Um olhar sobre a produção contemporânea e as presenças de Euclides da Cunha e Mário de Andrade no pensamento social sobre a Amazônia

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Um olhar sobre a produção contemporânea e as presenças de Euclides da Cunha e Mário de Andrade no pensamento social sobre a Amazônia ANDRÉ AMUD BOTELHO1

RESUMO O trabalho é uma reflexão sobre o pensamento crítico contemporâneo na/sobre a Amazônia a partir de dois importantes polos germinais de reflexão sobre a região, as obras de Euclides da Cunha e Mário de Andrade dedicadas à Amazônia. A hipótese do trabalho foi a de encontrar elementos das obras de Euclides da Cunha e Mário de Andrade na produção atual de pensamento social sobre a Amazônia nos periódicos amazônicos Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi. Ciências Humanas e Somanlu: Revista de Estudos Amazônicos em seus últimos cinco anos de publicação. De um ponto de partida em que buscava estudar o processo de construção da modernidade naquela região, mais especificamente em uma de suas principais cidades, Manaus, o trabalho contou como destino com uma reflexão sobre a constituição dos principais corpos fundadores de reflexão sobre a Amazônia. Em uma tradição de representações que nasce com autores fundamentais do pensamento moderno ocidental, e ganha corpo com os inúmeros relatos de viajantes e missionários, são variadas as maneiras pelas quais intérpretes da realidade brasileira foram incorporando a Amazônia às suas reflexões. O debate a respeito da Amazônia e a maneira pela qual a região foi sendo inscrita ao longo do tempo na tradição do pensamento ocidental e brasileiro ganham relevo reflexivo, com destaque para a maneira pela qual o acúmulo de debates tem impacto na contemporaneidade.

PALAVRAS-CHAVE: Amazônia; pensamento social brasileiro; Euclides da Cunha; Mário de Andrade.

1

Antropólogo do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM/ MinC). Mestre em Antropologia (PPGA Universidade Federal Fluminense) .

INTRODUÇÃO O caminho percorrido até a definição do atual objeto de trabalho possui algumas peculiaridades. De um interesse por escrever sobre a Amazônia segundo as perspectivas de uma determinada discussão sobre modernização e modernidade periférica, conforme proposto por autores pertencentes ao campo da Sociologia como Renato Ortiz e mesmo outros que não se enquadram plenamente nele como a argentina Beatriz Sarlo, fui sendo tomado pela discussão a respeito dos limites de comparabilidade existente entre formas, contextos de produção, autores, tempos e linguagens intrínsecos aos debates e estudos da tradição do pensamento social brasileiro. De um ponto de partida, portanto, em que buscava estudar o processo de construção da modernidade na realidade amazônica, mais especificamente em uma de suas principais cidades, Manaus, cheguei ao interesse pela reflexão sobre a constituição dos principais corpos fundadores de reflexão sobre a Amazônia. Mais claramente, fui sendo progressivamente encantado pelo debate a respeito da Amazônia e a maneira pela qual a região foi sendo inscrita ao longo do tempo na tradição do pensamento social ocidental e brasileiro. Em uma tradição de representações que nasce, como indica Ernesto Renan Freitas Pinto (2005)2, com autores fundamentais do pensamento moderno ocidental como Michel de Montaigne, Hobbes, Rousseau e outros, e ganha corpo com os inúmeros relatos de viajantes e missionários, quando do lento do processo de incorporação da Amazônia aos fluxos sociais, econômicos e culturais das metrópoles europeias, são variadas as maneiras pelas quais intérpretes da realidade brasileira foram incorporando a região às suas reflexões. Considerarei aqui dois importantes polos germinais de reflexão do pensamento crítico sobre a Amazônia, representados pelas obras acerca da hileia amazônica de dois fundamentais intelectuais brasileiros, Euclides da Cunha e Mário de Andrade. A hipótese do trabalho é a de encontrar elementos das obras de Euclides da Cunha e Mário de Andrade na produção da área de pensamento social sobre a Amazônia nos periódicos amazônicos Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi. Ciências Humanas e Somanlu: Revista de Estudos Amazônicos em seus últimos cinco anos de publicação.

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FREITAS PINTO, Ernesto Renan. “A viagem das idéias”. Estudos avançados, 19 (53). 2005.

EUCLIDES DA CUNHA E MÁRIO DE ANDRADE NA AMAZÔNIA Mário de Andrade e Euclides da Cunha empreenderam importantes viagens pela Amazônia. Cada uma delas, como não podia deixar de ser, contou com peculiaridades. Euclides da Cunha viajou ainda na primeira década do século XX. Mário de Andrade conheceu parte das gentes, dos rios, cidades e lugarejos amazônicos já no final da década de 1920. O parti pris dos dois viajantes em sua relação com a Amazônia foi bem diverso. Se Mário de Andrade planejou e financiou sua viagem, decidido “a conhecer e dar a conhecer o Brasil” (BOTELHO, 2013)3 embebido pelo projeto modernista brasileiro do qual era um dos protagonistas, Euclides da Cunha empreendeu a sua como representante e servidor do Estado brasileiro em uma missão oficial de reconhecimento e delimitação de fronteiras entre Brasil e Peru na região do Alto Purus. Se, por seu turno, Mário de Andrade registrou sua viagem em formato de notas organizadas a cada dia de viagem em uma caderneta de campo, os registros feitos por Euclides oscilaram entre a formalidade necessária para a feitura dos relatórios da missão da qual fazia parte – Euclides chefiava a Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus – que, depois de mais de seis meses de expedição às nascentes do rio em 1905, conclui seus trabalhos. Uma outra distinção que, a nosso ver, vale destacar é a grande distância temporal que separa as publicações dos escritos sobre a Amazônia dos dois autores. Segundo Willi Bolle (2005)4, o Relatório da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de reconhecimento do Alto Purus foi concluído por Euclides ainda no ano de 1905. E foi publicado rapidamente, já em 1906, pela Imprensa Nacional.

Contrastes e confrontos5 e À

margem da história6, livros publicados respectivamente em 1907 e 1909, compõem o conjunto mais expressivo dos escritos sobre a Amazônia de Euclides da Cunha e são também eles tributários da observação direta feita por Euclides em sua viagem

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BOTELHO, André. “A viagem de Mário de Andrade à Amazônia: entre raízes e rotas”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 57, p. 15-50, 2013. 4

BOLLE, Willi. “O mediterrâneo da América Latina: a Amazônia na visão de Euclides da Cunha”. Revista USP, São Paulo, n. 66, p. 140-155, junho/agosto 2005. 5

CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos: obra completa. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 2009. 6

CUNHA, Euclides da. À margem da história: obra completa. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 2009.

amazônica. Os escritos de Mário, por sua vez, feitos ao longo de sua viagem em 1927 7, foram publicados sob a organização de Telê Ancona Lopez somente no ano de 19768, embora Mário tivesse escrito na década de 1940 um prefácio para reunião e apresentação do conjunto de escritos, que intitulou O turista aprendiz: viagens pelo Amazonas até o Peru pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega!. O que mais nos importa, entretanto, para os fins do presente trabalho, é trabalhar com os distintos polos de pensamento sobre a Amazônia nascidos a partir das elaborações de Mário e Euclides. Se é possível entendermos que cristalizaram-se categorias explicativas sobre a Amazônia, e que seguem sendo balizas para a discussão a respeito da região, é razoável tomar as interpretações de Euclides da Cunha e Mário de Andrade como relevantes para o quadro de ideias sobre a Amazônia até hoje em voga. Freitas Pinto (2005) sugere que: “a Amazônia e o próprio Brasil têm sido pensados e interpretados tendo como ponto de partida um núcleo perfeitamente identificável de ideias, noções, conceitos e preconceitos”. É possível identificar na produção inscrita no campo do pensamento social brasileiro sobre a Amazônia na atualidade os elementos fundamentais da produção de Mário de Andrade e Euclides da Cunha? Enquanto os escritos de Mário a respeito da Amazônia inclinam-se a uma visão otimista constituída pelas possibilidades divisadas por ele de alternativas a partir da Amazônia para firmar as raízes de uma “civilização tropical”, marcada pela pluralidade de gentes, credos e modos de vida do norte do país, Euclides da Cunha prioriza em sua interpretação o olhar reflexivo às injustiças presentes na relação dos trabalhadores na Amazônia, especialmente os seringueiros e os caucheiros, com os proprietários de terra. Na denúncia de um sistema de trabalho espoliador, que fazia o trabalhador produzir as bases da própria dominação – que ele chega a chamar de escravidão – Euclides põe luz na luta inglória dos migrantes, em sua maioria nordestinos, que formavam boa parte da massa de trabalhadores da região. Um trecho já destacado por Telê Ancona Lopez (2005) no artigo “O turista aprendiz na Amazônia: a invenção no texto e na imagem” 9, presente nas notas de Mário de Andrade 7

Mário de Andrade faz referência às notas que ia tomando em sua viagem ainda em 1927 em carta enviada a Manuel Bandeira (BOTELHO, 2013). 8

ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz (Estabelecimento de texto, introdução e notas de Telê Anona Lopez). São Paulo, Editora Duas Cidades/ Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976. 9

LOPEZ, Telê Ancona Porto. “O turista aprendiz na Amazônia: a invenção no texto e na imagem”. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v. 13, n. 2, jul-dez. 2005.

a respeito de sua viagem ao norte, possui força definidora a respeito de sua versão de uma civilização tropical alternativa a partir do norte do país: “Não sei, quero resumir minhas impressões desta viagem litorânea por nordeste e norte do Brasil, não consigo bem, estou um bocado aturdido, maravilhado, mas não sei... Há uma espécie de sensação ficada da insuficiência, de sarapintação, que me estraga todo o europeu cinzento e bem-arranjadinho que ainda tenho dentro de mim. Por enquanto, o que mais me parece é que tanto a natureza como a vida destes lugares foram feitos muito às pressas, com excesso de castro-alves. E esta pré-noção invencível, mas invencível, de que o Brasil, em vez de se utilizar da África e da Índia que teve em si, desperdiçou-as, enfeitando com elas apenas a sua fisionomia, suas epidermes,sambas, maracatus, trajes, cores, vocabulários, quitutes... E deixouse ficar, por dentro, justamente naquilo que, pelo clima, pela raça, alimentação, tudo, não poderá nunca ser, mas apenas macaquear, a Europa. Nos orgulhamos de ser o único grande (grande?) país civilizado tropical... Isso é o nosso defeito, a nossa impotência. Devíamos pensar, sentir como indianos, chins, gente de Benin, Java... Talvez então pudéssemos criar cultura e civilização próprias. Pelo menos seríamos mais nós, tenho certeza” (ANDRADE: 1976, p. 60-61).

À medida que o leitor vai adentrando o mundo amazônico revelado pelas notas “rápidas, telegráficas muitas vezes”, mas cujo conjunto “cheira a modernismo” conforme o próprio Mário indica no prefácio escrito em 1943 para uma possível reunião de suas notas, vai sendo apresentado ao colorido (e calorento, como ele destaca muitas vezes) universo que Mário de Andrade ia descobrindo e se encantando enquanto navegava pelos rios da Amazônia. Muitas passagens nos revelam o encantamento e a empatia de Mário pelos tempos, fazeres, aromas, saberes que iam conquistando sua atenção pelo caminho. O fascínio por Belém, por exemplo, é de se destacar pelo que tem de revelador das misturas tropicais que Mário via na Amazônia: “Passeamos o dia inteiro e já me acamaradei com tudo. Estou lustroso de felicidade. Belém é a cidade principal da Polinésia. Mandaram vir u´a imigração de malaios e no vão das mangueiras nasceu Belém do Pará” (ANDRADE: 1976, p. 63). Euclides da Cunha direciona seus esforços interpretativos sobre a Amazônia ao povoamento da região pelos migrantes nordestinos, a suas relações de trabalho e com a terra na Amazônia. A agonia do homem na Amazônia, a relação com a natureza inóspita, a inviabilidade de desenvolvimento econômico e social se mantidas as bases de sua luta e exploração em troca da sobrevivência são importantes motes do trabalho euclideano. A extensa leitura feita por Euclides da Cunha dos relatos e textos de viajantes à Amazônia permite que seu olhar tenha também um caráter sintético da grande tradição de viajantes na região. A Amazônia como um imenso mundo desconhecido (e a

conhecer), seus contrastes, confrontos, ambiguidades, o vazio social e a pequenez humana ante o “paraíso diabólico dos seringais”. O caráter cientificista dos esforços de Euclides da Cunha em sua busca pela Amazônia e sua crença de que a ciência poderia desvelar caminhos de superação dos sofrimentos na Amazônia vão se esboroando à medida que o autor toma conhecimento da região, das relações sociais, das relações do homem amazônico com a natureza da imensa selva. Na visão de Willi Bolle: “Com seu modo de trabalhar preferencialmente com pedaçoes de história – o cotidiano de seringueiros e caucheiros, mas também excertos de ilustres exploradores, viajentes, cientistas, fundadores de cidades, num painel que visa uma compreensão holística da história – Euclides, ao mesmo tempo em que se põe a construir um ambicioso acervo bibliográfico sobre a Amazônia , introduz também um elemento de ruptura. Como alternativa para a historiografia dos vencedores, que pretendem narrar a história 'assim como ela de fato passou', o autor de Um paraíso perdido procura organizar os fragmentos de uma história dos sofrimentos da Amazônia” (BOLLE: 2005, p. 155).

O

PENSAMENTO

SOCIAL

SOBRE

AMAZÔNIA

NOS

PERIÒDICOS

SOMANLU: REVISTA DE ESTUDOS AMAZÔNICOS E BOLETIM DE MUSEU PARAENSE EMILIO GOELDI. CIÊNCIAS HUMANAS (2008-2014) A aproximação à Amazônia que pretendo explorar no presente trabalho se dá pela via da reflexão sobre textos, imagens e discursos a respeito da vastíssima área do bioma que se espraia por Brasil, Peru, Bolívia, Venezuela, Colômbia, Guiana, Guiana Francesa, Suriname. A partir de um certo olhar, as interpretações sobre a Amazônia de Mário de Andrade e Euclides da Cunha podem ser compreendidas enquanto esforços de compreensão da Amazônia e de sua diversidade, uma diversidade diversa, como bem sintetizou João Paes Loureiro10, no contexto brasileiro. Embora região multinacional e multiétnica, não são numerosas as análises que tomem como objeto “as Amazônias” que transcendam os limites dos contextos políticos, geográficos, culturais de cada um dos países que guardam sua imensidão. Mais presentes na bibliografia amazônica são os estudos e reflexões que tomam-na como objeto a partir das perspectivas locais e nacionais (PIZARRO, 2012)11. No caso 10

PAES LOUREIRO, João de Jesus. Obras reunidas. São Paulo, Editora Escrituras, 2000. APUD PIZARRO, Ana. Amazônia: as vozes do rio. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2012. 11

PIZARRO, Ana. Amazônia: as vozes do rio. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2012.

brasileiro, boa parte dos estudos sobre a Amazônia inscreve-se nas discussões sobre o problema regional (RUGAI BASTOS, 2011)12. Uma questão que chama atenção é aquela a respeito da produção intelectual local, a de amazônidas ou feita em instituições da região, acerca da Amazônia. De que maneira dialogam com as produções exógenas? Quais as suas bases e pressupostos teóricos principais? Que elementos da realidade amazônica movem suas perspectivas intelectuais? Freitas Pinto (2005) nos convida a refletir sobre a elaboração do exotismo lançado à Amazônia tendo enquanto atores protagonistas a própria intelligentsia local e as representações do cotidiano da região. Incapaz de no presente trabalho atender aos requisitos fundamentais e necessários para fundar uma reflexão mais longa e acurada sobre as questões às quais atento acima, seguirei por um caminho que (pretendo) leve a abrir portas que, abertas, aproximem-nos delas. Minha intenção é a de observar a produção contemporânea inscrita na tradição do pensamento social brasileiro sobre a Amazônia e perceber nela a influência de dois polos de reflexão, as “obras amazônicas” de Mário de Andrade e Euclides da Cunha. Com isso, o intento é o de perceber a resistência de certas ideias sobre a região e de que maneira repercutem na produção local. Para tornar possível o exercício intelectual pretendido, a observação da produção contemporânea sobre a Amazônia se dará por meio de dois periódicos científicos de ciências humanas da região, um de Manaus e outro de Belém. Um deles é o Boletim de do Museu Paraense Emilio Goeldi. Ciências Humanas, cuja fundação remete ao século XIX, mais precisamente ao ano de 1894 e que, mesmo com interrupções ao longo dos anos, constituiu-se enquanto um dos mais tradicionais periódicos científicos da Amazônia e do Brasil. Fundado em 1871, o próprio Museu Paraense Emilio Goeldi é uma das instituições científicas brasileiras mais antigas e prestigiosas. O outro periódico que será objeto de atenção aqui é Somanlu13: revista de estudos amazônicos, vinculada ao Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). A revista Somanlu teve sua primeira edição no ano de

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RUGAI BASTOS, Elide. “Região e nação: velhos e novos dilemas”. IN: BOTELHO, André; Schwartz, Lilia Moritz (orgs.). Agenda brasileira: temas de uma sociedade em mudança. São Paulo, Editora Companhia das Letras, 2011. 13

Como informa o site da revista, Somanlu é um personagem criado como um herói mítico da Amazônia pelo escritor Abguar Bastos.

2000 e é a mais antiga publicação de ciências sociais da UFAM 14, a mais relevante e tradicional universidade de Manaus e do Amazonas. Além da relevância das instituições nas quais nasceram os periódicos selecionados para a observação, concorreram para a escolha outros fatores: 1 – serem periódicos de Manaus e Belém; 2 – serem periódicos que primam pela multidisplinaridade, recebendo trabalhos de autores dos campos da sociologia, antropologia e ciência política e áreas relacionadas; 3 – sua inscrição e avaliação no QUALIS-CAPES. Quanto ao fato de os periódicos terem sido fundados em quadros institucionais sediados em Manaus e Belém, importa sublinhar serem essas as principais cidades da Amazônia. A centralidade das duas capitais remete, no caso de Manaus, à importância administrativa e política adquirida quando da transferência da capital da Capitania do Rio Negro de Barcelos a Manaus ainda no século XVIII e à sua condição definitiva de capital desde 1808 da Capitania de São José do Rio Negro, depois Província do Amazonas. Belém, por sua vez, é cidade central para a Amazônia desde a fundação do Estado do Grão-Pará e Maranhão, estado colonial português que sucedeu o Estado do Maranhão e Grão-Pará, em 1751. Ambas as cidades foram os principais portos de exportação da borracha obtida com a exploração da Hévea Brasiliensis e os mais relevantes entrepostos comerciais daquele ciclo econômico, que redundou em um rápido acumulo de capital por latifundiários, bancos e agências de crédito brasileiras e estrangeiras. As duas cidades, a partir do boom da borracha, foram as que mais tiveram suas paisagens modificadas por grandes intervenções urbanas. Também são as mais retratadas pelos cronistas, viajantes, missionários brasileiros e estrangeiros em busca de conhecer a Amazônia (OSSANE, 2007)15. Outro critério que pesou para a escolha dos dois periódicos referiu-se a terem os dois um conhecido caráter multidisciplinar. Uma consideração a fazer a respeito disso relaciona-se a uma maior chance de em periódicos com tais características perspectivas de reflexão e interpretação sobre obras e autores do pensamento serem mais variadas. 14

A Universidade Federal do Amazonas, fundada em 1962, proclama-se a universidade brasileira mais antiga. A universidade nasceu da fusão de faculdades existentes desde a fundação da Escola Universitária Livre de Manáos, em 1909. 15

OSSANE, Ricardo. As cidades na Amazônia pelos viajantes. In: RUGAI BASTOS, Elide; FREITAS PINTO, Ernesto Renan (orgs.). Vozes da Amazônia: investigação sobre o pensamento social brasileiro. Manaus, EDUA – Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2007.

Isso contribuiria para a tentativa de verificar na produção contemporânea do pensamento social rastros das obras amazônicas de Mário de Andrade e Euclides da Cunha. Não se deve perder de vista a própria constituição da área de pensamento social como uma área dinamizada pelo diálogo de sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, historiadores e outros cientistas humanos. A inserção dos periódicos no Sistema Qualis da CAPES 16 foi critério em razão de o reconhecimento de uma publicação enquanto um periódico científico por parte do sistema se dar apenas diante de algumas características essenciais. Entre outras: normas de submissão claras, periodicidade regular definida, avaliação das submissões feitas por membros do conselho consultivo ou pareceristas ad hoc. Em suma, estar classificado no Sistema Qualis-CAPES é, a priori, garantia de seriedade e qualidade de publicações científicas. Nenhuma das publicações citadas aqui, entretanto, são classificadas como que de excelência. Na área de avaliação “Interdisciplinaridade”, uma das áreas nas quais são classificados os periódicos, o Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas recebe avaliação B217. A revista Somanlu, na mesma área, conta com a classificação B4. Faz pensar o fato de dois dos principais periódicos de ciências sociais do norte do país não contarem com boas avaliações segundo o Qualis. Como sugerimos na introdução do presente artigo, o mote do nosso olhar aos textos de pensamento social sobre a Amazônia presentes nos dois periódicos foi o de buscar neles indícios das obras de Mário de Andrade e Euclides da Cunha sobre a Amazônia e compreender de que maneira as chaves de suas interpretações vivem na produção local sobre a Amazônia. A pesquisa contemplou cinco anos de produção de cada um dos periódicos18. Foram objetos de atenção cinco volumes e dez números da Somanlu e cinco volumes e quinze números do Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi. Ciências Humanas. A diferença dos números de cada revista se dá em razão da periodicidade das publicações. O período

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Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

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A escala de classificação QUALIS-CAPES inicia em A1 (para as melhores publicações), e passa por A2, B1, B2, B3, B4, B5 e termina em C. 18

A esse respeito, necessário indicar que a intenção inicial era a de realizar o estudo do período de dez anos. Por dificuldades minhas de contemplar os trabalhos de uma década na forma de um artigo é que se justifica a mudança para o período de cinco anos.

que compreende a publicação dos artigos vai de 2008 a 2014, já que o último exemplar da revista Somanlu é do segundo semestre de 201219. A pesquisa realizada apontou que inscrevem-se na área do pensamento social brasileiro, entendida enquanto reflexão “sobre os intelectuais e suas ideias sobre a sociedade nacional, enfatizando um dos aspectos ou um conjunto deles” (RUGAI BASTOS; FREITAS PINTO, 2007: p. 25), dez artigos, duas resenhas de livros publicados, e um resumo de tese, em um total de treze textos. Foram incluídos nesse rol textos que se propusessem a interpretações sobre obras e atuação de intelectuais que tivessem tido a Amazônia como motivo de suas análises, ou daqueles dispostos a refletir sobre o impacto social das ideias presentes nas obras de autores consagrados do pensamento social brasileiros em trabalhos sobre a Amazônia. Quanto às distinções dos dois periódicos, a impressão é que Somanlu se trata de uma revista que prioriza a seleção de artigos com um tom mais claramente etnográfico relacionado a comunidades ribeirinhas, povos indígenas, segmentos populares urbanos sobretudo de Manaus. Esse é um dos motivos pelos quais o número de textos sobre pensamento social seja maior no Boletim. Outra razão provável é um número do Boletim dedicado à obra do autor paraense Benedito Nunes. Embora nem todos os textos presentes ali possam ter sido alinhavados como da área de pensamento social, contribuíram para a significativa diferença da quantidade de textos encontrados nas revistas, já que no periódico de Belém a pesquisa identificou seis artigos, duas resenhas e um resumo de tese. No periódico da UFAM, somente quatro artigos, em minha visão, puderam ser enquadrados na área de pensamento social amazônico. Disposto a apresentar a diversidade de temas encontrados nos artigos, bem como tentar refletir sobre os modos pelos quais são reveladas ali ideias, conceitos-chave e perspectivas presentes nas interpretações de Euclides da Cunha e Mário de Andrade sobre a Amazônia, penso ser possível dispor os textos encontrados em três principais blocos. O primeiro desses blocos é o de textos comprometidos com apreensões generalistas sobre o pensamento social na Amazônia. São dois os textos: “Do pensamento social

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Intrigado com a interrupção das publicações da revista, fiz contato telefônico com o Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM). A funcionária que me atendeu garantiu que a revista segue recebendo trabalhos. Recomendou que mandasse um e-mail a um dos professores do Programa que compõem o Conselho Editorial da revista, o que fiz. Não recebi resposta.

sobre a Amazônia”20, de Gustavo Soranz; “Expedição literária pela Amazônia” 21, resenha assinada por José Augusto Drummond do livro Grandes expedições à Amazônia brasileira: 1500-1930. “Do pensamento social sobre a Amazônia” apresenta ao leitor o panorama da gênese das ideias sobre a Amazônia relacionando-as à visão de cronistas europeus do século XVI a respeito do Novo Mundo e o esforço de intelectuais brasileiros do século XX por sua relativização. Para tanto, o autor busca refletir sobre as noções generalizadas no imaginário social da Amazônia recorrendo aos relatos dos viajantes europeus à região no século XVI, dando especial destaque ao processo de exotização do mundo amazônico iniciado nos primeiros tempos da colonização europeia da região. Soranz recorre a autores da Amazônia como Ernesto Renan Freitas Pinto, Marcio Souza e José Aldemir de Oliveira para identificar “um projeto intelectual que ousou repensar o processo histórico e cultural estadual (sic), forjando assim uma onda de afirmação cultural, presente em diferentes manifestações artísticas, inventando outra Amazônia” (SORANZ: 2010, p. 131). A despeito de seu comprometimento pela divulgação e reflexão sobre que me permito chamar de visões alternativas às ideias coloniais sobre a Amazônia que a marcaram pelo signo de um exotismo pouco comprometido com os povos e as diversidades presentes na constituição da região, chama a atenção a não citação de Mário de Andrade enquanto um dos fundadores de uma perspectiva intelectual sobre a Amazônia aberta à apreensão de sua imensa diversidade social e cultural. Também Euclides da Cunha não foi citado no texto, reforçando a impressão ao leitor do artigo de um salto realizado pelo autor tendo como ponto de partida as ideias de europeus do século XVI sobre a Amazônia e ponto de chegada as elaborações de autores amazônidas de fins do século XX. A resenha “Expedição literária pela Amazônia” destaca o amplo trabalho de uma grande equipe de pesquisadores sob a coordenação do escritor João Meirelles Filho, autor do livro que, nos termos de Drummond “com a ajuda de riquíssimas ilustrações, narra e costura entre si 42 expedições selecionadas que percorreram diferentes partes da Amazônia brasileira entre 1500 e 1930” (DRUMMOND: 2010, p. 537). As expedições

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SORANZ, Gustavo. “Do pensamento social sobre a Amazônia”. Somanlu: revista de estudos amazônicos, vol. 10, n. 2, jul./dez. 2010. 21

DRUMMOND, José Augusto. “ Expedição literária pela Amazônia” (resenha). Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi. Ciências Humanas. Vol 5, n. 2, maio-agosto 2010.

de Mário de Andrade e Euclides da Cunha são duas das expedições incluídas no livro e objetos da atenção do autor da resenha, que destaca o fato de somente a minoria dos líderes das expedições ser de brasileiros como Mário e Euclides. Um segundo grupo de textos identificados com a produção do pensamento social brasileiro é de trabalhos de reflexão sobre projetos civilizadores e de saneamento na Amazônia. São três os artigos constituintes desse conjunto: “Cultura e Civilização da Amazônia: Rondon e o projeto civilizador do Estado brasileiro”22, de Fernando da Silva Rodrigues; “‘Conquistar a terra, dominar a água, sujeitar a floresta’: Getúlio Vargas e a revista ‘Cultura Política’ redescobrem a Amazônia (1940-1941)”23, de Rômulo de Paula Andrade; “Do inferno florido’ à esperança do saneamento: ciência, natureza e saúde no estado do Amazonas durante a Primeira República (1890-1930)”24, dos autores Júlio César Schweickardt e Nísia Trindade Lima. Dos três textos, o trabalho de Schweickardt e Lima é aquele que se dirige com mais clareza a interpretar o alcance de ideias dos dois autores que justificam o presente texto. Em busca das ideias construídas sobre a Amazônia, sua sociedade, e o tema mais específico do saneamento e da saúde pública na região, os autores do artigo analisam as obras de Euclides da Cunha, Alberto Rangel e Carlos Chagas. Ao analisá-las, atestam sua importância central para os debates e ações de saneamento e saúde pública levados a cabo na cidade de Manaus nas primeiras décadas do século XX. Constatam que os médicos locais estavam a par das discussões científicas mais atualizadas sobre saúde pública à época, bem como com a leitura e a circulação das ideias advindas dos textos de Cunha, Rangel e Chagas. Ao aproximarem-se da obra de Euclides da Cunha, os autores do artigo põem luz sobre dimensões de sua obra amazônica: a fragilidade paralisante do homem ante à imensidão da paisagem; a ciência como chave para a construção de alternativas à vida deplorável de grande parte da população; e a descrição

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RODRIGUES, Fernando da Silva. “Cultura e civilização da Amazônia: Rondon e o projeto civilizador do Estado brasileiro”. Somanlu: revista de estudos amazônicos, vol. 8, n. 2, jul./ dez. 2008. 23

ANDRADE, Rômulo de Paula. “‘Conquistar a terra, dominar a água, sujeitar a floresta’: Getúlio Vargas e a revista ‘Cultura Política’ redescobrem a Amazônia (1940-1941)”. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 5, n. 2, p. 453-468, maio-ago. 2010. 24

SCHWEICKARDT, Júlio César; TRINDADE LIMA, Nísia. “Do inferno florido’ à esperança do saneamento: ciência, natureza e saúde no estado do Amazonas durante a Primeira República (18901930)”. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 5, n. 2, p. 399-415, maio-ago. 2010.

minuciosa feita por Euclides do brutal sistema de exploração do trabalho dos seringueiros. Os artigos “Cultura e Civilização da Amazônia: Rondon e o projeto civilizador do Estado brasileiro” e “‘Conquistar a terra, dominar a água, sujeitar a floresta’: Getúlio Vargas e a revista ‘Cultura Política’ redescobrem a Amazônia (1940-1941)” abordam a partir de distintas perspectivas o “projeto civilizador” do Estado brasileiro para a Amazônia. No caso do primeiro, o período em foco é o de 1927 a 1930, anos nos quais ocorreu a expedição de Rondon a regiões do norte e centro-oeste do Brasil. No caso do segundo texto, trata-se do exame a respeito dos discursos e ações do Estado Novo (1937-1945) na Amazônia e expõe o pensamento do regime varguista sobre a Amazônia presente na revista Cultura Política, publicação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo. Segundo seu autor, a produção sobre a região no periódico destaca-se nos anos de 1940 e 1941, tendo a revista nos anos seguintes dedicado-se às explosivas relações internacionais da 2a. Guerra Mundial, na qual o Brasil tomaria parte. O artigo “Cultura e Civilização da Amazônia: Rondon e o projeto civilizador do Estado brasileiro” toma como objeto de reflexão a expedição da Comissão de Inspeção de Fronteiras liderada por Cândido Rondon entre 1927 e 1930. Para cumprir com esse intento, destaca as imagens fotográficas de povos indígenas, negros e grupos sociais contatados ao longo da expedição e a construção do sentido de tais imagens sob a luz do projeto de ocupação e “civilização” da Amazônia e do norte do Brasil, da qual os trabalhos de Rondon eram importantes peças. Na visão de seu autor, pelas fotos é possível depreender a predominância de uma perspectiva cientificista dada a conhecer a Amazônia com destaque ao saber geográfico e da diversidade cultural da região. O desenvolvimento de ambos os textos parece trazer à tona a relevância do pensamento de Euclides da Cunha, seja como um dos elementos justificadores das ações do Estado Novo na Amazônia e influência direta para os articuladores dos discursos e textos varguistas sobre a região publicados pela revista Cultura Política, seja como influência central para expedições patrocinadas pelo Estado brasileiro como a liderada por Rondon. É de se destacar ainda que a expedição de Rondon, realizada mais de vinte anos depois daquela de Euclides da Cunha, ter também como uma de suas motivações a delimitação de fronteiras na região e a necessidade manifestada pelo Estado de conhecer a Amazônia.

Segundo a leitura de Rômulo de Paula Andrade (2010) , a produção intelectual da Cultura Política identificada com a Amazônia tomou como pressupostos de suas formulações acerca da região as visões de três autores, Euclides da Cunha, Alberto Rangel e Alfredo Ladislau. Em seus termos: “estes escritores formularam conceitos que foram apropriados pelos articulistas do periódico Cultura Política, publicado na década de 1940, com o propósito de imprimir um novo olhar sobre a região” (ANDRADE, 2010, p. 454). O terceiro conjunto de textos identificados com o pensamento social contemporâeneo nos periódicos observados para os fins desse estudo reúne oito textos dedicados a autores que ensaiam interpretações sobre a Amazônia. De antemão, é fundamental apontar que cinco desses textos25 são dedicados às várias facetas do pensador paraense Benedito Nunes, falecido em 2011 e homenageado no mesmo por ano por um número do Boletim de Ciências Humanas do Museu Paraense Emilio Goeldi. Dentre os textos do número de homenagem a Benedito Nunes destaca-se o assinado por Maria Stella Faciola Pessôa Guimarães e Edna Maria Ramos de Castro, “Benedito Nunes e reflexões sobre a Amazônia”. O artigo é aquele que, como já seu título sugere, busca na vasta e diversa obra de Nunes sua porção mais diretamente dedicada à Amazônia. O caminho percorrido pelas autoras é o de argumentar pela importância da contribuição de Benedito Nunes no campo das ciências sociais, como professor e escritor, para depois inventariar a produção de Nunes como “intérprete da sociedade e das culturas da Amazônia” (GUIMARÃES; CASTRO: 2011, p. 409). O artigo lista onze trabalhos de Benedito Nunes relacionados à cultura, história e sociedade de Belém, do Pará e da Amazônia. Os trabalhos têm grande variação em suas formas, compreendendo de comunicações e palestras a livros de Nunes sobre a região. As autoras elaboram pequenos resumos de cada um dos trabalhos e pretendem que seu esforço seja levado

25

GUIMARÃES, Maria Stella Faciola Pessôa; CASTRO, Edna Maria Ramos de. “Benedito Nunes e reflexões sobre a Amazônia”. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 6, n. 2, p. 409-424, maio-ago. 2011; BENCHIMOL BARROS, Márcio. “Do Marajó ao Arquivo” como revelação do universalismo amazônico de Benedito Nunes” (resenha). Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 8, n. 2, p. 473-475, maio-ago. 2013; SANJAD, Nelson; SANJAD, Andréa. “Prólogo: Benedito Nunes, o pequeno pai do tempo”. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 6, n. 2, p. 349375, maio-ago. 2011; GUIMARÃES, Maria Stella Faciola Pessôa. “Um olhar atrás da escrita: o pensamento de Benedito Nunes sobre a Amazônia” (resumo de dissertação). Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 8, n. 3, p. 807, set.-dez. 2013. BENCHIMOL BARROS, Márcio. “Três vezes Benedito”. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 6, n. 2, p. 395-399, maio-ago. 2011.

em conta como um mapeamento das possibilidades de pesquisa da obra do autor no campo do pensamento social brasileiro. Os outros quatro artigos que tomam a obra do autor paraense como mote para suas análises têm um caráter mais generalista ou mais dedicados às contribuições de Nunes aos debates filosófico e literário. Cito-os porque foram objeto de leitura e porque, por meio desse esforço, restou evidente sua importância para o pensamento da Amazônia partindo de outros vieses e por serem trabalhos motivados pela obra de um pensador da riqueza de Benedito Nunes. Minha impressão é que podem ser portas para futuras análises e interpretações inclusive na área de pensamento social. Os artigos “Teorias e imagens antropológicas na viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792)”26 de Ronald Raminelli e Bruno da Silva; “A contribuição de Alexandre Rodrigues Ferreira para a formação do pensamento social na Amazônia”27, de José Nailton Leite e Cecilia Sayonara G. Leite; “Arthur Reis: da relação com os intelectuais amazonenses à sua colocação nos Institutos Históricos (1930-1940)”28 de Lademe Correia de Souza revelam facetas das obras e das trajetórias de Alexandre Rodrigues Ferreira e Arthur César Ferreira Reis, importantes nomes para o pensamento sobre a Amazônia em distintas épocas. Como se sabe, Alexandre Rodrigues Ferreira foi um dos primeiros brasileiros a liderar expedição à Amazônia ainda no século XVIII. O ano de 1783 marcou o início da expedição, organizada e financiada pelo Estado português e que tinha como metas mapear e descrever os povos da região além de identificar as possibilidades de desenvolvimento econômico presentes ali. Os dois artigos dedicados ao autor baiano guardam uma importante complementaridade. Enquanto

“Teorias e imagens

antropológicas na viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792)” se debruça sobre as imagens elaboradas dos povos indígenas durante a expedição e articula-as às elaborações de pensadores europeus da época sobre a diversidade humana, “A contribuição de Alexandre Rodrigues Ferreira para a formação do pensamento social 26

RAMINELLI, Ronald; SILVA, Bruno da. “Teorias e imagens antropológicas na viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792)”. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 9, n. 2, p. 323-342, maio-ago. 2014 27

LEITE, José Nailton; LEITE, Cecília Sayonara. “A contribuição de Alexandre Rodrigues Ferreira para a formação do pensamento social na Amazônia”. Somanlu, vol. 9, n. 1, jan./jun. 2009. 28

CORREIA DE SOUZA, Lademe. “Arthur Reis: da relação com os intelectuais amazonenses à sua colocação nos Institutos Históricos (1930-1940)”. Somanlu, ano 10, n. 1, jan./jun. 2010.

na Amazônia” é dedicado a elucidar a importância da expedição e dos escritos de Alexandre Rodrigues Ferreira ao pensamento dos séculos seguintes sobre a Amazônia. “Arthur Reis: da relação com os intelectuais amazonenses à sua colocação nos Institutos Históricos (1930-1940)”, de Lademe Correia de Souza, apresenta a trajetória intelectual de Arthur Cezar Ferreira Reis, desde antes da publicação de seu primeiro livro em 1931, História do Amazonas. A autora revela indícios do grau de articulação de Reis e sua família com os meios intelectuais amazonenses. Logo depois de seus primeiros trabalhos escritos, a atuação de Arthur Reis já era saudada como uma das esperanças intelectuais de seu Estado. A autora descreve também a atuação de Reis como agente político que o levou ao cargo de governador do Amazonas no início da ditadura civilmilitar no Brasil (1964-1985) e o papel desempenhado por ele a partir do campo da política institucional para o meio intelectual do Amazonas.

ÚLTIMAS PALAVRAS Sem pretensão (e nem condição) de estabelecer linhas conclusivas a respeito do que pude encontrar com o olhar dirigido à produção recente na área de pensamento social sobre a Amazônia nos dois periódicos, mantenho a esperança de que o esforço do trabalho possa ser um marco para a continuidade de uma pesquisa sobre a “presença” de Mário de Andrade e Euclides da Cunha no pensamento social da Amazônia. Ao final do trabalho, pode-se constatar que: de um total de pouco mais de 350 textos (artigos, resenhas, entrevistas) publicados pelos dois periódicos de 2008 a 2014, foram encontrados 13 trabalhos com temáticas vinculadas à área de pensamento social brasileiro em relação à Amazônia. Salvo alguma omissão de minha parte, que eu temo diante do número total dos textos, o percentual de trabalhos do pensamento social amazônico é de menos de 5%. Nos trabalhos encontrados, Mário de Andrade e Euclides da Cunha são citados. Entretanto, a presença de Euclides é significativamente maior: em quatro textos é citado e/ou representa importante referência. Enquanto isso, Mário de Andrade é citado diretamente apenas na resenha de livro que busca registrar as principais expedições de brasileiros e estrangeiros na Amazônia. Uma pista para essa diferença talvez se dê em razão de os projetos civilizadores e saneadores da Amazônia, tema presente em boa parte dos trabalhos aqui reunidos, tomarem como pressupostos pontos de vista com maior caráter cientificista. Dentre as obras que se tornariam clássicas sobre a Amazônia e que contaram com esse caráter, certamente a de Euclides da Cunha é uma das

fundadoras. Menos legíveis sob esse ponto de vista, os escritos de Mário de Andrade sobre a Amazônia são menos citados. Outro fator que pode motivar a menor presença de Mário de Andrade na produção contemporânea, de acordo com o que vimos, é a publicação tardia de seus escritos. Somente em 1976 publicados os escritos amazônicos de Mário parecem foram menos lidos, citados e criticados ao longo do tempo. Se, como dizia Álvaro Maia, “a floresta esconde todos os símbolos 29”, a rica obra amazônica de Mário de Andrade faz falta no manancial teórico da maior parte da reflexão sobre a Amazônia.

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A frase é atribuída ao poeta e político Álvaro Maia e é epígrafe do livro A expressão amazonense de Márcio Souza. (SOUZA, Márcio. A expressão amazonense. São Paulo, Editora Alfa-Ômega, 1977).

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