Um panorama geral sobre as audiências no novo CPC brasileiro

July 3, 2017 | Autor: Klaus Koplin | Categoria: Novo Código De Processo Civil Brasileiro, Novo CPC
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UM PANORAMA GERAL DAS AUDIENCIAS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO

Klaus Cohen Koplin1

O novo Código de Processo Civil brasileiro (Lei nº 13.105/2015, ainda em período de vacância) representa mais um capítulo no longo e tortuoso processo de concretização do sistema da oralidade2 em nosso País3. Não há dúvida de que o tema das audiências se apresenta no novo Código de uma maneira bastante diferente daquela proposta no Código Modelo para a Ibero-américa, proposto pelo Instituto Ibero-americano de Direito processual (IIDP). É difícil dizer se estamos na contramão ou na vanguarda do restante dos países da América Latina e da Península Ibérica. A verdade é que a audiência preliminar prevista no art. 331 do CPC de 1973 jamais funcionou em nosso País, pois nunca conseguiu se enrizar na mentalidade dos juízes (assoberbados pelo número excessivo de processos e tradicionalmente destituídos das habilidades técnicas necessárias à realização eficaz da

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Bacharel e Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor de direito processual civil na Faculdade de Direito da UFRGS, no Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) e na Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Advogado sócio do escritório Freitas Macedo Advogados Associados. E-mail: [email protected]. 2 MAURO CAPPELLETTI, La testimonianza della parte nel sistema dell’oralità, Milano : Giuffrè, 2 vols., 1974. 3 De fato, na esteira do modelo processual civil austríaco e alemão, já o CPC de 1939 havia proposto a adoção, no Brasil, dos princípios da oralidade e da concentração (vídeo texto da Exposição de Motivos aposta ao Decreto-Lei nº 1.608/1939, que promulgou o CPC de 1939). Por outro lado, o CPC de 1973, em sua versão original, procurou mitigar os rigores com que o Código anterior aplicava os princípios da oralidade e da identidade física do juiz, adaptando-os à realidade nacional (cfr. itens nº 4 e 13 da Exposição de Motivos do CPC de 1973). O tema da oralidade foi novamente disciplinado pelas Leis nº 8.952/1994 e 10.444/2002, que reelaboraram sucessivamente o art. 331 do CPC de 1973, como se verá mais adiante. Para um estudo do assunto, vide JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, “O processo civil brasileiro e o procedimento por audiências”, Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, nº 8, pp. 203213, disponível em: http://www.ablj.org.br/revistas/revista8/revista8%20%20JOS%C3%89%20CARLOS%20BARBO SA%20MOREIRA%20%20O%20Processo%20Civil%20brasileiro%20e%20o%20Procedimento%20por%20Audi%C3 %AAncias.pdf, acesso em 07.09.2015.

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conciliação) e dos advogados (acostumados com um modelo demasiadamente antagonista de atuação).4 No contexto de um certo deslumbramento com os meios alternativos de resolução de conflitos (ADRs) em voga no Brasil, o novo Código impõe a realização de uma primeira audiência, dedicada exclusivamente à conciliação ou de mediação (“audiência de conciliação ou mediação”, art. 334), conforme o caso (art. 165). A audiência somente não será realizada se ambas as partes a dispensarem (note-se que não basta a manifestação de apenas uma delas5) ou se o direito em discussão não admitir autocomposição (art. 334, § 4º). A essa audiência, devem obrigatoriamente comparecer ambas as partes ou seus representantes com poderes específicos para negociar e transigir (art. 334, § 10), sendo acompanhadas por seus advogados ou defensores públicos (art. 334, § 9º). O litigante que deixar de comparecer injustificadamente a ela será sancionado com multa de até 2% sobre a vantagem econômica pretendida

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Em visão retrospectiva, recorda-se que o CPC de 1973, na tradição do direito anterior, previa que o saneamento e a concentração da causa deveriam ocorrer por meio de decisão escrita, conhecida como “despacho saneador”. A Lei nº 8.952/1994, seguindo a experiência em voga primeiramente na Áustria e depois na Alemanha, inovou, prevendo a realização de uma “audiência de conciliação” (posteriormente rebatizada como “audiência preliminar”, pela Lei nº 10.444/2002, na tradição do Código Modelo), para a qual deveriam as partes serem intimadas a comparecer. Caso não fosse obtida a autocomposição, deveria o juiz fixar os pontos controvertidos, decidir as questões processuais pendentes e determinar as provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento, se necessário, conforme dispunha o § 2º desse artigo. A Lei nº 10.444/2002, curvando-se ao peso avassalador da realidade, acrescentou ao artigo em questão o § 3º, dispondo que “se o direito em litígio não admitir transação, ou se as circunstâncias da causa evidenciarem ser improvável sua obtenção, o juiz poderá, desde logo, sanear o processo e ordenar a produção da prova, nos termos do § 2 o”, ou seja, por meio de uma decisão (“despacho”) escrita. Assim, a designação dessa audiência passou a ser exceção, dando novamente lugar ao velho despacho saneador. Para um diagnóstico mais profundo a respeito dos motivos que ensejaram o fracasso dessa audiência preliminar na vigência do CPC de 1973, ver JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, O processo civil brasileiro e o procedimento por audiências, cit., pp. 206-208, disponível em: http://www.ablj.org.br/revistas/revista8/revista8%20%20JOS%C3%89%20CARLOS%20BARBO SA%20MOREIRA%20%20O%20Processo%20Civil%20brasileiro%20e%20o%20Procedimento%20por%20Audi%C3 %AAncias.pdf, acesso em 07.09.2015. 5 A princípio, o autor deverá indicar na petição inicial o seu desinteresse pela autocomposição (art. 319, VII), ao passo que o réu deverá fazê-lo com 10 dias de antecedência, contados da data da audiência (art. 334, § 5º). Havendo litisconsórcio, a manifestação do desinteresse na realização da audiência em questão, para surtir efeitos, deverá ser formalizada por todos os litisconsortes (art. 334, § 6º). Segundo sugerem Marinoni, Aenhart e Mitidiero, o legislador aposta em que o conciliador ou o mediador poderão vencer a resistência da parte que não deseja o acordo em audiência (LUIZ GUILHERME MARINONI; SÉRGIO CRUZ ARENHART; DANIEL MITIDIERO, Novo Código de Processo Civil comentado, São Paulo : RT, 2015, p. 356).

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ou sobre o valor da causa, em favor da União do Estado, por ato atentatório à dignidade da justiça (art. 334, § 8º). A audiência em questão poderá ser realizada por meio eletrônico (art. 334, § 7º) e poderá ser desdobrada em mais de uma sessão, observado o intervalo máximo de 2 meses previsto no § 2º do art. 334. Tal audiência deverá ser designada pelo juiz (art. 334, caput) e poderá ser conduzida, ao que tudo indica, em conformidade com as regras a serem editadas futuramente pelos tribunais, por conciliador ou mediador habilitado (art. 334, § 1º). Como o Código não deixa claro o papel do juiz nessa audiência, fica-se em dúvida quanto à aplicação do princípio da imediação, já que ela poderia ser conduzida apenas pelo conciliador ou pelo mediador sem a presença do órgão judicial. Importante acentuar que essa audiência não se destina à apresentação da contestação (que deverá ser protocolada em até 15 depois de sua realização, como regra geral, segundo o art. 335), nem, em princípio, à fixação dos pontos controvertidos, à admissão da prova e ao saneamento do processo. Tudo isso será feito, normalmente, por decisão escrito do juiz (art. 357, caput), ressuscitando o velho “despacho saneador” do direito luso-brasileiro. Diante do que propõe o Código Modelo e alguns dos Códigos Latino-americanos, como o Código General del Proceso uruguaio6 ou o recente Código Orgánico General de Procesos do Equador, fica-se com a impressão de que o novo sistema brasileiro representa um grave retrocesso. Esse “despacho” somente não será escrito se a causa apresentar complexidade em matéria de fato ou de direito, deverá o juiz designar nova audiência para que o saneamento seja feito em cooperação com as partes (“audiência de saneamento compartilhado”, art. 357, § 3º). Nessa mesma oportunidade, segundo o princípio geral da cooperação (art. 6º), ou juiz convidará as partes a esclarecer ou integrar suas alegações (deveres de esclarecimento e prevenção). Ademais, poderão as partes nessa

Ver, por todos, SANTIAGO PEREIRA CAMPOS, “El processo civil ordinario por audiencias: la experiencia uruguaya a 20 años de la reforma”, in SANTIAGO PEREIRA CAMPOS (org.), Modernización de la justicia civil, Montevideo : Universidad de Montevideo, 2011, pp. 655-690. 6

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mesma audiência (ou fora dela), apresentar ao juiz, para homologação, delimitação consensual das questões de fato e de direito que seriam objeto da decisão de saneamento, sendo essa delimitação, uma vez homologada, vinculante para as partes e para o juiz (art. 357, § 2º). Essa regra constitui projeção da abertura do NCPC ao autorregramento da vontade no processo civil (art. 190) e poderá implicar importantes limitações ao princípio iura novit curia, até então imperante no direito brasileiro. Ademais, caso seja necessário, o juiz deve designar uma audiência complementar (“audiência de instrução e julgamento”, art. 357, V), destinada sobretudo à produção da prova oral, aos debates orais e ao julgamento da causa (art. 358). A doutrina assinala, ainda, a possibilidade designação de uma audiência específica para que o juiz estabeleça, em conjunto com as partes, calendário para a prática dos atos processuais em geral (art. 191) ou apenas dos atos relativos à produção da prova pericial (art. 357, § 8º), segundo o espírito do gerenciamento de processos judiciais (“case management”) praticado em vários países europeus (como Inglaterra e País de Gales, França, Portugal e Itália) e nos Estados Unidos da América. No plano da tutela provisória de urgência (novo rótulo conferido às antigas tutelas antecipada e cautelar), possibilita o art. 300, § 2º a realização da justificação prévia, no interesse do autor, a fim de lhe permitir demonstrar, normalmente por meio da oitiva de testemunhas em audiência específica (que não se confunde, a princípio, com a audiências de conciliação e mediação e de instrução e julgamento), os requisitos necessários à concessão da medida urgente. No âmbito dos procedimentos especiais, estabelece o novo Código a designação de “audiência de justificação” prévia nas ações possessórias (562), para o efeito de oportunizar ao autor a demonstração dos requisitos necessários à concessão da liminar (art. 561), por meio da oitiva de testemunhas. Além disso, o novo Código prevê a realização de uma “audiência de mediação”, a ser designada em caso de litígio coletivo pela posse de imóvel, antes da apreciação do pedido de liminar, quando o esbulho ou turbação 4

afirmado na inicial houver ocorrido há mais de ano e dia (565). O novo Código prevê, ainda, a possibilidade de participação dos órgãos de política urbana da União, do Estado, do Distrito Federal ou do Município (art. 565, § 4º), mediante intimação específica. Isso porque, frequentemente, o conflito possessório esconde uma discussão mais ampla envolvendo políticas públicas e o direito à moradia de camadas sociais menos favorecidas. Ademais, existem regras específicas para “audiência de mediação e conciliação” nas ações de família. Nesses casos, o sistema prioriza a solução consensual do conflito, devendo o juiz dispor do auxílio de profissionais de outras áreas de conhecimento para a realização da mediação e da conciliação (que poderão até mesmo ser extrajudiciais), inclusive com possibilidade de suspensão do processo para isso (art. 694). O réu será citado para comparecer a essa audiência, sem cópia da inicial (art. 695, § 1º). As partes deverão estar acompanhadas de seus advogados ou defensores públicos (art. 695, § 4º). A audiência de mediação e conciliação poderá ser dividida em várias sessões, a fim de viabilizar a solução consensual do conflito (art. 696), não se aplicando o prazo para conclusão previsto no art. 334, § 2º. Por tudo isso, parece que o novo CPC brasileiro complicou demasiadamente o assunto das audiências, em comparação com o que propõe o Código Modelo e com o que se encontra disciplinado em legislações como as do Uruguai e do Equador. Existem sérias suspeitas de que, na prática, a audiência de conciliação ou de mediação possa acabar se transformando em mera formalidade. Somente o futuro dirá se essa ferramenta realmente funcionará ou se receberá o mesmo destino da audiência preliminar do CPC de 1973: transformar-se em letra morta ou, quando muito, em algo de ocorrência bastante excepcional.

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