Um observador nos Balcãs

May 27, 2017 | Autor: Luís Eduardo Saraiva | Categoria: International Relations, International Security, Crises, Identidade Europeia De Segurança E Defesa
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Um observador nos Balcãs



Luís Eduardo Saraiva



























Lisboa
2014













Um observador nos Balcãs
























Índice





PRIMEIRA PARTE – A chegada


Razões do conflito


SEGUNDA PARTE – O país das brumas, uma república efémera


Génese de um Estado, e aspirações políticas da Krajina


TERCEIRA PARTE – A Organização


Estrutura da ONU nos Balcãs – a UNPROFOR


QUARTA PARTE – Camaradas de armas


Funções e estatuto dos Observadores Militares


QUINTA PARTE – Dobro dosli od Sarajevo


A campanha da Bósnia


SEXTA PARTE – Santo António


A campanha da Croácia


SÉTIMA PARTE – De volta ao mundo


O equilíbrio regional


CONCLUSÃO

BIBLIOGRAFIA





Nota: Todas as personagens retratadas neste texto são fictícias e qualquer
semelhança com a realidade será (?) pura coincidência.





Apresentação



A história contemporânea das relações internacionais prende-se
essencialmente ao período que vai da guerra-fria aos dias de hoje. Dentro
deste período, curto mas intenso em acontecimentos e transformações da
estrutura internacional, um dos casos que mais marcou a história recente
foi o conflito da Jugoslávia. Este trabalho tenta ilustrar os esforços da
comunidade internacional, nomeadamente as Nações Unidas, no sentido de
ajudar a resolver esse conflito.
Abordando o tema em duas perspectivas, descreve o que se passou durante
o conflito que opôs os povos da Federação Jugoslava, desde os primeiros
sinais de crise até à intervenção da NATO com um dispositivo militar forte
consolidado no terreno – separando as partes –, sob mandato das Nações
Unidas, em 1995. Assim, enquanto numa perspectiva é focado o aspecto humano
personificado na vida diária de um observador militar das Nações Unidas,
dando-se atenção ao uso dos sentidos e dos sentimentos, noutro ponto de
vista, e em paralelo, o texto desenvolve – pelo uso da "razão" – a análise
do conflito e das suas repercussões junto da comunidade internacional e
especialmente dos europeus.

A primeira parte inicia-se com a chegada de um Observador Militar das
Nações Unidas à área onde tudo decorre. Desde a emoção da partida até ser
considerado apto para "mergulhar" no conflito, a personagem passa por um
processo de gnose que dificilmente controla e que o faz mergulhar numa
vertigem sem fim. As razões do conflito não lhe ocorrem, só os seus
efeitos, que vê à sua volta e que, com surpresa, começa mesmo a notar em si
próprio. Num plano paralelo desta realidade, em forma de excerto analítico,
são apontadas as razões daquele sentir, frisando-se assim o afastamento
racional da personagem, o que ao mesmo tempo permite que o leitor a
posicione no mundo real.


A entrada na rotina diária, já em plena zona onde os ódios ainda fervem
(embora as armas raramente se façam ouvir) é referida na segunda parte,
denominada "o País das brumas, uma república efémera". Acompanhando mais
uma vez a visão humana da personagem, descreve-se ainda a criação e a
tentativa de manutenção de um novo estado – a República Sérvia da Krajina
–, pela grande minoria sérvia da Croácia.


O papel da Organização das Nações Unidas, a sua estrutura – criada para
dirimir um conflito que em vez de se extinguir, qual fogo dominado, se
propagou descontroladamente pelos Balcãs –, as imperfeições que originam
fracasso atrás de fracasso, bem como os seus efeitos nas populações, são
notados dia após dia na transformação que vão provocando na personagem,
como se pode ler na terceira parte, onde, mais uma vez em registo paralelo,
se descreve a finalidade, objectivos e constituição da força das Nações
Unidas.


A quarta parte debruça-se sobre um dos aspectos mais ricos da
experiência que se vem descrevendo ao longo do texto: a criação de fortes
sentimentos que ligam – e que algumas vezes afastam –, companheiros
diferentes na língua, na religião, na cultura, na cor da pele, mas que são
camaradas de armas. As funções e o estatuto do corpo de observadores
militares, "os olhos e os ouvidos" do Secretário-geral, são descritos e
analisados nesta parte.


"Dobro dosli od Sarajevo" é o título da quinta parte. Aqui, sempre
mantendo as duas perspectivas que correm em paralelo desde o início do
texto, a personagem mergulha no conflito que se desenrola na Bósnia e
Herzegovina, conflito que irá abandonar quando a paz – estabelecida sobre
acordos muito ténues –, já parece, no entanto, possível.


De regresso à Croácia, conforme descrito na sexta parte deste texto,
a personagem sente que o pior já passou, e que em breve será devolvido ao
mundo que é real (ou não?) e a que mereceu voltar após percorrer os
caminhos do sacrifício humano, do altruísmo e da bondade, por um lado, mas
também do mal, da crueldade e da morte. Servindo, no fim da sua missão,
numa zona considerada suave (soft), pelos analistas desta missão UN, vai
levantando indícios de que, nem aqui onde se encontra agora, a paz será
duradoura, como o futuro haveria de provar. Mantendo-se a abordagem em
dupla perspectiva, analisam-se também os factores intervenientes no
conflito, por enquanto mantendo-se no estado latente, entre croatas e
sérvios da Croácia. Vislumbram-se, no entanto, aspectos que parecem indicar
que o futuro próximo será de novo muito violento neste Sector Norte.


"De volta ao mundo", a última parte, constitui-se como um epílogo
duplo. Por um lado, o novo ser encontra-se profundamente modificado e de
convicções alteradas, após a catarse que viveu. Por outro, observa-se o
precário equilíbrio regional que deixou para trás. As modificações no mundo
interior (íntimo) da personagem encontram a sua correspondência na outra
dimensão, a das terras e das gentes, o mundo que nasce com sofrimento nos
Balcãs.


Conclui-se pela descoberta da ligação entre estes dois mundos.















PRIMEIRA PARTE








A chegada





Estou em Zagreb, finalmente. Nos últimos dias a azáfama foi enorme:
vacinas, máscara anti-gás, um colete anti-bala (para quê?...),
recomendações vindas de todos os lados, uma mãe que pensa que vou para a
guerra, os filhos tristes, malas e sacos, dólares e passaporte diplomático,
despedidas. A guia de marcha diz que vou integrar uma força de paz na ex-
Jugoslávia como observador militar. À noite, em Zurique, onde pernoitámos a
meio da viagem, o Carlos e eu trocámos ideias à mesa do jantar, numa
esplanada dum simpático restaurante suíço, numa noite bonita e calma.
Sonhávamos com a nossa missão e com aquilo que representava. Ser
observadores militares queria dizer que éramos importantes para os povos
que nos receberiam, que esperavam que acabássemos com o seu sofrimento. A
nossa missão tinha um elevado significado: éramos cruzados dos tempos
modernos.


Foi com este espírito e entusiasmo que chegámos no dia seguinte, a 17 de
Agosto de 1993. À nossa espera, no aeroporto, estava o capitão Castro, que
eu já conhecia de outras paragens, bem menos longínquas. Num instante a
nossa bagagem era atirada para dentro de um carro branco com as letras UN a
negro bem visíveis, enquanto o Castro nos bombardeava com informações que
mal conseguíamos entender.


- Fizeram boa viagem? Agora vamos jantar com mais pessoal português que
cá está. Têm que pensar onde ficam alojados. A ONU vai dar-vos algum
dinheiro, em dólares para os primeiros dias. Aqui fala-se servo-croata mas
muitas pessoas percebem inglês. Amanhã começa o vosso treino e daqui a uma
semana são distribuídos por sectores na Croácia ou na Bósnia. Quem tiver
sorte vai parar à Macedónia, mas lá o "MAS" é menor. Têm que fazer exame de
condução para poderem conduzir carros das Nações Unidas. Hoje ficam
alojados com outros observadores mas amanhã têm que alugar um apartamento.


E assim por diante.


No dia seguinte fomos conhecer o quartel-general da força de protecção
das Nações Unidas, onde apresentámos os documentos de viagem. Na cidade e
nas ruas notava-se um ambiente pesado. As pessoas eram sorumbáticas,
maldispostas. Mesmo na polícia militar da ONU, que nos verificou os
documentos à chegada, havia hostilidade.


A semana de treino e adaptação passou num instante. Já tínhamos
apartamento, na Primorska Ulica, uma rua que cruzava a avenida central de
Zagreb, não muito distante da sede da Unprofor. Era uma construção do
princípio do século, austera, com uma sala não muito grande, à qual se
ligava um pequeno quarto. A cozinha e a casa de banho eram muito pequenas.



Entretanto já tinha sido elucidado sobre o meu papel naquela missão e o
exame de condução tinha sido bem sucedido. Já sabia para onde ia, na minha
primeira colocação, pois haveria outras: ia para o Sector Leste, na
fronteira da Croácia com a Sérvia, ou melhor, com a nova Jugoslávia,
constituída já só pela Sérvia e o Montenegro. Era uma zona que fazia parte
da Krajina, um território onde os sérvios tinham proclamado uma nova
república, com o reconhecimento apenas da nova Jugoslávia. Era considerada
uma zona calma, pois entre os beligerantes havia um cessar-fogo estável que
já durava há alguns meses.


No dia 23 ia viajar para Erdut, a vila onde se situava o quartel-
general do sector Leste. Apresentei-me logo de manhã no QG da Unprofor com
quase toda a minha bagagem, deixando apenas no apartamento a roupa e
uniformes de Inverno. Um capitão norueguês, de nome Mathias, veio ter
comigo à secção de pessoal, onde eu aguardava e disse-me que era o sub-
chefe dos observadores militares de Erdut e que estava ali para me levar.
Embarquei a bagagem no Jeep e lá fomos. A viagem foi estranha. O Mathias
quase não falou. No entanto, de vez em quando comunicava pelo rádio e
transmitia o que me pareceu ser a nossa localização no momento. A auto-
estrada por onde saímos de Zagreb em direcção a Leste tinha as portagens
abandonadas e destruídas, com marcas de tiros e explosões. Depois de
percorridos cerca de 100 quilómetros sem vermos um único carro, apareceu-
nos uma barragem, feita com sacos de areia e arame farpado, cortando a
estrada. Era um posto de controlo da polícia croata. Depois de passarmos,
parámos junto a um novo posto de controlo, desta vez das Nações Unidas,
onde nos foi pedida a identificação. Os militares pertenciam ao Batalhão do
Nepal, mal falavam inglês e retiveram-nos o mais que puderam, tentando
vender-nos as suas famosas facas gurkas. Finalmente continuámos, mas fora
da auto-estrada. Estávamos agora em território controlado por sérvios,
conforme verificámos em mais um posto de controlo cuja burocracia passámos,
com algumas dificuldades, por não me conhecerem. A estrada era má pois
tinha sido aberta deliberadamente para se evitar a auto-estrada, na parte
onde passava por terra de ninguém. Mais à frente deparámos com mais um
conjunto de postos de controlo: um sérvio, depois um ONU, e finalmente
outro croata. Estávamos de novo na auto-estrada deserta. Mais um
quilómetros e saímos para Norte, por uma estrada de campo. Passámos por
várias aldeias, onde os soldados e polícia croatas constituíam a maior
parte das pessoas que víamos. Em vários pontos observavam-se viaturas
militares, colocadas de forma a cobrir os itinerários.


Chegámos a Osijek, a última cidade croata antes do território,
controlado por sérvios, conhecido por Eslavónia de Leste – o sector Leste
da UN. Muitas casas estavam destruídas e era visível nas paredes o estrago
da artilharia e armas ligeiras. Visitámos o escritório local dos
observadores. Era um espaço pequeno, numa rua perto do centro. Encontravam-
se lá militares com os mais variados uniformes de todo o mundo e algumas
moças croatas – as intérpretes. Deram-me as boas vindas, enquanto bebíamos
café e o Mathias entregava correio que recebera em Zagreb. Saímos em
direcção a Leste, e à saída da cidade encontrámos de novo o esquema de
postos de controlo: croatas – ONU com militares russos – sérvios. Neste
último posto de controlo observei semblantes hostis e muita curiosidade por
verem uma cara desconhecida. Quando souberam que eu era português deram-me
umas boas-vindas calorosas. Parece que os portugueses são bem-vindos aqui.


Chegámos enfim ao local onde iria trabalhar e conviver nos próximos
tempos. A equipa era constituída por um polaco, o Major Stefan Tomaszewski,
um queniano, o major Darweshi, um jordano, dois noruegueses e um
brasileiro, o Henrique Moreira. Este quando me viu deu-me as boas vindas,
cheio de alegria por poder de novo falar português. O seu inglês era ainda
fraco e o chefe dos observadores, o coronel jordano Yaseen Abbadi era uma
personalidade exasperante que não tinha paciência para o inglês hesitante
do Henrique. Ficámos amigos desde logo.


Já instalado na casa onde todos se alojavam, numa aldeia perto do QG do
sector, fui então posto ao corrente da situação militar e política da zona.
O sector Leste era o nome que a ONU dava à Eslavónia Oriental, uma
província da Croácia, que após os conflitos que envolveram, desde 1992, a
república croata e a Jugoslávia, tinha visto a sua maioria sérvia expulsar
os croatas e juntar-se à República Sérvia da Krajina, com capital em Knin.
Após vários avanços e recuos da linha de confrontação, com a cidade de
Vukovar e muitas aldeias e vilas destruídas por bombardeamentos e
incêndios, a população croata que não tinha sido morta tinha fugido para os
territórios controlados por Zagreb. Da mesma forma, após retaliações dos
croatas sobre os sérvios que viviam na Croácia, estes tinham-se deslocado
para os territórios controlados por Knin, a capital da Krajina, e ocupado
as casas deixadas vagas pelos anteriores proprietários. O ambiente, tanto
em Erdut, como em Dalj e no restante território da Eslavónia Oriental era
de extrema desconfiança para com desconhecidos. A Unprofor constituía uma
garantia, embora não muito fiável, de que o exército croata não atacava
esta zona. De ambos os lados permanecia a dúvida sobre o carácter imparcial
dos membros das NU.


Naquela zona, militarmente ocupada pelas NU com um Batalhão belga e
outro russo, o meu trabalho era essencialmente de patrulhar e confirmar que
as armas pesadas na posse dos sérvios não eram deslocadas e que a fronteira
com a Sérvia se mantinha inviolável. Trabalho difícil, como se provaria,
pois éramos constantemente controlados, por elementos das duas partes e
impedidos de desempenhar as nossas rotinas de trabalho.














Razões do conflito





O fim da guerra-fria leva à tentativa de emancipação dos povos subjugados
na Europa. Os nacionalismos reacendem-se e velhos conflitos, guardados há
muito pela força de regimes totalitários, voltam à luz do dia. A Jugoslávia
de Tito já tinha tido alguns prenúncios de que a pressão social estava a
aumentar, e de que as diversas comunidades da Jugoslávia não queriam viver
juntas, após a morte de Tito. Em 1992 o conflito explode. A Eslovénia e a
Croácia vêem o atear de um grande incêndio, que só irá abrandar uns anos
depois. A comunidade internacional, esquecida dos ódios que tinham
fermentado no início do século XX nos Balcãs, tenta intervir
desajeitadamente, através da ECMM e de declarações nas Nações Unidas. Mas
as pessoas tomam à força a liberdade que agora lhes é reconhecida. É assim
que a larga comunidade sérvia que vive há décadas, se não há séculos, em
territórios croatas, tenta tomar nas suas mãos um destino mais de acordo
com a sua cultura, a sua religião e os seus modos de vida. A República
Sérvia da Krajina é declarada em Knin, uma cidade croata do Sul. Para além
das aspirações desse povo que vive em terras de outros, um motivo mais
perene se vislumbra: o projecto da Grande Sérvia, tentado no início do
século XX e em períodos anteriores, e que tinha já provocado tanto sangue,
permanece ainda no subconsciente desse povo sérvio, e nos seus dirigentes.
Especialmente nestes. Desenrolam-se combates ao longo de toda a linha de
fronteira da Croácia com a Bósnia e Herzegovina e a Sérvia. Os sérvios da
Krajina (que significa "fronteira") são ajudados pelo exército federal –
que se vai retirando em direcção à Sérvia conforme a Jugoslávia se contrai,
deixando armamento e reforços –, e pelos seus irmãos do outro lado da
fronteira. O conflito só pára quando forças de interposição das Nações
Unidas, constituídas por batalhões vindos de todo o mundo, se colocam nas
linhas de conflito e ameaçam reagir a quaisquer acções violentas. Mas o seu
mandato é muito fraco, o que acaba por ser descoberto pelos políticos e
militares de Zagreb e de Knin (e também de Belgrado). Daí que se possa
assistir a massacres, ou a mudanças violentas do traçado de fronteiras –
que coincidem com a linha da frente –, estabelecidas há pouco tempo,
provocando apenas ténues respostas da ONU. Após diligências da comunidade
internacional, representada pela Comunidade Económica Europeia ou pelas
Nações Unidas, esse fogo imenso esmorece, mas não se apaga. Os
ressentimentos e os ódios perdurarão enquanto houver memória dos mortos e
da violência e enquanto os grandes projectos nacionais não se realizarem. O
novo Estado da Krajina só é reconhecido pela República Sérvia, mas as
Nações Unidas, no terreno, guardam as suas fronteiras. É um estado "de
facto", protegido por uma força multinacional, com o pretexto de proteger
as populações da violência, enquanto novos conceitos, ou no mínimo novos
matizes, buscam outros sinónimos para as ideias de "autodeterminação dos
povos", "direito à liberdade", "não-ingerência", "direito à liberdade",
etc.


























SEGUNDA PARTE











O país das brumas – uma república efémera





Estamos a 25 de Agosto. Esta gente da Krajina vive muito mal pois não é
abastecida do exterior e a inflação é absurda: 100 vezes mais rápida que a
de qualquer país sul-americano.
Hoje paguei a minha parte da renda da casa (duzentos dólares) e paguei
a lavagem de roupa à Grubana. A Grubana é uma mãe de família com dois
filhos pequenos e o marido ausente nas trincheiras. Para sobreviver lava-
nos a roupa e cuida da casa. Também tem que reportar à polícia local todos
os nossos movimentos, mas tenta ser-nos leal. Sobrevive. O Henrique tomou
esta pobre gente a seu cargo e mima os pequenos.
À noite fui jantar ao lado croata. Depois de sair de casa passámos pela
fronteira da República Sérvia da Krajina e entrámos em terra de ninguém. Aí
tivemos que circular pelo centro da estrada e depressa. Pelo centro por
causa de alguma mina e depressa por causa dos franco-atiradores, segundo
dizem os que já cá estão há mais tempo. Após o ponto de controlo da
Krajina, passámos pelo das Nações Unidas. Continuámos e mais à frente
entrámos em território croata, onde havia outra paragem. Nos três locais
tivemos que passar por uma verificação aos documentos e revista ao veículo.
É muito aborrecido! Jantei com o Henrique, o meu novo amigo brasileiro, um
óptimo repasto para "tirar a barriga de misérias". No "lado de lá" não há
este tipo e quantidade de comida.
Quando voltámos a casa encontrámos todos juntos na sala, envolvidos
numa boa sessão de anedotas. O queniano Darweshi contou-nos uma história
muito engraçada. Quando era cadete fez, em determinada noite, um treino na
selva com outros cadetes. Tinham que progredir silenciosamente à noite pela
selva fora. Ao fim de certo tempo fizeram um pequeno alto. Um dos cadetes
adormeceu imediatamente. Pouco depois a progressão continuou e todos foram
andando. O cadete adormecido acordou ao fim de algum tempo. Entretanto um
bando de antílopes, que procurava na selva um sítio confortável para
dormir, tinha ocupado o lugar da turma. O cadete levantou a cabeça e,
baixinho, chamou os camaradas.
- Eh! Estão aí?
Imediatamente os antílopes movimentaram as orelhas inquietas.
- Ah, bom! Ainda estamos todos. – Pensou ele adormecendo de novo.
Passado mais algum tempo, acordou de novo, sobressaltado no escuro.
Achando estranhos estarem todos ainda a dormir, levantou-se chamando por
eles. Os antílopes, em sobressalto, saíram correndo como loucos pela selva
fora, em todas as direcções. Apanhou tal susto o cadete que fugiu a sete
pés e só foi encontrado passados dois dias, meio louco, sem equipamento nem
uniforme, ainda a correr pela savana. Nunca mais se curou.
Durante o dia patrulhámos o Sul do sector. Vi a destruição provocada em
Vukovar e nas vilas próximas. Vukovar era uma cidade importante e agora faz
lembrar uma das cidades alemãs após a derrota na 2ª guerra Mundial. Ficou
marcada nas paredes a raiva dos combates. Impressionou-me especialmente a
destruição deliberada das igrejas. Atravessámos a fronteira para a Sérvia e
parámos numa cidade para almoçar. Custou o almoço, a cada um, cerca de
trezentos e cinquenta escudos. Para quem tem marcos ou dólares a vida na
Jugoslávia ou na República Sérvia da Krajina é muito barata.
No dia seguinte, dia 26 de Agosto, fiz uma patrulha de exame no Norte
do sector. O SMO – Chefe dos Observadores –, o tenente-coronel jordano
Yaseen, conduzia o jeep enquanto eu dirigia e orientava a patrulha pela
carta, como patrol leader. Pregou-me várias "rasteiras" sobre orientação e
observação de armamento, mas ficou satisfeito no final. Sempre me dei bem
com a bússola e os mapas.
O major polaco Tomaszewski, meu companheiro de quarto – aparentemente
um oficial da velha guarda comunista polaca, caído em desgraça e
despromovido ao actual posto –, foi almoçar a uma aldeia na Krajina durante
a sua patrulha. Quando voltou disse-nos que tinha gasto três marcos com o
almoço dos três membros da equipa. Entregou uma nota de dez marcos e
recebeu de troco trezentos milhões de dinares sérvios.
Hoje é dia dia 27. Fui a Pleso, nome da localidade próxima da capital,
onde se situa o aeroporto e onde está instalada toda a máquina logística da
missão. Comprei uma carga para a minha caneta Parker, um rádio de ondas
curtas – para tentar ouvir Portugal –, tabaco e cartas. Nos correios enviei
cartas para Portugal. Perguntei ao Diamantino, um português que é o oficial
adjunto para os assuntos de pessoal no QG de Zagreb, sobre a colocação do
Henrique, mas não havia novidades. Também tenho de saber como está um
brasileiro que foi ferido e se já se sabe alguma coisa da colocação do
Henrique, pois dentro em breve deve abandonar Erdut. Boa peça, este. Pensei
ter tempo para ir ao apartamento buscar roupa de Inverno e ver se chegou
algum correio, mas o Mathias não quis fazer desvios. A viagem de carro
demora três horas para cada lado. É muito fatigante. Para mais, temos que
parar em alguns postos de controlo e às vezes sair da auto-estrada, que se
encontra minada, e seguir por caminhos secundários. Também se alternam as
zonas em que o controlo ora é dos sérvios, ora dos croatas.
Dia 30, Segunda-feira. Fui ao Batalhão Belga levar a segunda dose de
hepatite B, pois não tive tempo em Portugal. Levava a vacina comigo, mas o
médico disse-me que já não servia pois tinha perdido os efeitos devido a
ter estado exposta a temperaturas-ambiente. Vacinou-me com uma dose belga.
O fim-de-semana passado teve como principal característica não ser um
período de descanso, ou seja, o horário semanal não contempla folga e por
isso fizemos as patrulhas normais.
No sábado, o Padraig aconselhou-me a deixar os meus valores no gabinete
do QG. Por isso, pus num envelope, o meu passaporte diplomático, a carta de
condução internacional e dinheiro. Ficaram numa gaveta por debaixo do
computador.
À noite fomos jantar de novo no melhor restaurante de Osijek,
atravessando a linha de confrontação a que os sérvios chamam pomposamente
fronteira. Paguei onze dólares por um jantar de luxo. Apesar de ser de
luxo, os espelhos da sala tinham sido partidos a tiro quando os combates se
desenrolavam por aqui.
No Domingo, fizemos uma patrulha especial com destino a Belgrado.
Acompanhavam-me o Padraig e o Dudek, um checo que conhece bem a cidade. A
viagem demorou duas horas para cada lado. Surgiu-nos um problema muito
grave que não tínhamos previsto: não há combustível na Sérvia devido ao
embargo. Perdemos hora e meia às voltas na cidade só para arranjarmos
gasóleo. Finalmente contactámos por rádio e uma equipa de salvamento das NU
forneceu-nos dois jerricans. Trocámos dinheiro no mercado negro. Por quinze
dólares recebi um monte de notas todas com mais de sete zeros. Com este
dinheiro todo bebemos cerveja e depois fomos jantar, o que nos custou cerca
de 70 cêntimos americanos cada. Mais tarde fomos a um hotel onde bebemos
café, mais cerveja e whisky. Voltámos muito cansados e cheguei cerca das
duas horas da noite a casa em Dalj. Hoje, segunda-feira, confirmei que
serei o MAO (Military Administrative Officer), uma espécie de oficial de
Estado-maior de pessoal e logística. Estou a escrever estas linhas enquanto
o Mathias e o Oliver veêm a série Twighlight Zone legendada em sérvio e o
Henrique e o Darweshi foram lá fora fazer uma marcha desportiva. O Stefan
Tomaszewski deve estar a dormir.
Hoje decidimos estabelecer um calendário semanal para haver uma certa
disciplina e não cairmos numa rotina que provoque stress ou pior, pois tudo
à nossa volta é muito depressivo. Assim consta dos serviços fazer a comida,
pôr a mesa, lavar a loiça, tratar dos carros. Consegui telefonar para a
família em Portugal, do Quartel-general do Sector, na escola primária de
Erdut. Ficaram muito contentes e eu também. É muito bom ouvir uma voz
familiar e amiga. E ainda me faltam três semanas para ir a Portugal!
Dia 2 Setembro. Ontem fomos a um barzinho aqui perto, que abriu há
pouco tempo com a protecção dos Arkans[1] e comi piza com cerveja. Os
presentes olharam-nos surpreendidos por entrarmos ali, mas aceitaram-nos e
a partir daí não tivemos problemas com aquele local. Como tinha acabado de
tomar banho imediatamente antes de sair e estava frio, fiquei com gripe.
Hoje estou um pouco dorido e com a garganta inflamada. Tomei a segunda dose
da vacina da hepatite B. Telefonei à Mariana depois de almoço, pelas 16h.
Os meninos vêm dos colégios para casa amanhã à noite. Tenho que lhes
telefonar amanhã ou sábado.
Dia 7. Estou de oficial de dia ao QG do sector Leste. Este situa-se,
como disse, na antiga escola primária de Erdut, muito próximo do quartel do
Batalhão de forças especiais do capitão Arkan. O edifício da escola aloja o
Comando Militar UN do Sector, cujo comandante é um general russo,
coadjuvado por um brigadeiro belga. O QG dos unmos materializa-se por dois
contentores brancos colocados no recreio. É aqui que temos de ficar durante
o serviço
Domingo. Falei com o Yaseen para me deixar ir no domingo, 26, de
licença. O sistema de licenças, CTO, como se chama aqui, é muito simples:
após trinta dias ininterruptos de trabalho, podemos descansar seis dias.
Vou aproveitar para ir a Portugal. Como estou de serviço nesse dia, tenho
que pedir ao Dudek, o major checo, para me fazer uma troca.
Dia 22. Como não gostava muito da grande casa onde vivíamos, e após a
nossa porta ter sido alvejada com rajadas de metralhadora – aviso de que
não éramos bem-vindos e também sintoma de que estávamos vulneráveis devido
ao isolamento –, decidi procurar uma família que me alugasse um quarto. O
Padraig, um irlandês que tinha chegado à missão uns dias antes de mim,
acompanhou-me. Encontrámos uma família com dois quartos disponíveis
(descobrimos depois que eram dos filhos, que se mudaram para a sala).
Assim, hoje foi o primeiro dia na nova casa. Paguei duzentos dólares pelo
primeiro mês. Os donos chamam-se Pedrag e Radojka, um casal sérvio na casa
dos quarenta. Ele tem um camião de mercadorias que conduz para a Hungria,
de onde traz artigos de contrabando, pela fronteira sérvia. Têm dois
filhos, Biljana e Goran. É uma família muito unida e simpática. Eu fiquei
com o quarto da Biljana e o Padraig com o do Goran.
No Domingo, dia 26 de Setembro, apanhei o comboio em Osijek às 15:55h e
cheguei a Zagreb perto das oito da noite. Dormi no apartamento na rua
Primorska. No dia seguinte deixei um envelope com 820 dólares ao senhorio e
fui para o aeroporto onde apanhei o avião para Lisboa às 9:30h.
Dia 3, Domingo. Depois de umas férias muito curtas, com a família,
viajei para Zagreb onde cheguei às 17:50h. Tinha comigo um exemplar d'"Os
Lusíadas" que comprei para o major Igor. É um oficial russo que fala um
pouco de português, pois esteve em Angola, e que gosta de declamar as
primeiras estrofes. Comprei ainda duas malas verdes para Henrique e
Padraig, uma vez que tinham gostado da minha.
No dia 1 de Novembro, depois de um período de trinta dias de
"contentor" gerindo, ou tentando gerir os apoios à missão de observação e
fazendo patrulhas, preparando reuniões, relatando incidentes – que incluiu
uma visita a uma morgue cujos frigoríficos não funcionavam –, iniciei mais
um período de CTO. Desta vez planeei ir a Itália, com o Henrique e a minha
mulher. A Mariana chegou a Zagreb às 17:50h. Ficámos no apartamento e no
dia seguinte lá partimos os três.
De Veneza retive a descoberta de um bar na praça de S. Marcos onde,
atraídos pelo som de um piano numa noite de chuva. Passámos um serão
memorável, ouvindo fado e música romântica brasileira. Era a primeira vez
que o Henrique saía da área de missão e aquela noite recobrou-lhe o alento.
A mim também.
Dia 12 de Dezembro, Domingo. Antecipando o período de CTO, devido a
adaptações nas escalas feitas no QG para permitir o maior número de
cristãos com as famílias no Natal, eu e o Henrique apanhámos o comboio para
Zagreb às 15:55h. Convidei-o para vir a Portugal. Ficamos hoje no
apartamento e amanhã partimos para Lisboa. O Henrique terminou a sua missão
no sector Leste e hoje na reunião de despedida leu uma carta agradecendo,
especialmente aos amigos Padraig e Luís, os apoios que teve.
Chegámos a Lisboa às 14:40horas do dia 13. Era a primeira vez que o
Henrique estava em Portugal. Tudo o deslumbrava. Do seu avô português,
imigrante exilado no Rio de Janeiro, retinha histórias, contadas na
infância, que agora evocava. Viajámos para todo o lado, tentando aproveitar
ao máximo os poucos dias fora da missão. A história da popularidade dos
sacos militares portugueses continuou. Eu e o Henrique fomos ao Casão
militar comprar quatro sacos e uma pasta de mapas para major Kabir do
Bangladesh. Também enviei por correio para a Noruega dois sacos para
Mathias e Oliver.
O Henrique voltou mais cedo para a Jugoslávia, mas eu fiquei para
passar o Natal. Voltei no dia 26, no avião que partiu de Lisboa às 12:30h.
Quando cheguei a Zagreb, vindo de Lisboa, encontrei-me à chegada com um
jornalista do "Público" que vinha no mesmo avião. Jantámos juntos com o
intendente Samuel, chefe da Missão Policial Portuguesa. Conversámos durante
algumas horas, e essa conversa foi transformada numa entrevista que esse
jornal publicou no domingo, dia 2 de Janeiro de 1994.
Já não sou MAO. Fui substituído por um novo UNMO. Da mesma forma, o
SMO, coronel Abbadi substituiu o Padraig e o Henrique por novos Team Leader
e Oficial de Informações. No dia 29, agora já como simples Observadores
Militares das NU, foram-nos dadas tarefas de contactos com as unidades
militares sérvias do Sector, além de patrulhas. Quando nos encontrávamos a
Sul do Sector, descobrimos de novo aberto o itinerário que da Sérvia
penetra na Eslavónia Ocidental, vindo de šid, cidade fronteiriça. Os rastos
indicavam que uma unidade de carros de combate deveria ter passado por ali
muito recentemente, talvez na noite anterior.
Ligámo-nos com o Henrique, que também se encontrava em patrulha, e
encontrámo-nos a Sul de Vukovar. Com o Henrique vinha o "Kiwi" Kent e a
Jovanka, uma das nossas intérpretes. Fomos todos almoçar a šid num
restaurante onde se come razoavelmente. Foi um ambiente de festa mas também
de tristeza pois dentro de alguns dias vamo-nos todos separar e os que vão
sair deste Sector não esperam grandes destinos.
Já tarde, quando chegámos a Erdut, apresentámos o problema da violação
de fronteira ao Abbadi, mas, da forma como reagiu, deve ter medo de fazer
relatório sobre isto, por temer retaliações dos sérvios sobre si ou sobre a
sua namorada local.
Véspera de Ano Novo. A Bojana, que é dona de uma loja de gelados
recentemente aberta em Dalj que vende cerveja particular e pouco mais,
convidou-nos para uma festa de passagem de ano que esteve a organizar nos
últimos dias. A Annie, como gosta de ser chamada, deve ter pago muito ao
capitão Arkan ou aos oficiais do batalhão dos Tigres de Arkan para poder
levar a cabo um acontecimento como este num sítio como Dalj, sem que
ninguém fosse incomodado. No entanto, estavam presentes membros influentes
da máfia sérvia da Krajina. Também foram convidados os meus senhorios, a
Radojka e o Pedrag, assim como elementos da Polícia Civil das NU. No fim,
já com toda a gente muito "rodada" pelas cervejas e vodka, posso dizer que
foi o acontecimento social mais importante no sector nos últimos meses.
4 Janeiro de 1994. Cá estou num novo ano, naquele em que me vou daqui
embora, se Deus quiser. Esta noite a nossa senhoria, a Radojka quis
preparar para nós, Padraig e eu, uma festa de despedida. Estavam presentes,
o Henrique, a Jovanka, o Padraig, o Pedrag, a Radojka, além de Goran e
Biljana, filhos do casal. Toda a gente estava muito emocionada e no fim
acabámos todos abraçados uns aos outros. Ficou para trás a lenda dos "Tri
Muŝketira", pois – disseram-nos –, não haveriam de esquecer tudo o que
tínhamos feito pela família e mesmo pela aldeia.
No dia 5, saí do Sector Leste com o Padraig e o Kabir, que também vão
para a Bósnia. E assim fiz a última viagem de Erdut para a Croácia. Viemos
de carro até Zagreb, conduzidos pelo Jacob (holandês). Esta noite e amanhã
ficamos em Zagreb e depois vamos apanhar o Ilushin (avião ucraniano a que
os anglófonos chamam "delusion", desilusão) para o aeroporto de Sarajevo.




Génese de um Estado – Aspirações políticas da Krajina





No século XIV, conforme o Império Otomano avança da Ásia Menor em
direcção à Europa, vão fugindo à sua frente diversos povos. Quando às
portas de Viena a onda otomana se quebra, comprimem-se à volta da cidade
todas essas gentes. Voltar a casa é agora impossível, pois os otomanos
consolidam a fronteira com o mundo cristão. O Imperador austríaco desloca-
as para a fronteira e convida-as a instalarem-se aí. São colonos militares.
Preservando as suas próprias forças, o império protege-se com guardas que
sendo estrangeiros, defenderão o Ocidente do Otomano, pois estão armados
com a vontade de fazerem aí a sua nova terra. São essencialmente sérvios.
As suas elites, o seu rei e os seus nobres ficaram estendidos lá para sul,
num campo que se chamará "dos corvos" (literalmente Kosovo Polje significa
campo dos corvos ou dos pássaros negros), por durante muito tempo uma nuvem
negra de rapaces ter tido aí um interminável festim de carnagem após a
batalha do Kosovo, ocorrida em 28 de Junho de 1389. O Kosovo entrará no
mito dessas gentes da fronteira militar, da Vojna Krajina.


Mas do outro lado da fronteira, nas províncias otomanas da Sérvia, da
Bósnia e da Herzegovina, irão ser despertadas as vontades de liberdade. O
Século XIX vê o "velho doente da Europa" – o Império Otomano – agonizar. É
o momento de emancipação. A Sérvia obtém a independência em 1882 e a Bósnia
e a Herzegovina, territórios otomanos, passam a ser administradas de facto,
como uma província só, pelos austro-húngaros. A Norte da fronteira militar,
na Krajina, os sérvios do Império aspiram a voltar a ser um reino, e vêem a
oportunidade de se juntarem aos seus irmãos libertados, e talvez a voltarem
ao Kosovo.


Com a Grande Guerra, o Império Austro-húngaro desmantela-se. Poderá ser
agora a oportunidade dos sérvios da Croácia voltarem a integrar a Grande
Sérvia. Mas os ventos da História sopram noutro sentido. Em 1918 constitui-
se, apesar de tudo, o Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, e pela
primeira vez, os sérvios da fronteira militar juntam-se aos seus irmãos do
Sul. Esta "Grande Casa Eslava" não dura muito, no entanto. Os exércitos de
Hitler avançam sobre os Balcãs, derrotam o Exército Imperial Jugoslavo,
ocupam o reino eslavo e criam o Estado Croata, isolando de novo os povos da
Krajina. Será preciso esperar pelos Aliados e por Tito, para de novo a
fronteira desaparecer. Um novo período de união sérvia começa. As
repúblicas mais não são que províncias de um novo Estado Jugoslavo, cujas
elites militares saem do povo que mais provou o valor das armas – os
sérvios. O caminho para o Kosovo foi de novo aberto – a Sérvia reencontrou-
se ao fim de cinco séculos.


A bipolarização do mundo pós-segunda grande guerra permitiu a
manutenção deste status quo. Mantendo-se não alinhada, a Federação
Jugoslava consolidou-se e desenvolveu o seu próprio modo de vida, mantendo
laços com a civilização comunista mas não alinhando com o sovietismo. Esta
felicidade, no entanto, não dura sempre. Outras vontades se levantam. Por
toda a Europa de Leste se tenta sacudir o jugo soviético, de um império que
agoniza. E esta vaga chega aos Balcãs. Os eslovenos querem ser livres e
praticar a democracia. Os croatas também. Ambos declaram a independência em
1991 e os conflitos militares alastram. O exército federal retrai-se. Sai
da Eslovénia. Sai da Croácia. Para trás deixa armamento e parte do seu
escol. São os sérvios da Krajina que lhes pedem. Tendo tomado o gosto da
liberdade, não mais querem ficar de novo sujeitos ao estrangeiro. A sua
terra é dos croatas? Não foram eles que a defenderam do infiel otomano? Não
foi pela defesa da Krajina que a civilização cristã manteve a paz? A
Krajina é uma entidade política consciente e capaz de defender os seus
próprios interesses, dizem. O mito e a história dão as bases para a
proclamação de uma nova república independente. Pretendem, primeiro, que
seja reconhecida a sua vontade de auto-determinação e independência, que a
Carta das Nações Unidas prescreve. Depois, se o primeiro passo for
apadrinhado pela comunidade internacional, juntarem-se aos sérvios do lado
de lá da fronteira. Nada de novo. Mas será que é tão simples? A Croácia
reclama esses territórios e tenta até a força das armas para reaver o que é
seu. Os sérvios da Krajina defendem-se como podem. Não têm mais para onde
irem. Aquela é a sua terra. A Federação Jugoslava, a nova – mais pequena –,
apoia estas pretensões e reconhece a República da Krajina. É, aliás, a
única nação a fazê-lo e por isso sofre um embargo da comunidade
internacional.


Desde 1991 que a ONU interpõe forças, batalhões internacionais, entre o
exército croata e as forças sérvias da Krajina, enquanto a Comunidade
Económica Europeia, que recebeu mandato do Conselho de Segurança, tenta
resolver o conflito pela via diplomática e política. Corpos de polícia
civil e de observadores militares das Nações Unidas – CIVPOL e UNMO, como
são chamados – distribuem-se, desarmados, pelas zonas mais disputadas e
tentam regular o dia-a-dia das pessoas, controlando os precários acordos de
cessar-fogo, protegendo as populações de abusos e mantendo o Conselho de
Segurança e o Secretário-geral permanentemente informado.


No entanto, as violações dos acordos são constantes, as populações
sofrem represálias, e os próprios observadores militares são maltratados,
sendo frequentemente ignorado o seu estatuto e o mandato que ali os mantêm.


























TERCEIRA PARTE








A Organização









Cheguei a Zagreb no dia 5 de Janeiro de 1994, acompanhado pelo Padraig
Quinn. Dentro de dois dias iremos para Sarajevo. Entretanto tenho que me
preparar para viajar num avião militar. Mas as coisas estão muito mal, lá
para Sul, e o aeroporto raramente está operacional


As pessoas com quem vivi desde Agosto de 1993 até ao início de 1994
estavam a começar a ter mais dificuldades económicas. Na parte final da
minha estadia em Dalj tinha que procurar comprar-lhes comida (para eles e
para mim). Desfaziam-se em desculpas por não poderem dar-me refeições
decentes. Apercebia-me disto pois já começava a comunicar na sua própria
língua. Imediatamente antes de nos virmos embora começávamos a ser
ameaçados pelos órgãos de comunicação social e mesmo pela milicija local de
retaliações por não tomarmos partido contra o outro lado. Quando estive no
Norte da Bósnia, em Dezembro, e falei com alguns muçulmanos, estes acusaram-
nos de deixarmos que os outros os matem. Mas na Krajina acusam-nos do
mesmo, e se na Croácia, onde a agressividade contra nós é ainda maior, os
sentimentos são semelhantes. As Nações Unidas não estão aqui para combater,
mas ninguém quer aceitar isso.


Os observadores militares distribuem-se por quase toda a ex-Jugoslávia.
Só na Eslovénia não estamos representados, pelo menos com equipas de
observação e patrulha. Na Croácia os unmos distribuem-se por várias equipas
atribuídas aos Sectores Norte, Sul, Este e Oeste - em que se encontram
divididos os territórios ocupados por forças de Knin -, com uma ou mais
equipas em cada um, tanto dentro da Krajina como no lado croata. Foi num
desses sectores que me encontrei, desde Agosto de 1993 a Janeiro de 1994,
no lado sérvio da linha de confrontação.


Na Bósnia e Herzegovina, que se encontra fragmentada e ocupada por três
facções beligerantes – se não falarmos dos dissidentes sérvios do enclave
de Bihac, a Noroeste da fronteira da Bósnia com a Croácia –, croatas,
sérvios e "bosníacos", os observadores militares têm o seu quartel-general
em Kiseljak, cidade sob controlo de croatas bósnios, rodeada por forças
servo-bósnias e muçulmanas, em coligação. Os observadores espalham-se por
diversos sectores, dos quais o principal é Sarajevo, donde os UNMOs tentam
controlar os enclaves muçulmanos de Gorazde, Zepa, Srbrenica, cercados por
forças da República Sérvia da Bósnia – RSB. O enclave sérvio de Bihac não
está integrado na RSB. Novi Travnik é um outro enclave, muçulmano, mas
desta vez cercado por forças de sérvios e croatas coligados. Assim a Bósnia
e Herzegovina é uma manta de retalhos e os observadores, tentando diminuir
as tensões, agem mais pelo instinto do que pelo raciocínio.


Por último, a antiga República Jugoslava da Macedónia encontra-se ainda
sossegada, e um observador militar que seja aí colocado é considerado um
privilegiado.


A UNPROFOR não consegue acompanhar as alianças que se fazem e desfazem,
as linhas separadoras dos contendores que mudam bruscamente, o mandato que
quase termina para ser renovado na véspera, as declarações polémicas que
emanam da sede em Nova Iorque. Já estou farto desta desorganização e
gostava que tudo isto já tivesse acabado. Estou doente, com os efeitos
destes dois dias de descanso. Já perto de viajar sinto a síndroma das
férias já gozadas e avassala-me a vontade de não ir, para não ter de passar
de novo pelas carências, pelas desilusões, pela falta de objectivos e pelas
frustrações que vivi no Sector Leste.








Estrutura da ONU nos Balcãs – a UNPROFOR




A Resolução 743, aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas,
em 1992, estabeleceu a criação de uma Força de Protecção das Nações Unidas
(UNPROFOR), no âmbito do Capítulo VII da Carta. Esta força foi inicialmente
estabelecida apenas na Croácia para assegurar a desmilitarização de certas
áreas, as chamadas "áreas protegidas pelas Nações Unidas" – UNPAS, que
correspondiam aos territórios controlados pela República Sérvia da Krajina.
O mandato desta força dizia que os seus elementos se instalariam nas áreas
protegidas na Croácia definidas pelo Conselho de Segurança para criar as
condições de paz e segurança necessárias para permitir as negociações de um
acordo político geral sobre a crise da Jugoslávia. Esta decisão do Conselho
de Segurança era apoiada pelo artigo 42º do Capítulo VII da Carta que
explica que a acção em caso de ameaça à paz, ruptura da paz e acto de
agressão será a "... Utilização de força armada para manter ou restabelecer
a paz e a segurança internacionais..."
A missão atribuída inicialmente à UNPROFOR dizia respeito quase só às
áreas dentro da Croácia, onde os conflitos continuavam, devido à
divergência de interesses entre a população sérvia – minoritária na Croácia
de um modo geral, mas em maioria em algumas zonas do território croata –,
apoiada pelo ainda existente Exército Federal Jugoslavo, e os croatas,
apoiados pelas recém formadas Forças Armadas da Croácia. A intervenção da
ONU limitava-se, portanto, à protecção das zonas onde a população sérvia da
Croácia se concentrava, as chamadas "UN Protected Áreas" (UNPAS). Enquanto
as forças militares de "capacetes azuis" se instalavam no terreno como
forças de interposição entre os beligerantes, os observadores militares das
NU (UNMOS) deveriam garantir que, através do restabelecimento do diálogo,
se chegasse a consenso relativamente ao destino dessas áreas e das suas
populações, conjuntamente comos esforços da missão da ECMM, que
representava a Comunidade Europeia. Elementos da Polícia Civil das NU
(CIVPOL), por outro lado, trabalhariam com as polícias locais para evitar
abusos e maus-tratos sobre as populações.

O dispositivo militar das Nações Unidas era constituído por Batalhões
de países que quiseram contribuir. Esses batalhões ocupavam as zonas onde
os conflitos se desenrolavam ou tinham propensão para acontecer.


No caso do Sector Leste, a Eslavónia Ocidental da Croácia, agora parte
da Krajina, estavam instalados dois batalhões das Nações Unidas, um russo e
outro belga. O comando deste sector estava entregue a um general russo,
tendo como segundo comandante um brigadeiro belga. O estado-maior deste
comando era misto, com belgas e russos, principalmente, mas incluindo
também militares e civis ONU de outras nacionalidades. Os observadores
militares e a polícia civil constituíam corpos autónomos, com missão
atribuída directamente pelo Secretário-geral, mas dependentes do comando do
sector em termos de segurança militar.


Nos restantes sectores da Croácia encontrava-se um dispositivo
semelhante. Geralmente um ou dois batalhões garantiam a segurança militar,
enquanto polícia civil e observadores das Nações Unidas se entrosavam com a
população civil e as autoridades locais tentando diminuir a tensão e levar
as partes ao diálogo.


















QUARTA PARTE








Camaradas de armas









No dia 7 de Janeiro de 1994, o Padraig e eu fomos ao aeroporto de Pleso
e depois de algumas horas de espera, com toda a bagagem atrás de nós e
vestidos com todo o equipamento, fomos informados pelo pessoal sueco do
Controlo de Movimentos que o voo tinha sido cancelado pois o aeroporto de
destino estava debaixo de forte bombardeamento. Maus presságios. Voltámos
para o apartamento da Primorska e decidimos vadiar um pouco por Zagreb.
Esta espera não melhora o nosso estado de espírito. As informações que vão
chegando da Bósnia, e nomeadamente de Sarajevo, não são encorajadoras.
Dizem-nos que os observadores militares são brutalizados, roubados e que há
mortos e feridos entre o nosso pessoal que serve nessa ex-província, a
tentar agora ser um estado.
Hoje é dia 8 e o voo para Sarajevo foi de novo cancelado. Quer dizer
que a situação continua explosiva lá em baixo. O que é que iremos
encontrar? Quando trocamos algumas palavras com pessoal da missão, ficam
constrangidos quando sabem que vamos para Sarajevo.
Eu, o Padraig e outro irlandês estivemos no Hard Rock Café. Óptimo
sítio para beber umas cervejas. Depois fomos passear para o centro de
Zagreb. As mulheres são bonitas e em muito maior número que os homens. Os
que se vêem são na sua maioria idosos. Os mais jovens são de certeza
militares em gozo de precárias licenças. Alguns têm o olhar duro e fixo.
Chegámos a Split no dia 10, tentando por este meio chegar a Sarajevo.
Ficámos num hotel que, quando o turismo esteve em alta nesta cidade
costeira, tinha sido de luxo. No entanto, o lobbie encontrava-se cheio de
sacos de areia na entrada e janelas e ao balcão estavam "funcionários" de
camuflado para nos atenderem com modos mais prussianos que de profissionais
de hotelaria. Depois do jantar (ração de combate), eu e o Padraig decidimos
ir passear junto ao paredão que corre desde o porto até às praias. Logo no
início do passeio, junto a um lampião apagado, estavam duas silhuetas
agachadas para se protegerem da chuva miudinha que caía. Quando ficámos
mais perto, vimos que eram duas mulheres que, logo que nos notaram, se
levantaram e compuseram simultaneamente a roupa e o sorriso. Eram duas
fracas figuras, vestidas de trapos que já tinham sido vestidos de alguma
classe. Uma delas tossia sofridamente enquanto a outra tentava disfarçar
abraçando-a. As pinturas exageradas da cara escorriam devido à humidade.
Ofereceram-se por um punhado de dólares. Tentámos um pouco de conversa,
levados mais pela misericórdia do que pela curiosidade. Mas só queriam
dinheiro, não conversa, em troca dos seus serviços. Demos-lhes dinheiro e
mandámo-las embora. O Padraig comoveu-se e afastou-se um pouco, emocionado,
meditando ou rezando. Amanhã vamos tentar chegar a Sarajevo, embora as
notícias continuem a não ser animadoras.

Tínhamos ido de avião para Split para tentarmos chegar a Sarajevo, mas
acabámos por voltar para Zagreb no dia 11 de Janeiro: A UNPROFOR está em
alerta vermelho, o que significa que estão proibidos quaisquer voos de e
para a capital da Bósnia e Herzegovina. O Padraig ficou comigo no
apartamento da Primorska, depois de mais uma deambulação nocturna nos bares
e ruas de Zagreb.
Entre nós vão-se criando laços de amizade, de solidariedade, uma ideia
de irmandade que só nós entendemos. O desaparecimento do Henrique deixou-
nos infelizes. Pensávamos, no entanto, que estaria bem, pois o seu novo
sector era "suave". Nós os dois, no entanto, íamos para um sítio onde a
sobrevivência se conseguiria à custa da entreajuda e de sabermos que alguém
cuidaria de nós sempre que fosse possível, e que no mínimo se preocuparia.







Funções e estatuto dos Observadores Militares





Os observadores militares das Nações Unidas são oficiais militares
designados pelos governos de estados membros para servir nas Nações Unidas
numa base temporária, a pedido do secretário-geral. Enquanto permanecerem
na missão estão sob o comando do Chefe dos Observadores Militares (CMO) e
respondem perante ele sobre a sua conduta e o desempenho dos seus deveres.
Os observadores militares devem, durante o período da sua missão, cumprir
com as suas funções e regular a sua conduta visando apenas o interesse das
Nações Unidas. Não devem seguir ou aceitar instruções de qualquer outra
autoridade externa às Nações Unidas. Devem ser sempre imparciais e
objectivos, e devem evitar qualquer acção que dê origem a dúvidas sobre a
sua capacidade para permanecerem imparciais. Não devem usar qualquer
informação obtida para alcançarem vantagens pessoais. No momento em que
aceitam a sua nomeação os observadores devem assinar uma declaração no
sentido do descrito acima. Esta obrigação não cessa com o fim da missão.
Não estão autorizados a transportar armas nem máquinas fotográficas. Os
observadores serão responsáveis por encontrar o seu próprio alojamento e
pagar todas as despesas relacionadas. Os observadores estão, no que diz
respeito a privilégios e imunidades, cobertos pelo artigo 105º da Carta das
Nações Unidas e artigo VI da Convenção sobre privilégios e imunidades das
Nações Unidas[2].


Na prática, o estatuto dos observadores era constantemente posto em
causa. Todas as partes tentavam obter o máximo de vantagens com a presença
dos unmos. Eram assiduamente tentados a emitir juízos de valor e a sua
isenção era muitas vezes abalada por viver e coabitar com uma das partes.
Daí as vantagens em não deixar um unmo muito tempo no mesmo sector. Só
convivendo e escutando todas as partes poderiam as suas tarefas ter valor e
o seu espírito crítico ser isento.


















QUINTA PARTE








"Dobro dosli od Sarajevo"[3]







Dia 12 de Janeiro. Hoje faço 38 anos e acabei de chegar finalmente a
Sarajevo. Há muito bombardeamento para o centro e da cidade para as
posições sérvias. Tivemos que sair do avião, equipados com o colete anti-
bala e capacete, a correr em direcção ao edifício do aeroporto, coberto de
sacos de areia, pois ouviam-se os tiros de artilharia e o fogo de armas
automáticas muito perto. Parece que os sérvios fazem tiro das proximidades
dos Montes Igman para o centro da cidade.
Dia 13. Hoje a primeira coisa a fazer é marcar voo no Controlo de
Movimentos da ONU para dia 24 às 16:00 para Zagreb e para o dia 2 às 13:45
para regressar a Sarajevo. Deverei deixar a minha bagagem no alojamento que
me foi destinado aqui?
Dia 15. Ontem, Sexta-feira, dia 14 de Janeiro, fui colocado em Lima[4]
3, no lado sérvio, onde estava o Vilhelm (Dinamarca) e o Mike (UK) mais a
Sofija (sérvia). Vou aqui passar o fim-de-semana e depois irei estagiar
noutra equipa. Enquanto estávamos num posto de observação já usado
anteriormente pelos unmos, fomos alvejados por um atirador-furtivo. Quando
voltávamos, soldados sérvios mandaram-nos parar e disseram-nos que o acesso
àquele lugar era restrito. Avisaram-nos que da próxima vez nos prendem.
Hoje, dia 16, Domingo, fui, com o Vilhelm, a uma casa particular de um
soldado sérvio que tínhamos conhecido ontem junto a uma peça de artilharia
15,5 que bombardeava Sarajevo. O curioso é que enquanto observávamos, os
militares continuavam a disparar a peça de artilharia e chegaram mesmo a
convidarem-nos para também dispararmos. A família era muito amável embora
receosa. Tenho uma fotografia Polaroid, de duas que nos tiraram. Ficaram
com a outra. Disseram-nos que ontem tinham estado na polícia a pedir
autorização para nos convidarem para casa deles. Autorizaram-nos, sabe Deus
com que contrapartidas.
Dia 17. O Vilhelm e o Dean, um capitão inglês, meus companheiros
temporários de equipa, trouxeram-me para o PTT para partir para Goražde.
Fui apresentado ao chefe da equipa de observadores de Goražde, o Henrik,
capitão norueguês, que começou logo a carregar a viatura para partirmos.
Apesar de termos a viatura preparada e carregada para a viagem, não pudemos
ir por falta de autorização dos sérvios. Três barris de gasóleo eram muito
importantes para o pessoal de lá, agora que as temperaturas atingiram 25
graus negativos. Tivemos de descarregar e guardar tudo outra vez, pois nada
está seguro no edifício dos correios, o PTT building, onde o pessoal das
Nações Unidas montou o seu quartel-general.
Hoje, dia 18, a partida para Goražde foi cancelada, mais uma vez. Amanhã
vamos tentar de novo.
Dia 19. Partimos finalmente para Goražde, mas fomos detidos num posto de
controlo sérvio depois de Pale e obrigados a retroceder para Sarajevo.
Levávamos comida, tabaco e combustível (600 litros) e éramos portadores de
autorização para a viagem do Comando militar sérvio da Bósnia.
Sexta-feira, dia 21, foi-me proposto que ficasse no PTT, no QG dos UNMOS,
como Oficial de Logística para o Sector Sarajevo. Aceitei, mas quando será
efectivo? No Sábado e no Domingo dormi no PTT, aguardando o início de uma
semana em que vou gozar uma pequena licença.
Dia 24. Tenho um avião de Sarajevo para Zagreb às 16:00. Não me posso
esquecer de apanhar passaporte no MAO. Tenho comigo 957 dólares e 400
marcos em dinheiro.
Dia 26. Primeiro dia de CTO. Desta vez vou encontrar-me com a Mariana a
Viena. A Mariana chega a Viena às 17:45. Temos reserva no Hotel Kummer, na
Maria Hilfer Strasse. Tem uma óptima localização, perto do Hotel Bethoven e
da ópera.
Na sexta-feira, fomos para Salzburgo onde passámos um tempo tranquilo.
Alugámos um carro e fomos à Baviera alemã. No Sábado estivemos em
Oberammergau, Garmish e no castelo de Neuschwanstein, de Luís da Baviera.
Aí mandámos postais para os meninos. Hoje, Domingo, dia 30 voltámos para
Salzburgo, onde ficámos a última noite. Amanhã voltamos para Viena.
Enviámos um postal ao Henrique.
1 de Fevereiro. Voei para Zagreb e confirmei o voo para Sarajevo.
Chegado a Sarajevo, no dia 2, fui colocado temporariamente em Lima 1
(uma noite) e depois em Lima 6 (3 noites) até ir para Goražde. A Norte de
Lima 6, deu-se neste dia o massacre do mercado: 52 mortos e 157 feridos.
Ajudei, com o pessoal de Lima 6, na evacuação de feridos para o PTT e para
as ambulâncias. Integrei depois a equipa de investigação que elaborou o
relatório preliminar.
Dia 4. Estive em Kiseljak, um enclave croata no meio de sérvios
bósnios, onde funciona o QG da ONU para a Bósnia. Encontrei o José Salgado
e pedi-lhe para dizer ao RSMO, o Chefe regional dos observadores militares,
que quero ir para Pale, se não puder ir a Gorazde.
Dia 5, Sábado. Escrevi uma série de cartas para Henrique, Mariana,
Tomás, Isabel, Adrian e mãe e enviei-as pelo sistema de correio do batalhão
francês.
Dia 6, Domingo. Finalmente cheguei a Goražde! O tabaco, bebidas, comida
e combustível que levávamos foi cuidadosamente verificado pela polícia
local e depois registado, ficando no entanto à guarda dos UNMOs (depois de
algum ter sido "requisitado"). Também parte da comida que trazíamos para
nosso próprio consumo foi destinada ao centro de refugiados. A polícia
informou-nos que deveríamos guardar o tabaco para nós e não o oferecer ou
distribuir, pois ali os cigarros eram usados como dinheiro, valendo cada um
1 marco alemão.
À noite houve uma festa no centro da UNHCR. Henrik, o nosso chefe,
bebeu demasiado, tornou-se violento e a polícia local ameaçou-o de
detenção. Este homem não pode ser o chefe da missão aqui! O problema é que
este serviço, neste local, é profundamente deprimente, e embora haja muito
pouca comida, há aguardente (Rakija) em quantidade, pelo que toda a gente
bebe muito.
Dia 8. Enviei fax para o Regimento de Lanceiros nº2, a minha unidade,
donde saí para a Jugoslávia, dizendo que […] Estou neste momento colocado
numa bolsa muçulmana cercada por sérvios e o único meio de contacto com o
exterior é através de satélite. […]
Pedi anteriormente ao Major B. que tentasse arranjar-me um capacete que
possa proteger das munições 7,62 pois o que tenho é inútil. Sei que o Major
B. tem feito os possíveis mas de novo lhe lembro esta minha urgente
necessidade. Aqui todos os observadores usam os de fibra de carbono ou
materiais ainda mais recentes, pois somos algumas vezes alvejados por
atiradores especiais.
Peço que o Major B. ou o Capitão F. transmitam à minha família que me
encontro bem e que logo que vá a Sarajevo lhes telefonarei, se possível.
Isto deve acontecer na próxima semana." Foi confirmada a recepção no
destino.
À noite fomos controlar o lançamento de comida, de que todo o pessoal
aqui deslocado depende para sobreviver e que acabou por cair nas montanhas,
perto das linhas sérvias. Uma pequena moça que não teria mais que dez anos
traduziu o problema da necessidade de um cordão de segurança para os outros
(e para nós também), pois a polícia local cercava a área e ameaçava
disparar se algum civil tentasse aproximar-se demasiado perto do alcance
das posições sérvias.
Dia 9. Fomos em patrulha à montanha onde proximamente serão lançadas
500 toneladas de comida, numa nova tentativa, junto a um cemitério
muçulmano. Fomos também patrulhar a linha da frente (eu, Matos Lima e
Radmila, a nossa intérprete). Hoje o representante da UNHCR deveria deixar
a missão em Gorazde mas as autoridades da cidade não o deixaram sair. Os
funcionários das agências internacionais são a garantia de segurança das
pessoas que se refugiam aí.
Chegou hoje a mensagem que me nomeia Oficial de Logística do Sector
Sarajevo, mas, segundo informação que fomos recolhendo, pode ser difícil
sair daqui. O pessoal dos Médicos Sem Fronteiras, MSF, recebeu ordem para
retirar também, mas as autoridades bósnias não os deixam sair sem serem
substituídos.
Dia 10. Fomos hoje às barricadas escoltar um grupo de Médicos Sem
Fronteiras que finalmente vinham render os que cá estavam e que traziam
medicamentos para a cidade. Antes desta feliz chegada tínhamos feito uma
patrulha à antena de televisão que serve a cidade, a 2121 metros de altura.
De noite, durante o lançamento aéreo, os sérvios tentaram alvejar os aviões
e bombardearam-nos, mas a comida chegou a boas mãos, finalmente.
Dia 11. Hoje estou de serviço ao rádio e recebi cópia do ultimato que
dá 10 dias, a partir de ontem, para as partes retirarem todas as armas
pesadas para lá de 20 Km do centro de Sarajevo. Mandei mensagem para o
Regimento de Lanceiros sobre a minha situação aqui, às 11:12h:
[…] "Estou ainda em Gorazde e parece que vou ter alguns problemas em
sair desta área cercada. As autoridades da "República Sérvia Bósnia"
declararam agora oficialmente que se a NATO bombardear as suas posições à
volta de Sarajevo e dos "pockets" os membros de países NATO que integram as
agências internacionais aqui representadas serão "convidados" a permanecer.
É por isso de esperar que eu não possa voltar a Sarajevo, como planeava, no
Domingo. Temos no entanto comida e combustível suficiente para quase um mês
e espero chegar a Sarajevo antes disso. Se for detido em Gorazde
continuarei a usar este sistema CapSat. Neste momento não temos comunicação
rádio com o exterior por o nosso repetidor ter sido "empastelado". […]
Dia 12, Sábado. Hoje houve mais um lançamento de comida durante a
noite. Também esta noite houve um grande movimento de UNMOs em toda a área
de implantação da UNPROFOR, vindos de vários sectores para reforçar
Sarajevo, segundo pude seguir pelo rádio. Felizmente esta noite não houve
bombardeamentos em Sarajevo.
Dia 13, Domingo. Volto para Sarajevo. Quando parti tinha a sensação de
ter abandonado aquela gente à sua sorte. O ataque dos sérvios às últimas
posições de defesa válidas está para breve. O Comandante da Brigada bósnia
que defende Gorazde veio despedir-se de mim e pediu que não o
esquecêssemos, mesmo que morresse. Percorridos alguns quilómetros fomos
detidos no posto de controlo sérvio de Grbavica, onde me revistaram e me
confiscaram todos os rolos de fotografias que tinha tirado no enclave e a
correspondência que tinha comigo, tanto a da minha família e amigos como a
que levava para os familiares dos bósnios cercados em Gorazde. Assim acabei
de passar para os atacantes boa informação militar e perdi a reportagem da
minha vida. Estive detido, algumas horas, enquanto decidiam se me levavam
preso com a acusação de violação do estatuto de observador das Nações
Unidas, mas acabaram por me libertar e ainda me devolveram a máquina
fotográfica.
Dia 15. Hoje tenho que marcar o próximo período de licença (CTO) e
levantar o MSA. O Oficial de Logística anterior negligenciou completamente
as suas funções e agora tenho que tentar organizar tudo a partir do zero.
Dia 16. Vai haver uma cerimónia para me ser atribuída a medalha da
missão UNPROFOR. Quando? Os aviões da NATO têm sobrevoado Sarajevo pelas
06:00. Um já foi atingido por projécteis vindos das posições sérvias,
possivelmente.
Dia 17. Mandei uma mensagem para Mostar para saber como foi partido o
vidro do Land Rover blindado que está à minha responsabilidade já há alguns
dias. A resposta veio pouco depois. Foi furado por um projéctil de calibre
12,7, assunto já tratado, tendo sido morto no incidente um observador
militar.
Dia 18. Hoje tem havido grande confusão devido ao ultimato da NATO. O
Marius Oliversen, que me está a passar a pasta da logística, é um
preguiçoso muito grande. Fiz o plano Administrativo-logístico para o Plano
de Alerta. Tenho mil dólares americanos no cofre da logística. Telefonei
para casa, em Portugal, e falei com o atendedor automático às 19:20.
Enviei mensagem para o meu regimento a agradecer o apoio que tem sido
dado à minha família. Mais tarde deram-me recado de que deveria contactar
as relações públicas da ONU em Sarajevo. Falei com Major Saavedra, um
espanhol simpático, oficial de relações públicas da UNPROFOR, que me disse
que um jornalista português me procurava. Fui entrevistado pelo Luís F., da
RDP, sobre Sarajevo. À noite, ao telefone, a minha mulher disse-me que um
jornalista da RTP tinha falado da bravura de um capitão português aqui, em
Sarajevo. Estava convencida de que se referia a mim.
Dia 20, Domingo. Hoje é a data limite do ultimato da NATO. Para os
muçulmanos foi um dia de festa, pelo menos em Sarajevo,. Um jornalista
alemão do Der Spiegel entrevistou-me junto ao buraco de bala feito no Land
Rover blindado em Lukavica. Os sérvios estão a trabalhar duro para
retirarem o armamento pesado. Os aviões da NATO continuam a sobrevoar-nos.
Dia 21. Pedi para antecipar o CTO três dias por causa do aniversário de
28 de Fevereiro. Mas como os CTO's foram cancelados pelo general Russel,
não sei se poderei gozar esta licença. Apesar de ter passado o prazo do
ultimato, as partes continuam a trabalhar para armazenarem tudo, ou
retirarem para além da linha que lhes foi imposta.
Dia 22. Às 14h encontrei-me com o jornalista Esteves M. no edifício da
TV Bósnia. Foi a primeira vez que me encontrei fora das instalações
ocupadas pelas Nações Unidas, sem ser em serviço. Bebemos café e whisky.
Fui entrevistado às 16h para a RTP, na avenida principal, que o mundo
conhece como Sniper Alley. Não falei da missão mas apenas das expectativas
de que este cessar-fogo se transforme numa paz duradoura.
Dia 24. A minha reportagem passou ontem às 1300, hora de Lisboa, na
RTP. Estive de manhã em Lukavica, onde se situa o comando militar sérvio de
Sarajevo. Vi o Salgado com os repórteres da RTP e quando fui ao aeroporto
encontrei-me com outro repórter português. À tarde fui a Papa 1 e vi uma
aguarela, um retrato, muito bem feita por um pintor muçulmano. Faz retratos
por encomenda e eu gostaria de encomendar um da família.
Dia 25. Pergunta: vai haver atrasos no cumprimento das determinações da
NATO e da ONU? O general Russel prepara-se para repetir a alteração de
concessão de CTO em Tuzla e Mostar.
Dia 26 Sábado. Fui ao centro da cidade com o Paul e o Edward. Fomos
buscar a placa para oferecer como presente de despedida do Marius
Oliversen. O telefone não funcionou quando eu quis falar para Portugal,
como é frequente. Ontem telefonei duas vezes.
27 Domingo. Fui de manhã levar Marius Oliversen ao aeroporto. A partir
de agora sou o Oficial de Logística. Pelas 18 horas ouvi algumas rajadas.
Irão começar tudo de novo?
Dia 28. Telefonei ao Padraig Quinn, para Pale, sede do governo da
República Sérvia da Bósnia. Mudei-me para o quarto do Oficial de Logística,
com o Edward. Embora a janela esteja partida, estou muito mais confortável
agora. Já tapei os buracos com cartões das rações de combate e agora está
muito melhor. O aquecimento do edifício está a funcionar a maior parte das
vezes, com geradores da ONU, e este quarto tornou-se um pequeno luxo.
Telefonei à Mariana. Viu que no telejornal tinham sido abatidos 4
aviões sérvios e que há muito movimento. Soube primeiro que eu!
Vão-se embora 6 viaturas e 12 UNMO's, de parte do reforço que tínhamos
recebido após o primeiro cessar-fogo. Tenho que alertar o BH CMD e o BH
Norte de que eles vão e qual o itinerário. Tenho que contactar a Engenharia
para retirar os contentores de Lukavica, onde já não são necessários e
colocá-los nos Montes Igman onde vamos instalar uma nova equipa de
observadores.
Dia 1 de Março. Completei o inventário geral dos unmos do sector
Sarajevo: há muitas irregularidades: viaturas e rádios desaparecidos;
viaturas acidentadas e com falta de material; computadores e sistemas
CapSat roubados O major Saavedra disponibilizou-me o telefone das relações
públicas se eu quiser falar para casa, o que, atendendo aos problemas com
os telefones das comunicações francesas, é uma óptima notícia. Foram
abertas mais duas passagens pela linha de confrontação em Sarajevo: um a
Leste e outro em Grbavića.
Dia 2. Tenho que comprar recordações de Sarajevo para a família e
amigos, agora que já há algum comércio.
Estou em Zagreb desde ontem, dia 3 de Março, para iniciar o primeiro
dia de CTO. Às 9:30h parto para Frankfurt onde apanharei o avião para
Lisboa.
Dia 5 Sábado. Em Lisboa comprei uma bolsa militar verde para o Henrique
para enviar para o capitão Paulsen, em Tuzla. Comprei bandeirinhas de
Portugal. São lembranças que todos gostam de trocar. Enviei para casa do
Paul, na Inglaterra, folhetos sobre o Algarve e Messe de Lagos, pois quer
passar este Verão em Portugal.
Dia 7. Escrevi para Pedrag e Radojka um postal, de Lisboa, usando a
morada de Novi Sad.
Dia 9. Parti para Zagreb, via Frankfurt, onde cheguei às 17:50h. Dormi
no apartamento da Primorska, depois de me ter abastecido de comida no
supermercado vizinho. Amanhã vou apanhar o avião para Sarajevo.
Dia 11. Estou de novo em Sarajevo, desde ontem. Recebi carta do
Henrique e encontra-se bem. Tenho que planear o próximo CTO para Novi Sad
ou Belgrado. Tenho que combinar com o Padraig, pois gostaria que ele viesse
também.
Dia 12 Sábado. O Salgado dormiu cá. Ficou no meu quarto, no edifício
dos Correios, o célebre PTT. Quer combinar que as nossas mulheres venham
juntas encontrar-se connosco na Croácia. Quis mandar um fax para casa mas a
salinha do CapSat estava cheia com pessoal a dormir, ocupando cada
centímetro disponível de chão. Desisti.
13 Domingo. Hoje de manhã, pela 5h começou um intenso tiroteio que
despertou toda a gente no edifício, em sobressalto: começavam as
comemorações do fim do Ramadão em Sarajevo.
Dia 15. Desde ontem que não posso falar para casa pois acabou o cartão
telefónico e não há mais à venda. Hoje fomos a um almoço de despedida em
Lima 2. Foi num antigo restaurante e houve a tradicional comida sérvia:
još, fritada mista e rakija. Quando regressávamos, cruzámo-nos com um
Toyota Land Cruiser que nos tinha sido roubado há alguns dias. Estava
pintado de verde camuflado, a pincel. O condutor, um sérvio fardado, travou
ao pé de nós e, apontando-nos a AK-47, disse-nos que o devolvia por troca
com duas grades de cervejas. Depois foram-se embora, às gargalhadas.
Dia 16. Hoje tive que lavar roupa interior no lavatório pois a
lavandaria ainda não funciona. Quase no fim acabou a água. Vida de eremita.
Amanhã vou tentar instalar um modem em Papa HQ. Fui a Lukavica, no lado
sérvio, pela ponte da fraternidade, para visitar o Carlos Correia e manter
a ligação com o Comando sérvio de Sarajevo.
Dia 17. Completo hoje sete meses na ex-Jugoslávia. Saí à noite com
Carlos, Valério e José Matos. Fomos a um bar em Sarajevo, numa cave do
bairro velho do centro. A cidade consegue ser bonita à noite agora que já
há electricidade. Mandei duas mensagens por satélite para casa.
Dia 19 Sábado. Tentei telefonar pelas 15h para casa mas respondeu o
atendedor automático. Dia em baixo de forma, estou farto de Sarajevo e do
PTT. Gostava de ter uma vida normal e Agosto nunca mais vem. Fui-me deitar
às 20h, desanimado e com uma forte dor de cabeça.
Dia 21. Hoje foi um dia positivo. Sinto-me bem. O comandante da
Logística vem cá amanhã. Será uma inspecção ou vem analisar-me para o lugar
de oficial de comunicações em Zagreb? Não me importava de ir para Zagreb
depois de Sarajevo. Ontem à noite fui a um bar, novamente, onde paguei por
uma cerveja e um café 10 dólares.
Dia 23. Iniciei um TDY. Viajei às 10:45h para Zagreb e passei a noite
no apartamento da Primorska. Amanhã viajo para Lisboa (via Zurique).
Dia 29. Viajei para Zagreb, via Frankfurt, onde cheguei às 17:40h.
Dia 30.Tenho que pedir à autoridade sérvia autorização de passagem para
6 carros e 31 observadores que vão de volta aos seus sectores hoje.
Dia 1 Abril Sexta-feira santa. Comecei hoje o trabalho de oficial de
pessoal, em acumulação com o de logística: descobri um escritório onde
todos os documentos se encontram misturados, grande confusão.
3 Domingo. Telefonei para casa. Está tudo bem. Continuo à espera de
cartas. Gostava tantos que me escrevessem mais! O responsável pela gestão
de pessoal do sector Leste, Krishna, informou-me que o Team Erdut vai ser
encerrado. Foi onde primeiro conheci a vida de um observador militar.
Dia 4. Tenho um novo ajudante para a logística, o major José Marquez da
Venezuela. Muito simpático, mas fraco a inglês. Poderá ser um bom
substituto, quando me for embora.
Dia 5. Hoje fui jantar perto de Grbavica, no novo alojamento do Carlos
e do irlandês Liam, que constituem a equipa Lima 9. É uma boa casa de dois
pisos e o senhorio ocupa o rés-do-chão. Depois dos últimos dias a sentir de
novo um stress terrível, fez-me sentir muito bem estar com pessoal amigo.
Dia 7. Telefonei para Zagreb para confirmar quantos dias tenho direito
no último CTO. Telefonei para o gabinete de Pessoal de Zagreb e soube que o
Carlos vai para a Sérvia.
Dia 10, Domingo. Jantar de despedida do capitão Hans em Ilidža. Como a
NATO atacou quatro carros de combate sérvios em Goražde e esperávamos
retaliações, tive que preparar uma lista de todos os UNMO's no lado sérvio,
com as respectivas localizações e o equipamento à sua guarda. Deitei-me
pelas três horas da manhã.
Dia 13. Edward deveria chegar hoje de CTO, mas telefonou-me a dizer que
vem amanhã, pois há dificuldade em conseguir transporte para Sarajevo.
Conforme já esperávamos, os UNMO's de Lima foram todos "convidados" a
mudarem-se para localizações desconhecidas de nós. Foram-lhes retirados os
rádios e carros. De vez em quando são autorizados a enviar mensagens
dizendo que estão bem. Em Gorazde os sérvios já estão no centro da cidade e
levam tudo e todos à sua frente. Os UNMO's e hóspedes retiraram-se para a
cave do banco que era usado como sede dos observadores, pois os outros
pisos não são seguros. Os refugiados invadiram o edifício, incluindo a
cave, onde se amontoam com o pessoal das NU.
Dia 15. O Matt Sinclair, o major canadiano que é o nosso SMO, vai de
licença para fora de Sarajevo. Por pouco não ia. Embarcou no último avião
que partiu que já levou alguns tiros. Recebemos à tarde o relatório de
situação dos unmos de Gorazde:
[…] " O complexo de Gradina caiu definitivamente nas mãos do BSA
[Exército Sérvio da Bósnia]. Quatro aldeias na área de Gorazde foram
conquistadas pelo BSA. A aldeia de Milanovici encontra-se em chamas. Há
relatos de que soldados da Bósnia Herzgovina retiram desta área em direcção
à cidade. Não há segunda linha de defesa. A área de Tvicijak caiu. […]. O
BSA está agora a descer as encostas de Gradina. Um militar britânico foi
atingido na cabeça. Verificou-se que está seriamente ferido, mas ainda
respira. Um outro foi ferido num braço. Os UNMO's, com excepção do pessoal
essencial, vão para o abrigo; parece que não temos tempo para retirar mesmo
que quiséssemos.
Parecer do Team Leader: Gorazde está perdida ou muito em breve cairá
nas mãos do BSA. O oficial de ligação bósnio acabou de nos lembrar da sua
intenção de fazerem explodir os químicos na fábrica de Vitkovica.[…]
16 Sábado. Nova Iorque decidiu estabelecer contacto directo com os
UNMO's de Sarajevo contra a vontade do Force Commander, o general William
Russel. Este dispõe de JCO, militares britânicos introduzidos na área de
Gorazde e que podem dirigir o tiro das aeronaves da NATO. Dominará assim o
avanço sérvio na bolsa de Gorazde mas precisa ainda de controlar a
informação que sai de lá.
17 Domingo. Os UNMO's de Lima continuam presos. Quarenta são dos
nossos. Gorazde caiu e ninguém fez nada. Mortos, feridos, fome, raiva.
Muitas aldeias e vilas ardem. Os relatórios de situação do team Gorazde são
agora dramaticamente muito sarcásticos.
Dia 18. Gorazde continua sob pesado bombardeamento. UNMO's e UNHCR's
continuam na cave do banco que serve de escritório. Os refugiados mantêm-se
nos pisos superiores. Maus momentos, estes.
Às sete e meia da manhã recebi no CapSat a cópia da seguinte mensagem
enviada pelos membros do UNHCR de Gorazde (Alto Comissariado das NU para os
Refugiados) às suas outras delegações:
Dificuldades em chegar perto do CapSat com as coisas acontecendo. Neste
preciso momento Gorazde está calma desde as 23:40h. O fogo de armas
ligeiras do anoitecer podia ser claramente ouvido em conjunto com
bombardeamento intermitente. Para todos os efeitos Gorazde caiu, mas a
definição usada aqui pelas forças BH, dirigindo-se a uma assembleia de JCO,
UNMO's e UNHCR é de que "amanhã quando virem carros de combate em frente à
vossa porta, então Gorazde realmente caiu".
É muito difícil implementar um cessar-fogo nas condições que prevalecem
aqui com combates directos entre as duas partes ao longo de todo o dia. Por
isso, agora que a noite deu uma oportunidade de descanso, pode ser que
amanhã o dia continue sereno. Poderá não haver nenhuma necessidade do BSA
avançar ainda mais na direcção da cidade. As pessoas estão realmente
encurraladas sem possibilidade de irem a lado nenhum.
[…] O parecer dado pelo comandante local sobre o que seria de esperar
foi perturbador para dizer o mínimo. Pediu desculpa por usar linguagem
provocadora, mas explicou que esperava que o BSA entrasse no centro da
cidade e aquilo que não fosse atingido pela bala sê-lo-ia pela faca.
Declarou que sentia que toda a gente seria sacrificada, 65000 pessoas
incluindo JCO's, UNMO's e nós próprios, encontrando todos o mesmo destino.
A conversa continuou nos mesmos termos mas a sinopse era a mesma.
Compreendia que as pessoas tinham feito o que podiam pelo povo e respeitava
isso, mas agora Gorazde iria sofrer. Que provavelmente nós teríamos melhor
sorte que o povo local.
Um membro do parlamento da BH também estava nesta reunião e tinha uma
atitude mais conciliatória. Ele também expressou admiração pelas pessoas
etc., mas mostrou mais ou menos um sentimento de falta de esperança.
Declarou que tinha ouvido que os MSF queriam ser evacuados mas pedia-lhes
para ficarem porque só por isso já poderiam ajudar as pessoas. (não havia
MSF presentes, mas isto ser-lhes-á transmitido por nós e provavelmente
também por eles). Os MSF estão localizados na delegação do ICRC e decidiram
permanecer aí. A Cruz Vermelha, depois de consultar o seu pessoal em
Belgrado, Zagreb, etc. decidiu ficar no seu próprio edifício.
Evacuação médica: o governo local declarou que tem agora duzentas
pessoas que necessitam de evacuação, mas muitos deles não estão disponíveis
porque […] portanto estamos transmitindo o seu pedido para adiar a
evacuação médica para quarta-feira.
Conclusões: Hoje foi um dia difícil para a cidade e arredores com muita
gente tendo que abandonar as suas casas na área de Kopaci e outras aldeias
para Leste e Oeste até ao Vale de Podhranjan. […] O hospital recebeu um
impacto directo de artilharia, rebentando numa sala que estava desocupada.
[…] Esta noite, na cidade, há alguns milhares de pessoas a mais do que
na última noite.
Inúmeros ficam pelas ruas sem nenhum sítio para irem. Estamos a falar
de uma população civil de mulheres, crianças, idosos, homens em roupa civil
que não estão envolvidos no combate porque são muito velhos ou estão
envolvidos no processo de apoio aos civis e, é claro, pessoas demasiado
velhas para serem militares. Parece uma situação sem esperança e as pessoas
estão aterrorizadas.


Às onze horas vi chegar outra, enviada pelos membros da UNHCR de
Gorazde, com o seguinte teor:
[…] Depois de uma pausa entre as 10h e as 10:30h, recomeçou o
bombardeamento da cidade tendo sido atingida a estação de polícia, o
tribunal e o centro de refugiados "Panorama". Todos se encontram
localizados a cerca de 50 a 100 metros do hospital. Às 10:37h, o tribunal
recebeu três impactos. (Tudo isto a juntar ao bombardeamento que ocorreu
anteriormente, aproximadamente 50 granadas de artilharia no centro da
cidade.) O bombardeamento entre as 9h e as 10h, incluindo impactos perto da
Mesquita que se encontra apenas a 200 metros do escritório da UNHCR,
provocou mortos. Isto foi relatado pelo nosso pessoal que trabalha no
local. O centro de refugiados "Balkan" que é muito perto daqui, encontra-se
sob fogo de atiradores furtivos e foram relatadas baixas.
Total de mortos até ao momento: 302 (incluindo 37 ontem); total
de feridos: 1075(incluindo 73 ontem), entre homens, mulheres e
crianças.[…]


Às dez e meia recebi uma mensagem do Padraig Silver, o chefe dos
observadores de Gorazde:
[…] Acabei de ler uma mensagem da Cruz Vermelha Internacional que
refere que o general Russel disse que tudo está calmo em Gorazde. De facto
não é o caso. Antes pelo contrário, estamos neste preciso momento sofrendo
bombardeamento que é especificamente dirigido a este QG. Sofremos 5
impactos directos imediatamente, repito, imediatamente ao lado do edifício,
um dos quais feriu o guarda que estava da parte de dentro da nossa porta.
Três outras granadas atingiram a nossa rua. Penso que isto é indicativo de
como o pessoal humanitário pode esperar "ser mantido fora do caminho da
agressão".


Dia 19. Em Gorazde o edifício dos UNMO's está a ser directamente
alvejado por armamento pesado, de acordo com os relatórios que chegam
continuamente. Há muitos mortos à volta do edifício.
Hoje recebi mais uma mensagem dos Observadores militares de Gorazde
enviada às 10:19h, dando conta dos estragos provocados pelo bombardeamento
no edifício e equipamento dos observadores. Para além disso relatava ainda
que:
[…] Durante a noite os refugiados continuaram a migrar do lado Sul para
o Norte da cidade. Aparentemente estas foram as pessoas feridas no
bombardeamento do edifício da UNHCR na noite passada. Mais uma vez se
afirma que este tipo de bombardeamento não coincide com o objectivo
declarado pelo BSA de tomar o lado Sul da cidade. Coincide sim com uma
política de violência aleatória contra civis, causando grandes perdas de
vidas.
As autoridades locais declararam que, mais uma vez, gás lacrimogéneo
foi usado contra o hospital. […]


Hoje o responsável do gabinete do representante especial do Secretário-
geral das Nações Unidas, Yasushi Akashi, mandou que fosse enviada aos
UNMO's e colaboradores uma mensagem, por CapSat, que também seguiu para a
UNHCR de Gorazde.
[…] Quis simplesmente enviar uma pequena mensagem (sei que o vosso
papel está quase a acabar) a todos vós e aos vossos colegas da ICRC e MSF,
e fazer-vos saber quanto aprecio e admiro a vossa dedicação e coragem. Sou
permanentemente mantido a par da situação em Gorazde e estou muito
preocupado com a vossa própria segurança e a dos civis na cidade. Continuo
a dar o meu melhor, conjuntamente com os meus colegas aqui, para conseguir
um cessar-fogo imediato e total e para resolver a situação o mais depressa
possível. Espero ver-vos a todos pessoalmente dentro em breve quando a
situação acalmar. A melhor sorte para todos!!

Às 18h30 os elementos da Cruz Vermelha enviaram-nos uma mensagem de
Gorazde que dizia:
Por favor alertem senhor Akashi que o edifício dos UNMO's em Gorazde
foi atingido directamente por quatro projécteis de carro de combate às 1800
horas. Vários impactos à volta de edifício durante o dia. CapSat dos UNMO's
inoperacional.

Dia 20. Os observadores detidos no lado Lima foram libertados hoje
pelos sérvios bósnios, mas não sabemos de Van Baal, um observador holandês
que tinha ido a Zepa, com umintérprete. O CapSat dos UNMO's de Gorazde
esteve danificado. Hoje "falou" pouco depois das sete da manhã:
[…] Agradece-se a transmissão aos meios de comunicação social
A todos
Desde a noite de 28/29 de Março de 1994, a comunidade internacional tem
recebido relatórios sobre a guerra em Gorazde e as suas trágicas
consequências na população deste enclave muçulmano protegido pelas NU. A
comunidade internacional e as partes em conflito estão conscientes de que:
- Muitos civis (crianças, mulheres e idosos) têm sido e são mortos e
feridos por indiscriminados bombardeamentos e tiros de atiradores furtivos
na cidade de Gorazde e nas localidades da antiga bolsa.
- Um largo número de aldeias tem sido e continua a ser destruído e os
seus habitantes mortos ou feridos.
- O hospital de Gorazde, a Cruz Vermelha local e o seu centro de
refugiados, assim como áreas puramente civis, têm sido e continuam a ser
expostos a bombardeamento e fogo de atiradores furtivos.
- Tem sido negado acesso a quaisquer comboios médicos ou de auxílio.
- Têm sido negadas as reunificações de famílias separadas há já dois
anos.
- O abastecimento essencial de água a Gorazde mantém-se cortado nos
últimos dois anos.
- Tem sido recusada a evacuação de casos clínicos urgentes.
Se isto não for suficiente para pôr um fim à tragédia humanitária em
Gorazde, os quatro trabalhadores humanitários ainda activos em campo
cortarão todas as comunicações com o mundo exterior durante 24 horas.
Possa este silencioso protesto honrar todas as vítimas inocentes desta
guerra.
Pablo (MSF) Olivier (MSF) Daniel (ICRC) Klaus (ICRC)

Minutos depois chegava outra mensagem dos elementos da Cruz Vermelha,
dirigida a várias entidades, nomeadamente aos seus departamentos em Paris,
Bruxelas e Genebra:
[…] Todos os expatriados UNMO e UNHCR estão bem e seguros no abrigo dos
UNMO's (2300 horas). ICRC não pode servir como plataforma de comunicação
para informações militares. As NU tinham canais de informação (e
transportes) de primeira classe, mas decidiram retirá-los. Nós temos que
manter o canal humanitário aberto para os assuntos humanitários. Claro que
emergências serão transmitidas em ambas as direcções tão depressa quanto
possível. Para evitar qualquer confusão: este CapSat pertence aos MSF
Gorazde. A equipa MSF está alojada na delegação de Gorazde da Cruz Vermelha
Internacional por razões de segurança. MSF concorda em respeitar as regras
do Comité Internacional da Cruz Vermelha para transmissão de informação.


Tendo já reparado o seu aparelho, os UNMOs de Gorazde informaram o
seguinte em mensagem chegada às sete e dezanove:
[…] Felizmente o nosso CapSat está ligado e de novo a funcionar. O
impacto das 1750 horas danificou o cabo de antena e a própria antena, mas
com um pouco de engenho UNMO, conseguimos fazer a reparação. Um outro
impacto feriu ambas as pernas de um rapazinho dentro do nosso edifício.
Todo o pessoal UNMO/UNHCR se encontra bem.
Em resposta ao pedido de 191800BABR94 do BH COMD. Não houve acalmia
discernível no bombardeamento das 1000 horas. Às 1400 horas estamos um
pouco inseguros, porque o pessoal de serviço nesta altura tem estado a
registar o número de impactos e não o tempo. O bombardeamento do nosso
local pelas 1800 horas teve um total de quatro granadas de artilharia das
quais classificamos duas como falhadas.
[…] Esperamos e rezamos todos que os esforços diplomáticos tenham
sucesso desta vez.


Dia 22, em Gorazde, continua a carnificina. A última linha de defesa
dos bósnios estabeleceu-se no centro da cidade. O hospital já só funciona
na cave. O único anestesista foi gravemente ferido. Os UNMO's continuam na
cave do antigo banco.
Dia 23, Sábado. Desde ontem que se estabeleceu um comboio com tropa e
UNMO's para Gorazde mas os sérvios não os deixam passar. Nova ameaça da
NATO de ataques aéreos. Acaba o novo prazo hoje à meia-noite.
Pelas 23h26 chegou-nos uma mensagem dos observadores de Gorazde:
[…] Pela minha estimativa, o BSA tem atacado não só as posições da
frente como também sem dúvida aterrorizado a população local. UNMO's
confirmam quatro impactos de tiro de carro de combate no bloco de
apartamentos ao nosso lado, definitivamente um alvo não militar pelas
normas profissionais, às 1940 horas. […] Os ataques que podemos observar
localizam-se no centro da cidade. Os ataques concentrados de infantaria
podem apenas ser ouvidos nos limites da cidade no lado direito.
A destruição de aldeias que podemos ver a arder não é, de forma
nenhuma, uma retirada sob contacto. As aldeias que ardem localizam-se em
território ocupado pelas forças sérvias. É, sem dúvida, um caso de negação
de área (terra queimada). Relativamente à fábrica de munições, há alguns
dias atrás, confirmei que a sua intenção era destrui-la antes de obedecerem
aos acordos feitos com a UNPROFOR. Reconfirmo as minhas afirmações. […]
Conforme disse hoje, o comandante local espera mais ataques violenta esta
noite, particularmente contra o complexo da fábrica de munições. O meu
optimismo é relativo, mas com a coluna [de auxílio da ONU] tão perto poderá
ser possível convencer-me de que eles cumpram agora. Contudo, como
aparentemente a coluna terá sido parada pelos sérvios em Kopaci, isto
indica, no entanto, outra vez, uma má vontade em cumprir completamente com
o ultimato da NATO, particularmente no que diz respeito à liberdade de
movimento. Os desenvolvimentos nas próximas horas serão cruciais.
Comentários do Team Leader. Aquece-me o coração ouvir na BBC que a NATO
quer ir em frente. Pelo lado profissional…permaneço imparcial e espero que,
nas próximas horas, façamos gigantescos progressos no sentido de
estabilizar a situação e a subsequente paz.

24 Domingo. O pessoal de Gorazde foi hoje finalmente recolhido quando
chegaram os reforços. Regressaram de helicóptero. João Pascoal foi um
destes. Só Padraig Silver lá ficou, porque se nega a partir. Os quatro que
chegaram são os heróis do momento. "Štruija" e a mulher, os nossos
colaboradores locais, morreram e uma intérprete dos UNMOs ficou gravemente
ferida, com metade da face desfigurada. Era uma moça de vinte e poucos
anos, muito bonita. A cidade está arrasada. Jiri T., um dos observadores
regressados, fartou-se de falar, eufórico por estar finalmente livre de
perigo.
Dia 25. Hoje esteve cá o Padraig Quinn, vindo de Pale. Vai de CTO na
quarta-feira e encontramo-nos depois no sector Norte se eu não conseguir ir
para cima na quinta. Se não, encontramo-nos nessa noite em Zagreb. Primeiro
dia de CTO do Henrique.
Dia 26. Ontem fui chamado pelo General Russel ao comando da BH. Foi-me
dada, junto com Julian, a tarefa de ir para Gorazde de helicóptero tomar
conta das operações dos UNMOs e trazer o Padraig Silver. Mas foi tudo
cancelado, pois o Padraig está a ter um comportamento muito difícil e
recusa-se a sair de Gorazde. Nós afirmámos que não queríamos ir lá destitui-
lo pois os habitantes de Gorazde consideram-no um herói.
O Padraig Quinn veio à noite. Bebemos umas cervejas irlandesas que ele
trouxe e ficou cá a dormir no PTT. Vai-se embora amanhã para Zagreb.
Dia 27. Fui levar o Padraig ao aeroporto. Amanhã espera por mim em
Zagreb. Depois vamos jantar fora da cidade.




A campanha da Bósnia





A UNPROFOR, estabelecida inicialmente na Croácia para proteger as
populações dos territórios declarados independentes pelo auto-proclamado
governo sérvio de Knin, acabou por ter que se ir adaptando ao rápido
evoluir da situação e ao alastramento para as outras ex-repúblicas da
Jugoslávia de Tito.


Esta adaptação, no entanto, estava muito condicionada pelas limitações
impostas pelos países que tinham destacado forças e pessoal para servir na
UNPROFOR. É assim que se vê a força de protecção, com mandato inicial já
muito fraco, a tentar obrigar, com resultados quase nulos, os beligerantes
a calarem as armas, na Bósnia. Para mais, os políticos e diplomatas que
forjavam planos de paz ou de partilha dos territórios bósnios, raramente
estavam cientes do que se passava no terreno, fosse por receberem
informação insuficiente fosse simplesmente por a informação difundida pelos
observadores e outras entidades não lhes chegarem em tempo.


Já em Janeiro de 1994, na Cimeira de Bruxelas, os chefes de estado e de
governo da Aliança Atlântica tinham reafirmado a sua prontidão para levar a
cabo ataques aéreos de forma a evitar o estrangulamento de Sarajevo e de
outras "Áreas Seguras" e as áreas ameaçadas da Bósnia e Herzegovina. A
vontade da NATO de empregar as suas capacidades militares colmatava assim a
fraqueza da UNPROFOR. Em 9 de Fevereiro o Conselho do Atlântico Norte,
respondendo a uma solicitação do Secretário-geral das Nações Unidas,
autorizou o seu Comando do Sul da Europa a lançar ataques aéreos - de
acordo com pedidos das Nações Unidas – contra posições de artilharia e
morteiros localizados ao redor de Sarajevo, responsáveis – conforme
determinado pela UNPROFOR – pelos ataques contra alvos civis na cidade. O
Conselho decidia também que todas as armas tinham que ser retiradas para
fora de uma zona de exclusão, à distância mínima de vinte quilómetros do
centro de Sarajevo, ou então postas sob o controlo da Força de Protecção
das Nações Unidas. Se após expirado o prazo de dez dias fossem encontradas
armas dentro da zona de exclusão, a NATO poderia executar ataques aéreos.


No dia 28 de Fevereiro, aviões da NATO acabariam por abater quatro
aeronaves que violavam a zona de exclusão aérea, sendo esta a primeira vez
que as forças da Aliança se envolviam em combate.


Em 10 e 11 de Abril, após pedido das Nações Unidas, a NATO dava
cobertura, com apoio aéreo próximo, ao pessoal militar em Gorazde,
designada pelas Nações Unidas como "Área Segura".


Em 22 de Abril, em resposta a um pedido do secretário-geral para apoio
aos esforços das Naçõs Unidas para proteger outras áreas, o Conselho do
Atlântico Norte anunciava que os ataques aéreos seriamefectivamente
lançados a não ser que os sérvios bósnios cessassem de imediato todas as
acções violentas.


A 24 de Abril, as forças sérvias recuavam três quilómetros do centro de
Gorazde e os comboios de auxílio humanitário, assim como equipas médicas,
eram autorizados a entrar na cidade. O Conselho declarou que os ataques
aéreos seriam lançados contra as forças sérvias que ainda se encontrassem a
menos de vinte quilómetros do centro da cidade, a partir de 27 de Abril.


Foram também autorizados ataques aéreos noutras áreas protegidas,
nomeadamente Bihac, Zepa, Srbrenica e Tuzla, se estas fossem atacadas por
armamento pesado, fosse qual fosse a sua distância aos enclaves. Estas
áreas poderiam tornar-se também "zonas de exclusão", se assim o decidissem
a NATO ou os Comandantes locais da ONU, se houvesse concentração ou
movimento de armas pesadas dentro de um raio de vinte quilómetros do centro
de cada.


A 27 de Abril o Conselho da NATO – revendo a implementação das suas
decisões de 22 de Abril relativas à situação em Gorazde e arredores, e
noutras "áreas seguras" na Bósnia e Herzegovina – determina que há um
acatar geral da data do ultimato.


A campanha da UNPROFOR na Bósnia e Herzegovina haveria de continuar até
à sua completa substituição por forças da NATO, a IFOR, em Dezembro de
1995.


Afirmava Vasco Rato naquele ano que "Pela primeira vez na sua história,
a NATO, ao bombardear posições sérvias bósnias, iniciou operações "fora de
área" […] Se por um lado parece claro que os ataques aéreos contribuíram
para as negociações de paz em curso, por outro lado, a credibilidade e o
prestígio da organização foram comprometidos no decorrer desses eventos".


[…] "É possível que a NATO tenha agido tarde de mais, ou seja, depois
de permitir aos sérvios bósnios a conquista de uma extensão grande de
território, será difícil convencê-los a devolvê-lo. Também é possível que
as hesitações iniciais das potências e da NATO tenham criado um vácuo de
poder que foi rapidamente ocupado pelas forças militares no terreno,
dificultando uma resolução pacífica.[5]



















SEXTA PARTE








Santo António





28 de Abril. Cheguei a Zagreb por volta do meio-dia.
1 Maio Domingo. Fui colocado no sector Norte, no lado croata em Sisak.
O Padraig também, mas vai para outro team. Aqui encontrei gente que já
conhecia de outros locais: o Major Antonio, da Guarda Nacional da
Venezuela, o Rodrigo, capitão espanhol. Noutras equipas próximas estão o
Matos Lima, o Padraig Quinn e outros. Este novo sector é um paraíso mas a
casa que me arranjaram não me agrada. Fiquei alojado num cubículo do sótão
sem janelas, onde mal cabe a cama. Por outro lado, cobram-nos demasiado.
Avisei o chefe da equipa que irei à procura de outro alojamento.
Dia 4. Ontem marquei voo para Paris. Paguei 200 Dólares. Mudei-me para
uma nova casa. O Antonio e eu pusemos toda a bagagem num jeep, pedimos ao
nosso intérprete, Kristijan, para nos acompanhar e lá fomos. Depois de um
dia inteiro a procurar, ela lá estava. Pagámos 700 Marcos pelos dois. O
senhorio não deixou que puséssemos a bandeira das NU na varanda. É um
croata com mãe sérvia e não quer problemas com os seus vizinhos croatas.
Chama-se Hrsto (Cristo).
Dia 6. Fui em patrulha aos sectores Oeste e Leste. Encontrei o Henrique
mas não pudemos falar muito pois ia para uma reunião em Erdut quando já
voltávamos para Sisak.
14 Sábado. Viajei para Paris onde cheguei às 21:05h, para passar uma
semana com a Mariana. Ficámos na messe de Bicêtre.
22 Domingo. Regressei a Zagreb.
Dia 23. Passei o dia em Zagreb. Só me vêm buscar amanhã. Jantei com o
João Maldonado (MAO) e fui para casa cedo pois a Mariana telefonava pelas
23h.
Dia 24.Passei o dia em casa (Sisak) porque não fui incluído nas rondas.
À noite fomos ao centro (Kristijan, Darweshi e eu). Encontrámos uma
pretendente a um lugar mas NU, mas o seu nível de inglês não é muito bom.
Vou, no entanto, propô-la para testes.
Dia 25. Fiz hoje uma ronda com Hossein e Kristijan. À noite fomos ao
centro, à nova cervejaria que parece destinar-se à fina-flor do sítio.
Algumas mesas com veteranos de olhar esgazeado. Apesar de estarmos
acompanhados por duas "belezas" locais, não fomos mal tratados
Dia 26. Iniciei o serviço de uma semana em Topusko. É uma vila da
Croácia que se encontra em território na posse das forças da República
Sérvia da Krajina. Era uma estância termal, com vários hotéis e piscinas. O
QG situa-se no edifício onde era a escola secundária.
Dia 27. Dormi de manhã e passei a tarde de serviço. A Mariana já tem as
fotos de Paris e enviou-me algumas. O Diamantino (LOGO) deve-me 30 dólares
e cartão.
28 Sábado. Prometi à Dragana ajudá-la a concorrer a um cargo nas NU.
2 Junho. Regressei a Sisak. Fomos jantar todos ao Maestral à noite. De
manhã houve a reunião de chefes de equipa em Topusko.
Dia 3. Patrulha em Dugo Selo. Almocei em Zagreb. Tentámos visitar
Duboki Jarak,um quartel croata, mas os Voini Policija não nos deixaram
entrar: temos que ter autorização do Ministério dos Assuntos Internos.
4 Sábado. Patrulha com Darweshi a Sul de Sisak.
Dia 6. Vou com o Rodrigo a Zagreb levar o Andre V.
Dia 7. Henrique foi para Opatija de CTO e regressa no dia 18.
Dia 8. Fomos buscar o Antonio a Pleso pois regressou de CTO. À noite
fomos a Topusko para a festa de despedida do major russo Sergei (SMO).
Dia 9. Fui com o Rodrigo e o Hossein a Topusko para a reunião de Team
Leaders. Enquanto decorria, fui com a Dijana a casa de um velhote tio do
Krsto. Pobre velho! Muito só depois da guerra. Mas não quer abandonar a
única coisa que tem: a sua casa.
Dia 10. Hoje os portugueses reúnem-se em Zagreb para comemorar o dia.
Fui almoçar com o Diamantino e o Carlos ao Baltazar. Vim para Sisak à hora
de jantar. O Padraig entrou de CTO.
11 Sábado. Fizemos uma ceia latina com música luso-brasileira e
espanhola. Carlos, Gustavo, Matos Lima, Quirino e mais dois brasileiros
além do Kristijan; Caldo Verde, Frango Assado à Espanhola e Queimada
Galega.
12 Domingo. Hoje passámos todo o dia em casa pois além de ser domingo
estava a chover muito e não nos deram nenhuma missão especial.
Dia 13. Hoje de manhã fiquei em casa. Saio à tarde para patrulhar e
inspeccionar Mahovo Storage Site.
Dia 14. Tenho que marcar voo para 21 à tarde ou 22 de manhã.
19 Domingo. Hoje tenho que levar a bagagem para Zagreb. Amanhã vou para
Osijek. Ver horários de comboio.
Dia 20. Viajo para Osijek para o jantar de despedida do Henrique.
Dia 21. Viajei de manhã com o Henrique de Osijek para Sisak.
Dia 22. Check-out do Henrique. Levantei fotografias na torre de
controlo de Pleso. Viajei para Lisboa via Frankfurt. Cheguei às 16:10h.
Trago uma encomenda: encontrei-me há dias, durante uma patrulha, com
soldados croatas que pertenciam a uma Brigada cujo santo padroeiro era
Santo António, o nosso, o de Lisboa! Um deles conhecia a história do Santo,
desde o nascimento em Portugal até à sua morte na Itália. Ficaram muito
entusiasmados por eu ser português e levaram-me ao seu comandante. Um dos
soldados, quando nos despedíamos, rabiscou num papel um desenho do Santo,
que me ofereceu.
Encontrei finalmente uma imagem do Santo António, uma pequena estátua
de barro pintado. Embrulhei-a cuidadosamente. Vou oferecê-la à Brigada
devota.
1 Julho. Travel day. Regressei de Lisboa (via Zurique) e cheguei às
17:50h.
Dia 11. Jantar de despedida do Rodrigo que vai voltar a Espanha.
Dia 12. Escrevi ao Adrian. Falei com o Milan sobre o pedido de mudança
de bilhete do dia 17.
Dia 14. Voltei à Brigada do Santo António e pedi para falar com o
Comandante. Quando lhe disse ao que ia, pretendi oferecer-lhe a figura mas
ele recusou. Não percebi logo porquê, mas como me mandou sentar e
cordialmente me ofereceu café, fiquei ainda mais intrigado. Chamou
entretanto um tenente, o seu ajudante-de-campo, a quem sussurrou algumas
palavras. Passados alguns minutos, convidou-me a ir à parada do quartel e a
levar o Santo comigo. Quando chegámos cá fora estavam os militares em
formatura. O Comandante dirigiu-se-lhes e explicou-lhes o motivo da minha
visita. De seguida o tenente disse-me que era a altura de oferecer o meu
presente. Entreguei-o ao Comandante, que o desembrulhou, e levantando, o
mostrou à tropa. De seguida agradeceu-me o gesto, reafirmando a fé daquela
gente no santo português.
Dia 15. Hoje o Rodrigo termina a missão.
16, Sábado. Sou oficial de serviço em Sisak.
17, Domingo. Encontrei-me com o Padraig na bomba de gasolina de Sisak.
Dia 18. Jantar de bacalhau com portugueses e brasileiros. Mattoso chega
hoje, vou buscá-lo a Plesso. Vem por Amesterdão.
Dia 19. Telefonei ao João Marques para combinar outro jantar.
Dia 20. Contactei a funcionária das marcações de bilhetes de avião para
pagar o excesso e trazer o bilhete.
24 Domingo. Oficial de dia em Sisak. Vou levar Viggo a Zagreb.
Dia 25. Telefonei para o Regimento de Lanceiros para o Zé B.. Jantei no
restaurante Baltazar às 20h.
Dia 27. Henrique está em Zagreb. Jantei com o Padraig e Henrique.
Encontrámo-nos às 20h na Praça do Cavalo. Telefonei ao Adrian para me
encontrar com ele no Hotel I.
Dia 29. Tentei levantar o bilhete para Atenas mas só mo dão amanhã.
30 Sábado. Parto hoje para Atenas às 13:15h. O Adrian espera-me no
aeroporto. Mariana parte de Lisboa às 11:50h e chega a Atenas às 16:55h.
3 de Agosto. O Adrian vai marcar, para este dia o voo e o apartamento
para Lesbos.
Dia 12. Tenho que comunicar que este dia "estou em Rijeka" para que não
iniciem o meu check-out.
13 Sábado. Partimos de Lesbos para Zagreb (via Tessalonika e Atenas).
No aeroporto de Zagreb apanhei o Golf que tinha alugado.
Dia 7. Parti para Portugal, depois de dois dias a preparar o check out.
Cheguei a Lisboa pelas 16:10h. Terminou a missão. Já não sou observador
militar.







A campanha da Croácia





Em Junho de 1994, as autoridades militares da NATO começaram a preparar
planos de contingência para apoiar as forças das Nações Unidas na retirada
da Bósnia e Herzegovina e da Croácia, se a situação se tornasse
insustentável.


A 28 de Junho, o Representante Especial do Secretário Geral, Akashi, e
o Tenente-General de Lapresle, Comandante da UNPROFOR , visitam o QG da
NATO em Bruxelas. Vêm tratar do apoio da Aliança às acções da ONU na ex-
Jugoslávia e fazem-se acompanhar do Tenente-General Sir Michael Rose,
Comandante do dispositivo da UNPROFOR na Bósnia.


Em Novembro de 1994, no âmbito da Resolução 958 do Conselho de
Segurança das Nações Unidas, a NATO haveria de aprovar a extensão do apoio
aéreo próximo à Croácia para protecção das forças da ONU naquele país.

A Krajina acabaria com a Operação "Tempestade" levada a cabo pela
Croácia. O êxodo sérvio para a Bósnia e para a Sérvia foi de mais de
150.000 pessoas.


A guerra sangrenta em que a Croácia se tinha envolvido desde 1991 até
1995 foi finalmente resolvida quando Zagreb expulsou, à frente das suas
espingardas, a maior parte da minoria sérvia. Esta expulsão constitui um
pobre exemplo de como os grupos étnicos podem ser separados, mas na verdade
acabou com o conflito entre croatas e sérvios. O profundo ódio não terminou
com a separação, mas acabou com a violência.





















SÉTIMA PARTE








De volta ao mundo








Voltei a casa, mas já não sou o mesmo. O que queria deixar para trás
ainda está comigo. A solidão, o afastamento de tudo o que me rodeava lá
longe, nos Balcãs, modificou-me; provocou-me um estado de percepção da
realidade que já não é compatível com as minhas experiências anteriores.
Assim se modificou o meu comportamento perante o melhor que a vida me tinha
dado antes, e que deveria ter encontrado de novo quando cheguei.


Mas vamos sempre mudando e a vida é uma caminhada, muitas vezes sem
destino, a que só a morte põe termo. Sinto, porém, que agora sou capaz de
viver sem dependência. Posso escolher o meu caminho. E no entanto é esta a
minha angústia. Não queria ter esta possibilidade. Só sei que agora, aqui
onde me encontro, longe de tudo o que vivi apenas num ano, já não existem
as pequenas coisas, as atitudes, os objectos, as emoções, as vontades, que
tanta importância tiveram. Foram pequenos nadas, tábuas abandonadas nas
ondas do alto mar, mas com as quais um náufrago pode fazer uma jangada.
Assim, muito importantes.


Para trás ficaram, junto com os povos que me receberam com esperança,
ou que com desilusão me maltrataram. Outros trilharão o mesmo destino que
eu segui um ano antes. Mas encontrarão essas gentes diferentes, ainda
tentando compreender a vertigem da história que os envolve, que lhes molda
a existência, ou que simplesmente a acaba.






O equilíbrio regional




Em 1994 a Croácia prepara-se para retomar as terras que os sérvios
retêm. A Jugoslávia, a nova, já não pode apoiar os seus irmãos da Krajina.
Um problema muito maior têm os sérvios da Bósnia e é a eles que dedica os
seus parcos recursos militares disponíveis. A Sérvia continua a sofrer um
embargo que a asfixia embora teimosamente persista na quimera de juntar a
si a maior parte dos territórios bósnios. A comunidade internacional não
aceita guerras de conquista, nem pode permitir que continuem os massacres,
a expulsão de pessoas das suas casas, as pilhagens, a destruição de
povoações inteiras. Os sérvios da Croácia já pressentiam em 1994 que iriam
ser abandonados pelos únicos aliados que tinham. Mas não tinham opção. Nem
a Sérvia os podia aceitar como refugiados. Assim preparam-se para o
inevitável.
A Croácia, apoiada pela Europa Ocidental e pela lei internacional, que
lhes reconhece o direito sobre os territórios da Krajina, prepara-se para a
reconquistar. Os indícios eram já claros em 1994: O Exército croata
apresenta novos e modernos fardamentos, arma-se com armamento individual
produzido no Ocidente, esconde novas unidades de carros de combate nas
matas, restringe o movimento dos observadores militares, mobiliza ainda
mais homens e fá-los deslocarem-se para a linha de interposição. A atitude
das populações croatas torna-se hostil, ainda mais, à presença da UNPROFOR.
Na Bósnia e Herzegovina, a última linha marcada entre sérvios e a
federação croato-muçulmana vai-se mantendo, respeitada precariamente por
ambas as partes. De Sarajevo é traçada uma linha dupla que marca o corredor
que assegura a ligação à cidade mártir de Gorazde. A intervenção da NATO
mostrou-se eficaz. Algumas aeronaves abatidas, um carro de combate
destruído às portas de Gorazde, mostraram que os sérvios não podiam tratar
a Aliança Atlântica como tinham tratado a UNPROFOR. Os tempos são outros.
O sonho da "Grande Sérvia" começa a desvanecer-se.











Conclusão




A intervenção das Nações Unidas no conflito jugoslavo teve aspectos que
só poderão ser validamente apreciados através daqueles que representaram a
Organização. Os observadores, postos à disposição da ONU pelos mais
diversos países, viveram a realidade mais crua, mais marcante, e o seu
testemunho constitui o mais válido conhecimento das razões do conflito.
Vivendo o dia-a-dia daquelas gentes, sofrendo com eles, foram no entanto o
melhor meio posto ao dispor do mundo para que o aviltamento dos homens
pelos homens não passasse desapercebido. A sua presença impediu muitos
males e deu conforto e segurança a muitos. As suas informações permitiram,
lá longe, em Nova Iorque, que se decidisse com oportunidade e correcção. A
sua vontade permitiu que muitos acordos se estabelecessem e que os combates
parassem. O mundo pôde assim agir para impedir massacres, para minimizar os
danos e para defender a justiça.
A paz, embora precária, que se conseguiu em 1995, ficou a dever-se, não
só às armas da NATO, mas também muito aos mecanismos de confiança
construídos pelos UNMOs e que aquelas gentes souberam aceitar e respeitar.
A personagem retratada nas páginas anteriores viveu no seu interior os
dramas que encontrou nas gentes com que se cruzou. Essa comunhão entre a
consciência do observador militar e o sofrimento das pessoas que com ele se
cruzaram haveria de deixar raízes nos povos balcânicos em conflito. A
mudança no íntimo da personagem acompanha as alterações da consciência
colectiva dessa gente. Os dois mundos ligaram-se.
-----------------------
[1] Em Erdut localizava-se o aquartelamento de um batalhão de tropas
especiais sérvias, comandadas por um sérvio chamado de Capitão Arkan.
Fardados de negro, incluíam homens e mulheres de várias nacionalidades e
eram conhecidos por serem tenazes e impiedosos. Dizia-se que o seu salário
era de cerca de duzentos marcos alemães por mês, para os recrutas, no
início do treino. Uma fortuna para aqueles lados.
[2] Art.105º: "1. A Organização deve gozar, no território de cada um dos
seus membros, de todos os privilégios necessários à prossecução dos seus
objectivos."
"2. Os representantes dos Estados Membros das Nações Unidas e os
funcionários da Organização devem igualmente gozar desses privilégios e
imunidades conforme necessário, para o exercício independente das suas
funções relacionadas com a organização."
"3. A Assembleia-geral pode fazer recomendações com vista à determinação
dos detalhes da aplicação dos parágrafos 1 e 2 deste artigo ou propor
convenções aos membros das Nações Unidas com esta finalidade."

[3] Bem-vindo a Sarajevo
[4] O Sector Sarajevo, que englobava a capital propriamente dita e ainda os
arredores, incluindo algumas vilas e aldeias, encontrava-se dividido em
duas partes, para efeitos de organização das Nações Unidas. O lado Papa
referia-se aos territórios controlados pelo governo da Bósnia, que
englobava muçulmanos, sérvios e croatas. O lado Lima referia-se unicamente
ao lado controlado pelas forças da República Sérvia da Bósnia. Uma equipa
de observadores era assim identificada pelo código do lado onde se
encontrava, seguido de um número de série.
[5] Vasco Rato, "A Nato, a América e a Europa", in Análise Social, nº 133,
Quarta Série, Vol. XXX, 1995 - 4º, ISCUL, Lisboa, 1995, pp. 799,780.
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