindo a ideia de que Indissociável do conjunto do acervo doado, a ação de doar é sempre significativa já que não ignora o lugar social do novo guardião, especialmente quando se trata de um museu de história que acumula sentidos ligados à fundação da cidade (...) Autobiografar-se por meio de uma ação que ambiciona o estatuto público é ato recorrente e, por isso, uma chave importante para a compreensão do papel da cultura material como mediadora de trocas simbólicas protagonizadas pelo museu (CARVALHO; LIMA, 2005: 85-86).

Contudo, a pluralidade de itens expostos na antiga mostra permanente do Museu Major Levy permite a verificação de uma certa fragilidade na linha curatorial da instituição e em uma política sistemática de captação a ser seguida para a recepção das coleções. Mais do que isso, o que se percebe é que o conjunto de artefatos em guarda do museu não é capaz de recontar diversos aspectos da história material da cidade, seja em qual dimensão for, graças as suas fragmentações. Esta questão da dificuldade de recepção de acervos para a formação do museu de Limeira, contudo, é presente deste pouco antes da criação da instituição na década de 1960, como é possível observar no caso narrado por Vinícius Stein Campos: Havia na cidade, na ocasião, um professor aposentado que convertera a sua casa num verdadeiro museu de antiguidades. Colecionador apaixonado e esclarecido dos documentos, peças históricas e arte do Brasil antigo, reunira durante sua vida acervo que poderia facultar a Limeira a montagem de um museu excepcional, custando apenas o trabalho da triagem e da classificação do riquíssimo patrimônio. Visitei-o nessa oportunidade e ele se mostrou sumamente alarmado com os ataques do anônimo escrevinhador do jornal, receoso de que tais artigos impedissem a fundação do museu de Limeira e o desbarato de suas coleções se verificasse após o seu falecimento, que adivinhava próximo. Aconteceu exatamente o que previra o nosso professor. Os artigos desse mau (sic) brasileiro, dado o prestígio do órgão em que escrevia, acabaram despertando do receio da nova administração, e o museu de Limeira não foi criado. O professor faleceu algum tempo depois e as suas coleções caíram em mãos de sobrinhos, ávidos de resultados materiais com aquela herança, dispersando-se o rico acervo entre os negociantes de antiguidades e colecionadores particulares (CAMPOS, 1972: 159).

Os ataques pela mídia impressa a que Campos se refere, e que teriam interferido na demora na fundação do Museu Major Levy, foram aqueles realizados por Mário Neme (19121973). Na época diretor do Museu Paulista (1960-1973), Neme criticava o processo de criação de museus municipais sob a tutela do Estado, afirmando que o governo estadual não

6

seria capaz de mantê-los de forma eficaz (XAVIER, 2014: 62). De qualquer modo, verificase a ausência de ações efetivas na formação das coleções iniciais do Museu, algo que se alterou após a criação oficial até a inauguração da primeira sede, em 1973. Até o ano de 2009, o conjunto foi sendo acrescido por itens como coleções de discos, fitas cassete e de vídeo; documentação textual, iconográfica e cartográfica; animais taxidermizados, objetos de numismática, de caráter doméstico e etnográfico; mobiliário de espaços públicos e privados de Limeira e região, destacando-se os provenientes do Grupo Escolar Coronel Flamínio Ferreira de Camargo; equipamentos hospitalares da Santa Casa de Misericórdia de Limeira, objetos alusivos ao Movimento Constitucionalista de 1932. No acervo de artes plásticas, destacam-se obras de artistas locais, nacionais e internacionais, em especial o quadro Los Gatos, de Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Melo (1897-1976), e os prêmios de todas as edições do Salão Limeirense de Belas Artes (SBAL) e do Salão Limeirense de Arte Contemporânea (SLAC), de grande representatividade nacional. No período em que a instituição esteve fechada, o acervo do museu foi armazenado nos galpões da Estação Ferroviária da Companhia Paulista e ali permaneceu, com poucas ações de conservação, de outubro de 2009 a abril de 2013. Entretanto, um dos motivos do restauro do prédio foi o ataque de xilófagos, o que também ocorreu nas obras que ficaram embaladas sem monitoramento, proporcionando grande degradação e perdas irreparáveis nos conjuntos. A partir de 2013, após um amplo diagnóstico, passaram a ser realizadas inúmeras ações de preservação das coleções (como Desinfestação Atóxica em Ambiente de Anóxia e a utilização de Radiação Gama), bem como atividades de inventário e registro fotográfico de todos os itens. Contudo, durante este período diversos problemas ocorreram e, mesmo fechado, o museu foi tema na mídia local e nacional. Um dos casos foi o suposto sinistro de treze obras de arte, ainda em 2009, tendo sido o inquérito arquivado pela ausência de maiores provas (LEITE, 2016). De fato, a ocorrência da retirada de obras do museu possui antecedentes, como a narrada por uma museóloga da instituição acerca de dois quadros, um representando Hercule Florence e outro o antigo Teatro da Paz (MIGUEL, 2010: 60-61). Além disso, o episódio do acervo em estado de abandono na Estação Ferroviária também

7

foi alvo da mídia impressa e televisiva, especialmente pelo apontamento da situação de itens como o quadro de Di Cavalcanti e a mobília de Fazenda Ibicaba, relacionada ao Imperador Dom Pedro II (SCHIAVONI, 2016). Levando isso em consideração, foi iniciado um processo para a reabertura da instituição. Em um primeiro momento, ainda em 2013, todo o prédio do Grupo Escolar, em final de restauro, foi disponibilizado pela prefeitura municipal ao então criado Departamento de Memória Histórica para abrigar, novamente, o Museu Major Levy. Contudo, por uma ação tomada como estratégica por parte da pasta da Cultura do município, o museu voltou a ocupar somente a área onde anteriormente era sediado antes da mudança, isto é, o primeiro andar da construção de 1907. Junto dele, neste mesmo andar superior, será instalado o Centro de Memória Histórica, responsável pela guarda de importante acervo documental, destacando-se a coleção de documentos do Tribunal de Justiça de Limeira.

NOVAS PERSPECTIVAS Frente ao desafio da reabertura do Museu Major Levy5, diversas questões se colocaram, e reflexões sobre elas ajudariam a traçar algumas metas futuras para a instituição. Como visto, o espaço, desde seu nascimento, agregou diversas vozes e narrativas, internas e externas, em um campo estratégico de disputas essencialmente políticas. A visualidade imposta pelos acervos, bem como a proposta de legitimar nomes (individuais ou familiares), concepções, ideias e preceitos, ajudaram a manter sempre ativas estas forças, o que coloca como central entender quais os regimes de verdade estão em jogo, sobretudo para quê e a quem servem. Em primeiro lugar, estaria a proposta de se entender este museu, histórico em sua acepção, não como um local onde a “História” seria evocada nua e crua, mas, pelo contrário, como um lugar onde se pensa e se constrói, de modo crítico e reflexivo, o conhecimento histórico. Por isso, a necessidade de que tal instituição se coloque, no seio das comunidades que ali são representadas, como local de debate e de produção de conhecimento e pesquisas. Como apontou Pierre Nora, neste sentido, existe uma “imperiosa obrigação de recordar”. 5

O processo de reabertura do Museu contou com o apoio da Universidade Estadual de Campinas, por meio do Centro de Memória-Unicamp, do Arquivo Central do Sistema de Arquivos da Unicamp e da Rádio e TV Unicamp.

8

Contudo, esta deve ocorrer de forma crítica no ambiente museológico. O que se observou na formação do acervo do Museu Major Levy foi que houve uma exigência de que o presente acumulasse, “assiduamente, de maneira relativamente indiferenciada, todos os traços visíveis e todos os sinais materiais que constituem evidência e que vão fornecer evidência do que uma nação, um grupo, uma família é ou terá sido” (NORA, 2009: 7). Assim, é possível identificar uma grande quantidade de itens que não necessariamente versam sobre a história da cidade, tais como, por exemplo, materiais etnográficos de indígenas Karajás e tribos do Xingu e animais taxidermizados, além de uma infinidade de outros que perderam dados de origem, procedência e datação. Houve, desta forma, uma seleção e incorporação de acervos que mais dizem sobre os dirigentes da instituição do que sobre uma política de acervos institucionalizada. Cria-se um processo retórico de estima do valor de gosto ou de memória de determinadas coleções, o que nos levaria a “ultrapassar uma história dos objetos imaginada sob a forma de uma crônica de circulações mais ou menos erráticas, de percursos mais ou menos sugestivos [...] para insistir nos responsáveis por sua triagem, nas instituições que organizam seus destinos” (POULOT, 2003: 28). Tendo isto em vista, a operação de “reconstrução” do passado a que se refere Nora não se completaria, já que o objeto passaria de uma dimensão informacional para a de um mero instrumento de fetiche. A perda e a ausência de dados efetivos sobre o acervo e temas a serem explorados nas mostras implicam que “o alijamento cada vez mais rápido do passado duplica seu distanciamento “mecânico” do perigo permanente do anacronismo e do moralismo, os dois principais inimigos da História”, reforçando que “o reino da memória é, para a História, ao mesmo tempo uma negação e um desafio” (NORA, 2009: 10). As tramas estabelecidas entre a história, a memória (individual e coletiva) e as identidades, devem ser apresentadas de maneira crítica, de modo a fazer transparecer as articulações políticas que ajudaram a forçar o discurso do museu em busca da legitimação de narrativas coletivas ditas oficiais para as massas. Tal acepção poderia ser exemplificada pelo modo como a instituição teria que lidar com rótulos criados para cidade, tais como “Berço da Imigração Europeia de Cunho Particular”, “Capital da Citricultura Nacional”, ou ainda,

9

“Capital da Joia Folheada”6. A fim de romper com uma ideia de saber hierarquizado, há que se apresentar, de modo plural, as especificidades de cada argumento, instigando o visitante a construir a sua própria compreensão sobre o saber histórico. A importância das instituições museológicas é latente ainda na contemporaneidade, uma vez que estão na base da constituição de um saber científico. Levando em conta que o conhecimento é algo não-acumulativo, as exposições configuram-se como verdadeiros experimentos, com limites que se regimentam por processos de seleção, apagamentos e abordagens. Mesmo tendo isso em vista, não é possível esta articulação sem levar em conta a confiabilidade das informações emanadas por estes espaços, especialmente por meio de seus acervos e mostras. No que se refere ao museu de Limeira, percebe-se que uma grande preocupação foi a exposição dos acervos, das mais variadas tipologias e temáticas, sem uma ampla pesquisa que pudesse “colocar em evidência a qualidade particular de determinados objetos sem recair no fetichismo” (POULOT, 2003: 28). A própria catalogação é ineficaz na recuperação dos dados e na atribuição da autenticidade dos conjuntos, uma vez que as coleções não são colocadas em diálogo em nenhuma instância. Tendo estes dados por base, a solução adotada para a reabertura da instituição museal foi a configuração de uma exposição de média duração, intitulada “Um Museu para Limeira, um acervo em construção: histórias e memórias em diálogo”. A proposta era não apresentar uma história linear e factual, mas elementos que auxiliaram na constituição da história, memória e identidades limeirenses a partir da construção de uma consciência crítica sobre a própria cidade em si, narrada respeitando as vozes dos diferentes atores e estreitando o vínculo do museu com a sociedade. Foram elencados pela equipe curadora alguns temas e itens7 considerados significativos para a compreensão da história da cidade e sobre os quais foi possível dispensar alguma 6

Na antiga expografia, praticamente uma sala toda era dedicada à mobília de um dos quartos da Fazenda Ibicaba, localizada em Limeira e de propriedade de Nicolau Pereira dos Santos Vergueiro (1758-1859), responsável por trazer a primeira leva de imigrantes europeus para a lavoura brasileira em substituição à mãode-obra escrava negra. Neste quarto teria se hospedado Dom Pedro II em sua passagem por Limeira, o que também compunha o tema da sala do museu com quadros e reproduções de documentos sobre a personagem. Tais móveis foram doados ao museu por membros da família Levy, de origem germânica e que, vindos ainda no século XIX para trabalhar na fazenda Ibicaba, arremataram-na em hasta pública devido à falência da mesma e dos recursos reunidos pelo trabalho e por atividades bancárias. Desta forma, temos um duplo capital simbólico representado nesta doação: tanto a manutenção da memória do Senador Vergueiro, quanto, e talvez até mais que isso, da própria importância da tradição da família entre a elite limeirense.

10

pesquisa e averiguação dos dados. Tal seleção, subjetiva em sua essência, foi adotada, uma vez que o acervo não possui informações confiáveis que pudessem ser disseminadas junto aos visitantes. Além disso, estava a proposta de colocar os artefatos em diálogo, a fim de eles pudessem ser entendidos em suas especificidades e não apenas como itens ilustrativos, procurando criar nos visitantes um incômodo ao evidenciar que tais documentos são, acima de tudo, formas sobreviventes de apropriações do espaço público promovidas pelas doações.

Vistas da exposição de média duração do Museu Histórico e Pedagógico “Major José Levy Sobrinho”, intitulada “Um Museu para Limeira, um acervo em construção: histórias e memórias em diálogo” 7

Entre os aspectos abordados estavam: as transformações urbanas e sociais ocorridas desde a ocupação do território, dos primeiros núcleos habitacionais, das fazendas, da imigração europeia, aos progressos econômicos e sociais alcançados por sua população; as dinâmicas do mundo rural e os ofícios urbanos e rurais, evidenciando a atuação dos diferentes segmentos sociais em torno das mudanças físicas e participativas da cidade; os primórdios da industrialização, a importância da agroindústria da laranja, o surgimento da indústria de joias e folheados e a evolução da educação, desde as primeiras escolas básicas até as técnicas e as universidades particulares e públicas; o museu e a formação do acervo.

11

Fotos de André Borba, 27 jun. 2016.

À guisa de exemplificar, pode-se citar a exposição de um sino em bronze datado de 1907. Tal artefato permite estabelecer múltiplas narrativas que caminham desde o campo social e educacional (foi usado pelo primeiro grupo escolar da cidade) ao industrial (sua fundição foi realizada pela Machina São Paulo, umas das primeiras e mais importantes indústrias de Limeira). Outro núcleo expositivo dedicou-se a tentar entender, a partir dos primeiros registros, a formação do próprio museu e as dinâmicas impostas no momento da reunião de seu acervo: lado a lado estão obras de artes plásticas (como as obras do pintor italiano Ângelo Perillo e de Di Cavalcanti), artefatos indígenas, louças do período imperial (utilizadas por Dom Pedro II), animais taxidermizados, uma máquina de calcular e uma espada do período republicano – obras unidas por seu caráter exótico, interessante e curioso, repercutindo uma determinada visão de história própria de seus dirigentes e do momento em que a instituição foi criada. A partir da reabertura, entendida de forma estratégica pelo governo municipal em exercício – uma vez que em 2016 o museu completaria 10 anos fechado –, será possível reconfigurar uma política de estudo do acervo e sua completa catalogação. Tal ausência de dados poderia ser reflexo de algumas lacunas no trabalho curatorial da instituição e nas políticas de aquisição de acervos, levando em conta a potencialidade destes espaços na produção do conhecimento histórico. Conforme apontou Vânia Carvalho, Apesar do interesse histórico que podem suscitar acervos constituídos por meio de doações estimuladas pela natureza ideológica do museu, a condução da pesquisa se dá por meio de documentação maciça, coletada segundo critérios tipológicos ou associada às questões formuladas pelo curador ao longo de sua investigação (CARVALHO, 2011: 456).

Além disso, como elemento essencial do trabalho museológico, está a proposta de se pensar o viés do Museu Major Levy articulado ao caráter pedagógico, especialmente ao ensino de história. Articula-se que objetivo do museu e sua exposição não deve ser apenas instruir, mas provocar, suscitando um apelo à personalidade ou à experiência do visitante e levando a uma tomada de consciência, nesse caso, para com seus bens culturais. Em outras palavras, (...) qualquer museu é o lugar onde se expõem objetos, e isso compõem processos comunicativos que necessariamente se constituem na seleção das peças que devem ir para o acervo e no modo de ordenar as exposições. [...] Qualquer exposição tem autores que trabalham a partir de certos pressupostos,

12

explicitados ou não. Desse modo, o que mais interessa é saber o direcionamento que foi adotado. Dizer que tal livro ou tal exposição são educativos não é o bastante. É necessário saber o sentido que se dá à prática pedagógica (RAMOS, 2004: 14-15).

Portanto, torna-se premente ao Museu de Limeira repensar seus mecanismos de coleta, pesquisa, comunicação, reprodução e catalogação de acervos, entendendo uma cadeia curatorial em que os conjuntos pudessem ser o melhor possível explorados e a produção do conhecimento feita de maneira técnica e ampla. Deve-se reconhecer, de fato, sua vocação como museu de história e propor meios para que os acervos, entendidos em seu potencial e estatuto ampliados, pudessem ser explorados a partir das problemáticas históricas. A instituição, com isso, teria que se tornar um agente ativo na captação de coleções e na atração de doadores, espontâneos ou não, com a meta sempre clara da composição de suas séries documentais. Assim, propõe-se a criação de uma política de aquisição com normativas mais rígidas para a formação do acervo, coerente com a linha de atuação e missão da instituição, seja nos recortes cronológicos ou temáticos. Seria também necessário assumir a importância de uma documentação completa da história social dos acervos em suas particularidades8, atividade que cabe, sobretudo, ao curador no momento da entrada das coleções, respeitando a relação orgânica dentro do conjunto e para com o doador. Em linhas gerais, assume-se o mesmo pressuposto adotado por Carvalho e Lima na afirmativa de que “somente pela pesquisa como orientadora de todas as atividades de curadoria” poder-se-ia reverter o quadro das poucas informações sobre o contexto e uso dos objetos (CARVALHO; LIMA, 1997: 207). Tal ideário sustenta, por sua vez, a assertiva do dever dos museus colocarem, de modo democrático, as informações a serviço da comunidade. Assim, seria possível, por meio da curadoria orientada pela pesquisa, ampliar os acervos do Museu Major Levy, entendendo seus vazios e a ausência de vozes determinantes na construção das memórias e identidades limeirenses. Para concluir, na mesma proposta, é essencial também lançar um olhar desafiador e crítico sobre a cultura material museologizada e entendê-la como um sistema discursivo, a fim de

8

Neste aspecto, esta documentação deve ser mais ampla que um documento administrativo, desdobrando-se em entrevistas e depoimentos, registros de repertórios domésticos de origem da seleção feita pelo doador, registros de “negociações” com a equipe de curadoria, entre outros. Para mais, ver CARVALHO; LIMA, 2005: 101.

13

desestabilizar o visitante que, por si, deve pensar historicamente, o que tornaria completa a relação objeto-curador-espaço-visitante. Em outras palavras, “em um ciclo virtuoso, a curadoria se alimenta da relação com os objetos e estes definem os caminhos da curadoria em um movimento constante que acabada por tornar o museu indissociável de seu acervo” (CARVALHO, 2011: 469).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAMPOS, Vinícius Stein. Elementos da Museologia. São Paulo: Secretaria da Cultura, Esporte e Turismo, 1972. CARVALHO, Vânia C. de; LIMA, Solange F. de. “Cultura material e coleção em um museu de história: as formas espontâneas de transcendência do privado”. In: FIGUEIREDO, Betânia G.; VIDAL, Diana G. (orgs.). Museus: do gabinete de curiosidades à museologia moderna. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2005. CARVALHO, Vânia Carneiro de. “Cultura material, espaço doméstico e musealização”. Varia História, vol.27, n.46, p. 443-469, 2011. CARVALHO, Vânia Carneiro de; LIMA, Solange Ferraz de. “Fotografia no Museu: o projeto de curadoria da coleção Militão Augusto de Azevedo”. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, vol.5, n.1, 1997. GAZETA DE LIMEIRA. Suplemento Histórico: 1826-1980. Limeira: Limeira Artes Gráficas, 1980. LEITE, Isabela. Ex-sócio de empresa suspeita de corrupção denunciou esquema ao MP. Acesso de http://www.viaeptv.com/noticias/noticias_internaNOT.aspx?idnoticia=380982, em 20 maio 2016. LIMEIRA. Lei Municipal nº 1581, de 4 de outubro de 1977. Cria o Museu da Laranja. Acervo do Museu Histórico e Pedagógico “Major José Levy Sobrinho”. MIGUEL, Ariadne Carrera. Memórias do Museu Major José Levy Sobrinho. São Paulo: Livro Pronto, 2010. NORA, Pierre. “Memória: da liberdade à tirania”. MUSAS – Revista Brasileira de Museus e Museologia, n. 4, 2009. POULOT, Dominique. Museu e Museologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

14

POULOT, Dominique. Nação, museu, acervo. In: TOSTE, Vera, BITTENCOURT, J. et al. (org.) História representada – o dilema dos museus. Rio de Janeiro, Museu Histórico Nacional, 2003. RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto: o museu no ensino de história. Chapecó, SC: Argos, 2004. SCHIAVONI, Eduardo. Quadro de Di Cavalcanti está guardado desde 2009, sem manutenção,

em

estação

de

trem

em

Limeira

(SP).

Acesso

de

http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/02/01/quadro-de-di-cavalcantiesta-guardado-desde-2009-sem-manutencao-em-estacao-de-trem-em-limeira.htm, em 20 maio 2016. XAVIER, Ana Carolina. Museus Histórico e Pedagógicos no século XXI: processo de municipalização e novas perspectivas. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.