Um olhar sobre a libertação (através do cinema) de uma nação a partir da tabanca de Xime

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outros, mas queríamos fazer os nossos filmes, à nossa maneira, sem mais ninguém: havíamos conquistado a nossa independência, também no cinema. É então que José Cardoso aparece com a proposta, já roteirizada, de fazermos um filme sobre a resistência ao sistema colonial na perspectiva dos jovens nacionalistas que viviam nas cidades colonizadas. Sugerimos, então, o envolvimento de todos os técnicos que haviam trabalhado no O tempo dos leopardos, para fazermos com José Cardoso o seu primeiro filme, o primeiro longa-metragem de ficção moçambicano. E, juntos, conseguimos uma obra bonita, um filme de que até hoje nos orgulhamos, o primeiro totalmente moçambicano: O vento sopra do norte (1987). Tudo isso partiu da sensação de independência que ganhamos ao fazer O tempo dos leopardos.

camilo de sousa é cineasta. Nascido em Lourenço Marques (atual Maputo), em 1953, passa uma temporada em exílio político em Bruxelas antes de entrar em contato com a Frelimo, em 1973, e partir para Dar es Salaam, onde faz o treino de guerrilha em Nachingwea. Em seguida, é deslocado para as zonas libertadas de Cabo Delgado. Em 1979, chega a Maputo e passa a trabalhar como montador e realizador do Instituto Nacional do Cinema.

Um olhar sobre a libertação (através do cinema) de uma nação a partir da tabanca de Xime Por Maria do Carmo Piçarra

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noitece e numa parede é inscrita a palavra independência. O pincel, manuseado por um homem – com um sumbia1 na cabeça como único elemento identificativo – não se detém e preenche, de branco, a objectiva da câmara de filmar. Ao branco que rompeu o lusco-fusco, segue-se a luz artificial – uma lâmpada acende-se. Ilumina sombras de homens que circulam num espaço fechado, claustrofóbico – uma metáfora da câmara de tortura que foi a ditadura portuguesa do Estado Novo (1933-74)? Ao centro, um homem cita Amílcar Cabral afirmando que é hora de mobilizar a população. Questiona quem vai onde, para iniciar o movimento de libertação. Quando pergunta a Raul (Justino Neto) onde irá, este — é dele, a primeira cara que surge iluminada, em grande plano. Pelo sumbia reconhece-se o homem que inscreveu a independência numa parede, antecipando a luta pela libertação – diz que irá a Xime. O genérico corre, finalmente. O filme (re)começa num cenário rural. Junto a uma poilão,2 vários homens idosos, os sábios de Xime, cumprem um ritual para assegurar, nesse ano de 1962, uma boa colheita de arroz, que permita que a tabanca não passe fome. Sucedem-se, depois, sequências que revelam a vida em Xime, a sua actividade agrícola, mas também uma história privada, a da família de Raul, com as suas tragédias e os pequenos dramas amorosos. O irmão mais novo de Raul cobiça uma jovem que está prometida ao pai, Iala (Aful Macka). Bedan é um jovem impetuoso, desafiador, que, além disso, expõe o soldado que serve a administração local e desafia todo tipo de autoridade. Enquanto isso, o padre Vittorio prossegue o trabalho evangelizador. Foi ele quem fez de Raul um “assimilado”, através da educação religiosa que deu a este a autonomia para pensar por si e revoltar-se contra o colonialismo português – no filme diz-se, a certo momento, que foram os padres que civilizaram 1 2

Chapéu como aquele usado correntemente por Amílcar Cabral. Árvore da Guiné, considerada sagrada, junto à qual são realizados rituais e cerimônias.

Raul. Vittorio e Silva – um comerciante branco quase sempre bêbado, quase sempre inconveniente – são os comensais do administrador colonial, Cunha (Juan Carlos Tajes), espécie de variante mais boçal e menos perigosa do coronel Kurtz (Apocalipse Now, Francis Ford Coppola, 1979). Em Xime a figura de Cunha, como, em geral, a dos brancos e dos servidores do colonialismo português, é caricaturada, fragilizando um pouco o filme. A estetização da vida na tabanca, que, paradoxalmente, resulta da beleza da fotografia do filme e do calor que lhe é dado pela película Kodak, também afecta a verossimilhança. Nesta que é uma reconstituição do início da luta anticolonial, a beleza das imagens da comunidade suaviza as dificuldades vividas pelas várias etnias guineenses. Se o racismo e o abuso de autoridade são fixados justamente, e a obrigação de trabalhar para o Estado português – pondo em causa, nesta intriga, a colheita de arroz, fundamental para a sobrevivência da comunidade – é sublinhada, o certo é que não há uma responsabilização enfática da administração colonial pela violência, quase sempre extrema e fatal, e pela deficiência geral dos cuidados de saúde e educação. Falado em crioulo da Guiné – que terá surgido como uma mistura de línguas das várias etnias locais de modo a dificultar a compreensão pelos colonizadores – e em português, Xime é, porém, uma obra notável, vibrante, muito bem fotografada por Melle van Essen e com extraordinários apontamentos de autor. Não obstante ser o primeiro longa-metragem de Sana Na N’Hada, ilustra bem a maturidade deste como realizador. N’Hada – com Flora Gomes, Josefina Crato e José Bolama Cobumba – foi um dos quatro jovens guineenses que Amílcar Cabral enviou para estudar cinema em Cuba, no Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos (Icaic), ciente que o intelectual tinha um papel fundamental na cultura – e nos filmes, em particular – para a criação da nação guineense. Depois de ter sido aluno de Santiago Álvarez, na Guiné e já após a morte de Cabral, partilha, com Flora Gomes, a realização de O regresso

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de Amílcar Cabral (1976) e Anos no Oça Luta (1976), curtas-metragens pioneiros do nascimento do cinema na Guiné. Segue-se a colaboração com Chris Marker em Sans Soleil (1983), tendo assistido Flora Gomes na realização do primeiro longa-metragem de ficção do país: Morte negada (Mortu Nega, 1987). Num país que acreditou sempre nas possibilidades do cinema para projectar a nação e consolidar a Independência, mas sem recursos para apoiar o desenvolvimento da produção cinematográfica ou uma política para o sector, só em 1994 Sana Na N’Hada conseguiu ter pronto o seu primeiro longa-metragem. Xime (1994) estreou na Holanda, em 1995, depois de ter sido apresentado na secção Un Certain Regard do Festival de Cinema de Cannes do ano anterior.

Maria do Carmo Piçarra é pesquisadora de pós-doutorado em cinema no Centro de Estudos Comunicação e Sociedade, na Universidade do Minho, e no Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras, na Universidade de Lisboa. Publicou, entre outros, os livros Azuis ultramarinos. Propaganda colonial e censura no cinema do Estado Novo (2015), Salazar vai ao cinema I e II (2006, 2011), além de ter organizado, com Jorge António, a trilogia Angola, o nascimento de uma nação.

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