Um olhar sobre a clássica Paragone - O Disegno Interiore e a génese da Graphopoiese

July 27, 2017 | Autor: Vasco Medeiros | Categoria: Art History, Art Theory, History of Perspective in Painting, História da arte, Teoria da Arte
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Um olhar sobre a clássica Paragone – O Disegno Interiore e a génese da Graphopoiese. Vasco Medeiros [ARTIS – IHA – FLUL – UL]

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Resumo Caberá à edição de 1817 do Trattato Della Pittura Di Lionardo Da Vinci, coordenada pelo bibliotecário da Biblioteca Barberini em Roma, Guglielmo Manzi (1784-1821), conforme sustenta Angel Garcia, a primeira fixação do termo «Paragone», entendido aqui, como campo de sustentação teórico e conflitual das diversas artes. No entanto a sua consolidação no campo semântico, não induz que o diálogo e debate inter-artes não fosse já alvo de vetusta especulação, caso da obra O Sonho ou Vida de Luciano. O que este debate na sua essência prefigurava na alvorada quinhentista, era a romântica confrontação entre artes mecânicas e artes liberais, génese parcial e maneirista do artista como génio detentor de uma hipotética e Maquiavélica Virtu, abrindo caminho a uma definitiva afirmação da sua liberalidade. No âmbito do debate, as Lezzione Di Benedetto Varchi fazem adivinhar a obra de um teórico póstero como Federico Zuccari, onde se formula o seminal conceito de “desenho interior”. Definitivamente, a sublimação da Idea ao magno papel edificante de um discurso polimórfico, condena em definitivo a Paragone a um papel secundário no diálogo inter-artes, harmonizando Eidopoiese e Iconopoiese numa fórmula triádica de superior de expressão. Esta constatação convida à aposição de uma notável entidade, a Graphopoiese, dimensão de um «fazer» em que o «desenho» assume um papel vinculativo entre o espirito e a obra, livre de interlocutores, de leis, regras ou constrangimentos à mais pura das derivas, derradeiro liame entre artista, forma e imagem.

Palavras-chave

Paragone. Leonardo da Vinci. Luciano. Benedetto Varchi. Disegno Interiore. Francisco de Holanda. Graphopoiese

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Abstract It was, according to Angel Garcia, in the 1817 publication Trattato Della Pittura Di Lionardo Da Vinci, edited by Guglielmo Manzi (1784-1821), librarian of Rome's Biblioteca Barberini, that the term “paragone” was first established – understood as a field of theoretical support for and comparison of the various arts. However, this consolidation on a semantic level does not mean that dialogue and debate between the arts was not the focus of speculation from ancient times, as in the work The Dream, or Lucian's Career. In essence, what this debate in the early 16th century prefigured was the Romantic confrontation between the mechanical and liberal arts, with the partial Mannerist emergence of the artist as the possessor of a hypothetical Machiavellian Virtu, paving the way to the definitive affirmation of his liberal nature. In the ambit of this debate, the Lezzione Di Benedetto Varchi laid the groundwork for later theorists such as Federico Zuccari, whose work contained the seminal concept of the “interior drawing”. The sublimation of the Idea in the overriding constructive role of a polymorphic discourse definitively condemns the Paragone to a secondary role in the inter-arts dialogue, combining Eidopoiesis and Iconopoiesis in a triadic formula of higher expression. This realisation suggests the addition of a remarkable entity, Graphopoiesis, the dimension of a kind of “making” in which the “drawing” takes on a binding role between the spirit and the work, free of interlocutors, laws, rules or constraints on the purest of motion – the ultimate bond between artist, form and image.

Keywords

Paragone. Leonardo da Vinci. Luciano. Benedetto Varchi. Disegno Interiore. Francisco de Holanda. Graphopoiese

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I – Paragone ou o erro de Leonardo «(…) Entre la pintura y la escultura no encuentro sino esta diferencia: que el escultor concluye sus obras com mayor fatiga de cuerpo que el pintor, en tanto que el pintor concluye las suyas com mayor fatiga de mente (…)»1

Partir de uma suposição de erro, será sempre tarefa arriscada, mas a lógica invocada ao longo destas linhas, consolidar-se-á na resposta que procuramos – afinal, trata-se de um erro parcial e a infalibilidade de Leonardo provar-se-á no último capítulo. À primeira vista, é absolutamente redutora, a caracterização que o mestre Florentino estabelece no pequeno texto capitular. Aferir a distinção absoluta entre pintura e escultura, pelo grau tipológico de desgaste que cada uma motiva é uma abordagem que sugere e estabelece uma óbvia posição critica e balizada do seu autor. Leonardo ao escrever deste modo, tão distante do genial e epistemológico teorizador do seu tempo, parece querer invocar velhos fantasmas, induzir discursivamente sombras de um passado prefigurado por corpos desgastados e corroídos pela força do maço e do escopro – e essa é inegavelmente uma tradução semântica da imagem mutilada da sua Némesis - Michelangelo Buonarroti. Parcialmente, o discurso de Leonardo patente nas suas Paragones induz instantaneamente uma imagem específica e prototípica de escultor, inteiramente dedutível das suas memórias, dos seus conflitos internos, das suas frustrações. A sua relação com a escultura, nem sempre se pautou por esta consideração arcaizante - na realidade, como ignorar o seu baptismo auspicioso no «Orto dei Medici», emerso nas vastas colecções de esculturas e relevos clássicos dispostas no vasto jardim onde estavam depositadas as colecções Medíceas. Leonardo chega mesmo a declarar orgulhosamente no Trattato o claro domínio da arte: «Dedicándome yo no menos a la escultura que a la pintura y sendo en una y outra igualemnte versado (…)»2. Do mesmo modo, na célebre carta enviada a Ludovico Sforza,

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Vinci Leonardo da Tratado de pintura [Livro] / ed. Gracia Angel González. P. 72. - Barcelona : Akal, 1986. Idem P. 77.

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afirma clara e orgulhosamente “condurrò in scultura, di marmore, di bronzo e di terra” 3. Este declarado domínio que Leonardo afirma possuir na arte da escultura, poderá conduzir-nos a uma bifurcação evidente, tratando-se ou de declarada fanfarronice, ou na realidade, prova indefectível de que a maior parte da sua obra escultórica terá desaparecido. Apesar de tudo, após a primeira fase dos descalabros Florentinos pautados na tristemente célebre confissão inscrita no Codex Atlanticus - «Os Medici criaram-me e destruíram-me», o artista ainda acalentava esperanças de, em Milão e na corte de Ludovico Sforza, dar provas dos seus talentos Eidopoiéticos – infelizmente hoje sabemos que para além da decepção, frustração e angústia, nada de relevante lhe estaria reservado no campo da escultura 4. Invariavelmente, também o seu par antitético carregará com ele angústias e tormentos existenciais, que não se pacificarão nunca ao longo da sua longínqua existência. Parece-nos invocada aqui a estrutura lexical que Margot e Rudolf Wittkower5, invariavelmente tecem do artista do Cinquecento, como um ser primordialmente atormentado pelos Saturninos eflúvios, tão nefastos e destrutivos como fecundos e geniais. Convocamos instantaneamente as palavras de Marsílio Ficino, quando este caracterizava a insidiosa melancolia que o atormentava, sentenciando os homens que como ele: «(…) caminan, digámoslo así, por una cresta estrecha entre dos abismos. Pero precisamente por esa razón caminan muy por encima del nivel de los mortales vulgares (…)»6. O resultado da colisão de dois espíritos desta envergadura torna-se notório nas ondas de choque que perpassam fundamentalmente no discurso paragónico de Leonardo. Três momentos conflituais parecem marcar definitivamente o confronto entre estes dois espíritos colossais, e importa a sua prévia compreensão, para se proceder uma “limpeza” da Paragone de todos os elementos acessórios, não teóricos, e

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Vinci Leonardo da Tratado de pintura [Livro] / ed. Gracia Angel González. P. 77. - Barcelona : Akal, 1986. Não ignoramos, é certo o modelo do célebre monumento equestre a Francesco Sforza exposto em 1493, e destruído aquando da entrada em Milão das tropas Gian Giacomo Trivulziu, cuja soldadesca se entreteve a destruir para exercitar o tiro de bestas. 5 Wittkower Margot. Rudolf Born Under Saturn [Livro] / ed. Connors Joseph. - New York : New York Review Books, 1963. 6 Panofsky Erwin Vida y arte de Alberto Durero [Livro]. P. 179 - Madrid : Alianza Forma, 1943. 4

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cuja origem se encontra por certo aferida a conflitos e bloqueios psicológicos do seu autor. Segundo uma inferência de Vasari, referindo-se ao bloco colossal que jazia na fabricceria do Duomo ocultando nas suas entranhas o futuro “Davide colla fromba e io coll’arco”, o Gonfaloneiro Soderini teria muitas vezes falado em «(…) dar o bloco a Leonardo»7. Ora precisamente neste período e continuando a fazer fé em Vasari, Leonardo; enquanto Miguel Angelo se afadigava em torno do famigerado bloco; trabalhava no paradigmático e icónico retrato de Lisa del Giocondo, envolto por certo no ambiente auspicioso da criação pictórica que advoga precisamente na sua paragone: «(…) su habitación está limpia y llena de hermosas pinturas, y a veces se deleita en la compañia de músicos o de lectores de variadas y bellas obras, que son com gran placer oídas» 8. Esta referência Vasariana, carecendo porém de prova documental, poderá marcar um primeiro capítulo de uma relação conflituosa e problemática. A 25 de Janeiro de 1504, reuniu-se uma comissão9 extraordinária para decidir sobre a localização futura do colosso. A opinião de Leonardo, transcrita na acta da reunião, revela segundo Charles Nichol, uma inerente vontade de ocultar o próprio Miguel Angelo, “esse génio estranho e intrometido”10: «Acho que devia ser colocada na Loggia, como disse Giuliano, por detrás do muro baixo onde se alinham os soldados. Deve ser lá colocado com os ornamentos adequados, de maneira a não interferir com as cerimónias de Estado» 11. Ao que consta, apenas outro membro da comissão (Giuliano da Sangallo, pressupomos) votou a favor desta localização, todos os demais votaram a favor da colocação da estátua à entrada do Palazzo Vechio, onde de facto permaneceu durante séculos. Este percalço opinativo não ficaria sem resposta por parte do conflituoso Miguel Angelo. Um episódio descrito no Anonimo Gaddiano ou Magliabechiano (Cod. Magliab. XVII, 17),

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Nicholl Charles Leonardo da Vinci o Voo da Mente, Biografia [Livro]. P. 411 - Lisboa : Bretrand Editora, 2004. 8 Vinci Leonardo da Tratado de pintura [Livro] / ed. Gracia Angel González. P. 73. - Barcelona : Akal, 1986. 9 Fizeram parte desta comissão, segundo Charles Nicholl, uma constelação rara de talentos: Leonardo da Vinci, Andrea della Robia, Sandro Botticelli, Piero di Cosimo, David Ghirlandaio, Pollaiuolo, Filippino Lipi, Cosimo Rosselli, Giuliano e António da Sangallo, Pietro Perugino e Lorenzo di Credi. op. cit. P. 412. 10 Ibidem. 11 Nicholl Charles Leonardo da Vinci o Voo da Mente, Biografia [Livro]. P. 412 - Lisboa : Bretrand Editora, 2004.

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permite deduzir que a relação entre os dois artistas se teria degradado em absoluto. A resposta de Miguel Angelo quando interpelado por Leonardo para clarificar uma passagem de Dante, sublinha por um lado o seu grau de despeito pela inexplicável postura de Leonardo face à localização do David, por outro, o elevado grau de incredibilidade que o episódio do Cavalo Sforziano representava no estatuto escultórico de Leonardo: «Explica tu, se quiseres, tu que desenhaste um cavalo para fundir em bronze e não foste capaz de o fazer e abandonaste-o por vergonha»12. Este episódio haveria de ser complementado por outro relato patente igualmente no código Magliabechiano, quando Miguel Angelo, numa deliberada tentativa de “mordere” Leonardo em público, afirmara que os «Caponi de’ Melanesi», literalmente, os imbecis dos Milaneses, teriam acreditado nele em vão. Estes episódios haveriam de ser elevados a um paroxístico grau, decorrente do confronto directo dos dois artistas nas paredes do Palazzo della Signoria, aquando do mítico duelo pictórico que opôs a Batalha de Anghiari de Leonardo à Batalha de Cascina de Miguel Angelo. Mais do que explorar estes aspectos, distantes da objectividade desejada, importa porém, sublinhar a sincronia desejada, de resto apontada por Nicholl 13, para o ano de 1504, i.e., depois da comissão do David a Miguel Angelo, e após os fracassos Milaneses de Leonardo no campo da escultura. Face ao exposto, parece-nos evidente que o campo da objectividade intelectual de Leonardo, quando este se debruça sobre o confronto entre as diversas disciplinas artísticas, se encontra definitivamente minado por estes episódios pessoais, que lhe toldam a lucidez. A sua caracterização física do escultor, roça por vezes o patético, num esforço declarado para menorizar uma glória que declaradamente o seu opositor lhe tolhia de forma substancial, senão vejamos: «(…) Su rostro aparece embadurnado y como enharinado por el polvo de mármol, que parece un panadero, y todo cubierto por diminutas esquirlas, cual si hubiese nevado sobre él, y sucia su habitación y llna de

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Nicholl Charles Leonardo da Vinci o Voo da Mente, Biografia [Livro]. P. 413 - Lisboa : Bretrand Editora, 2004. 13 op. cit. P. 414.

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esquirlas y polvo de piedra(…)»14. No campo oposto, e segundo Vasari, Miguel Angelo considerava a pintura como coisa de mulheres e ociosos, e segundo Paolo Giovio nas suas Vitae Virorum Illustrium, de 1549, de facto, o desalinho doméstico de Miguel Angelo era manifesto, o que per se poderá ter acicatado o olhar critico do Vinciano. Parte das paragone de Leonardo, parecem portanto, encerrar muito mais que uma inocente análise dos rudimentos formais de uma arte, traduzem um inevitável despeito por uma actividade que até então lhe tinha sido vedada, e que era contrária ao seu espirito sensível e melancólico, antes, arte bélica, percutida, fruto de uma subtracção de matéria, incutindo no seu autor, a dureza rude da matéria que a constitui. No entanto a sua análise vai muito para lá desta circunscrição prévia e de certo modo alegórica do escultor – o projecto paragónico de Leonardo, consiste fundamentalmente em descredibilizar a escultura em pedra, como sendo uma arte mecânica desprovida de qualquer ciência para a sua concretização, senão vejamos o que escreve no seu Trattato: La escultura no es ciencia, sino arte muy mecánica, porque por ella su artífice suda y se fatiga, y bástale a tal artista conocer las simples medidas de los miembros y la naturaleza del movimiento y el reposo, que así ya da fin a su labor, mostrando al ojo el objecto tal cual es, de lo que en nada se admira, pues, el contemplador; no así la pintura, que en una superficie plana muestra, a fuerza de ciencia, grandíssimas campiñas com lejanos horizontes15.

É portanto, na clara ausência de elementos científicos para a sua concretização, leia-se matemática, geometria e perspectiva, que Leonardo condena a escultura e os seus cultores, leia-se Miguel Angelo, a um medievo e atávico estatuto. Será por certo uma deriva opinativa de quem não reúne em si, no mesmo braço, os distintos rudimentos de uma expressão unitária. Para Miguel Angelo, como seria de esperar, a distinção encontra outra fundamentação. Nos famosos Diálogos com Francisco de Holanda, e apesar de posicionar a pintura [aqui já metamorfoseada na sua essência, o desenho] no topo hierárquico da estrutura seminal das artes, afasta os oficios mecânicos da sua amada escultura, «Deixo já todos os officios e artes, de que pintura é fonte principal, dos quaes uns são rios que nascem d’ella, como a scultura e arquitetura, alguns

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Vinci Leonardo da Tratado de pintura [Livro] / ed. Gracia Angel González. P. 73. - Barcelona : Akal, 1986. 15 Op. cit. P. 72

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são ribeiros, como os officios macanicos, e alguns são charcos que não correm» 16. Esta não poderia ser uma posição mais dispare da defendida por Leonardo, para quem a pintura representaria por certo um Oceano inviolável e circunscrito, integro na sua natureza singular. Se por um lado estabelece um diferencial latente na prática e nas subsequentes consequências nefastas do espaço oficinal no próprio fluir da ideia e da criação, por outro, eleva o pintor a uma sublime posição, encontrando-se este, no seu entender, envolto numa atmosfera de um idílico paraíso terrenal: « (…) sentado ante su obra y a sus anchas (…)», vestido dos mais elegantes e dispendiosos tecidos, movimentando o «(…) levísimo pincel en graciosos colores empapado (…)»17. A distância da atávica Bottega parece exclusiva da arte da pintura, onde o artista habita e ocupa um idílico Parnassus em oposição ao espaço oficinal escultórico sujeito às condicionantes da matéria e dos elementos, díspar da mais heurística divagação. Leonardo por seu lado reúne mais aspectos que sob o seu ponto de vista, reduzem a escultura a uma prática cujo domínio visual foge permanentemente à volitiva expressão do criador. Este aspecto, no seu entender, encontra-se em oposição à subjacente, contínua e íntegra permanência da intenção criadora que a obra pictórica induz, transportando no seu âmago luz, sombra e espaço pictórico que permanecem inalteráveis sob quaisquer condições de observação. Esta perene condição visual encontra-se ausente da prática escultórica, que apartada do seu locus geracional e das condições lumínicas originais, sofre distorções e deformações na sua integridade: «(..) El capital enemigo del escultor, tanto para las esculturas de bulto redondo cuanto para los relieves; y es que nada valdrán sus obras si en ellas la luz no está dispuesta como en el lugar en que fueron llevadas a cabo (…)» 18. Para Leonardo, reside na pintura o sublime enlevo de rasgar a superficie bidimensional da obra, e «a fuerza de ciencia» conduzir o olhar do observador até um distante e renovado infinito. Para o espirito forçosamente sonhador e cientifico que detém, a materialidade da obra pétrea encontra-se definitivamente afastada do sublime sfumato, das ondulações atmosféricas que as

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Holanda Francisco de Da Pintura Antiga [Livro]. P. 264 - Lisboa : Imprensa Nacional Casa da Moeda [1983], 1548. - Vol. Colecção Arte e Artistas. 17 Vinci Leonardo da Tratado de pintura [Livro] / ed. Gracia Angel González. P. 73. - Barcelona : Akal, 1986 18 Op. cit. P. 77.

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neblinas invocam, da profundidade imanente do olhar, das graduações impercetíveis da pura cor, que derivam o observador, de uma mera e estéril receptividade visual da obra, para uma genuína e fecunda transcendência espiritual. Poderemos elencar seguramente os seguintes aspectos que no seu entender a simples Eidopoiese não alcança em oposição a uma global Iconopoiese. Que entendemos nós da descriminação destas duas formas do fazer em arte? Eidopoiese refere-se exclusivamente à produção da forma, sublimando no acto escultórico precisamente o seu carácter intrinsecamente físico que o modelar da matéria lhe confere, não deixando no entanto de configurar per se uma modelar realização visual. Já a Iconopoiese refere-se à soma de actos, que conferem a um modelo heurístico e conceptual, uma existência formal e integra no plano visual, bidimensional e potencialmente virtual, i.e., emulando os artifícios da natureza da visão. Para Leonardo, esculpir resume-se a uma simples equação, tirar apenas a matéria pétrea excedentária, revelando do âmago do bloco as formas correctamente aferidas da realidade, em suma, uma singular Eidopoiese, i.e., um simples execução da forma: «(…) si sua arte fuese perfecta habría quitado, según su conocimiento de las medidas, tan sólo lo preciso y no más; conque tal exceso nace de su ignorancia, que le lleva a quitar más o menos de lo que debe.»19 No outro extremo da equação, o pintor, é transfigurado no cientista polímata, envolvido em múltiplas premissas processuais para o correcto domínio da sua arte, um domínio inscrito numa plural Iconopoiese, ou seja, uma autocéfala capacidade de criar universos visuais, que Leonardo elenca em dez distintos discursos e domínios complementares: A luz, as trevas, a cor, o corpo, a figura, a posição, o afastamento, a proximidade, o movimento e o repouso. Ao escultor, poucos ou nenhuns destes aspectos interessam, visto que o mesmo não possui qualquer controle sobre os elementos naturais que formalizam visualmente a escultura, carecendo esta de uma independência óbvia: El escultor (…) no se cuida de la luz o de las sombras, puesto que la naturaleza las engendra por sí misma en sus estatuas; del color, nada; por la lejania o la proximidad medianamente

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Vinci Leonardo da Tratado de pintura [Livro] / ed. Gracia Angel González. P. 74. - Barcelona : Akal, 1986

P ágina |9 se molesta, puesto que emplea la prespectiva lineal20, pero no la de colores (…) La escultura, pues, tiene menos discursos y, en consecuencia, menos fatiga el ingenio que la pintura.21

A distinção fundamental entre pintura e escultura, em última análise, representa para Leonardo a dimensão conceptual que as separa, dimensão essa transposta para a lenta edificação do artista pintor como criador liberal dominando à semelhança do demiurgo cientista, luz, trevas, espaço e tempo. O escultor, na sua perspectiva, permanece envolto na penumbra poeirenta das corporações mecânicas, por se limitar, à força de tirânico desgaste físico, a limpar o excedente pétreo que oculta as formas harmoniosas que residem desde tempos imemoriais no seu núcleo. Mesmo o argumento transposto no alegórico diálogo que Leonardo cria entre o escultor e o pintor, de que a dignidade da escultura reside fundamentalmente na sua eternidade, é rapidamente refutada com a premissa de que essa resistência é intrínseca à matéria, e não à natureza do artífice, revelando a utilização do termo, “artífice” propositadamente empregue como caracterização da natureza idiossincrática dos seus cultores22. Segundo o projecto paragónico de Leonardo, caberia aos pintores liderar não apenas a ascensão social ao estatuto liberal dos artistas, mas sobretudo, a difusão por essa feliz Pátria de intelectuais que alastrava no ocidente, de uma nova e conceptual ciência pictórica, concatenando no seu âmago uma genuína revolução visuo-cognitiva. Uma vez mais, conforme veremos, a história não lhe dará razão.

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Refere-se aqui certamente à escultura em relevo. Vinci Leonardo da Tratado de pintura [Livro] / ed. Gracia Angel González. P. 75. - Barcelona : Akal, 22 Op. cit. P. 75. 21

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II – As origens do Debate Uma vez analisados os fundamentos que edificam a visão redutora de Leonardo face à Eidopoiese, importa porém, antes de descortinar as provas que consubstanciam o seu equívoco, analisar sumariamente as origens desta visão redutora e maquinal da arte escultórica. Trata-se no entanto, de um diálogo distante dos profícuos e dialogantes conflitos entre a linha e a forma, matéria e a sua espacialidade gritante, e sobretudo, longe da ilusória e mesmerizante indução espacial que a pintura introduzirá no discurso paragónico. Caberá à edição de 1817 do Trattato Della Pittura Di Lionardo Da Vinci, coordenada pelo bibliotecário da Biblioteca Barberini em Roma, Guglielmo Manzi (17841821), conforme sustenta Angel Garcia 23, a primeira fixação do termo «Paragone», entendido aqui, como campo de sustentação teórico e conflitual das diversas artes. De facto, um breve relance à origem filológica e fixação primeva do termo - cedo constatamos com estranheza a sua ausência em anteriores edições da obra. Analisada por exemplo, a versão do Trattato editada por Rafaelle Du Fresne 24 em 1733, a ausência do capítulo dedicado à célebre Paragone presente no Codex Urbinas, torna-se flagrante. Após a publicação do Tratado por Guglielmo Manzi em dois volumes distintos, o já mencionado corpus teórico de 1817, e um segundo publicado em 1818, dedicado em exclusivo à reprodução imagética do tratado (Cremos constituir o primeiro a ser editado com esta característica), a cristalização do termo viu-se sustentada, nomeando per se, o clássico debate sobre as virtudes das artes e os diversos conflitos que as suas idiossincrasias associadas à sua natureza plástica sempre motivaram. Debate este, digase de passagem, que na sua essência, prefigurava já no dealbar quinhentista, a romântica confrontação entre artes mecânicas e artes liberais, génese parcial e maneirista do artista como génio detentor de uma hipotética e Maquiavélica Virtu, e que fundamentalmente na segunda metade do século XVI, abrirá caminho a uma definitiva afirmação da sua liberalidade. Consubstanciando esta premissa, torna-se

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Vinci Leonardo da Tratado de pintura [Livro] / ed. Gracia Angel González. P. 27. - Barcelona : Akal, Edição complementada com o Della Pinttura (De Pictura) e o Della Statua (De Statua) de Alberti adornado com ilustrações de Nicolas Possin. 24

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incontornável a obra de Benedetto Varchi de 1546, Lezzione Di Benedetto Varchi, Nella Qvale Si Dispvta Della Maggioranza dell’arti, et qual fia piu nobile, la Scultura, o la Pittura, fatta da lui publicamente nella Accademia Fiorentina, la terza Domenica di Quarefima: l’anno 154625, que analisaremos confrontacionalmente com o anterior capítulo mais adiante. No entanto, a origem deste debate remonta seguramente até Luciano de Samósata (ca. 125 – ca. 180) e à sua imortal obra, O Sonho ou Vida de Luciano26. Analisemos de ante-mão esta singular obra, que nos fornece seguramente uma visão clara das desvirtudes e tristezas a que um escultor na antiguidade clássica estaria por certo condenado. Torna-se incontornável no entanto ressalvar uma distinção importante, este confronto paragónico decorre entre uma formal e substancial glória da escultura em oposição às artes de toga, i.e., aquelas que derivam das letras e do direito, e não da pintura, que apesar do folclore associado às lendas dos pintores clássicos, não asseguraria por certo uma dimensão mítica equivalente à da escultura. A história resume-se rápidamente e em poucas linhas, o jovem Luciano, em idade de abandonar a escola e questionando-se sobre a natureza do trabalho a eleger, é visitado em sonhos por duas alegóricas e femininas representações antagónicas: as letras por um lado, e os oficios mecânicos representados precisamente pela escultura, por outro. Torna-se fundamental efectuar a confrontação entre a descrição que Luciano faz da imagem simbólica e aquela que já analisámos no discurso paragónico de Leonardo, o mesmo abismo conceptual parece habitar a confrontação que Luciano estabelece das duas antagónicas artes: Uma delas tinha aspecto de operário, viril, de cabelo desgrenhado, com as mãos cheias de calos, a veste subida até à cintura e toda coberta de pó de mármore, tal e qual o meu tio, quando polia as pedras. A outra, por seu lado, tinha um rosto muito agradável, um porte distinto e um manto muito elegante.27

Após este choque inicial que o confronto com as duas assombrações induz, cabe à escultura efectuar o devido elogio da arte de representa:

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Varchi Benedetto Dve Lezzione Di M. Benedetto Varchi Nella Prima Delle Quali Si dichiara vn Sonetto di M. MICHELAGNO O Buaonarroti. [Livro]. P. 56 - Fiorenza : Appresso Lorenzo Torrentino, 1549. 26 Samósata Luciano de Luciano I [Livro] / trad. Magueijo Custódio. P. 23 - Coimbra : Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012. 27 Op. cit. 29.

P á g i n a | 12 Não fiques horrorizado com o meu aspecto vulgar nem com as minhas vestes sujas, pois foi com este aspecto que o famoso Fídias produziu a sua estátua de Zeus, que Policlito fez a sua Hera, que Míron foi louvado e Praxíteles admirado. Por isso, eles são venerados juntamente com os deuses [que criaram]. Ora, se tu vieres a ser como um desses artistas, certamente serás considerado ilustre entre todos os homens, tornarás teu pai digno de inveja e tornarás famosa a tua terra natal.28

Luciano remata com manifesto incómodo, os extremos “erros e barbarismos” com que a escultura se expressa. Não nos podemos porém, subtrair ao notório carácter Junguiano que estas palavras poderão ter tido em Leonardo quando este se confrontou com a inefável glória com que Miguel Angelo o confrontava. E depois, essa declarada e bipolar associação entre glória, fama e aceitação, por um lado no aspecto interno da figura paternal, por outro no aspecto externo, da cidade que o acolheu e que tantas vezes o ignorou e deslustrou. Cabia a Miguel Angelo esse lugar cimeiro no Olimpo que Florença erigia aos seus artistas, a sua cidade celebrava-o, a sua família resplandecia de orgulho. Poderemos de facto inferir um nexo causal entre a obra de Luciano e a paragone de Leonardo? A obra O Sonho ou Vida de Luciano foi traduzida para Latim por Lapo da Castiglionchio em 1434, e dedicada ao Papa Eugénio IV. David Marsh não tem dúvidas em posicionar a obra de Luciano como axial na cultura Humanista, «The fifteenth and sixteenth centuries witnessed a veritable explosion of Lucianic translations and imitations, including works by the most significant writers of the Renaissance (…)»29. Por outro lado, o número de edições de Luciano, impressas entre o século XV e o XVI, não deixam lugar a dúvidas sobre a sua presença nos círculos de erudição que Leonardo frequentava - 134 em Grego, 154 em Latim e 38 edições bilingues.30 Também a lista de autores que reconhecidamente se debruçaram sobre a obra de Luciano é vasta, Ficino, Alberti, Bracciolini, Valla, Erasmo, Moore, Rabelais… uma lista infindável que atesta por certo o caracter imperioso que a obra de Luciano colhia no espirito e no seio da cultura humanista.

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Samósata Luciano de Luciano I [Livro] / trad. Magueijo Custódio. P. 29 - Coimbra : Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012. 29 Marsh David Lucian and the latins: Humor and Humanism in the Early Renaissance [Livro]. P. 12 Michigan : University of Michigan Press, 1998. 30 Ibidem.

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Retomemos o Sonho de Luciano onde o deixamos, precisamente no momento em que a cultura inicia o seu discurso dissuasor: Meu filho, eu sou a Cultura, que já te é familiar e conhecida, se bem que ainda não me tenhas experimentado por completo. Ora, quanto aos enormes benefícios que retirarias do ofício de escultor, esta fulana acaba de mencioná-los. De facto, não serás mais que um simples operário, que mata o corpo com trabalho e deposita nele toda a sua esperança de subsistência, ele próprio obscuro, ganhando um salário magro e vil, de mentalidade humilde, desconhecido de toda a gente, nem útil aos amigos, nem temido dos inimigos, nem invejado pelos outros cidadãos, mas apenas isto: um simples operário, um de entre a grande massa popular, sempre ajoelhado aos pés dos notáveis e servidor dos que sabem falar, levando uma vida de lebre e presa dos mais fortes. E mesmo que te tornasses um outro Fídias ou outro Policlito, e produzisses muitas obras admiráveis, seria a [obra de] arte em si aquilo que todos elogiariam, sem que houvesse alguém, entre os que a observavam, que, no seu juízo perfeito, ambicionasse ser igual a ti. De facto, por grande [artista] que sejas, serás visto apenas como um artesão, um trabalhador manual, que vive do trabalho braçal.31

Cremos residir neste ponto, o aspecto seminal da argumentação paragónica de Leonardo. De facto, o que Leonardo faz é precisamente arrancar a pintura do caracter servil e mecânico a que a escultura estava votada desde sempre, aplicando como receita a cientificação do receituário empírico a que a mesma se encontrava circunscrita. Leonardo, o genial polímata, habita um universo transitório e distante da Academia à semelhança de Verrochio e Botticelli, mas próximo dos círculos humanistas que o elogiavam com frequência. Segundo Angel Garcia, o seu posicionamento antiHumanista, diverte-o com frequência, quando nas páginas do Trattato, debocha da pedantaria dos eruditos 32, atitude de resto complacente com o seu espirito notoriamente independente e autocéfalo. De facto, reside nesta autocefalia, a circunscrição de um novo paradigma, a sublimação da pintura às mais altas esferas da ciência, elevando nesta ascensão o pintor, transmutado em criador/demiurgo/cientista, tão distante do afadigado e vil artífice que desbasta a pedra.

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Samósata Luciano de Luciano I [Livro] / trad. Magueijo Custódio. P. 30 - Coimbra : Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012. 32 Vinci Leonardo da Tratado de pintura [Livro] / ed. Gracia Angel González. P. 13. - Barcelona : Akal,

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II – Lezzione di Varchi Apesar da concepção autocéfala do carácter do pintor edificado por Leonardo nas suas paragones, é certo que o seu interlocutor e Némesis eterna, não teria ainda proferido as suas últimas palavras. A eloquência de Miguel Ângelo far-se-á através dos tectos da Sistina, criados com furor e raiva, mas sobretudo, mediante um profundo desprezo pelos preceitos científicos que Leonardo tinha profetizado no seu Trattato. De facto, quando inicia os trabalhos na Sistina em 1508 para os terminar em 1512, o resultado final é quase uma contradição cabal dos dez “mandamentos” científicos que Leonardo tinha elencado anos antes. A sua criação, longe de todas as espectativas formalizadas, explode em direcções nunca antes ensaiadas, fundeada longe dos tirânicos preceitos espaciais, cromáticos, anatómicos e lumínicos – tudo se torna inaugural nesta obra colossal que semeia os piores receios que Leonardo por certo acalentava, i.e., o nascimento de uma pintura não-cientifica e que na realidade o maneirismo veio formalizar. Leonardo encontrava-se nessa data precisamente em Roma, uma feliz cronologia que viabiliza por certo o contacto com a criação da obra imortal do seu opositor. Instalou-se em 1513 no Belvedere, o palácio de verão do Papa, a seis anos da sua morte, imerso num autismo crescente a que a sua mente sublime o condenava, entretido com jogos mentais a que a matemática e a geometria o conduziam, tão distante das profanas congeminações das linhas e das formas… «(…) Começo agora o meu livro De ludo geometrico [Dos jogos geométricos], onde mostro mais caminhos para o infinito (…)»33. Quanto a Miguel Angelo, estará por estes anos a edificar lentamente a sua glória e lenda futura, alimentado aqui e ali, relatos esparsos das suas visões e concepções filosóficas, de cuja fixação, sempre foi adverso opositor. Um desses exemplos está presente na obra de Benedetto Varchi de 1546, Lezzione Di Benedetto Varchi, Nella Qvale Si Dispvta Della Maggioranza dell’arti, et qual fia piu nobile, la Scultura, o la Pittura, fatta da lui

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Nicholl Charles Leonardo da Vinci o Voo da Mente, Biografia [Livro]. P. 500 - Lisboa : Bretrand Editora, 2004.

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publicamente nella Accademia Fiorentina, la terza Domenica di Quarefima: l’anno 154634. Trata-se de uma palestra pública, efectuada tal como se deduz do título, no terceiro domingo de quaresma do ano de 1546, palestra essa, dedicada à análise e apreciação das considerações de Miguel Angelo sobre a pintura e a escultura - uma vez mais, o eterno confronto entre Eidopoiese e Iconopoiese. Após uma fastidiosa introdução, são formuladas três questões fundamentais: Primeira - Qual a mais digna de todas as artes? Segunda - Qual a mais nobre, a pintura ou a escultura? Terceira e última – Em que aspecto são semelhantes e dissemelhantes os poetas e os pintores? Varchi deixa-nos o seguinte indício sobre o estado da arte e a resposta à primeira questão qual das artes será mais digna: «(…)Dopo la Medicina seguita (per quanto à me ne paia) l’Architetura, la quale & per la nobilità del suo fine, & per la degnità del suo subbietto, & per le molte cose, che in lei si ricercono di sapere, precede l’altre tutte quante, & senon hauesse sauellato lungamente prima Vitruuio, nel suo dottiss(…)»35 Do seu ponto de vista, caberia precisamente à arquitectura e aos seus cultores, o papel cimeiro, não apenas pela nobreza do seu fim, mas fundamentalmente pela dignidade do seu sujeito. Sobre a semântica com que se reveste esta dignita Varchi aponta o seguinte argumento: «(…) come il Medico ricorre alla Filosofia, cosi l’Architetto deue reicorrere alla Geometria (…)»36. Ou seja, o diálogo do arquitecto com a obra deverá ser mediado pela geometria, fundamento harmónico universal. Ao abordar a segunda questão, qual a mais nobre, a pintura ou a escultura? Varchi remete-se a uma dúbia, prudente e indefinida posição, reconhecendo não reunir todas as condições para uma correcta ponderação: «(…) Penso ancora, che alcuno mi creda tanto arrogante, et presuntuoso, che io osassi di muouere questa dubitazione, & disputa per diciderla, & risoluerla hauendo pochissima cognizione dell’una, & manco dell’altra (…) rimettendomi intutto, et per tuto al giudizio di chi è perfetto nell’una, & nell’altra, cio è à Michealagnolo (…)» 37

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Varchi Benedetto Dve Lezzione Di M. Benedetto Varchi Nella Prima Delle Quali Si dichiara vn Sonetto di M. MICHELAGNO O Buaonarroti. [Livro]. P. 56 - Fiorenza : Appresso Lorenzo Torrentino, 1549. 35 Idem. P. 75 36 Ibidem. 37 Idem. P. 89 – 90.

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A sua posição denota um claro desconforto – desconhecemos se o próprio Miguel Angelo estaria na assistência, mas sendo famosa a sua predileção pela arte escultórica, em detrimento da pintura, que conforme vimos, considerava coisa de mulheres - esta excessiva tonalidade laudatória torna esta hipótese plausível. Esse evidente desconforto, encontra-se patente na forma hábil como invoca anteriores paragones, esgrimindo esses argumentos contra qualquer percalço que a sua posição possa motivar, Varchi, invoca em permanência Alberti, presença tutelar e multidisciplinar com a intenção clara de induzir razoabilidade aos seus argumentos: «(…) M. Leone Batista Alberti huomo nobílissimo, & dottissimo in molte scienze, & arti, essendo stato & Architetto, et Pittore grandissimo ne’ suoi tempi, tiene nel libro, ch’egli scriffe della Pittura, che ella sia piu degna, & piu nobile della Scultura (…)»38 Porém, um dos aspectos mais interessantes desta sumária obra, remete-nos para a terceira e última questão formulada, recordemos, em que aspecto são semelhantes e dissemelhantes os poetas e os pintores. Este aspecto reforça fundamentalmente o papel da ideia, que no dealbar da segunda metade do século XVI, se afirmava como fundamento crucial da criação artística, em detrimento de uma matematização do real - dendrítica teoria da arte defendida por Alberti, Piero della Francesca, Castiglione e Leonardo. Definitivamente, para o artista do maneirismo essa disputa encontrava-se doravante encerrada – o artista não é cientista mas sim poeta, a sua visão integral do mundo não depende do referente do real mas fundamentalmente da integridade e pureza seminal da ideia. A prova cabal desta afirmação sobressai fundamentalmente do texto de Varchi, no estilo panegírico e invocador da grandiosidade de Miguel Angelo, como artista universal, ombreando inclusive com Dante nas suas qualidades poéticas: «(…) Et se alcuno bramasse di vedere come si possano diseri uere le figure, che dipigne Michelagnolo non meno Poeta, che Pittore, legga Dante quasi per turto (…)»39. Assistimos, sentados na audiência de Varchi, à criação dos futuros alicerces fundamentais, que darão corpo à obra de um teórico póstero como Federico Zuccari,

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Varchi Benedetto Dve Lezzione Di M. Benedetto Varchi Nella Prima Delle Quali Si dichiara vn Sonetto di M. MICHELAGNO O Buaonarroti. [Livro]. P. 91 - Fiorenza : Appresso Lorenzo Torrentino, 1549. 39 Idem. P. 116.

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que em L’idea de’ pittori scultori ed architetti, formula o seminal conceito de “desenho interior”, i.e., formalizando uma universalidade base na origem de todas as artes, uma integra partícula heurística, edificante de discursos plurais, multiformes e transversais conducentes a uma conceptual arte total. Um discurso produzido, conforme explicita Panofsky na sua obra Idea a múltiplos e distintos interlucotores: «il s’adresse, en tant que peintre, à des peintres, à des sculpteurs et à des architectes»40. Definitivamente, a sublimação da Idea ao magno papel edificante de um discurso polimórfico, condena em definitivo a Paragone a um papel secundário no diálogo inter-artes.

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Panofksy Erwin Idea [Livro]. P.107 - Paris : Éditions Gallimard [1989], 1924.

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III – Em conclusão - os Dialogos «(…)A idea na pintura é uma imagem que ha de ver o entendimento do pintor com olhos interiores em grandíssimo silencio e segredo (…)»41

Podemos de ante-mão caracterizar o panorama teórico Italiano de finais da segunda década do século XVI em diante, como estando em clara oposição ao corpus tratadístico congeminado pela anterior geração de artistas. O artista maneirista declara afirmativamente a sua independência absoluta face à rigidez formal do cânone, das harmónicas e geométricas concepções universais, das hierarquias construtivas que as diversas disciplinas de cariz cientificante haviam imposto, em última análise uma ruptura com uma formal Mathesis Universalis. Procura-se antes, uma total independência do manual e do tratado, da formação prévia nas ciências da visão, do receituário dedicado, da cópia ininterrupta, dos eflúvios classicistas... Este manifesto separatista do perfil científico que a geração anterior tinha legado, torna-se claro nas palavras de Federico Zuccari quando este determina uma independência absoluta entre a pintura e as disciplinas matemáticas: «Je dis que l’art de peindre – et je sais que je dis vrai – n’emprunte pas ses príncipes aux sciences mathématiques et qu’il n’a aucun besoin de s’adresser à elles pour apprendre les règles ou les procedes indispensables à sa pratique, voir seulement pour être spéculativement au clair sur ce sujet (…)» 42. Este fascinante libelo aos formalismos matemáticos da pintura anterior parece evidente, reserva-nos no entanto uma imperiosa cautela na apreciação célere de uma arte maneirista desprovida de ordem, de rigor, de perspectiva, de matemática… A sua configuração tenderá certamente para um caos compositivo, para formulações de carácter dendrítico, volúvel a severas especulações morfogénicas, no entanto, o

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Holanda Francisco de Da Pintura Antiga [Livro]. P. 95 - Lisboa : Imprensa Nacional Casa da Moeda [1983], 1548. - Vol. Colecção Arte e Artistas. 42 Panofksy Erwin Idea [Livro]. P. 98 - Paris : Éditions Gallimard [1989], 1924.

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universo, esse continua Euclidiano, a representação espacial continua subjugado às mesmas regras, regras essas definidas por todos os matemáticos, teóricos e tratadistas precedentes. Estas poéticas lutas entre universos visuais formais e universos mentais e informais, encerram no seu seio a continua discussão em torno da Paragone, agora mais complexa e disruptiva, e lançam na semântica teórica alguns equívocos. O real entendimento e domínio dos rudimentos de uma arte, qualquer que seja, encontra-se povoado por um abismo de dissonantes confusões. Ao contrário da pintura e da arquitectura, onde o uso e prática das matemáticas úteis se tornam por demais evidentes e indispensáveis, na escultura predominará um desinteresse face a uma tratadística dedicada – a sua aprendizagem continuará a ser feita por processos de repetição e emulação de formas e modelos pré determinados, constituindo a análise directa das formas e dos volumes, processo formativo que baste, parece lógico, mas será na realidade assim? A ser verdade, certifica a tese de Leonardo. Esta mesma conclusão encontra-se aferida pela análise doméstica do estado da arte tratadística, presente no estudo de Ana Duarte Rodrigues 43, The Circulation of Art Treatises in Portugal Between The XV and the XVIII Centuries: Some Methodological Questions44. Confronta-nos a investigadora no referido ensaio com uma clara ausência de tratados de escultura em Portugal, nomeadamente de qualquer exemplar do De Statua de Alberti, ou do De Sculptura de Gauricus, invocando como justificação o facto de a escultura coeva e produzida em Portugal, se limitar a imaginária, cuja derivação estética e técnica proveria de mais imaginária a montante, e não de elucubrações provenientes de tratadística apropriada. Em todo o caso, e face à aparente erosão de provas documentais no âmbito da tratadística escultórica, uma leitura atenta da obra magna de Francisco de Holanda Da Pintura Antiga, permite aferir que o artista, dos poucos conhecimentos teóricos sobre perspectiva que reconhece ter: «Alguas cousas encomendo na pintura ao pintor que lhe são mui forçadas, as quaes eu confesso que as não sei todas por arte aprendidas» 45; estes poderão de facto ser oriundos

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Duarte Ana. Moreira, Rafael Tratados de Arte em Portugal [Livro]. - Lisboa : Scribe, 2011. Ibidem. P.28. 45 Holanda Francisco de Da Pintura Antiga [Livro]. P. 167 - Lisboa : Imprensa Nacional Casa da Moeda [1983], 1548. - Vol. Colecção Arte e Artistas. 44

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especificamente da obra de Gauricus, De Sculptura, conforme o atesta Angel Garcia46. De resto, o próprio Holanda faz referência explícita à obra de Gauricus quando nos diálogos, elogiando Donatello e reforçando o estatuto universal do desenho reproduz os conselhos do mestre, «Discipolos, vos quero entregar toda a arte da scultura, quando vos digo: debuxai (…)»47. De seguida, remete-nos de imediato para a fonte de tal ensinamento, «E assi o affirma Pomponio Gaurico, scultor, no seu livro que escreveu De Re Statuaria»48. Podemos aferir por estas conclusões, que em determinado momento, o estudo da perspectiva e da geometria, assumiu um carácter universal e simplificado, constituindo o seu domínio e conhecimento muito mais uma formalização de determinados procedimentos transversais a todas as artes, do que uma especialização criteriosa nas degradações perspécticas e constituição de espaços pictóricos virtuais. O Universo semântico que formaliza o discurso do tratado Da Pintura Antiga, de Francisco de Holanda, assim como dos Diálogos de Roma, conduz-nos a um paralelo inevitável, i.e., canaliza o vínculo discursivo directamente para já citada obra de Zuccari. Para Holanda, é já o desenho livre de quaisquer constrangimentos que modela e acolhe no seu seio todas as formas de arte, longe da matematização e exacerbada cientificação do real, que de resto, reconhece nem sequer dominar inteiramente. Esta clara determinação está presente no diálogo onde se estabelece precisamente um ensaio da clássica paragone, mas onde todas as disciplinas artísticas surgem já numa indistinta amálgama derivada do desenho: Como todos os officios que têm mais arte e razão e graça achareis que são os que mais se chegam ao debuxo da pintura, assi mesmo os que se mais ajuntam com elle, procedem d’elle e são parte ou membro seu, tal como sculptura ou statuaria, a qual não é outra cousa senão a mesma pintura; bem que pareça a alguns que officio seja por si, arredado, todavia é condenado a servir a pintura, sua senhora49.

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Holanda Francisco de Da Pintura Antiga [Livro]. P. XXXIII - Lisboa : Imprensa Nacional Casa da Moeda [1983], 1548. - Vol. Colecção Arte e Artistas. Idem. 47 Idem. P. 261. 48 Ibidem. 49 Ibidem.

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Poder-se-á caracterizar esta lenta deriva, na formalização teórica de uma terceira entidade tutelar do “fazer” artístico, uma especificidade que sugere a criação de uma notável Graphopoiese, ou seja, um «fazer» em que o «desenho» assume um papel vinculativo entre a mente e a obra, livre de interlocutores, de leis, regras ou constrangimentos à mais pura das derivas. Longe parece estar o sonho de Leonardo, patente na dignificação última da pintura, com a sua ascensão ao panteão das Sciencias, traduzida em tratados de Sciencia Pictorica, cuja divulgação progressiva constituiria certamente uma ampla rede universal de homens superiormente dotados, com uma visão da natureza desconstrutiva e racional. A eclosão do maneirismo veio reforçar o aspecto ilusório deste sonho; de facto; o aspecto tutelar da tratadística, quando visto pelos olhos da História, reveste-se de um brilho mágico-filosófico ilusório. Nenhum tratado possui a normativa correspondente que faculte o seu leitor a criar e edificar obras dignas desse nome - o contrário também será válido. Um tratado corresponde muito mais a um vago e moralizante exercício egocrático e narcísico do seu autor, do que na realidade a sinceros e aplicáveis rudimentos técnicos50. Neste aspecto, Francisco de Holanda assume lugar cimeiro de especulação, ensaiando um simulacro de génio evidente mas de notável fragilidade: Braz Pereira - Porque dissestes que folgastes de não ter visto antes de escrever o vosso livro da pintura o que dela escreveu Leo Baptista? Porque não tomasse alguma [doutrina] dele, a qual me danasse* e fizesse no meu livro imitar; porque aquele douto homem escreveu como artífice e matemático na pintura, e escreveu muito discretamente*, mas eu escrevia por outra via diferente alguns avisos e primores que nesta ciência deles nasceram comigo sem eu ter nisso louvor deles. Pratiquei com eminentes desenhadores, e um deles foi M. Micael Agnelo em Roma; e os mais deles aprendi na mesma cidade de Roma de mui ínclita e nunca louvada pintura e escultura antiga, em o qual eu não darei alguma vantagem a Leo Baptista, que posto que mui entendido nesta arte foi, todavia tenholhe estas vantagens, que digo.51

O discurso ensaiado por Francisco de Holanda torna-se curioso, a sua dialética constitui-se por uma negação permanente do carácter cientificante da anterior geração,

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Honrosas excepções feitas para os reais tratados científicos de hermetismo evidente e cuja leitura permanecia restrita à elite académica. 51 Holanda, Francisco de. 1549. Do Tirar Polo Natural. P. 41. Livros Horizonte [1984]. Lisboa.

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(veja-se como Alberti surge descrito como artífice e matemático), para logo se assomar de práticas obviamente herdadas dessa mesma geração, caso do uso do espelho, do velo, etc, que o mesmo reivindica como congénitas do seu espirito livre, ou fruto das suas elucubrações Romanas. No que respeita à prática da escultura e ao seu sincero e aplicado cultor, o ilustre tratadista é omisso, não deixa no entanto de se referir a Miguel Angelo, quando lhe atribui o lugar cimeiro na lista dos Famosos Scultores de Marmor, como «Micael Angniolo, pintor»52, facto que ilustra bem a estrutura hierárquica que estabelece. Na dignificação do papel do escultor, nada consegue encobrir a penosa e violenta condição desta arte bélica, do estridor do maço a embater no escopro, da pedra a saltar em direcção aos olhos, do pó a acumular-se na garganta, do esforço incomensurável de confrontar uma matéria incorruptível e imodelável. Nenhum simulacro de erudição serve a áspera e marcial arte do desbaste das formas, nenhum artifício, citação ou reivindicação, apenas a contemplação das puras formas. Neste aspecto, e apesar de o podermos considerar um evidente Lapsus Calami de Francisco de Holanda, parece existir uma total concordância com a premissa inicial defendida nas célebres Paragones de Leonardo. A este respeito, recordemos pois, que ainda temos contas a acertar com o tão celebrado erro de Leonardo. No que consistirá portanto esse erro? Leonardo conforme observamos remete a escultura para um estatuto servil e mecânico, do qual não vislumbra qualquer hipotético relance teórico minimamente edificante. Repete nas suas Paragones, os mesmos argumentos vezes sem conta, concluindo no derradeiro capítulo, um cotejo final dessa clara distinção. O escultor de pedra representa na sua visão, um ser inteiramente dependente dos caprichos da natureza visual e ilusória do mundo. Se por um lado a pintura ilude e engana os sentidos mais subtis, as obras do escultor surgem tal como o são - sem artifícios ilusórios. Conforme refere, ao pintor está reservado o estudo da ciência das sombras, companheiras da luz, as quais domina, já o escultor, esse é auxiliado indefinidamente pela natureza, que ilumina todos os objectos

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Holanda Francisco de Da Pintura Antiga [Livro]. P. 355 - Lisboa : Imprensa Nacional Casa da Moeda [1983], 1548. - Vol. Colecção Arte e Artistas.

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corpóreos sem qualquer distinção entre si. O último argumento é representado pela perspectiva, investigação e invenção subtilíssima dos estudiosos matemáticos, conforme caracteriza, ciência que a escultura ignora e abdica, actuando neste sentido a própria natureza à margem do escultor. Para Leonardo, no confronto da dualidade das formas criativas, a Eidopoiese constitui-se como Sciencia menor, cativa dos caprichos dos sentidos e da natureza, desajustada na forma e função, simulacro de independência dos complexos meandros de uma Machina do Mundo. Num hipotético conflito entre as metódicas aplicações lógicas da pintura e a mera replicação de observações empíricas da escultura, esta sairia certamente a perder no Olimpo das artes. Face aos seus argumentos racionais e logicamente estruturados, cremos em boa verdade ser difícil vislumbrar qualquer papel relevante à escultura nesse plano teórico súpero em que o artista posicionava a pintura, ou em última análise à sua potencial promotora, a arquitectura. A difusão dos elementos invocados e a formalização de uma ciência artística, a existir, derivaria exclusivamente de práticas Iconopoiéticas, leia-se pintura, e não de nenhuma outra das suas congéneres. Este constitui o erro formal de Leonardo e a história de facto não lhe dará razão. De facto, a primordial implantação formal dos princípios perspécticos e geométricos transversais a um espaço-tempo Europeu plural e multicultural, assim como, a sua subsequente transmissão aos pintores, será efectuado fundamentalmente via fluxos transitivos associados à arquitectura e ao seu adorno escultórico, e não mediante qualquer implante tratadístico especificamente dedicado à pintura. Esta constatação poderemos facilmente deduzir das conclusões efectuadas por Lino Cabezas53, cuja investigação permite determinar que em Espanha, e assim o cremos aferido para a restante península, a existência de um corpus teórico vital e profícuo, encontrava-se detido maioritariamente não por uma súpera classe de pintores, mas precisamente pelos mecânicos escultores e canteiros, envolvidos directamente com a arquitectura, prolongando deste modo a tradição Italiana do século XV. Não deixa de

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Gelabert Lino Cabezas La Perspectiva Angular y la Introducción de la Perspectiva Artística en la España del Siglo XVI [Jornal] // Revista Art. - Barcelona : Universitat de Barcelona Publicacions, 1989. - Nº 15. - p. 169.

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nos surpreender esta prevalência magna da arquitectura como formalizadora teórica dos fundamentos visuais e formais que integralmente dão corpo às restantes artes. Será inevitavelmente através da arquitectura, mais especificamente da experienciação visual das degradações perspécticas dos edifícios no espaço, que a génese da perspectiva linear terá inicio. Todos os grandes teóricos da perspectiva comungam maioritariamente de um pendor arquitetónico inegável. Este ponto de vista é igualmente partilhado por António Trindade, que na sua caracterização do fluxo perspéctico na Península afirma com clareza: «A perspectiva dos pintores, de origem Italiana, tem uma recepção na Península não nos artesãos ignorantes, como alguns pintores eram considerados, mas nos profissionais mais avançados no campo da geometria da representação e no cálculo do corte das pedras (…)»54. Este facto, conforme salienta o autor, revela um aspecto determinante na caracterização da implantação da perspectiva, no sentido amplo de uma ciência pictórica, evidente, i.e., um grau de erudição relativamente medíocre dos pintores, quando confrontados com os arquitectos no século XVI. Em Espanha, sustenta Lino Cabezas, a presença de uma teoria da perspectiva, encontra-se solidamente associada a tracistas, desenhadores arquitectos e mestres-de-obras, longe do espectro oficinal atávico que caracterizava o mundo dos pintores. No mesmo sentido, reforça Trindade, « (…) o ambiente científico e os conhecimentos geométricos dos construtores fizeram adaptar aos seus interesses e mentalidades a importação das teorias italianas da perspectiva (…)»55. Serão em parte, esses homens rudes, de aspecto enfarinhado de pó de mármore, à semelhança da caracterização formulada por Luciano e pelo próprio Leonardo, os responsáveis pela introdução de conceitos transversais à construção ilusória dos espaços - numa época em que lentamente os pintores se libertavam da exegese de uma Mathesis Universalis e a substituíam pelo Disegno Interiore, caberia aos homens formados nos rudimentos pétreos da construção e do desbaste, a difusão científica da ciência artística na Europa. Esta caracterização do fenómeno, deve no entanto ser encarada com a devida cautela - encontra-se ainda por caracterizar o

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Trindade António de Oriol Pena Vazão Um Olhar Sobre a Perspectiva Linear em Portugal Nas Pinturas de Cavalete, Tectos e Abóbodas: 1470 - 1816 [Livro]. P. 465 - Lisboa : Doutoramento em Geometria Descritiva, 2008. 55 Idem. P. 468.

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ambiente formal e os processos de transmissão e ensino das matemáticas uteis na corte e demais centros de produção de instrumentos científicos, facto que poderá contribuir positivamente para uma notável inversão da perspectiva habitual, ou pelo menos para uma duplicação nos processos de transmissão e recepção teóricos. A clássica Paragone, que poderemos classificar na idade moderna como um claro confronto paradigmático entre forma e imagem, entre concretização de um simulacro de mundo (onde todos os critérios desse mundo são estruturados pelo demiurgo/artista) oposto a uma solicitude condicionada, i.e., a uma vulnerabilidade aos rigores naturais do mundo (onde nenhum critério desse mundo, para além da forma é dominada pelo criador/artífice) estruturou os rudimentos iniciais do já vetusto cotejo estatutário inter-artes. No entanto, a aposição semântica de um novo valor estrutural e fundador de diálogos outros - um valor intrínseco que o artista deveria cultivar e manter liberto de quaisquer constrangimentos, via livre para o espírito, para a imaginação e para o diálogo frontal entre a ideia e a obra - convida a uma nova fórmula magna de expressão: A idea na pintura é uma imagem que ha de ver o entendimento do pintor com olhos interiores em gradissimo silencio e segredo, a qual ha de imaginar e escolher a mais rara e eicelente que sua imaginação e prudencia poder alcançar, como um exemplo sonhado, ou visto em o ceo ou em outra parte, o qual ha de seguir e querer depois arremedar e mostrar fóra com a obra de suas mãos propriamente, como o concebeo e vio dentro em seu entendimento.56

Esta reconfiguração da ideia em Holanda, já prefigura esse novo paradigma estrutural na criação artística, longe da premissa básica que Leonardo havia estabelecido. Para Holanda, a estrutura base da afirmação plástica da ideia, encontra fundamento numa imagem interna e não numa mimetização vazia do real, à semelhança do Demiurgo, que antes de fazer as suas obras «tão perfeitas como depois vierão a ser», primeiramente e no seu altíssimo entendimento, «teve os exemplos e ideias das obras»57.

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Holanda Francisco de Da Pintura Antiga [Livro]. P. 95-96 - Lisboa : Imprensa Nacional Casa da Moeda [1983], 1548. - Vol. Colecção Arte e Artistas. 57 Idem. P. 96.

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A que distância a original visão de Leonardo se encontra já, para quem a Ideia ou a imaginação seriam incapazes de subtrair a magna experiência de visualizar o mundo tal como ele é, constituindo-se no seu lugar como ténue memória: No ve la imaginación com tanta excelência como el ojo, porque el ojo recibe las semejanzas o imágenes de los cuerpos y los transmite, a través de la sensibilidade, al sentido común, que se encarga de juzgarlas. La imaginación, sin embargo, no va más allá del sentido común o, a lo sumo, más allá de la memoria, donde se encierra y sucumbe si, por un acaso, la cosa imaginada no fuere de mucha excelência.

A clássica Paragone oriunda do surreal universo de Luciano e transposto para o universo metódico e lógico da primeira geração de teóricos da idade moderna alcançará novos fundamentos, novas premissas, novos desafios. O pendor cientificista de uma arte exploratória e indagadora contribuirá definitivamente para a ascensão social dos artistas a uma inédita liberalidade. Esta breve paisagem será no entanto refutada pela geração seguinte, que na ânsia de uma liberalidade recém-conquistada se oporá frontalmente a quaisquer condicionalismos operativos em prol de uma sublimação da ideia seminal, do Disegno Interiore. A anterior divisão entre práticas Iconopoiéticas e Eidopoiéticas, entre uma crescente complexidade da imagem e uma constante passividade da forma, motivaram lógicas balcanizadoras. O maneirismo instituirá uma nova dimensão tutelar - a Graphopoiese - entidade vinculativa entre o espirito do criador e o mundo manifesto, transversal a todas as formas criativas e universal por natureza.

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Bibliografia

Duarte Ana. Moreira, Rafael Tratados de Arte em Portugal [Livro]. - Lisboa : Scribe, 2011. Gelabert Lino Cabezas La Perspectiva Angular y la Introducción de la Perspectiva Artística en la España del Siglo XVI [Diário] // Revista Art. - Barcelona : Universitat de Barcelona Publicacions, 1989. - Nº 15. - p. 169. Holanda Francisco de Da Pintura Antiga [Livro]. - Lisboa : Imprensa Nacional Casa da Moeda [1983], 1548. - Vol. Colecção Arte e Artistas. Holanda Francisco de Do tirar Polo Natural [Livro]. - Lisboa : Livros Horizonte [1984], 1549. Marsh David Lucian and the latins: Humor and Humanism in the Early Renaissance [Livro]. Michigan : University of Michigan Press, 1998. Nicholl Charles Leonardo da Vinci o Voo da Mente, Biografia [Livro]. - Lisboa : Bretrand Editora, 2004. Panofksy Erwin Idea [Livro]. - Paris : Éditions Gallimard [1989], 1924. Panofsky Erwin Vida y arte de Alberto Durero [Livro]. - Madrid : Alianza Forma, 1943. Samósata Luciano de Luciano I [Livro] / trad. Magueijo Custódio. - Coimbra : Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012. Trindade António de Oriol Pena Vazão Um Olhar Sobre a Perspectiva Linear em Portugal Nas Pinturas de Cavalete, Tectos e Abóbodas: 1470 - 1816 [Livro]. - Lisboa : Doutoramento em Geometria Descritiva, 2008. Varchi Benedetto Dve Lezzione Di M. Benedetto Varchi Nella Prima Delle Quali Si dichiara vn Sonetto di M. MICHELAGNO O Buaonarroti. [Livro]. - Fiorenza : Appresso Lorenzo Torrentino, 1549. Vinci Leonardo da Tratado de pintura [Livro] / ed. Gracia Angel González. - Barcelona : Akal, 1986. Wittkower Margot. Rudolf Born Under Saturn [Livro] / ed. Connors Joseph. - New York : New York Review Books, 1963.

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Índice

I – Paragone ou o erro de Leonardo .......................................................................................... 2 II – As origens do Debate ........................................................................................................ 10 II – Lezzione di Varchi .............................................................................................................. 14 III – Em conclusão - os Dialogos............................................................................................... 18 Bibliografia ............................................................................................................................. 27

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