Um passo da descrição do verbo em Júlio Ribeiro

June 14, 2017 | Autor: Ricardo Cavaliere | Categoria: Historiografía Linguística, Gramaticografia portuguesa
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UM PASSO DA DESCRIÇÃO DO VERBO EM JULIO RIBEIRO Ricardo CAVALIERE 1 RESUMO Este texto busca avaliar a proposta de denominação do pretérito perfeito do indicativo português como aoristo, conforme se lê na Gramática portuguesa de Julio Ribeiro. Discute-se a fundamentação semântico-aspectual em que o gramático brasileiro se apoia, inclusive mediante referência aos valores semânticos que o aoristo apresenta no grego e, em parte, no sânscrito. Considerando que a proposta de Julio Ribeiro não encontrou apoio em outros gramáticos de sua geração, sequer em gramáticos ou linguistas de gerações posteriores, pode-se concluir que se trata de uma visão particularíssima, que merece atenção e estudo aprofundado pelos que se dedicam à semântica do verbo em português. PALAVRAS-CHAVE: Historiografia Linguística. Julio Ribeiro. Tempos verbais. Gramáticas da Língua Portuguesa. ABSTRACT This text seeks to assess the proposal of calling the past tense of the Portuguese as indicative aorist, as set out in the Portuguese Grammar, by Julio Ribeiro. It discusses the semantic-aspectual foundation on which the Brazilian grammarian relies, with reference to the semantic values that has aorist in Greek and partly in Sanskrit. Whereas Julio Ribeiro’s proposal was not supported by other grammarians of his generation, and even by grammarians and linguists of later generations, it can be concluded that this is a very particular vision that deserves attention and further study by those who are dedicated to the semantics of the verb in Portuguese. KEYWORDS: Linguistic Historiography. Julio Ribeiro. Verb tenses. Grammars of the Portuguese language.

1. DESCONTINUIDADE PARADIGMÁTICA NA GRAMATICOGRAFIA BRASILEIRA DOS OITOCENTOS

Tem-se reiteradamente atribuído a Julio Ribeiro (1845-1890) a mudança de rumos que se impôs à gramaticografia do português no Brasil, mediante aplicação das teses da linguística naturalista à descrição do vernáculo. Não resta dúvida de que a Gramática portuguesa (1881[1910]), publicada por Ribeiro em um momento de intensa conturbação política do Segundo Império, figura hoje como expressão dessa descontinuidade paradigmática que viria submeter a segundo plano, tanto na pesquisa quanto no ensino linguístico, a antiga escola racionalista em que despontaram nomes importantes no cenário acadêmico, tais

1 Doutor em Língua Portuguesa – Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-Doutor em Historiografia

da Gramática no Brasil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) [supervisor: Evanildo Cavalcante Bechara]. Professor Associado da Universidade Federal Fluminense. Membro da Academia Brasileira de Filologia. Autor, entre outras publicações, de A gramática no Brasil: ideias, percursos e parâmetros (Lexikon, 2014).

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como Antônio da Costa Duarte (?-?), Filipe Benício Conduru (1818-1878), Antonio Álvares Pereira Coruja (18061889), Francisco Sotero dos Reis (1800-1871), entre outros. O início da década dos anos 80 é marcado pela publicação de textos que bem revelam a transição por que passava a gramaticografia brasileira, seja pela já referida ruptura paradigmática em Julio Ribeiro, seja pela sensível incorporação de novos conceitos linguísticos, ditos “científicos”, a obras que se podem ainda inscrever no modelo racionalista. Cite-se aqui, sem qualquer intuito de análise mais aprofundada, a Nova

gramática analítica da língua portuguesa (1881), de Charles Grivet (1816-1876), que rompe com a sinopse tradicional – prosódia, ortografia, etimologia e sintaxe – para organizar a matéria gramatical em lexicologia,

sintaxe, ortografia, prosódia e pontuação, a par de enveredar por uma nova concepção de sintaxe como “a theoria das funcções que as palavras exercem na enunciação dos pensamentos, e das relações que dahi entre ellas occorrem" (GRIVET, 1881, p. 222). Além de Grivet, também em Antônio Estêvão da Costa e Cunha (1839-?) sente-se claramente a mudança de rumos que desaguaria no primado da linguística naturalista com a publicação de seu Manual do

examinando de português (1883), fato também perceptível na obra de Ernesto Carneiro Ribeiro (1839-1920), que transita de uma Gramática filosófica (1877 [1957])2 para o seu Elementos de gramática portuguesa (1885[1957]), em que já define gramática, do ponto de vista teórico, como a “sciencia da linguagem” (1885 [1957], p. 159). Desse cenário abstrai-se a conclusão de que a leitura dos linguistas europeus que seguiam a doutrina historicista já era ordinária, pelo menos a partir do início dos anos 70, integrando, por assim dizer, o horizonte de conhecimento em que nasce o pensamento linguístico brasileiro na segunda metade do século XIX. Diga-se, por sinal, que esse momento da história cultural brasileira bem expressa o cientificismo com que as teses positivistas impregnavam o clima intelectual do fin de siècle. A onda empirista e experimentalista que desviou os rumos da ciência, subjugando a especulação metafísica improdutiva à solução prática e efetiva dos problemas cotidianos, dá à sociedade como um todo a sensação de que, afinal, seria possível encontrar o caminho do progresso moral e material do homem pela via científica. O positivismo, assim, passa a habitar os almanaques e publicações populares que fervilham em numerosas edições nos dois decênios finais do século, inclusive periódicos de grande circulação nos meios acadêmicos, tais como A luta, A república e O federalista (SOARES, 1998, p. 113). Não terá sido por mera coincidência que a Igreja Positivista do Brasil tenha sido

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Sobre a primeira edição da Gramática filosófica, informa-nos Deraldo Ignacio de Souza, no prefácio da segunda edição, que teve em mãos um volume datado de 1877, embora haja volumes dessa mesma primeira edição datados de 1881.

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fundada por Miguel Lemos (1854-1917) e Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927) no expressivo ano de 1881, que, a cada leitura, mais se revela como o marco simbólico da virada epistemológica no Brasil oitocentista. O esforço empreendido em prol da vulgarização da ciência – que, afinal, era estimulado pelo próprio encantamento do cidadão comum pelo progresso científico – pode atestar-se com a publicação da Biblioteca

Útil, uma coletânea de textos informativos que divulgam os fundamentos da ciência em linguagem acessível ao leitor iniciante. Fundada em 1880 por Abílio Aurélio da Silva Marques3, sua concepção bibliográfica erigiu-se sobre os pilares do positivismo então reinante, razão por que não terá sido fortuito que o primeiro volume publicado tenha sido exatamente a tese Do espírito positivo, de Augusto Comte (1798-1857), traduzida por Joaquim Ribeiro de Mendonça (1853-?). Sem dúvida, a vulgarização da ciência toma expressivo impulso na segunda metade do século XIX. Da França chega-nos o exemplo da Bibliothèque scientifique internationale, inicialmente dirigida por Émile Alglave (1842-1928) e publicada pela Librairie Félix Alcan, a qual alcançou 120 volumes entre 1874 e 1914. Considerada “original e audaciosa” (cf. BÉGUET, 1990, p. 58), dado seu projeto editorial simultâneo em francês, inglês, alemão, russo e italiano, a Bibliothèque scientifique decerto terá servido de inspiração para a fundação da Biblioteca Útil de Abílio Marques, dada a evidente identidade dos dois projetos editoriais. O que surpreende, sem dúvida, é que o terceiro volume da Biblioteca Útil seja dedicado à linguística, nomeadamente o texto Traços gerais de linguística (1880), escrito por Julio Ribeiro, visto que à época a ciência da linguagem, muito difundida nos meios acadêmicos como glotologia, decerto não era ainda uma área do saber conhecida pelo cidadão comum. Naturalmente, a linguística residente nos Traços gerais de Julio Ribeiro vem envelopada pelo evolucionismo darwinista então em voga, cujos princípios haviam sido aplicados ao estudo da língua como fenômeno biológico por August Schleicher (1821-1868). Assim, o que se apresenta com verdadeira exultação, nas páginas dos Traços gerais, é o estudo do processamento da língua no cérebro humano, os princípios biológicos da evolução linguística, a descrição detalhada do funcionamento dos órgãos da fala, entre outros temas conexos. Com efeito, surge, nesse momento da linguística brasileira, uma nova ordem na investigação do fato linguístico, com natural reflexo pedagógico nas classes de língua vernácula, de que resultariam estudos

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Pouco se sabe sobre Abílio A.S. Marques. Trata-se de jornalista e editor português radicado em São Paulo. Foi casado com Maria Núncia Gomes Marques, com quem teve ao menos um filho (Family Search). Dedicou-se à causa do Positivismo, havendo sido responsável pela publicação de vários textos de difusão doutrinária. Foi colaborador do jornal Província de São Paulo, hoje O Estado de São Paulo, havendo muitos de seus textos sido reunidos no volume Interesses Da Colonia Portugueza na Provincia de S. Paulo, Brazil: Artigos Publicados na Provincia de São Paulo, disponível hoje em edições recentes digitalizadas.

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aprofundados sobre o fato linguístico em português com perspectiva histórica. Um desses estudos, uma tese singular sobre o tempo verbal, ocupará nossa atenção adiante.

2. O AORISTO EM PORTUGUÊS: TEMPO OU ASPECTO VERBAL? Os estudos pontuais sobre os efeitos da veia historicista que se instala nos estudos linguísticos brasileiros não raro proporcionam agradáveis surpresas, sobretudo no que tange a hipóteses teóricas que se podem qualificar como inusitadas, não obstante dignas de reflexão, e que, por tal motivo, não receberam acolhimento geral. Este é o caso da proposta de conceituação e denominação dos tempos verbais portugueses oferecida por Julio Ribeiro em sua Gramática portuguesa (1910 [1881]). Lá encontramos, entre outros conceitos idiossincráticos – alguns, como o paradigma da quarta conjugação constituída do verbo pôr e seus derivados, que gozam de aceitação mais ampla4–, a vinculação do gerúndio e do gerúndio anterior à forma nominal de infinitivo (infinito) e a denominação de aoristo ao pretérito perfeito simples do indicativo. Não há, salvo melhor juízo, semelhante referência ao pretérito perfeito em outros estudos vernáculos brasileiros, fato que, por si só, reveste a proposta de Ribeiro de inegável exclusividade do ponto de vista historiográfico. A Gramática portuguesa, conforme já assinalamos, merece destaque no conjunto das obras publicadas no último quartel do século XIX tendo em vista constituir-se na primeira descrição sistêmica do português no Brasil em que se empregam as bases da linguística histórico-comparativa, razão por que sua primeira edição, de 1881, inaugura o ciclo da gramática científica brasileira, ou do período científico da gramática brasileira5. Na esteira de Ribeiro, inúmeros outros trabalhos sucederam-se em rica produção filológica ao longo de aproximadamente trinta anos, com autores de renomada expressão envolvidos na aplicação do método comparativo na descrição linguística do português. Citem-se, por exemplo, Manuel Pacheco da Silva Júnior (1842-1899), Maximino de Araújo Maciel (1866-1923) e Heráclito Graça (1837-1914), entre outros, que, entusiasmados com as novas bases do cientificismo positivista, contribuíram a seu turno para o estudo e esclarecimento dos fatos da língua. Por outro lado, muitas das convicções de Ribeiro resultavam em antagônica investida às conquistas recentes da romanística de seu tempo, fato que deixa vislumbrar uma certa irredutibilidade de princípios. Este é o caso da aqui referida distribuição dos verbos portugueses em quatro conjugações, em flagrante atropelo das

4 Veja Maciel (1894 [1910], p. 185] e Pereira (s.d. [1907], p. 100). 5 Sobre o conceito historiográfico de Gramática Científica, leia Cavaliere (2000), Cavaliere (2002), Fávero e Molina (2006), Gonçalves

(2011).

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evidências históricas que inscrevem o verbo pôr e seus derivados na segunda conjugação, a par de tantas outras de caráter sincrônico, como a presença da vogal temática de segunda em põe, pões etc. Ribeiro, entretanto, segue uma ordenação dos paradigmas verbais estritamente baseada no infinitivo presente, sob influência da tradição latina, fato que o leva a admitir a quarta conjugação em -o. No caso da denominação dos tempos verbais, a opção por aoristo, em vez de pretérito perfeito, é fruto de um modelo descritivo baseado em critério semântico-aspectual. Ribeiro mergulha mais fundo, ultrapassando as águas do paradigma verbal latino, para encontrar semelhanças semânticas entre o pretérito perfeito do indicativo português, em sua forma simples, e o aoristo grego, já que ambos expressariam valor concluso atemporal: “O tempo verbal em questão é o que indica em absoluto a preteritividade do enunciado; eu lhe chamo com os Gregos aoristo”. Em aditamento, arremata: “O tempo verbal que indica a reiteração pretérita do enunciado é um tempo acabado, completo: para este reservo eu o nome de perfeito (perfectum, acabado, completo)” (RIBEIRO, 1910 [1881], p. 344). Em termos objetivos, ao pretérito perfeito simples do indicativo Ribeiro denomina aoristo; ao pretérito perfeito composto do indicativo, Ribeiro opta por perfeito. Essas escolhas, decerto, não se limitam a mera questão metalinguística, sem fundamentação nos fatos em questão; a rigor, a proposta de Ribeiro passa por uma reavaliação do valor semântico do pretérito perfeito simples em português (como, de resto, nas demais línguas românicas). Em sua linha de raciocínio, o pretérito perfeito simples não expressa um fato situado em tempo passado determinado, senão a um pretérito absoluto, isto é, a um fato passado sem localização precisa no tempo, aspecto que o opõe ao pretérito perfeito composto (em suas palavras apenas perfeito), já que a este tempo verbal cabe a expressão de um fato pretérito em momento específico do passado. Ribeiro busca amparo na autoridade de dois grandes nomes da linguística oitocentista: Franz Bopp (1791-1867) e Friedrich Diez (1794-1876). Em ambos os casos, a tese é de que o perfectum latino, do qual deriva o pretérito perfeito simples do indicativo português, também não expressa a noção aspectual do perfeito grego, mas do aoristo, ou seja, tem valor aspectual concluso de caráter absoluto, não especificado no tempo. Efetivamente, nas palavras de Bopp, o perfectum latino “est um ancien aoriste”, para concluir que esse tempo do latim “n’a rien de commun avec le parfait grec et sanscrit” (1876, p. 179). Entretanto, o linguista germânico em momento algum atribui ao aoristo sânscrito o valor de passado absoluto aventado por Ribeiro, já que sua análise, pelo menos nesse segmento de sua Grammaire comparée, restringe-se à comparação morfológica da forma verbal latina com a sânscrita e a grega. Quanto a Diez, Ribeiro remete o leitor a uma observação do linguista alemão de que os tempos pretéritos românicos têm maior proximidade com o grego do que com o

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latim6, o que aproximaria a noção conclusa indeterminada do pretérito perfeito do indicativo ao aoristo do grego. Diez, em verdade, discorre sobre a usual interpretação do perfeito simples em contraste com o perfeito perifrástico, o primeiro como denotador de um valor pretérito distante do presente e de usual valor histórico, o segundo como expressão de um pretérito recente (1876, p. 256): Le premier parfait ou parfait simple, it. indeterminato, fr. défini (amai, j’aimai, pass. fui amato, je fui aimé), designe um passé absolument séparé du présent et sert surtout au style historique. L’allemand lui donne pour correspondant le simple parfait. Le second parfait ou parfait périphastique, it. determinato, fr. indefini (ho amato, j’ai aimé, pass. sono stato amato, j’ai été aimé), designe au contraire, comme le temps correspondant en allemand, un passé plus rapproché, ou du moins qui se trouve en raport avec le présent de celui qui parle, ou sorte que as signification est en parfait accord avec ses éléments.7 Este, por sinal, o motivo por que as gramáticas italianas e inglesas optam pela denominação perfeito

indeterminado. No entanto, em linha diversa, a escola francesa, à semelhança dos compêndios portugueses, preferem a denominação perfeito definido (passé défini)8, já que atribuem ao pretérito perfeito um valor aspectual concluso em tempo passado determinado. A antinomia foi objeto de merecidas atenções. Julio Ribeiro cita a explicação de Eugène Burnouf (1801-1852) incluída em uma nota à Grammaire elementaire et pratique de la langue grecque (1885), de Friedrich Dübner (1802-1867), para o fato de o mesmo tempo verbal ser denominado aoristo em grego (ἀὁριστος ‘indefinido’) e définit em francês. Segundo Burnouf, a gramática francesa denomina o tempo em uso no texto, “de l’emploi qu’on en fait”. Assim como o verbo, no texto, ordinariamente vem acompanhado de advérbios temporais, como, por exemplo, no ano passado, seu sentido textual é efetivamente definido. Já em grego, a denominação viria do sentido absoluto do tempo verbal, “de sa nature même”, nas palavras de Burnouf

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Nas palavras de Diez, “Les grammairiens français le [ao passado simples] nomment défini, parce que, d’après eux, il designe um moment déterminé (j’écrivis hier). C’est lá une expressionmal choisi et qui ne convient pas à son emploi le plus important, comme temps historique. L’italien dit à l’inverse indeterminato, et le grec designe un temps tout semblable par le mot ἀὁριστος” (1876, p. 255).

7 A asserção de Diez, que atribui à forma perifrástica valor concluso em passado próximo ao ato do discurso, estimula-nos a investigar

mais detidamente a mudança aspectual que essa construção sofreu no português do Brasil, já que passou a expressar um aspecto progressivo que parte do passado recente para chegar ao presente: tenho lido bastante os clássicos, isto é, “li bastante os clássicos no passado e continuo lendo-os bastante no presente”. 8 Veja Chassang (1887, p. 54). A rigor, os gramáticos franceses do século XIX não seguem uma denominação uniforme. Clédat (1851-

1930), por exemplo, denomina prétérit ao pretérito perfeito simples (1894, p. 192). Ayer (1825-1884), igualmente, prefere a denominação prétérit para o pretérito perfeito simples e opta por parfait para o pretérito perfeito composto (1900, p. 221). Em visão idiossincrática, Ayer distribui os tempos verbais em duas categorias aspectuais: tempos imperfeitos e tempos perfeitos, vindo a incluir o préterit entre os tempos do imperfeito e o parfait entre os tempos perfeitos.

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(apud Dübner, 1885, p. 82), situação em que goza de sentido indefinido. Efetivamente, em português, tal como em francês e nas demais línguas românicas, quando alguém diz “José morreu”, cabe ao interlocutor perguntar: “quando?”. Nessa mesma linha, Diez é enfático ao asseverar que os tempos passados das línguas românicas comparam-se melhor com os tempos gregos do que com os do latim, não obstante recebam a denominação latina, por influência escolástica. No caso do pretérito perfeito, o mestre da romanística o interpreta como o que indica em absoluto o caráter pretérito do enunciado, razão por que lhe confere a denominação de aoristo Não é improvável a hipótese de Burnouf, de que a divergência de nomenclatura nas gramáticas inglesas e italianas, de um lado, e francesas e portuguesas, de outro, tivesse origem no foco da denominação. Saliente-se que já no século XIX atribuíam-se ordinariamente valores sentenciais às partes do discurso, de tal sorte que muitas palavras classificadas como verbos em sentido absoluto eram entendidas como substantivo no corpo da proposição. Nessa linha, ao tratar do português, adverte Maximino Maciel (1914, p. 116): “À categoria dos substantivos appellativos podem passar: (...) c) A maior parte das palavras pertencentes ás demais categorias, ex.: um ai, o nada, o ser, dever, o sim, o porque”. Outra linha de raciocínio, entretanto, pode contribuir para o esclarecimento do fato. Trata-se do exato valor semântico-aspectual do aoristo nas duas línguas citadas: o grego e o sânscrito. Sabemos que em grego o aoristo não traduz propriamente uma expressão de tempo, mas de mero aspecto verbal. Curtius (1820-1885) informa-nos que em grego os tempos verbais se subdividem em (1887, p. 88): a) Tiempos principales, que son: 1. Presente: λύω (desligo) 2. Perfecto: λέλυχα (he desligado) 3. Futuro: λύσω (desligaré) b) Tiempos históricos, esto es: 1. Imperfecto: ἕλυον (desligaba) 2. Pluscuamperf.: έλελύχειν (había desligado) 3. Aoristo: ἕλυσα (desligué) Essa dicotomia aspectual salientada por Curtius, como se vê, estabelece bases de uso semântico diferenciado para o aoristo e o perfeito do indicativo, o primeiro de cunho temporal indefinido, o segundo de cunho definido ou determinado. Cumpre observar, nesse sentido, que, na versão espanhola da obra de Curtius, a proposta de tradução do aoristo e do perfeito gregos conduz respectivamente ao perfeito simples e ao perfeito composto: perfeito grego λέλυχα corresponde a he desligado, ao passo que o aoristo ἕλυσα corresponde a

desligué. Semelhante orientação, reitere-se, revela-se inadequada para a descrição do português

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contemporâneo, já que, nesse caso, o pretérito perfeito composto assume nítido valor progressivo, que se inicia em passado indeterminado e persiste no presente9. Mas a questão aspectual do aoristo grego avança para maior nível de complexidade. Segundo o emérito helenista ibérico Jaime Berenguer Amenós, nas formas verbais do grego cumpre estabelecer importante distinção: a da qualidade ou aspecto verbal, em confronto com o grau temporal. Enquanto o aspecto verbal expressa a maneira como se realiza a ação, o grau cumpre a função específica de indicar o tempo a ação que se realiza. Verifica-se que, na seara própria do aspecto, a ação pode ser expressa em matizes semânticos diferenciados: a) uma ação contínua, que se desenvolve em linha, típica das formas verbais derivadas do presente; b) uma ação pontual ou instantânea, que Berenguer Amenós (1915-1974) denomina “pura e simples como um ponto” (1999, p. 206), característica das formas derivadas do tema do aoristo, que pode ter valor incoativo ou terminativo; c) uma ação perfeita ou acabada, que deve ser considerada em seus resultados. Têm esse valor todas as formas verbais derivadas do tema do perfeito. No que tange ao grau temporal grego, uma ação pode ser presente, passada ou futura. Na verdade, apenas o modo indicativo do verbo grego possui graus temporais, que, por sinal, coincidem com as qualidades suprarreferidas: valor contínuo para o presente, para o imperfeito e para o futuro; valor pontual para o aoristo e valor concluso para o perfeito, mais-que-perfeito e futuro perfeito. Os demais modos, nas palavras esclarecedoras de Berenguer Amenós, não têm graus temporais, mas apenas aspecto. No que tange ao aoristo em particular, no indicativo seu papel é o de expressar a ação pura e simples em tempo passado, sem qualquer ideia de desenvolvimento ou resultado. É o tempo histórico por excelência, que tão bem se exemplifica na emblemática sentença de Julio César, em que se usa o perfeito latino: vini, vidi,

vinci (em grego, ’). Este valor passado do aoristo indicativo é atribuído pelo aumento típico dos tempos secundários do indicativo   ;   e   (BERENGUER AMENÓS, 1999, p. 212). A par do aoristo indicativo, cite-se ainda o aoristo gnômico, usado no lugar do presente em máximas e sentenças que expressam uma verdade consolidada pela experiência, ou mesmo um fato habitual.

9 A rigor, o valor aspectual concluso, no tocante ao pretérito perfeito composto no português do Brasil, resume-se a certas construções

cristalizadas, tais como “tenho dito”, que se costuma usar para dar fecho a uma ordem ou exortação. Como advertem Cunha & Cintra “Ao contrário do que ocorre em algumas línguas românicas, há em português clara distinção no emprego das duas formas do pretérito perfeito (...) A forma simples indica uma ação que se produziu em certo momento do passado (...) A forma composta exprime geralmente a repetição de um ato ou a sua continuidade até o presente em que falamos” (1985, p. 454-455). Note-se que os autores não distinguem o português do Brasil de outras variantes de uso, tais como a europeia e a africana. Também em Bechara (1999, p. 278) e em Azeredo (2008, p. 363) colhe-se a mesma informação, sem distinção das variantes do português.

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No que tange aos demais modos verbais, o aoristo grego não expressa tempo, já que tem mero valor qualitativo. Conclui-se, pois, que em grego, o aoristo e o perfeito do modo indicativo não se distinguem quanto ao tempo, mas tão somente quanto ao aspecto. Enquanto aquele expressa “ação passada pontual”, esse significa “o resultado presente de uma ação conclusa”. Nesse sentido, a proposta de Berenguer Amenós para a tradução do perfeito grego em línguas românicas é a do perfeito composto, ou em perífrase que tenha valor concluso resultativo: , acabo de desatar. Já para o aoristo presente, o autor ibérico propõe tradução com o perfeito simples românico. Não raro se traduz o perfeito grego para o presente românico, tendo em vista seu valor aspectual resultativo: ’t, levantei ou levanto. Se se levam em conta apenas essas lições sobre o aoristo grego, haveríamos acompanhar a hipótese de Julio Ribeiro, visto que nosso pretérito perfeito simples não atribui aspecto resultativo presente à ação verbal, porém mera noção conclusa e pontual em passado não determinado. É o caso de frase como “O dinheiro acabou”, em que o falante situa seu estado de penúria em um tempo não determinado do passado. Se quiser expressar que tal situação é próxima ou determinada em passado recente, certamente dirá algo como “O dinheiro acabou de acabar”. Outros empregos interessantes do perfeito simples português em língua oral, como

bateu, levou e raspou, ganhou, etc. bem demonstram que esse tempo em sentido absoluto traduz fato concluso de tamanha indefinição temporal que bem pode relacionar-se até ao futuro. A questão, entretanto, atinge maior grau de complexidade ao analisarmos os valores aspectuais do aoristo no sânscrito, visto que seu emprego não parece confluir com o do aoristo grego, como a princípio seria de supor. O verbo sânscrito, conforme nos informa Thomas Burrow (1909-1986), possui quatro raízes temporais: a do presente, a do futuro, a do aoristo e a do perfeito. A raiz do presente forma, além do próprio tempo presente, a base de um pretérito, por esse motivo chamado de imperfeito (2001, p. 295). Da mesma maneira, forma-se um pretérito com a raiz do futuro, que funciona com valor condicional. Na língua védica, uma forma de pretérito formou-se com base na raiz do perfeito, de que resultou um pretérito mais-que-perfeito de raro emprego mesmo nas primitivas fases da língua, com posterior desaparecimento. A raiz do aoristo forma apenas um pretérito. A distinção morfo-semântica mais notável do verbo sânscrito situa-se entre o perfeito e os outros três sistemas em conjunto. O perfeito tem caráter idiossincrático não apenas na formação da raiz, mas também na atribuição de desinências pessoais próprias. Saliente-se, por sinal, que é justamente entre o perfeito e os demais sistemas da conjugação verbal que se estabelece a mais antiga e fundamental divisão no indo-europeu. Por outro lado, quando se examina a relação entre o aoristo e o sistema do presente no sânscrito, fica claro que tais tempos advêm da mesma origem, constituem modificações do mesmo tipo de formação. A estreita relação entre

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o aoristo e o presente fica evidente em certas raízes aorísticas por terem extrema similitude com raízes presentes. Esse é o caso, conforme ainda nos informa Burrow, da raiz aorística ákar, que se assemelha ao imperfeito áhan; também o aoristo árubat lembra de perto o imperfeito átudat (2001, p. 296). A relação entre o presente e o imperfeito, de um lado, e o aoristo, de outro, só não desfruta de identidade quanto ao valor semântico-aspectual. Com efeito, o presente indica simplesmente o tempo atual, com valor de ação concomitante com o momento da fala, ao passo que o imperfeito remete a um tempo passado em contraste com esse presente momentâneo. O imperfeito, como se vê, não define o tempo passado em que ocorre a ação. Assim, a forma presente hánti, “ele mata”, opõe-se ao imperfeito áhan, “ele matou”. Não há qualquer traço de um imperfeito sânscrito com valor aspectual de ação passada contínua ou em curso, valor este que se pode atribuir ao verbo mediante atribuição do sufixo -sma. Já o aoristo, se confrontado com o imperfeito, expressa um tipo especial de tempo passado, visto que seu emprego visa exclusivamente a descrever uma ação conclusa próxima do presente: úd asaú súryo ágat, “o sol nasceu lá longe”, corresponde ao aspecto do present perfect inglês has risen, ou do passado composto românico, com exceção da vertente brasileira do português, que também expressam ação passada e próxima do presente. Quanto ao perfeito, seu principal valor aspectual é o de indicar a ideia de estaticidade, em oposição ao valor progressivo do presente: o perfeito ciketa (ele sabe), opõe-se ao presente cetati (ele observa). Não há entre tais formas distinção temporal (BURROW, 2001, p. 296). Em outras palavras, o perfeito sânscrito é originalmente um tipo especial de tempo presente, não propriamente uma forma pretérita, fato que propicia, nas palavras de Burrow, sua usual tradução para o simple present do inglês. Ora, como o estado é normalmente o resultado de um processo anterior, tornou-se natural o uso do perfeito para indicar que determinada ação já havia ocorrido. Ainda assim, a diferença entre esse uso do perfeito e o aoristo permanece clara em sânscrito, visto que esse último confina-se às ações conclusas em passado próximo, ao passo que o primeiro indica o complemento de ação passada sem definição de tempo. Tais fatos são decisivos para que se assevere sem receio de erro que, no sânscrito, o aoristo tem valor aspectual bem distinto do que assume em grego: enquanto na língua de Homero seu valor é de ação conclusa indefinida, no idioma hindu seu valor é de ação conclusa em passado próximo, portanto definido. Retomando o fio condutor dessas linhas, se acatarmos, com Julio Ribeiro, que o perfeito simples português é uma expressão do aoristo, havemos de situar tal vínculo no aoristo grego. Quanto à antinomia percebida pelo notável filólogo brasileiro entre gramáticas inglesa e italiana, que usam o termo perfeito

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Um passo da descrição do verbo em Julio Ribeiro

indefinido, e as gramáticas portuguesa e francesa, que optam por perfeito definido, não se há de afastar a hipótese de que semelhante contradição esteja no próprio significado de aoristo, conforme seja o que o referido tempo verbal tenha em grego ou em sânscrito.

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Data de submissão: nov./2015. Data de aprovação: nov./2015.

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