UM PERÍODO DECISIVO NA TRANSFORMAÇÃO URBANA DA LAGOA RODRIGO DE FREITAS: ANOS 1920

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UM PERÍODO DECISIVO NA TRANSFORMAÇÃO URBANA DA LAGOA RODRIGO DE FREITAS: ANOS 1920 Sonia Schlegel1, Fernanda Furtado2. 1 Instituto

Metodista Bennett Federal Fluminense

2 Universidade

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Resumo O objetivo deste artigo é contribuir para desvendar o compromisso político histórico entre o poder público e a elite local no planejamento do espaço urbano da Lagoa Rodrigo de Freitas. Questionando desde quando a transformação urbana nesta área tem aspectos elitistas, consideramos o "Projeto de Saneamento e Embelezamento" como um passo decisivo neste processo, que incluiu desde a retirada da classe laboral pobre para a venda de terrenos urbanizados a classes médias ou superiores até a inserção do Jockey Clube no projeto para atrair a população necessária ao enobrecimento da área. Assim, não ignorando a importância dos anos 1960 pela intensa remoção de favelas da região, a década de 1920 pode ser considerada como um marco no processo de transformação urbana para a sua apropriação pela elite local. Abstract This paper main purpose is to contribute to unveil the historical political commitment between the public power and the local elite in Rodrigo de Freitas Lagoon urban space planning. Our main question is since when urban transformation in this area have elitist aspects. We consider the “Sanitization and Embellishment Project” as a decisive step in this elitist process that included withdrawing the poor labouring class from the area in order to sell urbanized land to medium or upper classes, and also the insertion of the Jockey Club in the project to attract new neighbours that could ennoble the area. Thus, not ignoring the 1960s slum quarters removal decade, the 1920s can be considered as a landmark decade in the urban transformation process towards its appropriation by local elite. Palavras-chave História urbana, planejamento urbano, Rio de Janeiro, Lagoa Rodrigo de Freitas, Saneamento, Estratificação socioespacial. Keywords Urban history, urban planning, Rio de Janeiro, Rodrigo de Freitas Lagoon, Sanitization, Socialspatial stratification.

1 Introdução Esse artigo foi motivado por um questionamento: a partir de que período pode ser considerado que as obras públicas executadas no espelho d’água e no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas tiveram cunho elitista? Argumentamos neste trabalho que a execução do projeto de “Saneamento e Embelezamento da Lagoa Rodrigo de Freitas” na década de 1920, realizado com justificativas técnicas e higienistas, marcou na verdade o início de um longo processo intencional, capitaneado pelo poder público, de elitização da área, a qual passou por um conjunto de transformações urbanas que se 1

somaram ao longo das décadas para garantir a consolidação desse espaço urbano como uma das zonas mais nobres da cidade. Localizada em uma planície de pequena declividade formada por terrenos alagadiços entremeados por morros, e emoldurada por cadeias de montanhas, a cidade do Rio de Janeiro foi palco de sucessivos aterros de lagoas e pântanos, desmontes de morros e abertura de túneis, em um processo denominado por Lysia Bernardes (1959, apud FRIDMAN, 1999) como “a dura luta da cidade contra o pântano, a montanha e o mar”. Este processo de conquista de novos terrenos urbanizáveis, inicialmente concentrado nas áreas centrais e naquelas da periferia imediata ao centro, aos poucos vai se reproduzindo em outras regiões da cidade, chegando a Copacabana no final do século XIX, com a abertura do Túnel Velho, e a Ipanema no início do século XX, atingindo a praia do Leblon ao final da primeira década daquele século. Quanto à região banhada pela Lagoa Rodrigo de Freitas, e em particular o Jardim Botânico e a Gávea, apesar de terem tido um processo consistente de povoamento, provisão de transportes e mesmo atividade comercial e industrial crescente desde a segunda metade do século XIX, somente na década de 1920 é objeto de uma atuação mais firme por parte da administração pública, de modo a solucionar os problemas sanitários ali existentes, e ao mesmo tempo modernizá-la. Este artigo busca contribuir para o reconhecimento de que essa iniciativa de saneamento e embelezamento da região da Lagoa Rodrigo de Freitas foi parte não somente de um projeto sanitarista e de criação de espaços públicos, de esporte e lazer para a cidade, com o intuito de modernizá-la, mas também, e fundamentalmente, de um projeto elitizador dos bairros do entorno da Lagoa e que objetivava sua incorporação como opção de moradia para a população mais nobre da cidade, alterando de modo radical o uso industrial anteriormente predominante e, consequentemente, substituindo sua população operária. Desta forma, aponta-se o período em torno dos anos de 1920 como um momento também decisivo para a transformação socioespacial da Lagoa e seu entorno, equiparando este período ao da década de 1960, já conhecido como um momento essencial desse processo de elitização, em função, sobretudo, da remoção de um grande número de favelas localizadas na área de entorno da Lagoa (CHISAM, 1973). Antecedentes (1808 a 1920) A chamada Lagoa Rodrigo de Freitas, situada na bacia hidrográfica do bairro do Jardim Botânico, é na realidade uma laguna, ou seja, um braço de mar, conforme observado por Charles Darwin em sua visita à cidade na década de 1830 (LEONARDOS, 1974). Enquanto a restinga, conformada pelos atuais bairros do Leblon e de Ipanema, foi formada por areia transportada pelas correntes suloceânicas, o assoreamento das margens da lagoa provinha de depósito de matéria orgânica transportada pelas águas que desciam das montanhas (SATURNINO DE BRITO, 1944). A chegada da família Real ao Brasil, em 1808, marca o início da ocupação urbana da região banhada pela Lagoa, com a desapropriação do engenho da Lagoa Rodrigo de Freitas para a implantação da Fábrica Real de Pólvora e de um jardim de plantas exóticas, mais tarde chamado de Horto Real do Jardim Botânico. Esta ocupação foi se intensificando nas décadas seguintes, acompanhando o eixo Botafogo-Jardim Botânico-Gávea. Até a segunda metade do século XIX, a área onde hoje está situado o Hipódromo da Gávea (Jockey Clube) conformava uma espécie de apêndice da Lagoa, dando acesso lacustre ao portão principal do Jardim Botânico. Pouco a pouco, 2

o leito da Lagoa foi sendo aterrado por proprietários de chácaras da região (GERSON, 2000). A linha de bondes entre a Praia de Botafogo e o portão do Jardim Botânico foi inaugurada em 1871, estendida logo depois até o largo das Três Vendas (hoje Praça Santos Dumont ou do Jockey) e em seguida até a Olaria (atualmente em frente à PUC, na Rua Marquês de São Vicente) (GASPAR E BARATA, 2008). A chegada do transporte público e o aumento populacional foram processos que se retroalimentaram: a população da freguesia da Lagoa - que então incluía Botafogo, e até 1873 também a Gávea - aumentou de 2.125 habitantes em 1821 para 3.319 em 1843, e para 11.304 em 1870 (ABREU, 1987). Entretanto, as condições sanitárias da região não acompanharam este processo de adensamento, permanecendo as áreas do entorno imediato da Lagoa como áreas alagadiças. Por estar localizada em área de pouca declividade, eram frequentes as enchentes provocadas pela pequena vazão de saída dessa bacia hidrográfica, sendo necessário executar, de tempos em tempos, a reabertura da barra para restabelecer a ligação com o oceano. Conforme Saturnino de Brito (1944) e Othon Henry Leonardos (1974) há registros, nos anos de 1862, 1869 e 1870, de protestos públicos causados por enchentes ocorridas no Jardim Botânico e, a partir de 1871, até o final da década de 1910, foram também registrados uma série de eventos e propostas sanitárias (não concretizadas) para a Lagoa Rodrigo de Freitas. As propostas para resolver o problema sanitário da Lagoa nessas cinco décadas foram muito diversas e incluíam:1 a ligação direta da Lagoa com o mar através de encanamento; bombeamento de água do mar para a Lagoa por intermédio de bombas movidas por cataventos; construção de canal para manter comunicação direta da Lagoa com o oceano; saneamento da Lagoa através de aterro das margens pantanosas e instalação de dois canais (um passando pelo hoje Corte Cantagalo e chegando a Copacabana e outro passando pelo Humaitá e chegando à praia de Botafogo); saneamento da Lagoa com aterro das margens até cota de três metros, construção de cais marginal, abertura de canal a partir da ponta do Vidigal com dois ramais e construção de nova cidade nos terrenos aterrados e desapropriados; construção de cais circundando a Lagoa e canal circular ligando a lagoa à praia de Copacabana; aterro completo da bacia da Lagoa, ou, alternativamente, a transformação das águas em exclusivamente doces ou totalmente salgadas. Estas propostas acompanhavam a evolução das ideias sobre o Movimento Higienista no país e sua repercussão no Rio de Janeiro, a partir do Plano Beaurepaire, de 1843, considerado o primeiro plano urbanístico da cidade, e cujas propostas de remodelação, saneamento e aformoseamento foram sendo paulatinamente absorvidas (MELLO JUNIOR, 1988). Observa-se, no entanto, um hiato de mais de duas décadas entre a circulação das ideias higienistas e a elaboração de propostas concretas para a região da Lagoa. Conforme Verena Andreatta, a Junta de Higiene Pública criada por decreto de 1850 “na realidade teve mais influência na criação da opinião pública do que na implementação de políticas higienistas no Rio de Janeiro” (2006, p.132). A partir do entendimento de que “o meio ambiente urbano era a causa das epidemias e doenças que agravavam a saúde e a convivência pública”, o movimento higienista

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Compilação de informações obtidas em LEONARDOS (1974) e SATURNINO DE BRITO (1944). Para maiores detalhes veja SCHLEGEL COSTA, 2009, Tabela 6, p.126-129.

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apontava a “morfologia da cidade como a principal causa dos seus problemas sanitários” (ANDREATTA, 2006: 122 e 126). As áreas do entorno da Lagoa, como outras áreas alagadiças da cidade, passaram a ser consideradas insalubres por serem foco de mosquitos e facilitar a proliferação de doenças como a malária, a febre amarela, a peste bubônica, a varíola e disenterias. Com isso, as terras que circundavam a Lagoa tinham pouco valor, fato que, associado à débil condição sanitária e à falta de acessibilidade da região, resultou na ocupação do local por uma “população ribeirinha que ahi ia procurar residencia gratuita, em terrenos abandonados, e que pagava com a saude o que não poderia pagar pecuniariamente” (SAMPAIO, 1924, p.119, grafia de época). Mas a insalubridade às margens da Lagoa não impediu o avanço do processo de ocupação da área e, a partir de 1880, da crescente instalação de indústrias, em substituição às antigas chácaras, em uma região cada vez mais urbana. A localização industrial nas fraldas das montanhas se devia à facilidade de captação de água, essencial no caso das indústrias que tinham o vapor como força motriz. No caso das indústrias têxteis nos bairros do Jardim Botânico e Gávea, a implantação do sistema de carris urbanos (bondes) ocorreu em paralelo à expansão industrial. O surto industrial no Rio de Janeiro, no período de 1880 a 1891, posicionou a cidade como o primeiro centro industrial do Brasil, sendo desta época a Fiação e Tecidos Carioca (1886) e a Fiação e Tecidos Corcovado (1889), ambas no bairro do Jardim Botânico (OLIVEIRA, 2006). Assim, as áreas menos próximas das margens, e mais próximas das montanhas, foram sendo então ocupadas por indústrias, que por sua vez começaram a ser rodeadas por vilas e outras moradias operárias. Desde 1882, os industriais passaram a obter incentivos fiscais para a construção de vilas operárias (ABREU,1987), o que, conforme Elisabeth Weid (1986), era considerado um bom modo de controlar o operariado e fixar a mão-de-obra, nesse período imediatamente após a abolição da escravatura, em que a mão-de-obra profissional era escassa. Em 1888, novo decreto legislativo amplia os benefícios concedidos às indústrias para a construção de casas populares, incluindo a concessão de terrenos para este fim (ABREU, 1987). Para explorar esses privilégios, Arthur Sauer organiza, em 1889, a Companhia de Saneamento do Rio de Janeiro, com o intuito de construir três mil habitações operárias “higiênicas” que pudessem ser adquiridas pelos inquilinos, por meio de pagamento em longo prazo com a amortização do capital equivalente à casa ocupada. Em 1891 foi construída a vila Arthur Sauer, próxima à fábrica Fiação e Tecidos Carioca e com uma área de 51.000m² (CARVALHO, 1980). Essa dinamização e a melhoria da acessibilidade, se por um lado foram essenciais para a expansão industrial de toda a região, por outro lado foram também os elementos que ofereceram as condições - e os argumentos - para a elitização da área. O relatório de Luiz José da Costa (1912), que trata das bases para o Saneamento do Rio de Janeiro, reclama o inadiável saneamento da Lagoa, poluída pelos detritos das indústrias de tecidos, e indica o início de um movimento contrário à permanência de indústrias em bairros como Jardim Botânico e Gávea. Para melhor entender esta mudança, é preciso situar espacialmente, e socialmente, a região do Jardim Botânico e da Gávea no contexto urbano da cidade. O modelo de expansão urbana do Rio de Janeiro tem seus eixos partindo do centro da cidade em

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direção, basicamente, às praias do sul e em direção ao norte . No bojo da dualidade norte-sul como vertentes diferenciadas de expansão geográfica e social da cidade, pode-se perceber, a partir do início do século XX, que a distinção da zona sul da cidade como a nova área da elite urbana já se confirmava em outros bairros desta vertente, como Copacabana e Ipanema, pois estes já tinham sido objeto de políticas urbanizadoras. No trecho do Jardim Botânico, Gávea e Lagoa, porém, ainda não se observava esta tendência, dado o caráter industrial da região, em função de sua localização nas fraldas das montanhas e proximidade às suas nascentes. Este contexto vai ser alterado nas primeiras décadas do século, com o advento da eletrificação, que aos poucos vai sendo disseminada aos bairros menos centrais. Além disso, a transformação urbana projetada para a região da Lagoa Rodrigo de Freitas neste período está também inserida na necessidade de criar um caminho alternativo ao bairro do Leblon, sobretudo em sua parte mais interior, tendo em vista que o bairro era o próximo a ser urbanizado na orla marítima da zona sul da cidade, porém estava separado de Ipanema justamente pela barra da Lagoa. Como sanear a área era uma questão cada vez mais presente nos debates desde o final do século XIX, discutia-se a melhor maneira de transformar aquela área de grande potencial urbano em uma área salubre. Assim, o poder público lançou mão da utilização do discurso médicosanitarista como forma de mobilizar a opinião pública e empreender as reformas urbanas necessárias à valorização da terra na região (SCHLEGEL, 2009). Em suma, os debates envolviam variadas questões: médicos e higienistas, em seus pareceres sobre as enchentes sucessivas no bairro do Jardim Botânico, criticavam a localização das indústrias e acusavam-nas de despejar resíduos nos rios que desembocavam na Lagoa; vários estudos foram elaborados para tentar acabar com a mortandade dos peixes, que era constante devido à baixa salinidade da água; as condições de higiene local e as próprias condições de moradia às margens da Lagoa contribuíam para o alastramento de doenças; a região era alagadiça e facilitava a procriação de mosquitos, que causavam grande parte das doenças. Enfim, o saneamento, que era urgente desde o século XIX, não podia mais esperar. O deslanche do processo de transformação da região Foi durante a administração do prefeito Carlos Sampaio (de 1920 a 1922) que a Lagoa Rodrigo de Freitas e seu entorno passaram por grandes transformações. Sampaio foi um prefeito que amadureceu o caráter empresarial da administração pública, trazendo sua experiência anterior como empresário, assim como fizeram, antes dele, Pereira Passos (de 1902 a 1906) e Paulo de Frontin (em 1919). Suas realizações no período incluem o desmonte quase total do Morro do Castelo (obra que remontava ao início do século), a Exposição do Centenário da Independência (imagem do progresso, da civilização, da higiene e da beleza), o melhoramento das bacias dos rios Trapicheiro, Joana e Maracanã, e o saneamento da Lagoa Rodrigo de Freitas (KESSEL, 2001). Carlos Sampaio aprovou em 9 de março de 1921 o projeto elaborado por Saturnino de Brito, que compreendia: um cais de contorno da Lagoa sobre enrocamento com extensão de 5.100 m, o aterro das margens baixas e alagadiças (área de 1.345.800

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Bairros do Flamengo, Botafogo, Copacabana, Ipanema e Leblon Bairros do Rio Comprido, Tijuca, Grajaú, São Cristóvão, Vila Isabel, Ramos, Penha, Méier, Madureira. A diferenciação na ocupação urbana nas ramificações desses dois eixos envolve também os distintos sistemas de transporte urbano implementados (bondes e trens, respectivamente). 3

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m²), a canalização e regularização de todos os rios e das águas pluviais para a bacia da Lagoa, o calçamento e arborização de todos os logradouros públicos estabelecidos na área aterrada, a fixação do regime de comunicação entre as águas da Lagoa e o oceano (SATURNINO DE BRITO, 1944, p.32). Saturnino de Brito compartilhava da opinião da maioria dos projetos apresentados - de que a Lagoa deveria ser permanentemente de água salgada - e esta foi a base do projeto do “canal interceptor”, que teria a função de reduzir a contribuição de águas doces dos cursos dos rios e das chuvas ao regime de afluência da Lagoa, drenando as superfícies baixas e descarregando no mar, ao sopé do morro Vidigal. Observa-se que outras definições de Saturnino de Brito extrapolaram o caráter sanitarista do projeto, envolvendo também parâmetros urbanísticos. Definiu-se, por exemplo, que o canal da barra não poderia ser curto, pois deveria funcionar como perda de carga do regime das marés, sendo assim mais fácil controlar o nível da Lagoa (IDEM, p.65). A fixação do canal em 96 metros definiu o comprimento da primeira quadra (a partir da praia) do Leblon. Seu projeto também norteou outros itens do desenho urbano, como a previsão de avenida (hoje Av. Visconde de Albuquerque, no final do Leblon) com a localização do canal no centro desta – a partir de sua obra “Le Tracé Sanitaire des Villes”, editada em 1916, na França (IDEM, p.84). Seu projeto sugeriu, ainda, legislação urbanística para o estabelecimento de afastamentos entre as edificações e os leitos dos rios. Percebe-se, na planta da Lagoa Rodrigo de Freitas executada por Saturnino de Brito inicialmente em formato de estudo para apresentação ao Prefeito, depois já incorporado pela municipalidade, no projeto de alinhamento PAA 1488-B, de 3/11/1922, que o terreno onde atualmente está situado o Jockey Clube Brasileiro já se encontrava reservado para essa finalidade (SCHLEGEL COSTA, 2009). Do Prado Fluminense ao Jockey Clube Brasileiro: a forte ligação da elite com o Estado Uma grande parcela dos terrenos criados com os aterros executados na Lagoa Rodrigo de Freitas aborda uma permuta com outro terreno na cidade, através de concessão: conforme matéria histórica veiculada no Correio da Manhã (em 20 de janeiro de 1956), então principal jornal da cidade, foi cedido ao Jockey Clube, para a construção de seu novo hipódromo, um terreno às margens da Lagoa com uma área total de 396 mil metros quadrados, estimado em 1.980 contos de réis - limpo de árvores e tocos, bem como aterrado e consolidado; o Clube entregaria, em troca, à Prefeitura seus terrenos do antigo Prado Fluminense, na freguesia do Engenho Novo, mais próximo do centro da cidade e na direção da zona norte (ou seja, em região mais popular), com uma área total de 278 mil metros quadrados, avaliados em 2.015 contos e 500 mil réis. Segundo este histórico, pode-se notar, inclusive, que a escolha do terreno para a implantação do Jockey Clube se deu anteriormente à administração Carlos Sampaio e à aprovação do projeto de Saturnino de Brito, tendo ocorrido na mesma época em que o prefeito Paulo de Frontin construiu as novas avenidas da orla carioca, chegando a São Conrado: “O local escolhido para a construção das novas pistas do Jockey Clube foi a Gávea. Nenhum outro recanto no Distrito Federal poderia se prestar melhor para a instalação: a natureza e os requisitos técnicos do local bastaram para que todos considerassem como ótima a escolha. Em 1919, a Diretoria do Jockey Clube, presidida pelo Dr. João Teixeira Soares, deu os primeiros passos para a concretização 6

da ideia, cujo patrono, Dr. Linneo de Paula Machado, era na época, vice-presidente da sociedade.” (CORREIO DA MANHÃ, 20/01/1956, 3º Caderno). Paula Machado, além de membro proeminente da elite carioca, era um verdadeiro embaixador do turfe brasileiro, tendo firmado acordos de solidariedade entre o Brasil, a França e a Inglaterra, além da Argentina e do Chile. Além disso, logrou que o então presidente da República, Venceslau Brás, sancionasse, em 1918, lei de regulação da atividade e apoio aos criadores.4 Seu empenho em dotar a cidade de um hipódromo moderno levou ao lançamento da pedra fundamental da construção do novo prado em 12 de novembro de 1922. A liquidez financeira necessária ao início das obras do Jockey Clube veio de sua colaboração pessoal, ao disponibilizar um adiantamento de 3.000 contos de réis. Encontra-se registrado no documento levado por Carlos Sampaio ao exterior para buscar a obtenção de financiamento externo (SAMPAIO, 1923), e publicado na França, a menção a Linneo de Paula Machado como responsável pela ideia da construção de um prado de corridas de cavalos moderno, de acordo com os preceitos internacionais. Percebe-se, nesta empreitada, a forte ligação entre membros da elite e da administração pública em relação ao objetivo mútuo de elitizar a área de entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas. O destino da área: iniciativas, objetivos declarados e resultados obtidos Durante o mandato de Carlos Sampaio, sucessivos projetos de alinhamento contribuíram para modificar a região: o Arruamento da Vila Floresta, no Jardim Botânico (PAA 1344), o Projeto de Melhoramento da Lagoa Rodrigo de Freitas (PAA 1386), o Arruamento da área do Leblon (PAA 1440) e o de Ipanema (PAA 1441), o Projeto do Canal e Avenida Visconde de Albuquerque (PAA1454), a Desapropriação dos terrenos necessários à execução das obras de saneamento e melhoramento da Lagoa (PAA 1453, PAA 1453-B), o Projeto de Saneamento da Lagoa (PAA 1454-A), a Planta geral do Conjunto de Melhoramentos da Lagoa (PAA 1462), o Projeto de Saneamento da Lagoa (PAA 1488-B), e o Melhoramento da Lagoa Rodrigo de Freitas aprovado de acordo com o Decreto nº 1824 (PAA 1488-A). 5 O saneamento da Lagoa (com a canalização dos rios da região) e as novas avenidas criadas colaboraram para justificar decretos de desapropriação que, com o objetivo imediato de preparar a área para os trabalhos que seriam executados, acabaram por expulsar imediatamente as classes desfavorecidas que aí habitavam. O loteamento da área entre a Rua Jardim Botânico e o cais de enrocamento (entre o Jockey Clube e a Sociedade Hípica Brasileira; e entre o Clube Militar e a Fonte da Saudade) e o posterior loteamento das áreas ainda não ocupadas entre a Rua Jardim Botânico e a montanha do Corcovado (loteamento Vila Floresta6, loteamento Jardim Corcovado7)

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Em www.harassaojose.com pode-se encontrar um histórico mais detalhado de sua atuação. No Rio de Janeiro, a numeração dos Projetos de Alinhamento e Arruamento ocorre em número crescente desde o início do século XX. Os PAA citados são referentes aos anos de mandato do Prefeito Carlos Sampaio (1920 a 1922). Para maiores informações e reproduções dos projetos, ver SCHLEGEL COSTA, 2009. 6 O loteamento da Vila Floresta, em terreno da Fábrica Carioca, no Jardim Botânico, já possuía projeto de arruamento desde 16 de julho de 1920, que só foi aprovado por decreto em 12 de fevereiro de 1938. (REIS, 1977). 7 Loteamento Jardim Corcovado, em terreno da Fábrica Corcovado, PAA 2972 / PAL 3548 (24/06/1938). 5

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vieram a reforçar a substituição dos antigos moradores por outros, de nível social distinto, contribuindo assim para a elitização da região. Carlos Sampaio, por sua trajetória empresarial anterior ao cargo político, já tinha experiência na busca de capitais externos e no desenho financeiro das operações por ele concebidas. Seu projeto incluía a obtenção de ganhos diretos, por parte do poder público, com a venda dos terrenos resultantes das obras de aterro, além de ganhos indiretos pela antecipação financeira da receita a ser obtida com a arrecadação de impostos imobiliários. Ao longo de seu mandato, sofreu duras críticas, pois a quantidade de obras em andamento e a dificuldade de completar o desmonte do Morro do Castelo trouxeram descrédito ao seu governo. Entretanto, o grande esforço empenhado na realização do aterro da Lagoa, que incluiu inovações como a utilização de lixo para cerca de um terço do volume de terra necessário e a autorização do Departamento de Saúde Pública para tal utilização, levou a uma mudança da visão da opinião pública quanto à capacidade de sua administração municipal. Carlos Sampaio sublinhou a previsão da vantagem sob o ponto de vista financeiro de um empreendimento que teria suas despesas cobertas pela venda dos terrenos urbanizados e possibilitariam obtenção de lucros indiretos com a valorização da capital: Foi assim, sob a tríplice visão da higiene, do embelezamento e da economia, que me decidi a empreender a realização desta idéia que se formou em meu espírito desde o início de minha carreira como engenheiro. Esta laguna, favorecida de um modo ideal pela natureza, que a colocou entre as montanhas (entre elas, o Corcovado) e o mar, sempre chamou a atenção dos governos... É preciso observar que a maior parte dos terrenos que se encontravam ali pertenciam ao Estado; eles constituíam o que chamávamos a “Fazenda D. Isabel”. Assim seguiram as coisas depois da proclamação da república, mas as margens da laguna continuavam a ser baixas e alagadiças, apesar do desenvolvimento incessante da população ribeirinha, e esta circunstância exigia que se adotasse sem demora uma solução radical e definitiva, que pudesse resolver todas as facetas do problema, não somente do ponto de vista técnico e higiênico, mas também do ponto de vista financeiro, de modo a aumentar o patrimônio municipal. (SAMPAIO, 1923, p.6 a 9 – tradução e grifo nossos). O caráter empresarial do projeto e sua realização repousam, portanto, na clara intenção de ganhos financeiros, de um “mecanismo de incremento de receita através da criação artificial de espaço a ser comercializado posteriormente, espaço naturalmente valorizado pelas obras de urbanização” (KESSEL, 2001, p.56). Todos os elementos necessários à valorização da terra estavam ali colocados: o aprimoramento da acessibilidade, a alteração de padrões de vizinhança, a mudança das normativas urbanas e o incremento dos investimentos públicos. E, mais importante, a exclusividade desta situação, uma vez que a valorização é tanto maior quanto mais escassas forem as áreas que possuem estes padrões. (FURTADO, 2004) Conclusão A análise das propostas, projetos e realizações na área de entorno da Lagoa mostra que o discurso médico-sanitarista foi usado como forma de mobilizar a opinião pública em prol da necessidade e urgência do saneamento, em conjunto com um projeto de embelezamento. Assim, pode-se entender os objetivos reais que estavam por trás das transformações urbanas propostas: a obtenção de novas áreas conquistadas da Lagoa para a zona mais nobre da cidade, a elitização do espaço urbano através da inserção de um complexo esportivo monumental e de cunho internacional destinado a 8

corridas de cavalos, a retirada imediata das classes desfavorecidas que habitavam as áreas que seriam objeto de intervenções através de decretos de desapropriação, o loteamento da área entre a Rua Jardim Botânico, via principal de acesso ao bairro industrial de mesmo nome, e o cais de enrocamento, e o loteamento das áreas não ocupadas e mesmo as de algumas indústrias entre a Rua Jardim Botânico e a montanha do Corcovado. Vale observar, neste conjunto de objetivos, que a possibilidade de valorização do solo urbano com a viabilização de um empreendimento com outro perfil – distinto do perfil da população operária ali residente - já seria suficiente para financiá-lo. Foi definido, assim, um novo padrão de ocupação do bairro da Lagoa, com um perfil socioeconômico mais elevado, representativo de uma área nobre da cidade. Após a execução do empreendimento haveria então uma nova população residente, que contribuiria para pressionar politicamente a prefeitura com o intuito de proibir as indústrias, que por sua vez impulsionaria uma posterior alteração do perfil da população dos bairros vizinhos. Em suma, o projeto realizado no período foi a base necessária para a elitização definitiva da região, que foi então reforçada por outras iniciativas importantes ao longo das décadas seguintes, tais como a alteração radical do zoneamento dos bairros de entorno, através do Decreto 6000 de 1937, que ao proibir as indústrias remanescentes acelerou a substituição da população operária ainda residente, até as ações mais recentes como a expansão das áreas de lazer às margens da Lagoa, passando pela remoção de diversas favelas nas encostas e áreas alagadiças nos anos de 1960 e a execução de um projeto rodoviarista cortando a região. 2 Mapa

Mapa 1 - Mosaico do PAA 1488-A (13/11/1922) e sobreposição à cadastral de 1908 (PCRJ) Fonte: SCHLEGEL COSTA, 2009

3 Referências ABREU, Maurício: Evolução Urbana do Rio de Janeiro, IPLANRIO / ZAHAR, 1987. 9

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