Um olhar dentro do nosso

May 25, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: Fotografia
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Um olhar dentro do nosso1 Emília Ferreira “When we first bought the farm, I used to take a chair outside in the summer sun and watch the water move. My Canadien friends thought it a risible thing to do. Water was water, and it was everywhere, wasn’t it? I paid no attention, but stared down at the little spring. It bubbled and seeped and gurgled, and it was cold when I reached down to touch it. I had never “owned” water before. I grew 2 up in the arid center of South African plains.”

Na nossa consciência comum, como cidadãos, a relação com a água continua a ser, essencialmente, egoísta – ou, talvez, simplesmente inconsciente. Esse desligamento revela também a nossa profunda leviandade quanto à utilização do nosso mais precioso recurso. Revela, também, o abismo existente entre a natureza e nós, como se aquela fosse um mero ponto de vista, um objecto com que nos relacionamos à distância de um pensamento, mas de que não fazemos parte. É no reverso desta visão que se edifica a obra de Adélia Gonçalves. Ciente da história da água, dos seus reflexos civilizacionais, com tudo o que sobre ela e à sua margem se construiu, pensou ou sonhou, Adélia revela-nos a essência de um corpo que, de tão próximo, se tornou invisível para a maioria de nós. Nascida e criada sob o signo de dois rios (o Douro e o Sena), a sua visão do mundo, da vida – a sua própria respiração – ficou para sempre moldada pelo que não tem forma: a água. No caso específico desta artista, como já vimos, ela é corporizada no curso e na imagem do rio. Lugar de encontro entre a natureza e a cultura, o rio é, desde o princípio dos tempos, eixo e razão da nossa sobrevivência enquanto espécie, das nossas identidades como povos. Não é coincidência o facto de todas as civilizações terem nascido nas margens de generosos cursos de água. “Tradutor” da construção da ideia de paisagem, o rio é para

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Texto para o catálogo da Exposição Percursos: Gota do Tejo, de Adélia Gonçalves. Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, Almada, 2010. 2 In DE VILLIERS, Marc - Water: The fate of our most precious resource. Toronto: Mariner Books, 2001, p. XIII.

Adélia Gonçalves um pretexto que, a cada segmento, compõe a sua visão – informada e reflectida – sobre a natureza e os destinos da água. O limite físico e temporal da fotografia, como também o limite físico e temporal do vídeo – media que a artista usa –, afirmam o valor do fragmento; convertem, de modo muito eloquente, a sua natureza fluida, artificializando-a de modo radical. Este, janela que institui a natureza como paisagem (para usar um paralelo à afirmação de Alain Roger3) foca o nosso olhar sobre o particularismo deste binómio natureza/tempo. Porém, para além do recurso formal, plástico, a obra de Adélia Gonçalves vai mais longe. Não se reduz ao efeito. Não se limita a buscar a beleza de superfícies texturadas, de reflexos apelativos na pele do rio. Essa primeira imagem, existe, contudo. Em termos fotográficos, por exemplo, o jogo lumínico que compõe a imagem é de tal modo cativante ao olhar que a fotografia chega a perder “realidade”. Há imagens de água (nomeadamente do Tiête, rio que banha S. Paulo, no Brasil), que nos sugerem metal ou texturas de matérias outras. O diálogo existente entre este registo e o videográfico devolve-nos, enfim, a consciência da fonte imagética: é de água que se trata. De água e do que nela habita, do que nela voga, do que nela morre. Do que ela contém. Ao retirar da água a imagem de uma corrente ou superfície cristalina, isenta de mistérios, ao destituí-la de uma imagem/natureza meramente unívoca, ela confere-lhe um corpo mais complexo; que se equivale ao nosso. O rio torna-se uma metáfora para o Eu. É fonte de vida, mas também de morte. Organismo de cuja complexidade e equilíbrio depende a nossa sobrevivência individual e colectiva, a sua crescente densidade (opacidade: sedimentação, tempo; sujidade, envenenamento) ergue-se dentro de nós e contra nós numa barreira intransponível. Eis o que nos resta: a urgência de acção para a preservação e recuperação da água potável disponível. Eis o que Adélia Gonçalves tão claramente enuncia. Para que não

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“La fenêtre est en effet ce cadre qui, l’isolant, l’enchâssant dans le tableau, institue le pays en paysage. Une telle soustraction – extraire le monde profane de la scène sacrée – est, en réalité, une addition: le âge s’ajoutant au pays… le paysage peut s’y organiser librement, indifferent qu’il est aux personages qui occupant le premier plan… Il suffira de la dilater aux dimensions du tableau, où il s’insère encore, telle une miniature, pour obtenir le paysage occidental.” In ROGER, Alain – Court Traité du Paysage. Paris: Ed. Gallimard, 1997, p. 73-74.

haja dúvidas, e muito menos ilusões: o que fizermos ao rio, fazemos a nós. Dois corpos enlaçados num destino único. Numa história comum. Recordemos: em cada rio há lugares de sempre. Nas margens celebraram-se amores, lavou-se roupa, banharam-se os corpos, desenrolaram-se batalhas. Pelos seus cursos transportaram-se mantimentos, mas igualmente invasores. Peixe e sobrevivência. Mas também dejectos. Venenos. Morte. Entre os seus lugares de sempre há o sentido do próprio fluir das águas. Todos os rios correm para o mar. Contudo, esta consciência – que antes anunciava a perda ou o distanciamento que o seu corpo constituía, que antes nos libertava do lixo, levado para longe – significa hoje o risco real de um global envenenamento, de um global desaparecimento do nosso mais precioso recurso. Ao contrário de Marq de Villiers, a maior parte de nós não tem noção da raridade que se revela numa nascente de água gorgolejante. Para lá da sobrevivência do planeta (que hoje já sabemos ter sobrevivido a várias hecatombes naturais), é o nosso corpo que está em risco. É já sabido que, se a espécie humana desaparecer, o planeta recuperará facilmente as feridas que lhe temos infligido. A floresta voltará a ganhar terreno. Os rios recuperarão os seus corpos cristalinos. Mas nós teremos desaparecido. Para sempre. O que aqui encontramos é por isso o rosto da nossa anunciada tragédia. A cada fragmento que observamos, como neste olho de rio que nos espreita por uma cavidade do caminho, é todo o rio que ali está corporizado. É o nosso corpo que ali corre. Há muitos anos, quando a Casa em que nos encontramos, ainda não tinha água canalizada, a Cisterna constituía o espaço de reserva desse bem que caía directamente das nuvens. Buraco escavado no chão, revestido e impermeabilizado, para guardar a água, hoje, já seco e com renovadas funções, recebe as imagens de Adélia Gonçalves. Fragmentos do Tejo tomados no caminho, ao longo da margem sul do rio, ocupam agora a Cisterna. Do rio para a sua gota, do universal para o particular, a água que se observa no fragmento regressa ao universal, corpo único de que nos consciencializamos, enfim. Eis a aliança mais sacra: um é o outro. Na saúde e na doença. No nosso futuro. Para que ele seja.

Emília Ferreira

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