Um passeio pela vila de Alvaiázere em 1875

July 25, 2017 | Autor: Miguel Portela | Categoria: Historia, Historia Cultural, Historia Local, História Local e Regional
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Um passeio pela vila de Alvaiázere em 1875

Miguel Portela Investigador

Fonte de extraordinário interesse histórico, a imprensa local e regional constitui um verdadeiro repositório de uma época nos mais variados aspetos sociais, económicos, culturais e históricos de uma sociedade que não se conformou em ser anónima. Alvaiázere assume um lugar de destaque com o primeiro e mais antigo jornal do norte do distrito de Leiria - O Alvaiazerense -, editado entre os anos de 1861 e 1863. Definia-se como um jornal instrutivo, satírico e burlesco, conhecendo-se alguns exemplares impressos na Tipografia Alvaiazerense. Porém, a imprensa regional, mormente os jornais editados em Leiria, é decerto aquela que, durante a segunda metade do século XIX, mais se dedicou à publicação de notícias referentes às vilas da zona norte estremenha do distrito. Deriva este facto de só nos finais do século XIX se ter verificado, na imprensa do norte do distrito, a consistência necessária para a edição regular dos seus jornais. São disso exemplo o Archivo Litterario de Alvaiázere (1865), O Cão de Fila de Pombal (1865-1866), O Progresso Pombalense (1877-1880), O Pombalense (1881-1886), O Correio de Pombal (1886-1892), O Campeão do Zêzere de Pedrógão Grande (1891-1892) ou O Combate de Alvaiázere, estreado em janeiro de 1894. Com os olhos postos na imprensa regional, colhemos no jornal Correspondência de Leiria, folha semanal, na edição de 16 de maio de 1875, no seu primeiro ano, número 29, uma curiosa Descripção da Villa d’Alvaiazere e a Divisão Comarcã, escrita por J.A. dos Santos. Pela sua importância enquanto fonte documental de uma época nos seus mais diferentes aspetos, transcrevemo-la na íntegra, cabendo ao leitor desfrutar desta descrição de uma tão bela vila que não quis passar incógnita no século XIX. “Pareceu-nos louca, á primeira vista, a idéa que nos acudio de descrever a villa d’Alvaiazere, por não ser ella uma Pequim, uma Roma, uma Veneza, uma Lisboa, nem uma villa qualquer das mais importantes que povoam o nosso poetico Portugal. Porém, uma representação que vimos na folha official pedindo a autonomia do concelho de Figueiró dos Vinhos, nos decidio a pòr em pratica o nosso proposito. Alvaiazere não é effectivamente terra muito populosa: mas os poucos habitantes que tem, são quasi todos abastados proprietarios. Situada n’uma extensa várzea que corre de norte a sul da villa, e que, em quasi completa planicie communica com Thomar, Coimbra e Pombal, não nos parecia que houvesse nascido para ser uma povoação pequena: e á qual, só por isso, alguns querem dar tão pouca importancia. Seu nome deriva-se de – Alba-varzea – que significa - «branca, alegre e feliz varzea» -, vindo pelo andar dos tempos, a chamar-se Alvaiazere. A sua fundação data do tempo de D. Sancho I, (1200), que lhe deu fòro de villa em 1388. Esta terra, que foi grande nos seus principios, parece que se estendia mais para o norte, até ao sitio onde chamam - «Lagar da Lagea e Egreja Velha», - e onde ainda hoje se veem ruinas da residencia de antigos priores, conhecida pelo nome de 1

«Passal». – Já aqui se não veem vestígios da antiga egreja, mas só de sepultturas de pedra inteiriça, mais largas para o lado dos hombros e estreitas para os pés, todas com as cabeceiras voltadas para o poente, e dispersas por differentes sitios do referido terreno; porém, não se encontram alicerces de paredes, que se existiram, e ali existia a egreja Velha; o tempo tudo tem aniquilado, deixando á vista jazigos vazios dos antigos finados. Ahi perto n’uma pequena eminencia, ha pouco coroada com a cruz do Redemptor, se enterraram muitos cadáveres, durante uma epidemia que ceifou muitas vidas em Alvaiazere e em toda a sua freguezia. Lançando agora nossas vistas para o poente da villa, e a pequena distancia, vemos a serra que roubou o nome áquella, toda coroada de oliveiras, ha pouco plantadas por mãos laboriosas, e donde se proveem de matto e lenhas os povos visinhos. É n’este ponto de vista, o mais sublime, que se offerece á nossa vista um lindo panorama, e é o fertilissimo e immenso campo, chamado d’Alvaiazere, todo povoado de oliveiras e de outras muitas variadas arvores gigantescas e fructiferas, campo que produz admiralmente trigo, milho e cevada: havendo, além d’isto, nas faldas da serra que se dirigem á villa, um bosque continuo de frondozissimos carvalhos: e nas que se dirigem para o poente da mesma serra, alguns hectares de terreno cobertos de grande copia de azinheiras, cujo fructo engorda muitas manadas de porcos. Antigamente estava a serra toda coberta d’outras arvores, bosques de medonhos, alecrim e murta: porém as queimadas e as lenhas que d’ali teem tirada hão feito desaparecer os bosques de que ainda se pòde ajuizar, vendo o pequeno logar da Bocca da Matta todo coberto d’arvoredo. Este lugar fica na encosta da serra, bem como a capella de Nossa Senhora dos Covões que assim se appellida por causa d’uns algares que alli ha perto na mesma serra. A imagem que se venera na capella foi por muitos annos objecto do culto de innumeros romeiros que de longe vinham cumprir as suas promessas á Senhora. Hoje que o zelo religioso tem esfriado bastante, já não é tão frequentada a sua romaria: porém, lá está a sua capella, o seu breve Pontificio, a sua irmandade que attestam a piedade e devoção dos nossos maiores, bem como as festas que todos os anaes ali fazem, provam que ainda não afrouxou o amor que em todos os tempos lhe consagraram os povos circumvisinhos. Foi esta capella fundada em 1400 da nossa éra, e o motivo de sua fundação foi o seguinte: - tendo uma pastora ido para aquelle sitio com os seus rebanhos, encontrou ali a imagem da Virgem, que ora se venera, mettida n’uma gruta talhada na pedra; d’ahi a levou para casa algumas vezes, mas a imagem era encontrada na serra. O que, averiguando e reconhecida pelos póvos d’aquelle tempo, concorreram em grande numero a visitar a Senhora e a trazer-lhe todos os annos, na época do seu desaparecimento, as promessas que tinham feito, quando nos seus trabalhos, afflicções, ou doenças, imploravam a sua efficaz intercessão. Ainda ali, entre outras offerendas, se vê a d’uma lamina de prata offerecida por um conego de Evora em 1600, referindo o milagre que a Senhora operou em seu favor. Ainda tambem se vê um grilhão de ferro que um captivo em terras de mouros, trouxe á mesma Senhora como signal do seu captiveiro, de que ella o livrou milagrosamente. Enfim, a imagem que existe na capella não se pode negar ser uma d’aquellas que os christãos, perdida a sua independencia nos campos que atravessa o rio Guadalete em 714 da nossa era, morto Rodrigo, ultimo rei Godo, perseguido por Tarif e seus capitães, conduziram às serras e brenhas, que escolheram para escaparem a seus inimigos. Tudo ali indica que para lá se retiraram os perseguidos em differentes épocas: que la se fortificaram e succumbiram em porfiadas lutas, ou se retiraram afinal deixando escondidas em algares profundos as riquezas que tinham trazido das cidades e vilas; e que, confiadas à guarda da «moura encantada», debalde se teem procurado, apesar d’alguns terem encontrado a «moira» 2

que, penteando os seus cabellos d’ebano, tem desdenhado responder ás perguntas dos ambiciosos, desapparecendo prestes para logar desconhecido. No alto da serra, que tem vista para terras muito affastadas, como o Alemtejo e outros sitios existe uma grande esplanada, que, d’uns lados termina em escarpados despenhadeiros, d’outros em suave declive: e la se vê uma comprida circumvalação, vestígios d’antiga muralha, algares aperfeiçoados, em parte pela mão do homem - «o algar d’agua, o algar d’ouro» - onde é tradição que estão preciosidades, taes como – o manto e coroa, pertences d’um serraceno; o que parece confirmar o mesmo algar pelos nichos que tem profundamente entranhados pelas paredes lateraes. É certo, porém, que differentes objectos esconderam os habitantes dos logares visinhos, no tempo da invasão franceza: porém. Apezar de que os caçadores de Vicennes, a cavallo, percorreram a serra, esquadrinhado por toda a parte, nunca poderam atinar com a entrada do «algar d’ouro». Na parte mais elevada d’aquella planicie, para o norte da serra, fórma uma circumvalação um pequeno circulo, a que chamam «Castelo», bem como dão identico nome a um outeiro que fica ao sul. Não se pode dizer quando fosse feita aquella fortificação, mas talvez pertencesse a algum arraial romano, porque ainda ali se vê tambem a estrada, chamada de Sertorio. A villa d’Alvaiazere tem um bello e grande edificio que serve de Paços do Concelho, talvez um dos melhores do districto de Leiria, que accommoda todas as repartições publicas: e alem disso, ainda tem bons prédios que poderiam servir de residencia ás auctoridades judiciaes, no caso de ser elevada a cathegoria de comarca: muitos meios e proporções para se edificarem mais edifícios ainda, e para ser uma grande terra. Ainda aqui se veem vestigios do antigo celleiro do Duque do Cadaval, sobre cujas ruinas está hoje edificada a elegante casa da escola do Conde de Ferreira a qual por bem acabada e mobilidada, tambem merece particular atenção. A egreja é de construcção solida e severa, e de trez naves, sobrepujada por uma torre com um relogio e um sino. (…) Esta egreja pertencia ao antigo convento de Thomar dos Cavalleiros de Christo, déssa milicia guerreira, successora dos bens o previlegio dos Cavalleiros do Templo. Tem Alvaiazere Direcção do Correio; e de Thomar vem aqui diariamente, a cavallo, e por elle são enviadas as mallas de Figueiró dos Vinhos, Cabalo, Chão de Couce, Avellar e Maçãs de Dona Maria, que até este ponto são conduzidas por estafetes a pé. Tem este concelho duas feiras annuaes, sendo uma no Arneiro e outra em Pussos, bem como duas semannaes no Cabaço: ficando as duas ultimas a 3 kilometros da villa d’Alvaiazere para o sueste, sendo por aquelle local que vae passar a estrada real de Thomar a Coimbra, que anda em construcção, estando já feito parte do ramal que une esta villa com a mencionada estrada, no sitio do Pereiro. Pelo sul da villa se estendem ferteis campinas cobertas de oliveiras, e de toda a qualidade de arvores colossaes e fructiferas campinas que se estendem até ao concelho de Ferreira do Zezere: e pelo norte, na mesma planicie, e quasi dentro do concelho d’Alvaiazere, temos as denominadas Cinco Villas, cujas freguezias, a natureza, o tracto as optimas communicações e relações dos povos parece terem convidado, para fazerem parte d’este concelho, sendo aliás, pertencentes ao de Figueiró dos Vinhos. Nas cercanias da villa ha abastados proprietarios, [pág. 4] grandes capacidades bachareladas e outros esperançosos mancebos que cursam na Universidade de Coimbra. O terreno de todo o concelho é o mais fertil de toda a comarca em generos alimenticios. A sua superfície, que será de 30:000 hectares, é quasí toda cultivada, por isso os seus habitantes evitando a devassidão, a vadiagem, e ociosidade, se empregam 3

quotidianamente no seu lucrativo lidar. Os peores caminhos de communicação que a villa tem nas suas cercanias, são os que vão para a cabeça da comarca (Figueiró dos Vinhos), quasi sempre por despenhadeiros, serras altissimas e profundas e perigosas ribeiras. Por isso, e por tantos motivos que deixamos enumerados, os habitantes de todo o concelho d’Alvaiazere, julgam a sua capital com jus a ser séde de comarca. A posição topographica da villa d’Alvaiazere, é, talvez, das melhores para esse fim: porque, collocada a villa a 20 kilometros, tanto de Figueiró dos Vinhos, como de Thomar, Pombal e Ourem, parece occupar o centro d’esta tão plana como rica e bella circumscripção.” Podemos, então, reconhecer o papel fundamental da imprensa local e regional enquanto rica fonte documental para o aprofundamento do conhecimento sobre a História do norte do distrito de Leiria.

Texto publicado no Jornal O Alvaiazerense Ano XXXIII N.º 391 (janeiro/2015), 392 (fevereiro/2015) e 393 (março/2015).

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