Um olhar sobre a sexualidade feminina através do livro \" O Anatomista \"

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SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES Educação, Saúde, Movimentos Sociais, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos

20 a 31 de Julho de 2009 Salvador - BA

Um olhar sobre a sexualidade feminina através do livro “O Anatomista” Ana Carolina Medrado1 INTRODUÇÃO As representações do feminino passaram por inúmeras transformações ao longo do tempo. O livro “O Anatomista”, de Federico Andahazi, é um bom exemplo de como as questões desse gênero eram concebidas durante o Renascimento. Vala (1993 apud Sá, 1996) afirma que o estudo da mulher é um dos temas caros dentro do campo das representações sociais. Segundo Jodelet (1989 apud Sá 1996), a representação social é uma forma de conhecimento produzida e compartilhada socialmente, tendo por intuito a construção de uma realidade comum que permite a emergência das interações sociais. Ibañez (1988 apud Sá, 1996) complementa a definição de Jodelet: para ele, uma determinada representação passa por uma construção histórica e cultural que permite reconhecer a identidade da própria sociedade. Acredita-se que a literatura, como toda produção cultural, pode ser tomada como uma fonte de acesso há inúmeras representações que circulam socialmente. Partindo disto, essa pesquisa tem como objetivo geral compreender a visão da sexualidade feminina durante o Renascimento a partir de temas suscitados pelo livro “o Anatomista” de Federico Andahazi. Como objetivos específicos temos: Investigar a percepção da ciência sobre o corpo feminino a partir do personagem Mateo Colombo; Identificar a concepção da Igreja Católica, presente no livro, sobre a mulher e suas questões; Mapear as manifestações da sexualidade feminina através da personagem Inês de Torremolinos. Para tanto, procurou-se fazer uma breve revisão de literatura sobre a Renascença, a concepção de corpo feminino e de sexualidade da mulher à época. RESUMO DA OBRA A obra “O Anatomista” é de autoria de Federico Andahazi, escritor e psicanalista argentino. É um romance histórico que se passa na Itália no período da Renascença e tem como personagem principal o anatomista Mateo Colombo, professor da cadeira de anatomia e cirurgia da Universidade

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de Pádua. Tido como maior explorador anatômico da Itália, Mateo Colombo descobriu, entre outras coisas, as leis da circulação pulmonar. Em uma festa em Veneza, o anatomista conhece Mona Sofia, a prostituta mais bela de Veneza e apaixona-se pela moça. A partir daí, com o intuito de retratar sua beleza em uma pintura, Mateo passa a freqüentar seu bordel todos os dias. Mas Mona Sofia dava a ele o mesmo tratamento que ofertava aos outros clientes: oferecia o seu corpo e o seu desprezo. Findada sua estadia em Veneza, Mateo regressa à Pádua determinado a desenvolver uma fórmula farmacêutica para conquistar o amor de Mona. Porém, em tal época, esse projeto revela-se um tanto quanto perigoso, já que os limites entre a farmácia e a bruxaria eram tênues. Seus experimentos acabam revelando-se desastrosos: as prostitutas em que experimentava seus fármacos acabam envenenadas ou loucas. Por isso, com o passar do tempo, acaba sendo visto como feiticeiro e endemoniado. Para dissipar tal fama, Mateo decide viajar para a Grécia, acreditando que na terra de Mona Sofia poderá encontrar as ervas adequadas para o seu intento, fracassa mais uma vez. De volta à Pádua, descobre que seus serviços estavam sendo solicitados por uma viúva doente que residia em um monastério em Pádua, Inês de Torremolinos. Inês é uma viúva jovem, mãe de três filhas. Após a morte do marido decide usar a herança para construir um monastério, dedicando sua vida à criação das filhas e à caridade. Mulher casta, nunca teve desejo ou prazer com o marido. No verão de 1558, padecia de uma enfermidade desconhecida, sofrendo de insônia, sufocamento, suores frios e vertigens que a faziam definhar em seu leito. O anatomista encontra a enferma exânime e inconsciente. Após examiná-la, Mateo descobre uma protuberância estranha em seus genitais, o que o faz pensar, a princípio, tratarse de um caso de hermafroditismo. Acreditando poder ser aquela a causa da enfermidade, Mateo põe-se a massagear a protuberância. Apesar de seus protestos, o corpo de Inês começa a responder com lascívia. Esse “tratamento” foi administrado por dez dias, fazendo com que a paciente se restabelecesse por completo. À medida que Inês ia melhorando, Mateo nota que a afeição desta por ele começa a crescer e o pequeno órgão que se destaca dos seus genitais começa a diminuir. Intrigado com esse detalhe da anatomia, Mateo acredita ter encerrado ali a sua busca: tal órgão era o responsável não apenas pelo sofrimento da doente, mas também pelo amor que acabava de surgir. Acreditando ter feito um nova descoberta anatômica, batiza o órgão de Amor Veneris (Amor de Vênus): a fonte do amor e do prazer feminino. De volta a Pádua, Mateo decide expandir seus estudos examinando o corpo de outras mulheres, onde obtém os mesmos resultados. Exultante, o anatomista decide registrar sua descoberta numa obra: De re anatomica, onde relata todas as questões anatômicas e filosóficas que envolvem o órgão, como a crença de que o Amor Veneris é a

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prova da inexistência da alma nas mulheres. Então, no dia 16 de março de 1558, dando seu livro por encerrado, Mateo o entrega ao reitor da Universidade que, quatro dias depois, o denuncia à Santa Inquisição por heresia, blasfêmia, bruxaria e satanismo. Em seu julgamento, três testemunhas confirmam as acusações de satanismo e bruxaria, entre elas, duas mulheres que foram cobaias de seus experimentos. O próprio reitor encarrega-se das acusações: ele afirma que o anatomista cometeu perjúrio pois faltou com o seu juramento profissional; cometeu satanismo e bruxaria reiterando as declarações das testemunhas e, acrescenta ainda que, ao afirmar que o Amor Veneris governa a vontade, o amor e o prazer das mulheres ele estaria colocando Deus e o Diabo no mesmo patamar; termina dizendo que a descoberta anatômica já havia sido descrita anteriormente. Em sua defesa Mateo põe-se a explicar cada acusação que lhe foi feita pelas testemunhas, declarando que seus atos não passaram de experimentos científicos. Já sobre a sua obra, o anatomista faz uma descrição minuciosa de funcionamento do Amor Veneris. Ele afirma que esse órgão teria funções análogas as da alma nos homens, ou seja dele provém as paixões e todo o proceder feminino, sendo assim, as mulheres seriam desprovidas de alma. Ele ainda acredita que, ao contrário do que se supunha antes, não é o útero o responsável pelos males femininos, e sim o Amor Veneris. Segundo Mateo, sua descoberta está plenamente de acordo com a crença cristã e que o estudo do corpo humano é apenas a confirmação das Sagradas Escrituras. Mateo acaba escapando da condenação pois é chamado para cuidar da saúde do papa Paulo III. Porém, o tribunal decide censurar sua obra e proíbe o anatomista de divulgar o seu achado. Chegando à Roma Mateo encontra o papa com a saúde extremamente debilitada. Contudo, o tratamento implantado pelo anatomista surte efeito e ele acaba ganhando a confiança do papa. Decide então pedir à Sua Santidade que interceda em seu favor, o que lhe é negado. Pouco tempo depois o papa falece e, contrariando as expectativas de Mateo, quem assume seu lugar é o cardeal Caraffa, um dos juizes do seu processo. Findado seus dias de glória no Vaticano, Mateo dirige-se à Veneza com o intuito de encontrar Mona Sofia e, fazendo uso da sua descoberta, conquistá-la definitivamente. Em Florença, chega à Inês uma carta enviada por Mateo relatando as acusações do Santo Ofício, não sabendo do desfecho da história, Inês acredita que seu amado está morto. Desesperada, decide “extirpar” o amor do seu corpo, assim o faz também com as filhas. Inês termina os seus dias de mulher casta e funda uma das casas de prostituição mais conhecida da Itália. Acaba queimada na fogueira acusada de bruxaria. Em Veneza, Mateo encontra Mona consumida pela sífilis, mesmo assim, põe-se a acariciar o Amor Veneris na esperança de conquistar o amor da cortesã. Porém, mais uma vez, ela lhe reserva uma frase de desprezo, a última: “teu tempo acabou”.

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A CIÊNCIA De acordo com Mousnier (1995), a época denominada Renascimento não possui uma demarcação muito clara do seu início, variando de historiador para historiador. Isto porque esse período é definido não por um acontecimento histórico bem delimitado, e sim por um conjunto de idéias, concepções filosóficas e teorias políticas que faziam a transição da Idade Média para o mundo moderno. Esse período representa uma mudança de mentalidade, uma retomada dos ideais humanistas da antiguidade, esquecidos durante a Idade Média. O homem volta-se para a ciência determinado a descobrir o mundo e a si mesmo. Apesar disso, ainda predomina o pensamento místico, o pensamento naturalista baseado no aristotelismo, além do forte domínio da Igreja Católica. A ciência constantemente encontra entraves no catolicismo: as universidades são dominadas pela Igreja que enxerga as descobertas como ameaçadoras à fé. Ao seu serviço, a Igreja, conta com o Santo Ofício que tem como propósito perseguir todos os transgressores da doutrina católica (MOUSNIER, 1995). É nesse contexto histórico que Mateo Colombo descobre o Amor Veneris. Professor de anatomia e cirurgia da Universidade de Pádua, Mateo tem que driblar as proibições da Igreja para fazer seus estudos: conseguir corpos de fontes duvidosas, já que a bula papal de Bonifácio VIII proibiu a dissecação de cadáveres; fazer uso de ervas às escondidas correndo o risco de ser encarado como bruxo; aliar suas descobertas às Santas Escrituras. Mateo, apesar de anatomista de renome na Itália, também recorria à visão Aristotélica de caráter metafísico predominante em sua época. Em sua defesa frente à Inquisição, o anatomista usa Aristóteles para embasar seu raciocínio: Ele [Aristóteles] afirma, em sua metafísica, que a união dos sexos torna possível a reprodução da seguinte maneira: o sêmen é o que dá ao ser em formação a identidade, a essência e a idéia, enquanto a mulher fornece unicamente a matéria do futuro ser, ou seja, o corpo. E diz o grande Aristóteles que o sêmen não é um fluido material, e sim inteiramente metafísico. Como ensinou Mestre Aristóteles, o esperma do homem é a essência, é a potencialidade essencial que transmite a virtualidade formal do futuro ser. O homem leva no sêmen a anima, a forma, a identidade, que faz da coisa matéria viva. O homem, enfim, é quem dá alma à coisa. O sêmen tem o movimento que o progenitor lhe imprime, é a execução de uma idéia que corresponde à forma do pai, sem que isso implique transmissão de matéria por parte do homem. Em condições ideais, o futuro ser tenderá à identidade completa com o pai [...] (ANDAHAZI, 2005, p.156-157)

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Priore (2008), afirma que tal concepção aristotélica era adotada pela medicina vigente. Segundo ela, o estudo biológico da mulher ultrapassava os limites da ciência, estando sempre associado a um caráter moral e metafísico. Aliando ciência e religião, os médicos da época enxergavam a mulher como um solo fértil criado por Deus que deveria ser fecundado pelo homem, comungando com a Igreja sobre a inferioridade feminina. Os estudos anatômicos do período procuravam definir um padrão de normalidade para o funcionamento biológico feminino, as lacunas que a ciência não dava conta eram preenchidas com crenças religiosas e místicas. Temos como exemplo a visão que se tinha do útero, ou madre: a mulher que contrariasse seu destino de reprodutora poderia padecer de toda sorte de enfermidades desde a loucura até a ninfomania, oriundas dessa parte da anatomia da mulher. Tais enfermidades tinham íntima conexão com uma influência demoníaca sobre o corpo feminino, já que este era mais susceptível à ação do Diabo. Mateo Colombo não se afasta de tal raciocínio. Porém, a partir do descobrimento o Amor Veneris, atribui a ele algumas características da madre: muitas vezes a doença produzida pela acumulação de fluidos cinéticos poder ser facilmente confundida com a possessão demoníaca; e, de fato, se algum lugar do corpo é escolhido pelo diabo para fazer sua morada, não duvideis que tal ponto é o Amor Veneris. Os antigos gregos acreditaram situar-se no útero a origem de toda espécie de males; de minha parte, estou certo de que tais doenças não têm outra fonte senão o órgão que me foi dado descobrir. (ANDAHAZI, 2005, p. 166)

Não era apenas o útero que exercia influência nefasta sob o corpo feminino, sua menstruação podia representar uma ameaça não apenas a si, mas poderia também estragar o leite, a colheita, o vinho e os metais. Apesar disso, era comum que o sangue fosse utilizado em fórmulas curativas. As superstições que giravam em torno do sangue catamenial eram endossadas pela medicina: o sangue era tido como um veneno poderoso que, quando ingerido, era capaz de matar ou enlouquecer uma pessoa (PRIORE, 2005). Outro ponto que chama a atenção na obra é a percepção do corpo feminino a partir da anatomia masculina. Durante a narrativa de sua descoberta em seu diário, Mateo explicita o pensamento corrente em sua época onde o corpo feminino é compreendido a partir da comparação com o masculino: “esse pênis feminino parece concentrar em si toda manifestação do prazer sexual [...] esse órgão se levanta e decai como uma vara antes e depois da cópula ou da esfregação” (ANDAHAZI, 2005, p. 118-119). De acordo com Barthélemy et. al. (1990), essa percepção era típica da Renascença, onde o corpo feminino era concebido como o reflexo do corpo de Adão, do

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corpo do homem: os órgãos sexuais eram considerados como de mesma estrutura, porém eram revirados, introvertidos e mais secretos, e por isso, eram vistos com suspeita. A IGREJA A Igreja Católica exercia forte repressão sobre a sexualidade feminina. Na visão da Igreja, a mulher deveria pagar eternamente pelo erro de Eva: “[...] não foi Adão quem foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão. Entretanto, ela será salva pela sua maternidade, desde que, com modéstia, permaneça na fé, no amor e na santidade” (TARSO apud ARAÚJO, 2008). A mulher, pela ótica da Igreja, era vista como um animal imperfeito, impuro, susceptível, por natureza, à influências demoníacas (ARAÚJO, 2008). Partindo desse pressuposto, é compreensível que Mateo afirme que a mulher não era dotada de alma: ao contrário do homem, ela é regida apenas pelo corpo, pelo Amor Veneris. Tal afirmação não foi refutada pelo tribunal do Santo Ofício, pelo contrário, o descobrimento de Mateo responde a todas as inquietações da Igreja em relação ao proceder feminino. Governada por seu corpo, a mulher era tida como pecadora e sedutora, por isso, as suspeitas da Igreja em relação à esta eram frequentes. Tais suspeitas refletem-se em sua constante perseguição às “bruxas” através do Santo Ofício (ARAÚJO, 2008). O livro de Andahazi retrata essa perseguição. A personagem Inês de Torremolinos, que no início da história era casta e temente à Deus, em seu desfecho termina queimada na fogueira acusada de bruxaria. Entre as provas de acusação está o livro Missa Negra, no qual Inês, entre outras coisas, blasfemava e descrevia rituais pagãos. Entretanto, não era difícil uma mulher ser acusada de bruxaria. Andahazi traz um trecho do Catálogos sobre harpias e feiticeiras, muito utilizado na época para o reconhecimento de uma bruxa, que demonstra que, para ser considerada feiticeira basta ser uma mulher considerada de conduta duvidosa. E por conduta duvidosa entende-se: ‘A que faz mal a outra; a que te iniciativa daninha; a que olha de esguelha; a que olha de frente com descaro; a que sai à noite; a que cabeceia de dia; a que anda com ânimo triste; a que ri em excesso; a dissipada; a devota; a espantadiça; a valente e grave; a que se confessa com freqüência; a que jamais se confessa; a que se defende; a que acusa com o dedo em riste; as que têm conhecimento de fatos longínquos; as que conhecem os segredos da ciência e das artes; as que falam diversidade de idiomas’ (ANDAHAZI, 2005, p.208-209)

Vainfas (2008) também afirma que os “critérios” dos inquisidores eram extremamente subjetivos. Poderia ser julgado quem cometesse adultério conjugal, pecasse contra a castidade,

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casasse na Igreja com o primeiro cônjuge vivo, praticasse sodomia, ou tivesse qualquer comportamento que pudesse ser visto como um desvio moral, familiar ou sexual. A SEXUALIDADE FEMININA Segundo Barthélemy et. al. (1997), a idéia difundida durante a Renascença de que a mulher era fonte de perigos fazia com que esta fosse constantemente vigiada. A mulher deveria ser retirada do convívio social, sendo governada do princípio ao fim da sua vida pelos homens. Araújo (2008) afirma que nesse período era comum dizer que a mulher só deveria ser retirada de casa em três ocasiões: para ser batizada, para se casar e para ser enterrada. Inês, retratada no início do livro, representa esta mulher descrita pelos autores. A personagem teve seu casamento arranjado com um homem pelo qual nunca sentiu desejo, obedecendo a vontade de seu pai. Na verdade, Inês nunca sentiu desejo ou prazer até conhecer Mateo. Araújo (2008) afirma que, segundo a Igreja, esse deveria ser o proceder de uma mulher casta. O autor traz uma lista de questionamentos utilizados pela Igreja para conduzir a confissão: “se falou palavras torpes com ânimo lascivo. Se se ornou com ânimo de provocar a outrem a luxúria em comum ou particular. Se fez jogos de abraços e outros semelhantes” (p. 51). Duby (1997) também nos fala sobre as restrições da Igreja em relação à sexualidade: a sodomia e posturas inconvenientes eram consideradas pecado mortal, o sexo era proibido na Quaresma e em períodos de penitência. Inês só descobre os prazeres do sexo ao receber a terapêutica de Mateo. Apesar do comportamento recatado e pudoroso adotado no seu dia-a-dia, ao receber as massagens do anatomista em seu Amor Veneris “parecia abrir passagem em seu corpo um espírito diabólico ilimitado, que arrasava a barreira do pudor e só se retirava quando chegava ao êxtase” (ANDAHAZI, 2005, p.116) Araújo (2008) nos relata que as mulheres que, assim como a personagem, encontravam outros caminhos fora do casamento para descobrir sua sexualidade. Era comum que as meninas solteiras fizessem brincadeiras e confidências sexuais com escravas, primas, irmãs e amigas. As mulheres casadas também encontravam formas alternativas de garantir a sua sexualidade: o adultério e a homossexualidade. Tais condutas apresentavam seus riscos: a lei permitia que a mulher adúltera fosse assassinada por seu marido e a Igreja poderia punir as lésbicas queimando-as na fogueira.

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CONCLUSÃO Apesar dos avanços que contemplamos na contemporaneidade quando se trata da sexualidade feminina, encontramos ainda alguns elementos em nossa sociedade que remetem às representações sociais da mulher na Renascença. O corpo feminino, por exemplo, apesar dos avanços científicos, por vezes é cercado por uma série de superstições, principalmente quando se trata de gestação e menstruação. A influência da Igreja ainda persiste e representa um entrave para que a mulher exerça sua sexualidade e potencialidade de maneira plena, já que esta alimentou e continua alimentando a inferioridade da mulher em nossa cultura. Isto tudo só prova que Mateo Colombo estava errado: não é o Amor Veneris que governa as mulheres, nós, infelizmente, ainda somos governadas por um atraso secular que nos tolhe, paralisa e silencia: o machismo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDAHAZI, Federico. O Anatomista. Porto Alegre: L&PM, 2005. ARAÚJO, Emanuel. A arte da sedução: sexualidade feminina a colônia. In: PRIORE, Mary Del (org). História das Mulheres no Brasil. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2008. BARTHÉLEMY, Dominique; CONTAMINE, Philippe; DUBY, Georges; BRAUNSTEIN, Philippe. Problemas. In: DUBY, Georges (org). História da vida privada: da Europa feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. DUBY, George. Quadros. In: DUBY, Georges (org). História da vida privada: da Europa feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. MOUSNIER, Roland. História geral das civilizações: os séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. v. 15.

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PRIORE, Mary Del. Magia e medicina na colônia: o corpo feminino. In: PRIORE, Mary Del (org). História das Mulheres no Brasil. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2008. SÁ, Celso Pereira de. Núcleo Central das Representações Sociais. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. VAINFAS, Ronaldo. Homoerotismo feminino e o Santo Ofício. In: PRIORE, Mary Del (org). História das Mulheres no Brasil. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2008.

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