Um olhar sobre a relação entre cultura visual e cultura política: os filmes de Henri Cartier-Bresson na Guerra Civil Espanhola. In: Anais do XXII Encontro Estadual de História da ANPUH-SP

September 18, 2017 | Autor: Erika Zerwes | Categoria: Cultura Visual, Fotografia, Fotojornalismo, Fotografia de guerra
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Um olhar sobre a relação entre cultura visual e cultura política: os filmes de Henri Cartier-Bresson na Guerra Civil Espanhola ERIKA ZERWES∗

Resumo: A Guerra Civil Espanhola (1936-39) mobilizou um grande número de artistas e intelectuais europeus e americanos. Da parte dos Republicanos, não apenas uma rica literatura foi construída a partir de autores como Ernest Hemingway, John Dos Passos e Martha Gellhorne, mas também representações visuais do conflito o ultrapassaram e se tornaram pilares da cultura visual contemporânea. A Guernica de Picasso se tornou uma de suas obras mais conhecidas, assim como se tornaram ícones da fotografia documental algumas das imagens desta guerra feitas por Robert Capa e David Seymour “Chim”. Uma cultura política anti-fascista, que reunia estas pessoas, estava assim proximamente relacionada com uma cultura visual no período. Este artigo fala um pouco sobre esta visualidade e esta cultura política por meio de filmes realizados pelo fotógrafo Henri Cartier-Bresson na Espanha em guerra e a relação visual e política que eles têm com algumas das fotografias de Chim e Capa. Palavras chave: Cultura visual; fotografia de guerra; cultura política; filme de propaganda. Abstract The Spanish Civil War (1936-39) has mobilized a large number of American and European artists and intellectuals. In the Republican side, not only a rich literature was built by authors such as Ernest Hemingway, John Dos Passos and Martha Gellhorne, but also some of it’s visual representations have become pillars of our contemporary visual culture. Picasso’s Guernica has become one of his most famous paintings, and come of this war’s photographs made by Robert Capa and David Seymour “Chim” have become icons of documental photography. An anti-fascist political culture united these people and was closely related to a visual culture in the

2 period. This paper focuses on this visuality and this political culture by focusing Henri Cartier-Bresson’s films made during the war in Spain, and their political and visual relations with some of Capa’s and Chim’s photographs. Key words: Visual vulture; war photography; political culture; propaganda films.

Apesar de estar trabalhando como repórter fotográfico na segunda metade da década de 1930, Henri Cartier-Bresson não foi para a Espanha em guerra como fotógrafo, mas como diretor de documentários de propaganda. Ele havia aprendido rudimentos do ofício em Nova York em 1935 na cooperativa Nykino, que tinha tendências políticas de esquerda e era dirigida pelo fotógrafo e documentarista Paul Strand1. A intenção era levantar ajuda financeira para a Espanha, e ainda denunciar os abusos do lado de Franco. Sabe-se que Cartier-Bresson realizou três filmes na Espanha em guerra. Um deles consiste em curto trecho recentemente atribuído, With the Abraham Lincoln Brigade in Spain (16mm, 21’) de 1938. Foi encontrado nos arquivos da Abraham Lincoln Brigade, organização de veteranos norte-americanos das Brigadas Internacionais que lutaram ao lado dos republicanos, e mostra soldados fazendo uma refeição em campanha2. Os outros dois são filmes de propaganda, Victoire de la vie (16mm, 47’) feito em 1937 para mostrar o trabalho da Centrale Sanitaire Internationale, e L’Espagne vivra (35mm, 44’) que foi filmado para o Secours

∗ Doutora em História pelo IFCH-Unicamp. 1 Nykino é a junção das palavras New York e kino, cinema em russo. Como o nome indica, o grupo de cineastas de posições políticas de esquerda pregava uma estética documentária inspirada no cinema soviético dos anos de 1920. Além de Strand, faziam parte do grupo William Van Dyke, Ralph Steiner, Jay Leda, entre outros. A produtora dos filmes de CartierBresson na Espanha em guerra, a Frontier Films, assim como parte da equipe, é ligada ao grupo. Phillipe-Alain Michaud vê semelhanças entre Heart of Spain, documentário filmado por Strand, do qual fez parte também Herbert Kline, e Victoire de la vie. Esta produtora também foi responsável por Spanish Earth, de Joris Ivens, filmado na mesma época (MICHAUD In CARTIER-BRESSON, MONTIER (eds), 2009, p. 85). 2 Disponível em http://www.albavolunteer.org/2010/03/rare-documentary-film-saved/. Acesso em 02/04/2014.

3 Populaire de France et des Colonies em 19383. Ambas as instituições eram ligadas ao Partido Comunista Francês. Estes três trabalhos fizeram parte de uma mobilização maior dos intelectuais e artistas franceses de esquerda. Grande parte dos membros da equipe de filmagem e pós-produção era ligada à revista ilustrada semanal Regards, ligada ao PCF, ou à AEAR, a Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários. Faziam também parte deste círculo outros dois fotógrafos, amigos de Cartier-Bresson: Robert Capa e David Seymour “Chim”. Juntos, os três fundariam a agência fotográfica Magnum, em 1947.

Img. 1. Anônimo. Jacques Lemare, Henri Cartier-Bresson e Herbert Kline durante filmagens. Espanha, outubro de 1937.

Victoire de la vie é voltado para a atuação da Centrale Sanitaire Internationale na retaguarda do conflito. Narrado por Pierre Unik, repórter da Regards, filmado por Jacques Lemare e Herbert Kline e dirigido por Henri Cartier4, o filme começa afirmando a preocupação da República com a saúde e o bem estar das crianças, e o perigo em que a guerra as coloca. Mostra assim as doações da instituição indo para o cuidado e alimentação das crianças, vítimas inocentes da guerra. Em seguida, trabalhadores do campo são filmados durante uma colheita, erguendo suas foices à contra-luz, compondo uma cena de alto grau simbólico, uma vez que a foice e o

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Estes filmes estão preservados no Fonds Audiovisuel du PCF, Ciné-Archives, Archives Françaises du Film, Forum des Images. 4 Segundo seu biógrafo, Cartier-Bresson faz questão de ser creditado sem o sobrenome completo também quando suas fotografias são publicadas no jornal Ce soir. Ele não deseja ser associado à alta classe francesa da qual sua família faz parte (ASSOULINE, 2004, p. 118).

4 martelo simbolizam o comunismo [Img. 2]. Apesar de se focar na retaguarda, há algumas seqüências de batalha.

Imgs. 2 e 3. Frames do filme Victoire de la Vie, dirigido por Henri Cartier-Bresson. Espanha, 1937.

A Imagem 3 mostra uma tomada da artilharia composta com um gosto pelo geométrico caro à Cartier-Bresson. Em seguida a câmera se posiciona fixa atrás de um abrigo, registrando a passagem apressada de soldados em ação. É possível ver as bordas de madeira do buraco pelo qual a câmera filma abrigada [Img. 4].

Img. 4. Frame do filme Victoire de la Vie, dirigido por Henri Cartier-Bresson. Espanha, 1937.

Terminadas estas seqüências de ação, o filme volta a se focar na retaguarda, mostrando o trabalho das ambulâncias chegando para socorrer os feridos, e, após os primeiros cuidados, a evacuação destes para centros médicos mais afastados do combate, e a recuperação nos hospitais de Barcelona, com tratamentos de fisioterapia e até a colocação de próteses. A mesma apreciação por composições elaboradas e geométricas aparece quando é mostrado um hospital que comemora um ano de

5 funcionamento com a ajuda do CSI. Os quadros do filme reproduzidos nas Imagens 5 e 6 remetem à fotografias que Cartier-Bresson havia realizado no país quando lá esteve em 1933, como a Imagem 7, feita em Sevilha.

Imgs. 5 e 6. Frames do filme Victoire de la Vie, dirigido por Henri Cartier-Bresson. Espanha, 1937.

Img. 7. Henri Cartier-Bresson. Sevilha. Espanha, 1933.

A aproximação estética entre algumas das tomadas do filme e a produção fotográfica de Cartier-Bresson é sugeria por Phillip-Alain Michaud, quando este afirma que, segundo Kline, a maior parte da concepção visual do filme veio de Cartier-Bresson, ao mesmo tempo em que a maior parte das idéias de cenas vieram dele mesmo. Assim, Michaud conclui que mesmo que Cartier-Bresson não tenha fotografado a guerra na Espanha, como Capa ou Chim, ainda assim, por sua estética, o fotógrafo estaria contido dentro do filme de propaganda (In CARTIER-BRESSON, MONTIER (eds), 2009, p. 85)5.

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O autor afirma que: “Selon Kline, la plupart des idées visuelles développées dans Victoire de la vie venaient de Cartier-Bresson, tandis que le plupart des idées de scènes venaient de lui. Le point n’est pas sans importance : il manifeste une dissociation, perceptible dans le déroulement même du film, entre l’unité du plan (l’image) et celle de la scène (la construction

6 Victoire de la vie continua mostrando o cuidado com os feridos na guerra, quando os veteranos são enviados para um descanso na praia e participam de um trabalho de educação ou reeducação. Os homens são mostrados sendo alfabetizados por voluntárias, e as mulheres aprendendo a bordar. O seguinte letreiro o encerra: Avec de tels hommes l'Espagne ne peut pas mourir. L'idéal pour lequel ils ont prodigué leur sang est un idéal de Paix. Pour que les enfants grandissent dans la joie. Pour les belles moissons de demain. L'Espagne au grand cœur doit vivre. L'Espagne vivra.6

L’Espagne vivra parece não ter sido distribuído comercialmente, tendo ficado pronto apenas depois que a guerra terminou. Foi realizado pela mesma equipe, porém sua narração é feita por Georges Sadoul, poeta que trocou o surrealismo pelo comunismo, membro da AEAR, e repórter do L’Humanité e depois da Regards. Além de mostrar a ajuda humanitária vinda das doações francesas, o filme constrói uma denúncia sobre a participação da Itália e da Alemanha, e dos exércitos mouros, na guerra ao lado de Franco, buscando provas assim de que o tratado assinado pela França e Inglaterra com a Alemanha fascista, afirmando que não iriam intervir no conflito espanhol, não era respeitado. Uma vez que o Comitê de Não-Intervenção, do qual fazia parte a França, não agia de modo legítimo, também a França não estaria ela própria segura com o avanço do fascismo. O filme é composto por trechos de outros filmes e imagens de arquivo, de animações gráficas, além de material próprio. Há muitos braços erguidos com os punhos fechados [Img. 8], gesto característico das Frentes Populares européias7, imagens de equipamentos alemães e italianos, atestando o descumprimento do Pacto de Não-Intervenção, e tomadas das vítimas e da destruição de cidades, especialmente Madri [Img. 9].

narrative). Si Henri Cartier-Bresson, à la différence de Robert Capa et de David Seymour (Chim), n’a pas pris de photos durant la guerre d’Espagne – ce qu’au demeurant il dira par la suite avoir toujours regretté –, le photographique reste néanmoins inscrit dans le film, ce dernier étant désormais conçu comme une forme composite” (MICHAUD In CARTIERBRESSON, MONTIER (eds), 2009, p. 85). 6 Victoire de la vie, 16mm, 47’, 1937, dir. Henri Cartier-Bresson. 7 Sobre o gesto dos punhos fechados como uma manifestação visual da cultura política de esquerda e anti-fascista no entre-guerras ver ZERWES, Erika. Tempo de Guerra. Cultura Visual e Cultura Política nas Fotografias de Guerra dos Fundadores da Agência Magnum, 1936-1947. Tese de doutorado, 2 vols. IFCH-UNICAMP, 2013.

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Imgs. 8 e 9. Frames do filme L’Espagne Vivra, dirigido por Henri Cartier-Bresson. Espanha, 1938.

Diferente de Victoire de la vie, não é possível identificar em sua estética muito do olhar pessoal de Cartier-Bresson. Uma seqüência, no entanto, chama a atenção por sua semelhança com fotografias das crianças espanholas feitas por Chim, ainda em 1936. Enviado pela Regards para cobrir a guerra desde seu início, esta foi uma das primeiras séries feitas por Chim, sobre órfãos que perderam os pais no conflito contra os fascistas. A temática é praticamente a mesma do filme de Cartier-Bresson, como mostra a Imagem 10, aos 36 minutos.

Img. 10. Frame do filme L’Espagne Vivra, dirigido por Henri Cartier-Bresson. Espanha, 1938. Imgs. 11 e 12. David Seymour Chim. Crianças em uma creche ou orfanato de Madri fazem a saudação republicana. Espanha, agosto-setembro de 1936.

Não apenas as crianças, que aqui como em Chim representam as vítimas inocentes das barbaridades fascistas, mas também outros temas e enfoques presentes nos filmes de Cartier-Bresson também povoaram semanalmente as páginas da Regards e de outras revistas ilustradas. Ainda em 1938, Robert Capa lançou um livro com fotografias suas, de Chim e de Gerda Taro, chamado Death in the Making. Muitas destas imagens haviam sido publicadas na imprensa ilustrada. O livro, assim

8 como Victoire de la Vie e L’Espagne Vivra, tinha a intenção de divulgar a causa republicana no exterior. O tom de propaganda, e os temas exaltados pelas imagens são praticamente os mesmos no livro e nos filmes.

Imgs. 13, 14 e 15. Páginas do livro Death in the Making. Covici-Friede Publishers, EUA, 1938.

Como em Victoire de la Vie, o livro de Capa também mostra o cuidado com os combatentes feridos [Img. 14], e milicianos republicanos analfabetos sendo alfabetizados [Img. 13]. Eles simbolizavam um passado feudal de atraso e de exploração no campo, que estava sendo eliminado pela República. Da mesma forma, o zelo pelo patrimônio e pela cultura simbolizavam um lado civilizado, em oposição à destruição causada pela barbárie fascista. Destruição esta causada principalmente pelos bombardeios aéreos [Img. 15]. A dedicação à cultura, ameaçada pelos bombardeios fascistas às cidades, e a exaltação dos trabalhadores rurais apoiadores da República, são temas compartilhados por Cartier-Bresson, Capa e Chim, entre outros fotógrafos ligados às esquerdas. Esta semelhança estética e quanto ao tema mostra as afinidades do trabalho destes futuros colegas da Magnum na Espanha em guerra. Ela deixa ver um círculo

9 social compartilhado por estes fotógrafos que era não apenas artístico, mas também politicamente ativo. Ao mesmo tempo, ela deixa ver também um programa político muito claro, que estava sendo construído metodicamente através do visual. A crença no poder heurístico da imagem técnica é posta claramente. No entanto, enquanto Chim e Capa divulgaram suas imagens de propaganda prioritariamente em forma de fotografias para a imprensa, Cartier-Bresson optou pelos filmes. Michaud aponta que Cartier-Bresson viria a expressar arrependimento em ter preterido a fotografia na Espanha (In CARTIER-BRESSON, MONTIER (eds), 2009, p. 87). Seu último filme ficou pronto somente após o término do conflito, quando as fotografias de seus futuros colegas da Magnum, Chim e Capa, já haviam atingido os grandes públicos das revistas ilustradas, chegando mais perto do objetivo de propaganda. Isto o ajudou na decisão de abraçar definitivamente a fotografia como meio privilegiado. Seu biógrafo, Pierre Assouline, afirma: Cartier-Bresson confessa com dificuldade: ‘sofrerá’ durante muito tempo porque somente seus dois grandes amigos Capa e Chim passaram para a posteridade como os fotógrafos da Guerra Civil Espanhola, e não ele, embora os três tivessem trabalhado nela. Só que Cartier-Bresson não tirara nenhuma foto. Eterno remorso... Antes preocupado em conseguir dinheiro para os hospitais republicanos, ele trabalhara pela causa, no contexto da propaganda, e o fizera filmando. Mas um documentário passa pela memória coletiva tão rápido quanto as imagens que passam na tela. As fotos permanecem. A montagem de um filme geralmente leva tempo. No tempo que leva para finalizá-lo, a guerra civil já terminara. (ASSOULINE, 2004, p. 118)

Esta experiência, assim como a experiência da Segunda Guerra Mundial, foram fundamentais para as escolhas posteriores de Cartier-Bresson. Foi neste momento que ele deixou de lado a pintura: segundo Russel Miller, Cartier-Bresson afirmaria mais tarde que ele pretendia voltar a pintar depois da guerra, mas se sentiu levado a “bear witness to the wounds and upheavals of the world with some instrument more rapid than a brush” (MILLER, 1997, p. 42).

10 BIBLIOGRAFIA ASSOULINE, Pierre. Cartier-Bresson, o olhar do século. São Paulo: L&PM, 2008. BAQUÉ, Dominique (ed). Les Documents de la Modernité, anthologie de texts sur la photographie de 1919 a 1939. Nîmes: Jacqueline Chambon, 1993. CAPA, Robert. Death in the Making. New York: Covici-Friede Publishers, 1938. CARTIER-BRESSON, Anne, MONTIER, Jean-Pierre (eds). Revoir Henri Cartier-Bresson. Paris: Éditions Textuel, 2009. FONTAINE, François. La Guerre d’Espagne, un déluge de feu e d’images. Paris: Berg International Éditeurs, 2003. MOREL, Gaëlle. Du People au Populisme. Les couvertures du magazine communiste Regards. Études Photographiques n˚9, mai 2001, pp. 44-63. WHELAN, Richard. ¡Esto Es La Guerra! Robert Capa en acción. Barcelona, New York, Göttingen: Museu Nacional d’Art de Catalunya / International Center of Photography / Steidel, 2009. YOUNG, Cynthia (ed). The Mexican Suitcase. New York, Gotingen: International Center of Photography, Steidl, 2010, 2 vols. ZERWES, Erika. Tempo de Guerra. Cultura Visual e Cultura Política nas Fotografias de Guerra dos Fundadores da Agência Magnum, 1936-1947. Tese de doutorado, 2 vols. IFCHUNICAMP, 2013.

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