Um passado romano para um presente capitalista: A Economia Romana em dois séculos de História Econômica

June 2, 2017 | Autor: José Knust | Categoria: Economic History, Roman Economy, Apropriation (History), Historia Economica, Economia Romana
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Um passado romano para um presente capitalista: A Economia Romana em dois séculos de História Econômica 1

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odas as comunidades e sociedades forjam na 2 construção da sua identidade uma Cultura Histórica , na qual mitos de origem exercem um papel fundamental. A (assim reivindicada) Civilização Ocidental contemporânea não é exceção à regra – e em sua construção de mitos de origem, o mundo greco-romano desempenhou um papel fundamental. A relação entre esta visão da História Romana como parte constituinte das origens da sociedade moderna e a produção de análises históricas sobre a sociedade romana desde a profissionalização do ofício historiográfico no século XIX é tema de estudos bastante interessantes, e é dentro desta seara que o presente artigo busca se inserir. Pretendo discutir como a História Econômica feita nos últimos séculos sobre o “período romano” da “história ocidental” se transformou em paralelo com o desenvolvimento de diferentes percepções sobre o mundo contemporâneo, e o papel que a História Romana desempenhou nestas percepções. Escolho a História Econômica porque acredito que ela exerce um papel bastante particular e fundamental na construção da Cultura Histórica em nossa sociedade, por esta ser, acima de tudo, uma sociedade marcada pelo desenvolvimento do Capitalismo. Como toda reflexão, esta precisa definir seus objetivos e limites. Não serei exaustivo na análise de produções historiográficas dentro do recorte temporal que defino (meados do século XIX até os dias atuais). Tomo como ponto de partida outro mito de origem (desta vez da própria área dos estudos sobre a Economia Antiga), o debate oitocentista entre Primitivistas e Modernistas ocorrido na Alemanha. Em seguida, me volto para os desenvolvimentos a partir da década de 70 na historiografia anglo-saxã, em especial seus últimos quinze anos. Mesmo dentro destes recortes, não serei exaustivo. A partir de alguns exemplos que considero significativos – e que muitas vezes terão um tratamento 1

Uma versão preliminar deste texto foi apresentado no Colóquio Internacional “O Império Romano e suas províncias – a integração e seus limites”, realizado nos dias 28 e 29 de março de 2012 no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Agradeço aos organizadores Carlos Augusto Machado e Fábio Duate Joly pelo convite e pela oportunidade de expor estas minhas ideias. Agradeço também a Sônia Regina Rebel de Araújo, Paulo Henrique Pachá, Fábio Afonso Frizzo e Thiago Nascimento Krause, que leram, comentaram e fizeram importantes sugestões e correções ao texto. *Doutorando no PPGH-UFF e bolsista do CNPq. Membro do NiepPréK/UFF. E-mail: [email protected]. 2 Utilizo neste texto os conceitos de Cultura Histórica e Orientação Histórica como propostos por RÜSEN, Jorn. History: Narration, Interpretation, Orientation. Berghahn Books, 2005.

José Ernesto Moura Knust* que poderá ser acusado de superficial – pretendo refletir sobre aspectos políticos de algumas posturas metodológicas. Isto é, mais do que um estudo historiográfico exaustivo este artigo tem em seu cerne uma pretensão crítica. Visões do Capitalismo, Visões da Economia Romana Símbolo da importância da História Econômica para a Cultura Histórica de nossa sociedade é o fato de a própria construção deste objeto específico da historiografia ter se realizado no contexto da emergência do Capitalismo na Europa Ocidental – quando o próprio significado da palavra Economia começou a ganhar os 3 contornos pelos quais o reconhecemos hoje. Podemos dizer que, assim como o Imperialismo, a Teoria e História Econômicas são filhas do Capitalismo. Os primeiros nomes da Economia Clássica já esboçavam ideias gerais de uma História Econômica, mas foram os economistas da Escola Histórica Alemã, no século XIX, os responsáveis pelo desenvolvimento das primeiras grandes narrativas sobre o desenvolvimento 4 econômico na História. Diante do impacto da expansão econômica capitalista, economistas como Rodbertus e Bücher desenvolveram uma visão evolucionista sobre o desenvolvimento econômico, dividindo-o em estágios históricos específicos. O mundo Greco-Romano faria parte de um estágio inicial, nomeado Economia Doméstica, caracterizado por uma economia primitiva, baseada na produção de subsistência e centrada no Oikos, unidade familiar de produção e consumo. Este estágio seria seguido por outros dois estágios, o da Economia da Cidade medieval e a Economia Nacional da época industrial. O presente capitalista tornava-se, assim, o cume de um milenar processo de desenvolvimento histórico da sociedade humana. Com esta grande narrativa, a Escola alemã unificava o ideal de progresso iluminista, o evolucionismo social eurocêntrico, e a apologia do capitalismo.

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FINLEY, Moses. A Economia Antiga. Porto: Afrontamento, 1981, p.19-24. 4 A análise sobre o debate primitivismo - modernismo que desenvolverei aqui segue de perto as análises propostas por BANG, Peter Fibiger. “Antiquity between "Primitivism" and "Modernism"”, Workpaper 53-97, Centre for Cultural Resarch, University of Aarhus, 1997, (www.hum.au.dk/ckulturf/pages/publications/pfb/antiquity.htm acessado em 30/03/2012) e SCHIAVONE, Aldo. Uma História Rompida. Roma Antiga e o Ocidente Moderno. São Paulo: Edusp, 2005, p. 75-84.

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Neste esquema evolucionista, o passado romano reconstruído pelos economistas alemães para seu presente capitalista era primitivo: sua economia era caracterizada a partir da inexistência de elementos presentes no capitalismo. O passado romano desenhado pelos teóricos alemães era uma terra estrangeira para o capitalismo contemporâneo, servia como sua antítese na construção de uma Orientação Histórica apologética ao capitalismo. Contudo, existia um limite importante para essa visão da Economia Romana. A caracterização primitivista engendrada pela teoria alemã dos estágios econômicos era incongruente com o papel de mito de origem que o mundo Greco-Romano exercia na Cultura Histórica ocidental. Classicistas alemães, em especial o helenista Eduard Meyer, empreenderam uma espécie de “defesa do mundo antigo” frente a tal “primitivização”. Eles pretendiam a construção de outro passado Grecoromano para o presente capitalista – um passado mais moderno, mais capitalista, pois afinal de contas seria impossível que a excelsa civilização ocidental tivesse nascido em outro berço que não o do dinamismo capitalista. Para o mundo romano, a construção modernizante foi empreendida com bastante êxito por Michail Rostovtzeff. A partir de um importante trabalho de utilização de tipos de fontes até então ignoradas, o historiador russo reconstruiu um passado romano cuja vitalidade econômica se assemelhava em muitos aspectos ao presente capitalista, com burgueses empreendedores enriquecidos desempenhando importante papel nos momentos de maior dinamismo da História Romana, em 5 especial entre o final da República e o início do Império. Por sua vez, portanto, os modernistas associavam a mitificação do mundo Greco-romano com a apologia do capitalismo. E assim surgiu a famosa querela entre primitivistas e modernistas acerca da caracterização da Economia Antiga, tão marcante na Historiografia Econômica sobre o Mundo Romano – mas presente em formas similares nos debates sobre a caracterização de praticamente todas as economias pré-capitalistas, do Egito Antigo à Europa Medieval.6 O elemento central destes debates entre primitivistas e modernistas – e aqui o caso romano é talvez o mais significativo, mas não único – é a contraposição entre o presente capitalista e o passado que se pretende construir. Identificar nossa realidade econômica como o ponto mais avançado de uma linha evolutiva ou como um aspecto imutável da natureza humana (ou ao menos presente em suas formações sociais mais notáveis na história) – este é o dilema de fundo na querela entre primitivistas e modernistas. Pode-se dizer que este primeiro round do debate entre primitivistas e modernistas teve como vencedor o lado modernista. Entre o final do século XIX e a década de 60 do século passado, a visão modernista dominou os

estudos sobre a economia antiga – talvez por apresentar uma visão mais convergente com a visão geral que se tinha sobre o mundo Greco-romano, ou talvez por lidar melhor com as fontes históricas, abundantes no que pareciam exemplos de trocas comerciais e produções mercantilizadas.7 A partir da década de 60, porém, Moses Finley iniciou uma releitura da história econômica grecoromana crítica ao modernismo, que visava recuperar muitos dos aspectos do primitivismo, especialmente do conceito de Oikos proposto por Karl Bücher. Influenciado também por Karl Polanyi e Max Weber, Finley afirmava que os antigos não possuíam uma economia autônoma da sociedade e que a cidade antiga era essencialmente um centro de consumo e não de produção.8 Como muito bem aponta Peter Bang, as teses de Finley surgiam no contexto do choque pós-colonial, um período no qual ideias críticas ao Ocidente capitalista ganharam força. Nesta época, os povos não-europeus, que durante o período áureo do imperialismo neocolonialista haviam sido repetidamente taxados de primitivos, atrasados e bárbaros, passaram a ser analisados de maneira mais positiva e os estudos antropológicos sobre esses povos ganharam maior influência.9 Caracterizar as sociedades fundadoras do mundo ocidental, Grécia e Roma, a partir de insights produzidos por esses estudos deixou de ser algo tão assombroso ou reprovável dentro do senso comum historiográfico e as teses de Finley tiveram amplo espaço para circulação. A partir da influência da obra de Finley, o modernismo perdeu muito espaço na História Econômica dedicada ao mundo antigo. Os historiadores da área passaram a ter mais atenção quanto à necessidade de criar modelos explicativos que fugissem de uma simples comparação quantitativa entre o passado romano e o presente capitalista. “Por que voltar mais uma vez a este cansado e envelhecido debate?”, podem estar se perguntando alguns leitores a esta altura do texto. É uma pergunta pertinente. Propala-se aos quatro ventos que este é um debate superado (ou ao menos que se deveria superar), e que os elementos primitivistas ou modernistas cederam (ou deveriam ceder) lugar a novas abordagens. Concordo com os presentes do subjuntivo, mas tenho minhas reticências quanto aos presentes do indicativo. Decerto que os termos atuais das reflexões sobre a História Econômica romana avançaram muito – e não só quando comparados aos debates oitocentistas entre Bücher e Meyer, mas mesmo se comparados com os termos do debate na época de Finley. Contudo, o ponto nodal do debate sobre a História Econômica romana (e toda historiografia, na verdade) permanece o mesmo, posto que inescapável. Ainda é, e sempre será, a relação entre o presente vivido e o passado reconstruído o ponto central de qualquer reflexão histórica. E quanto a este

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ROSTOVTZEFF, Michail. Social and Economic History of the Roman Empire. Biblo & Tannen Publishers, 1926. 6 PACHÁ, Paulo Henrique. Formas de Intercâmbio e Dominação: As relações de dependência pessoal no medievo ibérico (séculos IVVIII). Niterói: PPGH-UFF (dissertação de mestrado), 2012, p.19.

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SCHIAVONE, op.cit., p.82. FINLEY op.cit. passim. 9 BANG, op.cit.. 8

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ponto central, os termos da querela entre primitivistas e modernistas ainda reverberam em parte relevante da atual produção historiográfica. Triunfalismo Capitalista e Neomodernismo Para exemplificar o que afirmo, nos voltemos para a produção historiográfica da área neste início de século XXI. Chama à atenção a produção de alguns historiadores que acredito que possam ser chamados, sem qualquer receio de estar se cometendo uma injustiça, de neomodernistas. E, como veremos, esse retorno do modernismo está intimamente ligado ao contexto de transformações de nosso presente capitalista nas duas últimas décadas. No início da década passada um dos mais importantes nomes da New Economic History, Peter Temin, começou a publicar algumas reflexões sobre a Economia Romana em uma série de artigos muito lida e citada entre historiadores que se dedicam ao tema. Em síntese, todos os artigos de Temin têm como objetivo mostrar que a Economia Romana era integrada em um sistema de mercado unificado, geograficamente centrado no mar Mediterrâneo. Para tentar demonstrar isso ele analisa o comportamento econômico da elite, o “mercado” de trabalho, a circulação de trigo, o sistema 10 creditício entre outros elementos da Economia Romana. O sucesso destes artigos de Temin entre alguns estudiosos da Economia Romana pode ser mais facilmente explicado pelo respeito à carreira de tão renomado pesquisador, ao entusiasmo ao vê-lo oferecendo reflexões sobre nossa área de pesquisa e a um contexto histórico e historiográfico favorável a interpretações apologéticas ao capitalismo. O conteúdo em si das reflexões de Temin é bastante contestável. Boa parte de suas proposições faz o debate recuar aos termos anteriores a Finley e, com muita razão, Jean Andreau afirmou recentemente que estes artigos de Temin são uma “volta a Rostovtzeff” (sem os méritos deste, cabe dizer). O que fica claro nas entrelinhas dos artigos de Temin é a mesma incapacidade modernista de aceitar que o glorioso mundo antigo tivesse uma economia que não fosse pujante e eficiente – o que obviamente, para um economista neoclássico como Temin, só pode ser compatível com uma Economia de Mercado. E por isso Temin faz um esforço hercúleo – mas não muito bem sucedido – de tentar nos convencer que a Economia romana só poderia ser uma Economia de Mercado. As diferenças entre o passado romano e o presente capitalista seriam resultado de meros limites tecnológicos nos meios de transporte, que impediam uma circulação eficiente de bens e informações, limitando geograficamente o mundo inserido no grande mercado mediterrânico, o centro da economia romana. Pode-se dizer, porém, que Temin é um caso isolado, e que apesar de citado e considerado por nomes 10 Os artigos de Temin considerados nesta análise são: “A Market Economy in the Early Roman Empire,” Journal of Roman Studies, 91, 2001; “The Labor Market of the Early Roman Empire,” Journal of Interdisciplinary History, 34, 2004; “The Organization of the Grain Trade in the Early Roman Empire” (com David Kessler), Economic History Review, 60, 2007.

importantes da historiografia anglo-saxã especializada na Economia Romana, seu trabalho não reflete o atual estado da arte. O mesmo não se pode dizer, contudo, do neoinstitucionalismo. Muito influente entre economistas e historiadores econômicos nos Estados Unidos e na Inglaterra desde meados da década de 80, a partir dos trabalhos do ganhador do prêmio Nobel de Economia Douglass North, esta corrente da Teoria Econômica chegou com algum atraso aos estudiosos dedicados ao mundo antigo, mas há alguns anos tornou-se hegemônica no mundo anglo-saxão. Sua onipresença no Cambridge Economic History of Graeco-Roman World, lançado em 2008, mostra tal hegemonia.11 North e os entusiastas do neoinstitucionalismo defendem a ênfase no estudo das Instituições para entender as diferentes configurações que a Economia conheceu em sua história. Segundo eles, as interações sociais seriam inviáveis sem a existência de instituições, pois os custos de transação seriam proibitivos – como interagir com uma pessoa sem saber as condições sob as quais tal interação ocorrerá? Por isso, os indivíduos criam instituições, que nada mais são do que constrangimentos informais e regras formais e suas características compulsórias para os agentes envolvidos. Estas instituições variam e se transformam ao longo do tempo, criando realidades econômicas diversas no tempo e no 12 espaço. Muitas pesquisas vêm utilizando este corpo teórico para analisar o problema do crescimento econômico no Império Romano – um tema recorrente no debate nos últimos anos que, vale a pena frisar, é uma herança direta do debate entre primitivistas e modernistas. O exemplo paradigmático deste uso é o trabalho de Dennis Kehoe sobre a relação entre o Direito Romano e a Economia Rural, no qual ele tenta mostrar como o desenvolvimento de instituições jurídicas para as relações agrárias permitia uma melhor performance econômica no mundo romano.13 Tanto os trabalhos de Temin quanto a onda neoinstitucionalista são frutos de um mesmo contexto histórico. O período entre a queda do Muro de Berlim e a crise econômica de 2008 será lembrado na história pelo triunfalismo capitalista (e o pobre Fukuyama e seu fim da História que tão pouco durou). Como afirma Peter Fibiger Bang, o Ocidente se recuperara do choque póscolonial e não acreditava mais em possíveis soluções vindas do terceiro mundo para os problemas da sociedade de mercado.14 Pelo contrário, a sociedade de mercado passou a ser apontada como a solução para os problemas do terceiro mundo – e referência inescapável para os historiadores. 11

SCHEIDEL, Walter, MORRIS, Ian, SALLER, Richard (eds.). The Cambridge Economic History of the Greco-Roman World. Cambridge University Press, 2008. 12 Os dois principais livros de Douglass North são: Structure and Change in Economic History. W.W.Norton & Company, 1981; e Institutions, Institutional Change and Economic Perfomance. Cambridge University Press, 1990. 13 KEHOE, Dennis, Law and the rural economy in the Roman empire, Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2007. 14 BANG, op.cit.

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Ao nos lembrarmos do sentido original da teoria neoinstitucional, é fácil perceber tal contextualização histórica. A preocupação fundamental dos principais trabalhos de Douglass North é o estudo do problema do desenvolvimento histórico. Tanto o desenvolvimento econômico na história quanto o subdesenvolvimento do Terceiro Mundo são problemas fundamentais para North. Dentro desta problemática, sua questão fundadora é “como explicar as diferentes performances econômicas na história?”. A resposta de North a esta pergunta é: a eficiência de uma economia depende da capacidade de suas instituições diminuírem os custos de transação. Mas que tipo de instituição garante essa eficiência à economia? Como um bom marginalista não poderia deixar de pensar, a resposta de North é o funcionamento pleno do livre mercado. Por isso, segundo esse raciocínio, quando as instituições são eficientes, quando as condições sociais não impõem obstáculos, a economia de mercado tende a se sobrepor às outras formas de organização da vida econômica. As análises que apontam o desenvolvimento e expansão do Direito Romano como um elemento institucional importante para a eficiência da Economia Romana se inserem neste contexto histórico de maneira particular. A análise da integração de regiões distantes e heterogêneas em um mercado mediterrânico a partir do desenvolvimento de instituições “supra-locais”, estabelece um paralelo bastante interessante com o próprio processo de globalização em nosso presente capitalista. Assim, se o impacto da expansão econômica industrial marcava as análises modernistas e primitivistas da transição do século XIX para o XX, o impacto da globalização e do triunfalismo capitalista também o fazem com os historiadores neomodernistas da transição do século XX para o XXI. A relação entre presente e passado ensejada pela Teoria Neoinstitucionalista e pelas ideias de Peter Temin constroem uma Orientação Histórica que remete aos mesmos problemas da querela entre primitivistas e modernistas. Não pretendo com esta análise menosprezar a importância que pesquisas inspiradas no neoinstitucionalismo têm tido no avanço do debate sobre a caracterização da Economia Antiga. O próprio trabalho de Dennis Kehoe, por exemplo, é incontornável no debate sobre a realidade agrária e o comportamento econômico romanos. Porém, acho importante destacar estes problemas que identificam um importante limite para os benefícios do uso da teoria neoinstitucional nos estudos sobre a Economia Romana. Acima de tudo, a Cultura Histórica construída pelas reflexões da Teoria Neoinstitucionalista se assemelha em aspectos fundamentais à Cultura Histórica que embasava o debate entre primitivistas e modernistas, cujo ponto nodal é sua relação entre passado e presente apologética ao capitalismo. Por um lado, os neoinstitucionalistas repetem os primitivistas, ao identificar o presente capitalista como auge de um desenvolvimento econômico e institucional, e por outro repetem os modernistas, ao apontar que aquilo que os romanos tiveram de desenvolvimento econômico foi

permitido pelos aspectos em que eles conseguiram construir instituições que permitissem o surgimento de algo parecido com a Economia de Mercado do presente capitalista. Por uma metodologia crítica Toda esta reflexão crítica sobre a relação entre certas correntes historiográficas e o capitalismo contemporâneo não pretende concluir pela defesa de uma história autônoma do presente – não só porque ela seria impossível, mas porque seria indesejável. É tal relação com o presente que dá sentido ao ofício historiográfico. Quero apenas chamar a atenção para a necessidade de considerações mais profundas sobre este problema e suas consequências metodológicas. Marc Bloch, em A Apologia da História, já nos alertava que toda história é “feita às avessas”, que a bobina do filme da história só pode ser desenrolada no 15 sentido inverso de suas sequências. Essa é uma conseqüência importante do fato pouco contestado, porém muito desconsiderado, de que “toda história é história contemporânea”. Se o presente vivido é sempre o ponto de partida da reflexão histórica, a forma como realizamos nosso ofício será determinada por esse fato. Neste sentido, o historiador não pode querer meramente “identificar os conceitos de uma época” – uma saída encontrada por muitos historiadores para evitar o anacronismo, mas que pode ser extremamente enganosa. É claro que o estudo das estruturas conceituais do pensamento dos grupos sociais de uma época é um trabalho fundamental para todo o oficio historiográfico. Mas este não pode ser um primeiro (e muitas vezes único) passo na construção de conceitos e categorias explicativas. Como Bloch afirmou precisamente, o historiador que se deixa levar pela nomenclatura de uma época escreve sob o ditado de uma época distante, mas pensa, como não poderia deixar de ser, segundo as 16 categorias de sua própria época. O historiador pensa estar dando voz ao passado, quando apenas traduz mal o presente para o estanho vocabulário de outra época. Como realizar a construção de conceitos e categorias explicativas que não sejam meramente a imposição das categorias de nossa própria época ao passado estudado? Ao tratar do método de análise da Economia Política, na introdução dos Grundrisse, Marx enfatiza que “todas as épocas da produção têm certas características em comum, determinações em comum” e que “nenhuma produção seria concebível sem elas”, mas que “a diferença desse universal e comum é precisamente o que constitui seu desenvolvimento”. Isto é, “as determinações que valem para a produção em geral têm de ser corretamente isoladas de maneira que, além da 17 unidade (...) não seja esquecida a diferença essencial”. É neste sentido que ele afirma que “a anatomia do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco”. O Capitalismo, por ser a organização histórica da produção 15 BLOCH, Marc. Apologia da História. Ou o ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p.66-67. 16 Idem, p.136. 17 MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo Editorial e Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2011, p.41.

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mais complexa, permite a construção de categorias que possibilitam não apenas o estudo da própria economia capitalista, mas também dos sistemas econômicos anteriores a ele. Assim, “a economia burguesa serve de chave para a economia antiga”. Isto é, o fato de partirmos dos problemas e categorias do presente para estudar o passado não é um problema insolúvel para o historiador, pelo contrário, é o que possibilita seu estudo. Por outro lado, porém, não é pela sua imediata aplicação que tais categorias de análise do Capitalismo permitem o estudo dos períodos anteriores. Não podemos fazer uma identificação simples das realidades antigas com as categorias do presente capitalista. Isso é justamente o que Marx critica nos economistas de sua época, que “veem a sociedade burguesa em todas as formas de sociedade”18 (o que podemos dizer também da maioria dos economistas de nossa época). Para Marx, as categorias de análise da sociedade capitalista servem de chave para o estudo do passado ao se identificar as diferenças essenciais entre as duas formas de economia em questão. Desta forma, essas sociedades do passado “podem conter tais categorias [capitalistas] de modo desenvolvido, atrofiado, caricato, 19 etc., mas sempre com diferença essencial”. É neste sentido que o historiador italiano Aldo Schiavone utiliza a metodologia marxiana para estabelecer que o estudo histórico nada mais é que a construção de um conhecimento pelas diferenças – e não uma assimilação confusa e estéril entre elementos da sociedade do passado e da nossa sociedade. Desta forma, “o mais complexo não explica diretamente o mais simples, mas permite elaborar um quadro de categorias adequadas à sua interpretação”.20 Esta construção de categorias e conceitos explicativos através de uma comparação que analise as diferenças essenciais (qualitativas, e não meramente quantitativas) entre o passado estudado e o presente vivido precisa ser qualificada. É uma postura crítica perante a sociedade do presente que permite tal metodologia. Como Bloch disse ter ouvido certa vez de Henri Pirenne, o erudito que escolhe passar pelo seu mundo de olhos vendados merecerá no máximo o título 21 de útil antiquário – e deverá renunciar ao de historiador. Artigo recebido em 10.2.2012 Aprovado em 10.4.2012

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Todas as citações deste parágrafo estão em MARX, op.cit., p.58. Idem, p.59. 20 SCHIAVONE, op.cit., p.71-72 n.30. 21 BLOCH, op.cit., p.66. 19

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