UM PONTO DE EQUILÍBRIO NO ACESSO À JUSTIÇA: Os Jogadores Processuais e o Contencioso de Massa das Relações de Consumo nos Juizados Especiais Cíveis

July 22, 2017 | Autor: Ivan Borges Sales | Categoria: Direito, Processo Civil, Direito Do Consumidor, Juizados Especiais Cíveis, Juizados Especiais
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Ivan Borges Sales

UM PONTO DE EQUILÍBRIO NO ACESSO À JUSTIÇA: Os Jogadores Processuais e o Contencioso de Massa das Relações de Consumo nos Juizados Especiais Cíveis

TESE DE LÁUREA

Orientador: Orientador Professor Doutor Heitor Victor Mendonça Fralino Sica

FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2014

Título: UM PONTO DE EQUILÍBRIO NO ACESSO À JUSTIÇA: Os Jogadores Processuais e o Contencioso de Massa das Relações de Consumo nos Juizados Especiais Cíveis

Autor: Ivan Borges Sales

TESE

DE

LÁUREA APRESENTADA AO

DEPARTAMENTO

DE

DIREITO

PROCESSUAL DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO COMO REQUISITO PARA A OBTENÇÃO DO TÍTULO DE BACHAREL EM DIREITO São Paulo, ____ de __________2014

Examinadores: ________________________________________ ________________________________________

FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2014 I

Resumo O presente trabalho trata da relação entre a massificação da tutela individual dos consumidores no sistema dos Juizados Especiais Cíveis instituídos pela Lei 9.099/95 e a gestão processual decorrente das diferenças entre os litigantes eventuais – consumidores – e os litigantes repetitivos – fornecedores – polo passivo das demandas nos Juizados. O trabalho busca, ainda, elencar as formas coletiva e individual para a tutela dos direitos dos consumidores, positivadas pela Lei 8.078/90, bem como a origem histórica do modelo de acesso à justiça representado pela instituição dos Juizados Especiais Cíveis. Por fim, o trabalho se aproxima de um rol exemplificativo das eventuais superioridades estratégicas do litigante repetitivo, bem como das respostas dadas pelo sistema jurisdicional dos Juizados ao número crescente de demandas. Essa relação entre superioridades estratégicas e respostas jurisdicionais tenderia a promover um sistema de equilíbrio entre o acesso à justiça e as externalidades decorrentes da tutela consumerista individual. Abstract The present work deals with the relation between the individual protection of consumers in the Brazilian Small Claim Courts established by Law 9.099/95 and the case management system arising from differences between the plaintifs represented by One Shoters - the Consumers - and Repeat Players – the Companies – which representes the defendants in the Courts. The work also aims to list the Class and Individual ways to protect the consumers, ruled by Law 8.078/90, like the historical origin of Access to Justice movement, represented by the institution of the Small Claim Courts. Finally, the work approaches an illustrative list of possible strategic superiority of the Repeat Player as well as the answers given by the judicial system of the growing number of issues. This relation between strategic superiority and jurisdictional responses would tend to promote a static system between Access to Justice and externalities arising from individual consumerist litigation.

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Agradecimentos Em primeiro lugar, à Letícia pessoa que me mantem firme nas horas de incerteza e que sabe o jeito mais doce de me desequilibrar nos momentos em que minha rigidez tende à imobilidade. Ao lado, e pelas mesmas razões, a Benedito e Maria (Pai e Mãe) aos quais devo os ensinamentos sobre lidar com a vida, as pessoas e comigo mesmo. O agradecimento estende-se, também, a meus amigos e familiares que, dentro e fora das Arcadas, sempre estiveram ao meu lado assim como todos os demais, professores, funcionários, colegas, em suma, amizades que construí nesses cinco anos. Agradeço, em especial, ao privilégio de ter na prática me beneficiado de não um, mas (obter dictum) dois orientadores, Heitor Sica e Susana Henriques da Costa, professores que auxiliaram nesse primeiro passo, pessoas pelas quais nutro uma grande admiração e respeito. No mais, agradeço aos diversos advogados que conheci nesse período de estudos, aos quais eu devo o paradigma de retidão e honestidade profissional, além de tudo que sei sobre a prática desta bela profissão. Aos que por ventura tenha me esquecido mencionar, os mais sinceros agradecimentos, cada qual sabe bem a importância que tem, teve e terá até aqui e daqui em diante.

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"O que há de estranho neste confinamento dos juristas no 'mundo dos conceitos' é que, não lhes sendo permitido utilizarem-se dos casos concretos de sua experiência profissional, eles acabam formando uma classe singular de 'cientistas' a quem, embora envolvendo-se com a sufocante realidade dos conflitos sociais, não é permitido utilizá-los como exemplo" OVIDIO A. BAPTISTA DA SILVA "Processo e Ideologia" IV

1. Introdução ................................................................................................................................... 1 1.2 Demandas de Massa, Demandas Coletivas e Tutela Jurisdicional do Consumidor ............. 3 2. O rompimento da “Summa Divisio” e o Direito dos Consumidores .......................................... 9 2.1. Interesse Social e Interesse Individual .............................................................................. 17 2.1.1. Projeto Florença – “Acesso à Justiça”............................................................................ 19 2.1.2. Proteção Jurídica ao consumidor no Brasil .................................................................... 23 2.2. Tutela Individual dos Interesses dos Consumidores ......................................................... 25 2.3. Tutela coletiva dos Interesses dos Consumidores ............................................................. 34 3. Os Juizados Especiais como porta do Acesso à Justiça ............................................................ 51 3.1. O modelo procedimental dos Juizados Cíveis................................................................... 64 4. Os efeitos da litigância repetitiva/massificada nos Juizados .................................................... 71 4.1. Advocacia no contencioso de massa ................................................................................. 80 4.2. A (mera) satisfação de interesses individuais .................................................................... 88 4.3. Os Custos e as Perdas nos Juizados .................................................................................. 97 4.4. Gestão processual nos Juizados....................................................................................... 101 5. Uma alternativa para o sistema ............................................................................................... 108 6. Conclusão ................................................................................................................................ 115 Bibliografia ................................................................................................................................. 116

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1. Introdução

Ao contrário do que possa parecer, o objetivo do presente trabalho é modesto e limitado às pretensões de um bacharelando, que busca expor a interação entre um modelo procedimental e um modelo de direito material. Nesse escopo, os objetos escolhidos para a análise foram um modelo procedimental, previsto pela Lei 9.099/95 que instituiu os Juizados Especiais Cíveis, e uma matéria jurídica, a relação material de consumo, sob o regime da Lei 8.078/90. Busca este trabalho, assim, aproximar a ideia de que uma interação normativa pode, hipoteticamente, provocar externalidade negativas e positivas imperceptíveis por decorrência de uma eventual assimetria informacional com influência na desejada função distribuidora de justiça outorgada ao processo. Certamente a utilização do conceito econômico de externalidade

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não desfrutará aqui da

precisão merecida. O conceito servirá, no entanto, para trazer um aspecto já há muito pontuado, por exemplo, por RICHARD POSNER 2 quanto aos efeitos externos ao direito, decorrentes das decisões judiciais. Disso decorre o compromisso de tentar, o quanto possível, restringir o uso do termo externalidade a este texto introdutório, muito embora o conceito esteja de certa forma orbitando em torno das várias ideias que se seguirão. Deve-se acrescentar a larga utilização que se fará do sujeito que em termos econômicos, também, poderá não ser o mais preciso. Um personagem que contudo representa o grande articulador dos efeitos externos à relação processual ora examinada. Tal sujeito é o Jogador ou Player como será remetido por conta da influência marcante dos trabalhos de MARC GALANTER 3, verdadeira “alça de mira” deste trabalho. Para nossos objetivos, ainda, cumpre esclarecer que dentro do universo de externalidades encontram-se os inúmeros efeitos, como dito positivos e negativos, integrantes da atividade jurisdicional. A atividade jurisdicional que nos parece um tomada de decisão, grande parte das vezes,

A teoria econômica entende a externalidade como um efeito causado pela atividade econômica fora do âmbito de seu mercado, portanto, alheia à qualquer consideração na tomada de uma decisão racional. As externalidades implicam uma diferença entre o que poderia se chamar de situação ótima no plano privado (dentro de um sistema que poderia ser o mercado ou, para este trabalho, um modelo/procedimento para a tutela jurídica) e no plano social (em um plano maior de interesses como, por exemplo, os interesses econômicos e sociais relativos aos direitos dos consumidores coletivamente considerados). 2 Dentre os diversos trabalhos de RICHARD A. POSNER em relação a Análise Econômica do Direito podemos encontrar o estudo das decorrências econômicas das decisões judiciais ou, mais, dos efeitos nas decisões judiciais causados pelas estruturas econômicas, dentre os livros citamos, respectivamente: How Judges Think, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2008, e Economic Analysis of Law, Austin, Texas: Wolters Kluwer for Aspen Publishers, 2007. 3 Por exemplo, no trabalho, Why The Haves Come out Ahead, in Law and Society Review, Vol 9:1, 1974, disponível em 1

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imprevisível, contingente, complexa e indeterminada em uma perspectiva social ampla. Essa, todavia, não é a perspectiva daquele Jogador que lida não rotineiramente com suas decisões. O Player que, em face do cenário restrito, de seu ponto de vista executado nos atos necessários para alcançar um determinado fim, visa, exclusivamente, objetivos. Por sua vez, a serem alcançados apenas mediante o procedimento (encadeamento lógico de atos com vistas ao objetivo). Incluímos nessa categoria de Jogador todos os tipos de personagem que do processo participam, sejam ativos, passivos, parciais ou imparciais. Esse seria o caso do jogador que não considera as externalidades do procedimento em cada passo de sua tomada de decisão. Nesses passos, o procedimento progride pela atividade jurisdicional como um dogma atrelado à própria justiça. Note-se, por mais irônico, que a garantia de igualdade em termos processuais é um tronco conceitual a que a maior parte desse dogma pode ser reduzida. Entretanto, como se sabe, a existência e a conceituação do procedimento não é, e nem pode ser, inerte e imparcial em face do processo. Assim, do mesmo modo que o processo carrega seu peso axiológico decorrente de uma construção centenária, o procedimento cunha sua funcionalidade diante dos fins desejados e ponderados valorativamente. Em outras palavras, busca-se mostrar que, do mesmo modo que o processo e as decisões a ele inerentes para a pacificação e a distribuição de justiça geram efeitos externos, o procedimento que, tendo suas peculiaridades na busca por um determinado fim processual, gera efeitos externos às vezes distantes da teleologia e do objetivo da norma que lhe deu origem. Tais efeitos amplos e externos, sem dúvida, são dificilmente observáveis por aquele Jogador que sofre com a assimetria informacional, ou que tem apenas no procedimento individualmente considerado seu horizonte de benefícios. Esses efeitos, aos quais aqui se nomeia de externalidades, tendem a ser melhor observados por aqueles que lidam, por assim dizer, de forma mais ampla e rotineira com o meio procedimental e com a norma material operada pelo procedimento. Esses Jogadores que detém uma visão perspectiva são os que podem explorar os limites das externalidades decorrentes do procedimento, em um relacionamento rotineiro, estreito e repetitivo; prevendo efeitos de determinados atos; adequando suas condutas à série de casos em que estão envolvidos; ou, mesmo, nas respostas procedimentais sobre os atos já suficientemente testados. Este trabalho, também, não busca explorar como um todo o difícil tema da repetitividade, essa variável. Busca-se, de forma mais restrita, pesquisar no plano de uma repetitividade especifica: a repetitividade no sentido da massificação. Uma forma densa de características no mais das vezes idênticas e, portanto, mais previsíveis dentro de uma série repetitiva.

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Por essa razão se elegeu um modelo procedimental reputadamente acessível, pois, se na grande complexidade procedimental ordinária a superioridade do Jogador Habitual é uma verdade empírica independente de demonstração - aquilo que a atuação da advocacia costuma chamar de "prática de foro" - que se dirá quando essa superioridade depara-se com um procedimento simplificado, descomplicado e especialmente construído para a facilitação da presença em juízo? Mais ainda. O que se dirá quando a relação jurídica levada ao processo tem características econômicas, jurídicas e sociais de grande similaridade, e as partes tendem a se comportar processualmente de forma muito previsível? Enfim, suscitamos uma externalidade decorrente do procedimento pensado para a redução da complexidade e a instauração da previsibilidade jurídica singela, pouco onerosa (financeira e temporalmente) e, no extremo, focada no que se chamou de “abertura de portas”. Uma verdadeira catalisação processual para satisfação de interesses jurídicos, cujo objetivo é proporcionado pelo procedimento e pelos efeitos processuais de um regime jurídico material.

1.2 Demandas de Massa, Demandas Coletivas e Tutela Jurisdicional do Consumidor

Fixar um conceito satisfatório de litígio de massa e litígio coletivo é nota fundamental para iniciar o presente trabalho. Indo ao encontro dessa necessidade, a relação de consumo, como base deflagradora de múltiplas possibilidades para o surgimento de litígios, qualificáveis como de massa ou repetitivos – considerados na maior parte das vezes como sinônimos –, tende a indicar uma janela para essa distinção 4. Nesse sentido, para uma percepção dos efeitos processuais dos litígios decorrentes das relações de consumo, devemos ter em conta dois fenômenos decorrentes da sociedade de massas: (i) a massificação de relações jurídicas materiais; e (ii) a massificação das relações jurídicas processuais. Em outras palavras, trata-se da distinção crucial que se deve estabelecer entre um fenômeno econômico-social massificado e seu correspectivo efeito - por óbvio de dimensões, também, massificadas – no plano do direito processual 5.

Um dos primeiros esboços do conceito de massas nos é trazido pela sociologia alemã em especial pelos trabalhos de THEODOR ADORNO em seu livro Industria Cultural e Sociedade, São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002. 5 Na própria base do modelo tradicional de igualdades e liberdades civis individuais e de ordem liberal sempre esteve o próprio “acesso à justiça”, sendo que à medida que o Estado se arroga o poder de resolver os litígios e à medida que esse 4

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Nesse passo, também, desponta a relevância que o trajeto do conflito assume na judicialização de pretensões. Tal trajeto demonstra uma correlação relativamente lógica de fases que indicam, ao mesmo tempo, diversas características do conflito nos planos culturais, econômicos, sociais e jurídicos. Características muito relevantes dentro do plano do direito do consumidor. Como evidencia FELSTINER 6 essas distinções podem nos revelar toda a construção do eventual litígio, principalmente no tocante ao volume de demandas, já que o viés social é um dos fortes estímulos à propositura da ação. Um método de análise também utilizado em outros trabalhos recentemente publicados 7, onde o fenômeno da litigância de massa, ou repetitiva, é abordado em busca de conclusões a respeito do aumento exponencial das demandas, bem como dos efeitos desse aumento na gestão processual pública e privada. Análise relevante que se acrescenta para os desdobramentos decorrentes da explosão de litígios é o estudo sobre os tipos ideais de litigantes, elaborado pelo sociólogo e jurista MARC GALANTER 8, cuja distinção entre o que ele chama de litigantes repetitivos (Repeat Players) e litigantes eventuais (One Shotters) configuraria, dentro da lógica do conflito, a série de interesses, benefícios e facilidades processuais, de certo modo, também, ensejadoras do aumento do número de demandas. Aos efeitos decorrentes dessas posições ideais podem se adicionar fatores como: os interesses dos próprios atores processuais; as causas da demanda, externas e internas ao sistema judiciário; a forma de repercussão interna e externa dessas demandas e a resposta que o sistema judiciário dá a esses eventos. A extrapolação para elementos afeitos à sociologia do litígio diante da incapacidade de apreensão dos fenômenos econômicos e sociais pelo direito busca superar um natural entrave para a compreensão do cenário onde se difunde a massificação de demandas. Todavia, ao contrário do que se poderia imaginar, os efeitos da repetitividade de demandas que se originam de eventos sociais e econômicos têm sido estudados, na maioria das vezes, por disciplinas poder se torna posto em prática, mediante um programa universalização de “acesso à justiça”, o único resultado possível é o crescimento desmesurado e a massificação do número de demandas. Nesse sentido, MAURO CAPPELLETTI relata ser este o objetivo do “acesso à justiça”: “Não é surpreendente, portanto, que o direito ao acesso efetivo à justiça tenha ganho particular atenção na medida em que as reformas do welfare state têm procurado armar os indivíduos de novos direitos substantivos em sua qualidade de consumidores, locatários, empregados e, mesmo, cidadãos De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. O acesso justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental o mais básico dos direitos humanos de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.” in Formações Sociais e Interesses Coletivos Diante da Justiça Civil, Trad. Nelson Renato Palaia Ribeiro de Campos, Revista de Processo. v. 5, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. 6 WILLIAN L. F. FELTINER The Emergence and Transformation of disputes: Naming, Blaming, Claiming... in Law and Society Review, vol. 15, nº3/4, 1980/81, pp. 631-654. 7 LUCIANA GROSS CUNHA e DANIELA MONTEIRO GABBAY, Litigiosidade Morosidade e Litigância Repetitiva no Judiciário: uma análise empírica, São Paulo: Saraiva, 2012, p. 106. 8 Why The Haves Come out Ahead,in Law and Society Review, Vol 9:1, 1974, disponível em http://marcgalanter.net/documents/litigationpatterns.htm

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jurídicas alheias ao direito processual, possuindo inclusive bases de estudo remotas, a exemplo do trabalho de TULIO ASCARELLI “Economia di Massa e Statistica Giudiziaria” 9 digno de remissão pelos próprios autores do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor 10. O trabalho de ASCARELLI, por exemplo, dialoga diretamente com os trabalhos que atualmente tentam explicar a explosão no número de demandas à medida que recorre a elementos corriqueiramente deixados à margem de análise jurídico-processual em busca de eventuais envolvidos na constituição do litígio. Para ASCARELLI, entretanto, as conclusões quanto a massificação decorrem de uma constatação empírica diametralmente oposta daquela atualmente obtida 11. ASCARELLI percebe, por exemplo, que a estatística judiciária italiana do período compreendido entre 1901 a 1952 indica uma proporcional redução das demandas judiciárias. Fato que, para ele, revelaria os efeitos do trato de questões jurídicas da sociedade pós industrial - mais vinculadas com a perspectiva massificada do que a repetitiva – voltado à gestão das relações jurídicas materiais, ou seja, à minuciosa “engenharia contratual” que teria o condão de evitar a propositura de inúmeras ações judiciais. Outros dois pontos ressaltados por ASCARELLI, e que servem muito bem de exemplo para ilustrar uma das formas como se desenvolvem os litígios no plano da massificação, são a influência na consolidação do entendimento jurisprudencial no plano do estímulo/desestímulo ao litígio e o valor proporcionalmente irrelevante que assume uma única “operação” dentro do universo de relações jurídico-econômicas das sociedades industriais. Aspectos que se mostram, na aferição processual, como duas faces de uma mesma moeda. De fato, quanto à irrelevância econômica apontada, é intuitivo que dentro de um cenário extremamente amplo de relações, cuja proporção se estende aos milhões, a mera relação jurídica individual não influi nas demais, desde que restrita ao plano privado ou contratual. Mas, por outro lado, no plano processual, diante da consolidação de um entendimento jurisprudencial ou uma imposição de caráter geral, é patente a produção de efeitos em toda a coletividade. Em resumo: uma determinada relação jurídica individual, irrelevante por si, tende a surtir efeitos massificados em decorrência da eventual interpretação jurisprudencial ou da disciplina legal, que estimule ou desestimule o manejo de uma ação.

in Saggi di Diritto Commerciale, Milano: Giuffré, 1955, pp. 521/526. GRINOVER, Ada Pelegrini e outros, Código de defesa do consumidor - Comentado pelos autores do Anteprojeto, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999, p.705. 11 LUCIANA GROSS CUNHA E DANIELA MONTEIRO GABBAY, Litigiosidade Morosidade e Litigância Repetitiva no Judiciário: uma análise empírica, São Paulo: Saraiva, 2012, p. 106. 9

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Dentro da jurisprudência, a demonstrar a amplitude que pode tomar uma decisão na relação de consumo massificada dos dias atuais, podemos citar entendimento do Superior Tribunal de Justiça ao classificar como relação de consumo os serviços gratuitos fornecidos pela internet 12. Não é grande esforço lógico imaginar a imediata ampliação do universo de potenciais litigantes diante desse entendimento, em vista dos eventuais beneficiados pela norma consumerista. Tal exemplo vem bem a calhar. Já que a moderna relação jurídica de consumo é, se não a maior, uma das maiores hipóteses de relações jurídicas em massa. Os produtos e serviços oferecidos em série denotam relações jurídicas, de compra, locação, comodato, ou prestação de serviços, também, em série. Enfim, a relação de consumo detém natureza repetitiva de fundo. Um aglomerado infindável de relações jurídicas travadas de modo individual, originárias de “compra e venda” ou de “prestação de serviços”. Falamos, portanto, de relação de massa por decorrência de sua dispersão na sociedade, atingindo muitas pessoas de modo extremamente semelhante; causando reflexos na lógica de interesses e pretensões empresariais. Um comportamento em massa, dando fundamento ao próprio ideal de constante ampliação e previsibilidade do mercado de consumo. As relações de consumo, portanto, mesmo que nessa estreita relação jurídica privada – se fosse apenas garantido o mero Acesso Individual à Justiça nos moldes tradicionais – já teriam o efeito da repetição de demandas pela sua constante ampliação. Quais seriam, então, os efeitos diante de direitos inerentes aos consumidores (direitos coletivos dos consumidores), garantindo uma dimensão de tutela que extrapola o regime privado de interesses? No do direito dos consumidores, a pulverização de causas idênticas que estimula uma potencial massa de litígios, não remonta ao fenômeno social recente, nem mesmo à positivação da tutela consumerista, particularmente considerada. Poderíamos localizá-la, ao lado do expressivo crescimento industrial experimentado nos últimos duzentos anos e, de forma mais pontual, na guinada proporcionada pela concessão de direitos sociais decorrentes da instauração do modelo de Estado Social 13. Um fenômeno que remonta ao fim do século XIX, cuja expressão prática é inegavelmente atrelada aos direitos trabalhistas 14. Entretanto, a expressão jurídica que pode ser chamada “pulverizada” vem de forma mais direita Esse foi o entendimento da terceira turma do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA nos REsp 1316921/RJ, REsp 1300161/RS, REsp 1192208/MG, REsp 1308830/RS, REsp 1186616/MG e REsp 1193764/SP todos de relatoria da Ministra NANCY ANDRIGHI. 13 MAURO CAPPELLETTI, Formações Sociais e Interesses Coletivos Diante da Justiça Civil, Trad. Nelson Renato Palaia Ribeiro de Campos, Revista de Processo. v. 5, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977 14 BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS e outros, Os Tribunais nas Sociedades contemporâneas, disponível em: http://www.anapocs.org.br/portal/publicações/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm 12

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no intento de abranger direitos antes “desconhecidos” ou, na prática, direitos apenas formalmente garantidos, tudo o que se denominou como uma “positivação de direitos sociais”. Essa positivação teve origem na experiência das constituições de Weimar e México, seguidas de uma verdadeira explosão do modelo aplicado pelo Estado de Bem Estar Social do pós-guerra 15. Diante de tal ordem, dominada por relações e garantias jurídicas pautadas aos dígitos dos milhares ou milhões, percebeu-se que o modelo processual, até ali operante, não satisfazia qualquer pretensão de eficiência. Estava inserida no âmbito processual a necessidade de uma verdadeira “revolução” 16 do modo e forma como seriam tratadas as questões inerentes às demandas de massa, o acesso à justiça e as questões referentes às demandas de natureza coletiva. “Revolução” em busca da satisfação dos escopos de efetividade, instrumentalidade, e possibilidade de representação processual para a defesa de interesses coletivos. Temas afeitos, mas relativamente equidistantes. Grosso modo, tal “revolução” foi doutrinariamente concentrada na questão pura e simples de “Acesso à Justiça”, vista, de um lado, pelo princípio de garantia individual de acesso e de outro pela necessidade da tutela de natureza coletiva inerente aos “novos” direitos. Todavia, tal questão torna-se complexa por decorrência de sua “metalinguagem”, sendo que a própria garantia de acesso à justiça (individual) torna-se um aspecto fundamental da sociedade (coletivo). Essa “revolução” deveria pensar, ao mesmo tempo, na garantia de acesso individual à justiça (como um direito coletivo) e na garantia de um acesso coletivo à justiça para a satisfação de interesses e direitos, de fato, coletivos. Um cenário que se complica em muito se considerarmos que essa garantia de acesso individual, no exato momento em que fosse colocada em execução, deflagraria, em tese, o surgimento de um enorme contingente de demandas antes represadas no modelo processual vigente17. Demandas que se consubstanciavam em questões subjetivas, das mais comezinhas às mais relevantes, algumas com extrema similitude fática, outras, por seu turno, a exemplificar as mais variadas expressões jurídicas da vida em sociedade. Um cenário que obrigaria a um recorte no que toca à “natureza da conflituosidade social” 18 e as formas que os tribunais se colocaram em face desse cenário.

BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS, Introdução a Sociologia da Administração de Justiça, in Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 21, Nov. 1986. 16 MAURO CAPPELLETTI, Formações Sociais e Interesses Coletivos Diante da Justiça Civil, Trad. Nelson Renato Palaia Ribeiro de Campos, Revista de Processo. v. 5, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977 e Acesso à Justiça, 1ª reimpressão, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002. 17 KAZUO WATANABE. Filosofia e Características Básicas do Juizado Especial de Pequenas Causas in Juizado Especial de Pequenas Causas, São Paulo: RT Editora, 1985; 18 BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS e outros, Os Tribunais nas Sociedades contemporâneas, disponível em: http://www.anapocs.org.br/portal/publicações/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm, p. 11. 15

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Em resumo, as demandas modernamente enfrentadas em massa pelo Judiciário têm em comum o fato de que sua propositura decorre diretamente da abertura de uma porta de acesso para a satisfação de um direito antes não tutelável, o direito de “Acesso à Justiça”. Nesse cenário, se insere a relação de consumo, garantidora da tutela individual e, ao mesmo tempo, representante de um dos mais importantes papéis coletivos em nossa ordem normativa através do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90). Com a instituição do CDC foram concedidas prerrogativas para acesso ao sistema jurisdicional na defesa de direitos eleitos como inerentes à relação de consumo, sob a premissa da fragilidade e da hipossuficiência dentro de uma relação massificada. Inegável, ademais, que haja de fato essa fragilidade dentro de relações massificadas, em vista da perda do trato direto com a fonte fornecedora ou da explícita redução dos limites da liberdade de contratar. Essa espécie de relação jurídica viria integrar um número relevante de litígios que, pela sua natureza e origem jurídica, teriam: claros elementos de semelhança fática; evidente repetição de matéria jurídica - proporcional à repetição de relações jurídicas na sociedade de massas 19 -; pouca variabilidade em seu polo passivo; e cujas caraterísticas subjetivas dos indivíduos envolvidos não estariam intimamente vinculadas à questão jurídica controversa. Pode-se localizar, então, o fenômeno da repetição na produção jurídica, seja no plano contratual ou contencioso, como subproduto de uma particular ordenação econômico-social. A litigância de massa, também, decorre desse quesito, na proporção de sua repetição, ao passo que essa pretensão jurídica é decorrente de relações econômicas, sociais e, finalmente, jurídicas concebidas em massa. O CDC teria a vocação para, no plano legislativo, portanto coletivo, e alheio à vontade do fornecedor, determinar as características básicas nas relações jurídicas de consumo, sempre com vistas a equilibrar as partes, consumidor e fornecedor, sendo, mais importante para os objetivos desse trabalho, os seus efeitos dentro da relação litigiosa.

TULIO ASCARELLI, Economia di Massa e Statistica Giudiziaria in Saggi di Diritto Commerciale, Milano: Giuffré, 1955, pp. 521/526. 19

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2. O rompimento da “Summa Divisio” e o Direito dos Consumidores

Ao tratar da relação entre massificação e acesso à justiça, um primeiro ponto a ser fixado é o complexo de vicissitudes históricas que deram origem ao fenômeno de proteção aos direitos coletivos, em duas acepções importantes: uma primeira genérica e outra na particularidade das relações de consumo. A importância desses eventos históricos encontra suas bases na necessária correlação entre o rompimento de um modelo processual fundado na pertinência do sujeito e no desenvolvimento de mecanismos para a tutela coletiva e a garantia do acesso à justiça. O sistema, inspirado na problemática representada pela tradicional crise jurídica individual entre CAIO e TÍCIO, acompanhava apenas formalmente o modelo procedimental esperado nas relações jurídicas de massa, construídas para serem repetidas e multiplicadas à exaustão. Esse modelo por consequência ignorava, também, as relações jurídicas dispersas originadas nas garantias legais previstas pela nova estrutura social do Estado. Garantias estas que, ao assumirem índole constitucional, tomavam, consequentemente, status de interesse Supra Individual ou, mais adequadamente, Coletivo em sentido amplo. O desenvolvimento de mecanismos para a adequada tutela nesse novo cenário decorre, dentre outros fatores, do desenvolvimento econômico e social experimentado nos dois últimos séculos. Fato que viria dar origem a diversos aspectos decorrentes da ideia de sociedade de massas, assim ponderados por MAURO CAPPELLETTI :

“Não é necessário ser sociólogo de profissão para reconhecer que a sociedade (poderemos usar a ambiciosa palavra: civilização?) na qual vivemos é uma sociedade ou civilização de produção em massa, de troca e de consumo de massa, bem como de conflitos ou conflitualidades de massa (em matéria de trabalho, de relações entre classes sociais, entre raças, entre religiões, etc.). Daí deriva que também as situações de vida, que o Direito deve regular, são tornadas sempre mais complexas, enquanto, por sua vez a tutela jurisdicional – a 'Justiça' – será invocada não mais somente contra violações de caráter individual, mas sempre mais frequente contra violações de caráter essencialmente coletivo, enquanto, envolvem grupos, classes e coletividades. Trata-se, em outras palavras, de 'violações de massa'…”20

Formações Sociais e Interesses Coletivos Diante da Justiça Civil, Revista de Processo. v. 5, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. 20

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Nessa toada, surge a questão atinente à separação entre interesses no plano público e privado a qual, no modelo processual que poderíamos chamar de oitocentista, se relacionava, respectivamente, ao plano do indisponível - intangível individualmente - e ao plano da individualidade, da disponibilidade, ou, ainda, da titularidade individual, podendo ser associados, em uma aproximação grosseira, às construções jurídicas denominadas de “Estado” e “Pessoa”. Essa estrutura básica das relações jurídicas em litígio passaria por uma forte ruptura a partir de meados do século XX. Um processo de desestabilização da disciplina jurisdicional no sentido de uma maior adequação aos fenômenos de natureza transindividual e da percepção da latente transindividualidade. Esta última localizada nos fenômenos que para o modelo jurídico então vigente seriam tuteláveis, tão e somente, dentro da natureza individual. A adequada apreensão jurídica desses fenômenos foi objeto de grande esforço doutrinário em busca de sua conceituação e adaptação científica 21. Todavia, ainda que mais claramente conceituada, hoje a ruptura entre o que poderíamos identificar como Direito Público e Direito Privado mostra sua relevância nos meandros de relações jurídicas que, de certo modo, transcendem esses dois prismas. O que foi explicitado, dentre outros, por CAPPELLETTI é o fato complexo de que a adoção de um sistema processual eficiente, ou seja, dentro dos pressupostos já sedimentados de efetividade e instrumentalidade, deve necessariamente aceitar como parte sistêmica a complexidade social moderna, uma complexidade inerente ao fenômeno da coletividade em sua conotação genérica para além das limitações históricas referentes aos interesses antes sujeitos à supremacia do Tertium non datur. Para CAPPELLETTI, seria necessária a instauração de uma nova concepção de processo a ser inserida na zona de penumbra não abrangida pela atuação dentro dos campos comuns do sistema jurisdicional (Público x Privado) 22. Uma zona de penumbra que, com o aparecimento de questões jurídicas novas, viria se tornar muito relevante em decorrência dos direitos e fatos sociais da sociedade de massas. A necessidade de implantação desse novo modelo processual foi o que CAPPELLETTI denominou de Superação da Summa Divisio, no sentido oposto das tutelas claramente voltadas ao público e ao privado; tradicionalmente tutelas de natureza civilista (restrita aos legítimos titulares e interessados civis) e das tutelas de natureza penal (afeita à exclusiva titularidade do ius

Essa dificuldade de adaptação de institutos jurídicos novos à sistemática processual de índole individualista foi estudada por BARBOSA MOREIRA em A Proteção Jurídica dos Interesses Coletivos e A Legitimação para a Defesa dos interesses Difusos no Direito Brasileiro, ambos, in Temas de Direito Processual – Terceira Série, São Paulo: Saraiva, 1984, pp. 173/192. 22 Quanto a conceituação de interesse público em termos de direito tutelável veja-se SUSANA HENRIQUES DA COSTA, O Poder Judicies da Costa,interesPatrimônio Público e da Moralidade Administrativa no Estado Democrático de Direito, São Paulo: FDUSP, 2006, pp. 35/36. 21

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puniendi pelo Estado). O quão insuficiente era esse modelo ficaria explícito, por exemplo, na completa ausência de mecanismos para a tutela dos efeitos deletérios decorrentes do modo de produção capitalista, cada vez mais massificado, ou, ainda, para a satisfação de inúmeras novas dimensões de direitos, para além das meras relações individuais, nos exemplos clássicos dos direitos relativos ao meio ambiente e à relação de consumo coletivamente considerada. Tais interesses que rompem com a divisão tradicional instituem, por assim dizer, um cenário mais “sofisticado” de interação jurisdicional e social. A seu tempo, o próprio desenvolvimento da sociologia jurídica, paulatinamente, passou sua análise não mais ao caráter substancial do direito, ou seja, da norma e do sistema normativo, mas no plano institucional da normatividade. Esse novo panorama veio demonstrar que era, na relação entre o destinatário do direito e o poder jurisdicional, onde residiria o “calcanhar de Aquiles” do sistema processual fundado no modelo liberal, uma linha de pesquisa jus sociológica que BOAVENTURA

DE

SOUSA SANTOS denomina de “Litigiosidade

Social ” 23. Ademais, a aplicação de um modelo de tutela retrospectiva, ou indenizatória, voltada para a restauração do status quo ante e sem qualquer compromisso com os efeitos externos do litígio trazido ao Foro, revelava-se diretamente contrária à postura afirmativa esperada do Estado. Necessário, portanto, um modo de tutela propositiva, que viria ao encontro do tratamento jurisdicional coletivo consagrado por alguns propósitos de ordem nitidamente pragmática relativa à legitimidade do Poder Judiciário 24. Acrescente-se o fato de que a guinada para um modelo de Wellfare State não necessariamente se viu acompanhada desses modelos processuais que permitiam a coerção jurisdicional no sentido do cumprimento das normas de natureza social positivadas pelos Estados, muitas das quais passaram a serem denominadas de programáticas, revelando assim essa incapacidade. A expansão dos direitos de natureza social, intuitivamente, mereceria meios não menos sociais de tutela e de representação em juízo, o que, caso contrário, culminaria na mesma “igualdade” já garantida pelo modelo liberal até então vigente 25.

Introdução a Sociologia da Administração de Justiça, in Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 21, Nov. 1986. JOSE EDUARDO FARIA e BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS destacam que a crise de confiança de justiça teria sido, também, um dos mais fortes impulsores do movimento de ativismo político judicial e da assunção de questões políticas à pauta da Justiça. O direito dos consumidores, particularmente ao lado do acesso à justiça, é exemplo de medida política extrapolada à ordem jurídica. Sua origem no plano ministerial e administrativa remonta ao decreto federal nº 91.469, posteriormente alterado pelo Decreto Federal nº 94.508 de 1987, gênese do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, que conforme JOÃO BATISTA DE ALMEIDA, teria a função de assessorar o Executivo na elaboração de políticas para defesa das relações de consumo. 25 Quanto a este ponto veja SUSANA HENRIQUES DA COSTA, A Imediata Judicialização dos Direitos Fundamentais e o 23 24

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Dessa forma, é necessário tomar um ponto de vista específico ao abordar esse verdadeiro turn point representado pela proposta de CAPPELLETTI, principalmente, em face da primeira impressão já remansosa quanto ao salto qualitativo representado pela “mudança” da relação jurídica restrita ao plano individual. Seria necessária uma visão um pouco mais ampla de todo o fenômeno de coletivização de demandas e de interesses jurisdicionais. Partamos, por exemplo, da evolução a partir de um modelo individualista, que no Brasil restou impresso pelo Código de Processo Civil originário dos trabalhos coordenados por ALFREDO BUZAID, de atendimento jurisdicional sob o caráter formalista liberal, pressupondo igualdade entre partes, subsumida às previsões legais rígidas. Modelo para o qual a “liberdade de acesso” ao sistema jurisdicional seria através do manejo do direito de ação focado no interesse próprio. Com esse escopo, a disciplina de nosso Código de Processo Civil (art. 6º) restringe às exceções legais todas as circunstâncias onde determinado direito poderá ser pleiteado em nome alheio que não o daquele que detém o legítimo interesse de agir. Um entendimento que vincula indissociavelmente o direito (ou melhor, sua alegação) a um titular, o qual necessariamente deve atuar em juízo. Essa mentalidade teve suas bases fortemente afetadas pelos desdobramentos sociais e legislativos a partir da década de 80 do Século XX. No Brasil, até o advento da Lei da Ação Civil Pública sob o nº 7.347/85, os meios de tutela coletiva se restringiam às disposições da Lei de Ação Popular, Lei 4.717/65, vinculada a pretensão de tutela de caráter cívico, com vistas à proteção do patrimônio público, bem de natural interesse coletivo. TEORI ZAVASCKI,

26

, por exemplo, aponta a Lei nº 6.513/77 como uma primeira e relevante

modificação legislativa no sentido da ruptura com os princípios da distinção entre direito público e direito privado, vindo inserir, no rol de patrimônios públicos previstos pela Lei da Ação Popular, os bens e direitos de relevância econômica, artística, estética, histórica e turística, dando tom de transindividualidade ao objeto da tutela 27. Foi, contudo, com a promulgação da referida Lei da Ação Civil Pública que ocorreu a inserção definitiva no sistema brasileiro de procedimentos sensíveis à tutela de direitos fora de padrões alicerçados sobre a dicotomia Público e Privado, tais como as relações de consumo (artigo 1º, inciso I). Em paralelo a essa inserção, o reconhecimento quanto à necessidade de uma atitude positiva por

Mínimo Existencial: Relação Direito e Processo, in ALOISIO GONÇALVES DE CASTRO MENDES e TERESA ARRUDA ALVIN WAMBIER (org.), O Processo em Perspectiva. Jornadas Brasileiras de Direito Processual. 1ª ed. São Paulo: Rev. dos Trib., 2013, pp. 345/370. 26 Processo Coletivo: Tutela dos Direitos Coletivos e Tutela Coletiva dos Direitos. 3ª ed. rev. atua. e amp. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 37 27 SUSANA HENRIQUES DA COSTA, O Poder Judicies da Costa, O Poder Judiciário e a Tutela do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa no Estado Democrático de Direito, São Paulo: FDUSP, 2006, p. 32.

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parte do Estado viria reforçar toda a ordem de mudanças operadas no sistema jurisdicional pátrio. É notório que os efeitos sociais obrigaram a alteração de perspectiva em direção à visão coletiva de tutela. Por forte influência do trabalho dos sociólogos e juristas, afeitos ao tema dos fenômenos sociais já expostos por CAPPELLETTI e sistematicamente observados na sociedade brasileira durante as décadas de 80 e 90, percebeu-se a insuficiência estatal. Um plano de crescimento econômico, ao lado da abertura de direitos sociais e a concentração nas metrópoles de massas de trabalhadores, atraídas pela promessa de desenvolvimento, tiveram o claro efeito expansivo das expectativas quanto às garantias sociais prometidas. Essa constatação é realçada, por exemplo, por JOSÉ EDUARDO FARIA 28 ao citar que os trabalhos de BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS teriam revelado as naturais limitações do Estado-juiz em suas três funções básicas: instrumental, política e simbólica. Limitações que, segundo o sociólogo, decorreriam da incompatibilidade estrutural entre a arquitetura do sistema judiciário e da realidade sócio econômica brasileira, revelando, na prática, a impossibilidade de acesso à justiça por grande parcela da população e a incapacidade de sensibilização das instâncias judiciárias às questões supra individuais. Nesse sentido, surge a necessidade do referido papel positivo do Estado na afirmação dos direitos por ele garantidos, negando uma lógica que relegava à justiça, para satisfação de interesses, uma atuação unicamente individual. A satisfação jurídica de interesses se transformaria em uma questão de política de Estado, de atribuição de juridicidade ao modelo político, constatação empírica no sentido da superação da já tratada Summa Divisio. Outro desdobramento dessa atuação positiva do Estado se revelava no acesso à ordem jurisdicional para a tutela dos novos direitos. Nesse sentido, mais uma vez CAPPELLETTI:

“À medida que as sociedades do laissez-faire cresceram em tamanho e complexidade, o conceito de direitos humanos começou a sofrer uma transformação radical. A partir do momento em que as ações e relacionamentos assumiram, cada vez mais, caráter coletivo que individual, as sociedades modernas necessariamente deixaram para trás a visão individualista dos direitos, refletida mas declarações de direitos, típicas dos séculos dezoito e dezenove. O movimento fez-se no sentido de reconhecer os direitos e deveres sociais dos governos, comunidades, associações e indivíduo. Tornou-se lugar comum observar que a atuação positiva do Estado é necessária para assegurar o gozo de todos esses direitos sociais básicos. Direito e Justiça no século XXI: a crise da Justiça no Brasil. texto Preparado para o seminário direito e justiça no século XXI, Coimbra, Centro de Estudos Sociais, de 29 de maio a 1º de junho de 2003. Disponível em 28

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Não é surpreendente, portanto, que o direito ao acesso efetivo à justiça tenha ganho particular atenção à medida em que reformas do Wellfare Estate têm procurado amar os indivíduos de novos direitos substantivos na qualidade de consumidores, locatários, empregados e, mesmo, cidadãos” 29

Essa concessão de novos direitos estava diretamente vinculada ao acesso de meios de satisfação, ou seja, ao direito de ação concretizado pela possibilidade prática de busca pela satisfação jurídica de interesses. Talvez possamos identificar até mais do que isso, pois, dentro de um cenário de expansão acelerada de relações jurídicas como dito massificadas e dispersas no seio da sociedade, nada seria mais coerente do que a garantia do mais basilar direito coletivo de uma ordem jurídica justa 30: o Direito de Acesso à Justiça. A toda ordem de transformações sociais e políticas vivenciadas pela sociedade brasileira nas últimas décadas do século XX acrescenta-se o grande avanço do consumo, consequência do surgimento de uma ampla classe urbana. O crescimento inveterado nas relações de consumo traria respeitável dose de complexidade ao cenário de afirmação dos direitos e interesses coletivos em desenvolvimento naquele período. É inarredável que a proteção do consumidor tem relação direta com as modificações sociais experimentadas pelas sociedades industriais e do crescimento patente das relações massificadas. A fragilidade da posição jurídica do consumidor face o fornecedor é, também, decorrência direta desse desenvolvimento. Parafraseando CAMARGO FERRAZ, MILARÉ e NELSON NERY JÚNIOR 32 o desenvolvimento de grandes aglomerações urbanas decorrentes de movimentos migratórios ou mesmo da natalidade descontrolada, a oferta de trabalho, ou a promessa dele, e a hipertrofia da ação do Estado nas esferas social e econômica trouxeram à tona questões e interesses de natureza coletiva. Nascidas no seio dessas novas relações estão aquelas pautadas principalmente pelo consumo. O surgimento do Código de Defesa do Consumidor no ano de 1990 é nitidamente o ponto mais profundo da série de transformações legislativas ocorridas no sistema jurídico brasileiro para o tratamento adequado das questões de cunho transindividual e da garantia de satisfação jurídica de interesses dentro da nova estrutura social. Tal vocação do Código é lembrada por KAZUO WATANABE Formações Sociais e Interesses Coletivos Diante da Justiça Civil, Revista de Processo. v. 5, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. 30 Tal circunstância é percebida e destacada por KAZUO WATANABE em seu trabalho denominado Acesso à Justiça e Sociedade Contemporânea in Participação e Processo, coord. ADA PELLEGRINIGRINOVER, CANDICO RANGEL DINAMARCO E KAZUO WATANAB, Rio de Janeiro: RT, 1988, pp. 128/135. 32 A Ação Civil Pública e a Tutela Jurisdicional dos Interesses Difusos, São Paulo: Saraiva, 1984, pp.54/55. 29

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nos seguintes termos:

“O código procurou disciplinar mais pormenorizadamente as demandas coletivas por vários motivos. Primeiro por que o nosso Direito Positivo tem história e experiência mais recentes nesse campo. Excluída a Ação popular Constitucional, a primeira disciplina legal mais sistemática, na área do processo civil somente teve início em 1985, com a Lei nº 7.347 (Ação Civil Pública). Segundo, por que o legislador claramente percebeu que na solução dos conflitos que nascem das relações geradas pela economia de massa, quando essencialmente de natureza coletiva o processo deve operar também como instrumento de mediação dos conflitos sociais nele envolvidos, e não apenas como instrumento de solução de lides. A estratégia tradicional de tratamento das disputas tem sido de fragmentar os conflitos de configuração essencialmente coletiva em demandas-átomo. Já a solução dos conflitos na dimensão molecular, como demandas coletivas, além de permitir o acesso mais fácil à justiça, pelo seu barateamento e quebra de barreira sócio culturais, evitará a sua banalização que decorre de sua fragmentação e conferirá peso político mais adequado às ações destinadas à solução desses conflitos coletivos.” 33

Entretanto, a lógica das relações jurídicas decorrentes do consumo flerta de forma “perigosa” com ambos os lados da questão referente à visualização coletiva de demandas. A dupla vocação, inerente à tutela consumerista, fica aqui evidente, pois sua massificação de cunho individual, diretamente vinculada à série de relações jurídicas tomadas uma a uma; e sua correspectiva índole de transindividualidade, decorrente dessa mesma homogeneidade de situações jurídicas individuais de consumo/fornecimento em massa, restam ao mesmo tempo protegidas pelo princípio constitucional de ubiquidade e inafastabilidade do acesso à justiça (art. 5º, inciso XXXV). Mais evidente ainda é a necessidade de uma postura propositiva do Estado, diretamente relacionado ao peso político inerente às questões coletivas de consumo. No caso particular do direito brasileiro, a postura propositiva do Estado encontra-se, após um largo período de afirmação que podemos remontar ao final da década de 70 do Século XX

34

,

plasmado no texto constitucional de 1988 (art. 5º, inciso XXXII), na ordem programática da própria Constituição, que determinou a elaboração de Lei específica sobra o tema (art. 48 da ADCT), e, por fim, no diploma específico, o Código de Defesa do Consumidor Lei 8.078/90.

GRINOVER, Ada Pelegrini e outros, Código de defesa do consumidor - Comentado pelos autores do Anteprojeto, Vol. II, 10ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2011, p. 6. 34 JOÃO BATISTA DE ALMEIDA aponta o PROCON de São Paulo, criado pela Lei Estadual nº 1.903, como primeiro órgão de natureza estatal para a defesa e orientação de consumidores, A Proteção Jurídica do Consumidor, São Paulo, Ed. Saraiva, 1993, pp. 8/9. 33

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O que restou disposto em especial pelo Código de Defesa do Consumidor foi a plena possibilidade de satisfação de pretensões jurídicas desse litigante. Um Player ligado a elementos específicos, de uma específica relação jurídica - a relação jurídica de consumo - cuja notória fragilidade no plano social (mais pronunciada, talvez, no plano processual) obrigava à diferenciação qualitativa de sua tutela. Essa ubiquidade nas relações processuais decorrentes das relações de consumo, ou seja, seus duplos efeitos de ordem individual e ao mesmo tempo coletiva foram bem formulados por BARBOSA MOREIRA. Ainda nos anos 80, BARBOSA MOREIRA elaborou a construção dos conceitos de direitos essencialmente coletivos e acidentalmente coletivos, com conclusões de ordem pragmática muito relevantes para a ideia da gestão processual das novas demandas decorrentes das relações de consumo. Segundo ele, a perspectiva dos conflitos originados nas relações sociais coletivas poderiam ser qualificáveis em duas espécies de tutela 35. A primeira delas decorreria da natureza coletiva do objeto litigioso, ou seja, a “comunhão indivisível de que participam todos os possíveis interessados” sem a possibilidade de distinção entre a quota parte de interesse individual no bem, ou objeto, da tutela. A essa espécie de circunstância deuse a denominação de direitos essencialmente coletivos, os quais no ramo dos direitos dos consumidores são de exemplo corrente, como a propaganda abusiva, a estipulação contratual ilegal ou leonina, ou ainda, a atuação em mercado que causa - ou tem a possibilidade de causar - danos a bens de propriedade indeterminada. Como pondera BARBOSA MOREIRA a qualidade mais nítida e relevante, nesse caso, é a unitariedade na tutela, a qual impediria julgamentos distintos para cada um dos afetados vindo a produzir decisões contraditórias. Para os direitos essencialmente coletivos, uma decisão que reconheça, impute, ou que constitua direito deverá ser igual em efeitos jurídicos para cada uma das pessoas envolvidas. Por outro lado, BARBOSA MOREIRA reconhece, também, a existência de interesses muito mais ligados à natureza massificada da sociedade moderna. Interesses jurídicos individuais que possuem possibilidade de constituição de um feixe de interesses para a satisfação do “impacto de massa” decorrente de uma relação jurídica homogênea, por conta da similitude fática ou jurídica localizada na gênese relacional. Em outras palavras, o caráter de homogeneidade - elemento lógico ligado a ideia de massa - permitiria que os eventos massificados fossem tratados de modo coletivo no limite de sua homogeneidade. São esses os direitos acidentalmente coletivos, por motivos de ordem prática, 35

Temas de Direito Processual – 3ª Série, São Paulo: Saraiva, 1984, pp. 195/196.

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conveniência e economia processual. Nessa última distinção, reside o ponto nodal do direito dos consumidores e da questão atinente ao Acesso à Justiça tal como exposto. Acesso que representa um direito coletivo, protegido e induzido pelas sociedades modernas. Sendo promovido no caso da sociedade brasileira mediante a concretização de políticas públicas que viriam, também, a partir da década de 80 do século XX. Como se vê, a natureza massificada das relações de consumo, de latente vertente coletiva; a proteção do consumidor, com sua ubiquidade ampla e irrestrita de acesso coletivo e individual à justiça; e a referida política de Acesso à Justiça implantada no Brasil, tiveram força bastante para trazer relevantes transformações na dinâmica da gestão processual em nosso país.

2.1. Interesse Social e Interesse Individual A distinção entre interesse público e interesse privado comunica-se diretamente com as premissas e com os eventos apontados por CAPPELLETTI, os quais seriam deflagradores da ruptura da dicotomia entre as esferas de Direitos - a Summa Divisio - e a sensibilização do sistema quanto a existência de interesses de natureza social. Em uma aproximação, poderíamos localizar no termo interesse, ora definido como elemento da vida tutelável pela ordem jurídica e sinônimo de direito para alguns doutrinadores, uma nova proposta na abordagem da tutela jurisdicional. A categoria que poderia ser apontada como originária do, hoje, conceito amplo de interesse, e que, dentro do sistema jurisdicional Brasileiro, seria eleita como condição para o direito de ação, é o interesse legítimo. Nas últimas décadas esse fechamento lógico-sistemático deu lugar a uma visão menos excludente e mais condizente com o modelo político em vigência. Uma mudança que pode ser atribuída à crescente necessidade de satisfação de pretensões jurídicas e ao o inveterado crescimento quantitativo de demandas, dispersas por todo o tecido social. Em resumo, pode-se dizer que a tutela do interesse, diante da necessidade de satisfação do direito de Acesso Individual à Justiça, promoveu a ampliação dos limites impostos pelo conceito estrito de Interesse Legítimo. Nesse sentido, CAPPELLETTI ressalta, já na introdução de Acesso à Justiça, que o objetivo de possibilitar o acesso ao sistema jurisdicional a grande parcela de cidadãos que antes lhe permaneciam alheios dialogaria necessariamente com, pelo menos, duas finalidades. A primeira finalidade seria relativa à possibilidade de que os cidadãos reivindiquem seus direitos ou resolvam seus litígios sob 17

os auspícios do Estado e a segunda seria relativa à produção de resultados de acesso à justiça individual justa, tanto no plano coletivo quanto no plano privado. Em termos mais simples: o interesse individual não pode ser óbice ao interesse social 36. O entrelaçamento dos interesses individuais, públicos e sociais fica evidente à medida em que se verificam os elementos de cada um destes conceitos, principalmente, no tocante à sua origem, que remonta ao direito administrativo e à zona cinzenta que os novos interesses sociais tuteláveis representam à doutrina processual tradicional. O que se localiza no limite de ambos, dentro da ideia de interesse social e coletivo é, aliás, a necessária implicação de efeitos coletivos ou dispersos decorrentes das relações na sociedade moderna. O que se percebe a partir da segunda metade do Século XX é o gradual encontro entre os interesses que, na mesma linha já exposta por CAPPELLETTI, tornaram equívoca a distinção entre as esferas do direito de tradição romano-germânica. Como já exposto, a sucessiva construção e concessão de novos direitos levaram à necessidade de uma conduta positiva do Estado e à sua mobilização para satisfação de pretensões não imputadas como interesse da sociedade - tal como é, por exemplo, a perquirição penal - mas elevadas pela própria sociedade como algo que merece atenção do poder público. Acrescentaram-se a essa atividade estatal dois outros movimentos. Em primeiro lugar, o aparecimento de entes privados, agregadores de interesses coletivos ("associações de defesa"); e posteriormente, a possibilidade de judicialização de interesses coletivos diretamente por indivíduos. Note-se que a aceitação do direito de ação nos casos acima – ou seja, reconhecimento jurídico de interesse - caminhou de forma paralela com a própria disposição dos órgãos “representativos” (attorney general e ministérios públicos) para a tutela de interesses não mais estreitamente ligados aos do Estado, mas agora ligados à sociedade, tais como os voltados à defesa do meio ambiente ou das relações de consumo. A mera hipótese de impulso privado para a tutela de interesses coletivos traz, a seu modo, relação entre o acesso à justiça e os efeitos do entrelaçamento entre os interesses públicos, privados e coletivos. Assim, a própria ideia de interesse público, mesmo em suas origens administrativistas, já passava paulatinamente a ser carreada de duas naturezas bem distintas de interesses públicos primários e interesses públicos secundários. A distinção entre interesses públicos primários e secundários parte dessa ideia para identificar o primeiro como um interesse factualmente social (próximo à ideia de bem comum), e o segundo, composto por aquilo que os órgãos estatais, mais especificamente administrativos, identificam como 36

Acesso à Justiça, 1ª reimpressão, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p. 8.

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interesse público. Enfim, tal distinção permite constatar que não há integral coincidência entre o interesse público visto pelo Estado e o interesse público visto pela sociedade. Segundo esse ponto de vista, HUGO DE NIGRO MANZZILLI chega a refletir, embora afastando a ideia por motivos de sistematização, a respeito de um eventual esvaziamento do interesse público solidificado, sendo o interesse público primário bem mais localizado na seara dos interesses sociais, difusos e coletivos

37

. A discussão se transmite do plano jurisdicional para o plano do direito

administrativo, grosso modo, no campo de regulação econômica por ele realizada. De tal aspecto decorreria a maioria das propostas de Acesso à Justiça e Tutela de Interesses Sociais ou Coletivos cuja origem histórica se localiza, pelo menos no Brasil, em medidas originadas no Poder Executivo. Nessa trilha, em contrapartida ao tradicional fechamento lógico e sistemático processual (jurisdicional), carreado de diversas exigências e presunções jurídicas de igualdade, interesse legítimo, suporte privado dos custos do litígio, ou, ainda, e especialmente, do devido cálculo de proveito na busca pela tutela jurisdicional, foram se desenvolvendo toda miríade de Agências Reguladoras, Sistemas de Defesa de Interesses e programas governamentais de tutela. Tomam corpo, então, uma série de órgãos, quando não ligados diretamente ao Poder Executivo, de natureza claramente administrativa

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, com objetivos dentre os quais estariam a gestão da

satisfação de interesses coletivos, a regulação de condutas de potencial massificação, ou a administração do acesso à tutela contra lesões individuais decorrentes de condutas dispersas na sociedade de massas. Chega-se assim à conclusão de que pensar o Acesso à Justiça dentro do cenário exposto presume o trato com a complexidade decorrente da série indefinível de interesses envolvidos, inclusive os estatais. Por decorrência, assumir medidas de promoção de referido acesso é consequentemente assumir os riscos de conflitos e de aumento dessa mesma complexidade pela inserção de novos fatores. 2.1.1. Projeto Florença – “Acesso à Justiça” A série de “ondas”, que tomariam o mar do direito processual ao longo do século XX para a promoção do acesso à justiça, enfrentaram essa complexidade sob o mote de um adequado (efetivo) provimento jurisdicional em duas frentes, como já dito, bem distintas: a promoção de acesso individual; e a sensibilização do sistema jurisdicional aos litígios de natureza transindividual. Tais “ondas” se referem diretamente à pesquisa de direito comparado promovida pelo Projeto A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural e outros interesses, 22ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009. pp. 49/50. 38 O maior exemplo dessa espécie de atuação administrativa dentro do Poder Judiciário é a função desempenhada pelo CNJ, instituído pela EC 45/2004, que atua como um verdadeiro gestor do Poder Judiciário brasileiro, é explícita nesse sentido a redação do artigo 103-B, §4º, incisos VI e VII da Constituição Federal. 37

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Florença e resumida no trabalho denominado de Acesso à Justiça de autoria de MAURO CAPPELLETTI e BRYANT GARTH. Nesse trabalho, cuja notoriedade dispensa mais considerações, foram resumidas pesquisas realizadas em inúmeros países no intuito de se verificar os obstáculos, as medidas e os efeitos decorrentes de ações propositivas para o acesso à justiça. Segundo os autores, as “ondas” estariam ligadas a três momentos específicos de ações Estatais e Sociais: (i) assistência judiciária aos pobres; (ii) representação jurídica de interesses coletivos ou difusos; e (iii) implantação de sistemas de Acesso à Justiça baseados no enfoque do conflito os quais, no Brasil, ficaram conhecidos pela proposta de sistemas alternativos ao modelo jurisdicional vigente, os modelos multiportas. Conforme se verifica, a questão da ubiquidade jurisdicional é diretamente vinculada a cada qual desses elementos trazidos pelas “ondas” de CAPPELLETTI 39, ao passo que o reforço dado à satisfação de uma pretensão jurídica coletiva não derrogaria de forma alguma a possibilidade de tutela individual, devendo ainda reforçá-la. Uma tutela a ser fortalecida, principalmente, diante do diagnóstico dos óbices ligados às “ondas”, dificuldades que poderiam ser divididas, conforme o cenário social em duas vertentes. Sob um primeiro ponto de vista, se constrói toda a série de obstáculos experimentados por decorrência de elementos econômicos, sociais e culturais que impediriam ou dificultariam o acesso de interesses ao foro. Sob um enfoque posterior, a dificuldade de acesso à justiça decorreria da ausência de democratização do Estado, ou seja, do fechamento do Estado para essas mesmas comunidades, ângulo pelo qual se observaria, principalmente, a proposta de abertura do sistema estatal às demandas e interesses antes desconhecidos. Sob o olhar analítico de CAPPELLETTI e GARTH 40, quanto as dificuldades inerentes à natureza de certo modo mais econômica, os obstáculos de acesso à justiça estariam ligados ao tempo de duração dos processos, aos custos envolvidos com a demanda e a possibilidade de reconhecimento de uma lesão jurídica. Por outro lado, a proposta mais sociológica de análise, principalmente aquela centrada nos países latino americanos, viu a ausência de acesso à justiça como uma patologia decorrente de atrasos institucionais ou mesmo políticos 41. A paulatina implantação de estruturas jurisdicionais e administrativas nesses países da América Latina, neles incluído o Brasil, viria trazer os mesmos problemas de cunho mais econômico e

Acesso à Justiça, 1ª reimpressão, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p. 10/11. Acesso à Justiça, 1ª reimpressão, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, pp. 15/29. 41 Nesse aspecto é muito interessante a leitura do último capítulo de Acesso à Justiça, onde os autores ponderam que toda a divagação a respeito dos mecanismos de acesso à justiça perde o sentido em situações onde a ausência de Justiça é a patologia mais séria. No caso o exemplo é o Chile durante o período de ditadura militar, onde na ausência de uma estrutura política justa realmente não haveria que se falar em acesso ao sistema jurisdicional. v. pp. 161/165. 39 40

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gerencial então apresentados por CAPPELLETTI e GARTH. Nesse passo, vale destacar que a doutrina brasileira do período de certo modo agregou as duas preocupações em uma corrente ao mesmo tempo preocupada com a construção de portas no judiciário e órgãos administrativos, bem como à necessidade de abertura dessas mesmas portas. Destacam-se nessa corrente ADA PELLEGRINI, KAZUO WATANABE, JOSÉ BRITO FILOMENO, ANTÔNIO HERMANN BENJAMIN dentre outros 42. Das primeiras medidas tomadas para a abertura do acesso à justiça ao lado das já citadas leis que promoveram a inserção da tutela coletiva (Lei 7.347/85 e Lei 8.078/90) surge como marco a criação dos Juizados de Pequenas Causas. Todavia, antes de fazer um paralelo entre este sistema e a tutela coletiva, cabe trazer à discussão os referidos óbices apontados por CAPPELLETTI e GARTH principalmente quanto às três ordens de dificuldades envolvidas no acesso à justiça. Os já citados trabalhos de BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS bem exemplificaram as dificuldades culturais inerentes às classes mais pobres quando no momento de identificação e exercício de direitos. Acrescentaram-se a esse ponto as dificuldades culturais vinculadas, também à própria identificação da comunidade com um centro legítimo de solução de conflitos jurídicos. Essa perspectiva remonta inclusive à ideia de trajeto do litígio já apresentada com arrimo nos trabalhos de FELSTINER 43 em que: a identificação de uma questão de direito; a identificação de um polo passivo para essa questão jurídica e; por fim, de uma forma de composição para as partes necessita da construção minimamente lógica. Um aparato de composição de litígios que deve estar cotidiana e culturalmente ligado com as partes de forma a permitir o mínimo de isonomia em sua utilização. No plano econômico, a questão se estende à possibilidade material do acesso à justiça, centrada nos custos de entrar e se manter dentro do sistema jurisdicional. Tais custos estariam vinculados a perspectiva das despesas imediatas como, por exemplo, o gasto com profissionais da advocacia e as custas para a propositura ou para a defesa em um processo. Entretanto, pontos menos diretos assumem natureza de óbice econômico, dentre eles, a dificuldade inerente à duração do processo, que se revela como um custo de manutenção em litígio a ser contabilizado. Um terceiro óbice, menos evidente quando cristalizado, mas de grande importância ao acesso à justiça liga-se à elementar garantia de igualdade no foro. Ponto já trazido ao presente trabalho pelas pesquisas desenvolvidas por MARC GALANTER 44, professor da faculdade de direito de Winsconsin.

RICARDO TORRES HERMANN. O Tratamento Das Demandas De Massa Nos Juizados Especiais Cíveis, Rio de Janeiro: FGV Direito, 2010, disponível em , p. 24. 43 The Emergence and Transformation of disputes: Naming, Blaming, Claiming... in Law and Society Review, vol. 15, nº3/4, 1980/81, pp. 631-654. 44 Why The Haves Come out Ahead,in Law and Society Review, Vol 9:1, 1974, disponível em http://marcgalanter.net/documents/litigationpatterns.htm 42

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Em referidas pesquisas, GALANTER desconstrói a pressuposição de igualdade inerente ao modelo processual liberal, a qual residia na afirmação de um modelo de regras igualitárias formais e sem o exame apurado da posição ocupada por cada um dos litigantes dentro do processo ou ainda em um plano social e jurídico maior, a exemplo da relação entre as partes ou entre elas e o grupo a que pertencem. Segundo GALANTER, também, citado por CAPPELLETTI 45, o elemento de entrave ao acesso à justiça, estaria na superioridade dos litigantes habituais por decorrência de fatores como a maior experiência no direito; a gestão econômica do litígio em escala; o desenvolvimento de relações mais estreitas com o aparato administrativo; o cálculo apurado de riscos da demanda; e a possibilidade de teste de estratégias nos casos “atomizados” em que ele se relaciona. Um entrelace de relações jurídicoprocessuais que podem ser expressos pelo seguinte quadro comparativo:

Autor Litigante

Litigante

Habitual

Eventual

(Repeat Player)

(One Shoter)

1

2

3

4

Litigante Habitual

Réu

(Repeat Player) Litigante Eventual (One Shoter)

1

45

Why The Haves Come out Ahead, in Law and Society Review, Op. Cit.

Acesso à Justiça, 1ª reimpressão, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p. 21 e 25.

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Como dito anteriormente, os tipos ideais propostos por GALANTER – Repeat Players e One Shoters - têm especial aplicabilidade nas relações estabelecidas dentro da lógica do Acesso à Justiça, principalmente no tocante às diferenças de atuação e o “caminho do litígio” dentro de cada cenário de relações representadas pelos encontros processuais de nºs 1, 2, 3 e 4. Nessa proposta de abordagem é fundamental a noção de superioridade estratégica de que goza o litigante habitual, seja na qualidade de autor ou réu, quando em face do litigante eventual (cenários 2 e 3). Todavia, no que concerne à ideia de óbice ao acesso à justiça o recorte de GALANTER talvez possa ser colocado um passo à frente das correntes mais tradicionais ligadas à ideia das “ondas” do Projeto Florença. Isso, porque, a proposta do professor de Wisconsin, por lógica, presume já a existência de uma demanda ou conflito pautado em regras processuais definidas ou, ainda, presume que haja o desejado acesso e que nele se constitua a ineficiência, falta de efetividade, ou desequilíbrio decorrente das posições estratégicas, resultando em falta de justiça. Em outras palavras, a desejada “igualdade de armas” pressupõe que as partes possam ir à “guerra” 46. Desponta a necessidade, portanto, de se colocar em pauta a existência ou não do acesso prático à justiça, ou seja, a questão a respeito da abertura de portas do sistema estatal para a satisfação de interesses antes afastados dos mecanismos de tutela.

2.1.2. Proteção Jurídica ao consumidor no Brasil De certo modo, os dados colhidos em pesquisas empíricas quanto ao crescimento do consumo e à cristalização da tutela do direito dos consumidores experimentada nas últimas décadas sejam um primeiro passo para uma resposta sobre a existência de acesso à justiça. Tais dados, inclusive, permitem uma perspectiva mais ampla de todo o processo de massificação do acesso à justiça na tutela do direito dos consumidores. Antes, contudo, cumpre notar a importância que o consumo assumiu nos últimos vinte anos dentro da sociedade brasileira, seja no quesito de sua qualificação pela disciplina que o Código de Defesa dos Consumidores, seja no quesito de sua quantificação, atrelado à expansão da capacidade econômica da sociedade brasileira, especialmente focalizada no “poder de compra”. Aqui residem algumas observações. No cenário brasileiro, pensar sobre o desenvolvimento do poder de compra é pensar em aumento quantitativo de relações jurídicas baseadas em consumo, ou seja, relações consumeristas 46

Acesso à Justiça, 1ª reimpressão, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p. 15.

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sujeitas à disciplina do CDC. Para alguns estudiosos, tal expansão do consumo está diretamente atrelada ao crescimento da “classe C” 47 cuja expansão, apenas entre os anos 2005 e 2012, teria alçado cerca 40 milhões de pessoas, e cuja distinção - status - social passa, necessariamente, pelo exercício do consumo em termos de qualidade e quantidade. Dessa forma, podemos considerar que, desde o marco histórico do advento do CDC, no início da década de 90, por decorrência de inúmeros eventos sociais, como o incremento no poder aquisitivo, ou mesmo o eventual senso de proteção dado pelo diploma legal consumerista, houve uma verdadeira explosão do consumo no Brasil. Uma circunstância que teve como efeito, dentro desse período de tempo, a busca por mecanismos de garantia prática dos direitos dos consumidores. Tais buscas se dividiram entre os diversos meios de acesso postos à disposição do consumidor como, por exemplo, os órgãos administrativos de proteção vinculados ao Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, da Secretaria de Direito Econômico, do Ministério da Justiça, e do Sistema Nacional de Defesa dos Consumidores (SINDEC), criado pelo CDC, cuja operacionalização prática se dá pela figura dos PROCONs regionalmente distribuídos por todo o Brasil 48. Entretanto, por outro lado, com a disciplina de ampla tutela prevista pelo CDC, os consumidores viram também a possibilidade de seus direitos serem garantidos no âmbito jurisdicional entre os meios ordinários da “justiça comum” ou, ainda, entre os meios “posteriormente implantados” de facilitação do acesso à justiça. O CDC, portanto, foi protagonista, na disciplina material da relação de consumo, da popularização ou verdadeira constituição desses direitos à população. A relação entre a afirmação de direitos pelo diploma consumerista e seus efeitos após a grande expansão do mercado consumidor brasileiro tem, por hipótese, relação estreita com o crescimento inveterado do número de demandas relativas ao direito do consumidor que chegaram ao judiciário nos últimos anos. Nossa primeira proposta para examinarmos essa relação é analisar os procedimentos para a tutela individual e coletiva nas relações de consumo e posteriormente a construção do sistema dos Juizados Especiais para a consecução do acesso à justiça, local onde retomaremos muito do aqui discutido com o devido aprofundamento.

Ver, por exemplo, RICARDO MORISHITA WADA e FABIANA LUCI DE OLIVEIRA em O Comportamento da Nova Classe Média Brasileira as Relações Consumo in Direito do Consumidor: os 22 anos de vigência do CDC. 48 Um exemplo da amplitude do acesso a esses órgãos e do volume que esse acesso representa, o site do SINDEC fornece uma série de gráficos que podem ser gerados com base no banco de dados de Reclamações Fundamentadas. Tais gráficos apontam, por exemplo, que apenas no período entre 11/06/2013 a 30/05/2014, foram recebidas 2.244.778 (dois milhões duzentos e quarenta e quatro mil, setecentos e setenta e oito) Reclamações Fundamentadas nos diversos PROCONs que se vincularam ao sistema de registro unificado de reclamações. 47

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2.2. Tutela Individual dos Interesses dos Consumidores

Haja vista à importância da Lei 8.078 no reforço pela construção de um sistema processual para a tutela coletiva 49, as inovações do Código de Defesa do Consumidor no âmbito procedimental é carregado de disposições básicas circundantes à efetividade e a instrumentalidade do processo, com a respectiva facilitação da defesa e do acesso à justiça. Segundo KAZUO WATANABE, isso significa não ter havido qualquer “desprezo” às ações individuais. Até mesmo pelo fato de que estas tendem a se mostrar em número mais acentuado e crescente, dados os estímulos ao exercício do direito, principalmente no tocante à responsabilidade civil nas relações de consumo. Nesse ínterim, segundo o mesmo autor, surge como a mais nítida previsão do código para a satisfação individual do consumidor aquela constante no artigo 5º, inciso IV referente à instauração dos Juizados Especiais Cíveis voltados diretamente à tutela de índole consumerista, sendo que, no mais, o procedimento nas ações individuais de consumo teriam o regimento comum do CPC, “de sorte que a seu respeito não se impunha uma disciplina pormenorizada” 50. Entretanto, a despeito da evidente vocação para a jurisdição de natureza transindividual, o CDC elegeu diversas inovações materiais que tiveram o condão de superar a base do procedimento comum ordinário, renitentemente apontado como meio processual padrão para a tutela do consumo 51. Assim toda a sistemática procedimental estaria adstrita à consecução dos preceitos norteadores do código, em entendimento fatalmente voltado às doutrinas processuais fundadas na instrumentalidade do processo 52. A contribuição do CDC para todo o sistema de tutela coletiva de direitos é bem evidenciada no comentário feito por KAZUO WATANABE ao artigo 89 que previa a extensão das normas do Título III a outros direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, tal artigo foi objeto de veto presidencial: “A mesma ”extensão indicada no dispositivo vetado foi efetivada pelos arts. 110 e 117 do Código, que fizeram aos acréscimos mencionados à lei nº 7.347/85 [aplicação da disciplina do CDC a defesa de outros interesses difusos ou coletivos], sendo assim induvidoso, agora, que toda a disciplina contida no Título III do Código, inclusive a pertinente à ação coletiva para a defesa de interesses individuais homogêneos, é invocável para a tutela de outros direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, e não apenas os respeitantes aos consumidores”. 50 GRINOVER, Ada Pelegrini e outros, Código de Defesa do Consumidor - Comentado pelos autores do Anteprojeto, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999, p.709. 51 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Manual do Consumidor em Juízo. 2ª ed. rev. e atua. São Paulo: Saraiva, 1998, pp.43/44. 52 A instrumentalidade processual como premissa depende da clara concepção do fim para qual o processo-instrumento aponta. Portanto, evidente e necessário distinguir os limites do procedimento como encadeamento lógico de atos visando um determinado fim, bem como o próprio fim a ser alcançado e deste conceito se extrair a ideia de processo a partir de um procedimento com a figura do contraditório. Ressalta-se, ainda, a questão atinente aos elementos formadores desse 49

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Assim, a característica mais evidente à tutela Individual dos consumidores é seu supedâneo principiológico com vistas à efetividade e instrumentalidade do processo, manejado em busca da satisfação de um determinado interesse, decorrente de uma única relação de consumo, o qual fora individualmente impulsionado - pelo legítimo titular - à apreciação jurisdicional

53

. Tal espécie

“qualificada” de relação jurídico-processual - a relação de consumo – busca, por suposto principiológico e constitucional, a equiparação das partes em litígio, ponto que o legislador se preocupou em atender ao longo das disposições dispersas por toda a Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990. Nesse desiderato, o Código prevê diversos institutos processuais, ora facilitando o acesso à jurisdição, ora fortalecendo a posição do consumidor, litigante individual e eventual, não estando a disciplina legal limitada apenas às situações em que o consumidor figura na posição passiva da demanda. Pois, como bem salienta ADA PELLEGRINI GRINOVER, o Título III – Da defesa do Consumidor em Juízo:

”...não compreende apenas a defesa processual estricto senso, com as exceções opostas pelo consumidor, mas sim toda e qualquer atividade por este desenvolvida em juízo, tanto na posição de réu, como na de autor, a título individual ou pelos entes legitimados às ações coletivas...”

O fundamento principiológico para esse “reforço de tutela” 54,objeto da preocupação legislativa, encontra suas raízes remotas nos elementos sócio-econômicos inerentes à relação jurídica de consumo 55. Por conta disso, como já se pontuou, encontram-se, ao longo de todo o corpo legal, dispositivos orientados a garantir a igualdade processual entre consumidor e fornecedor, à guisa do princípio do devido processo legal, este bem entendido para além de sua conotação formalista, de modo a promover a possibilidade prática da atuação processual. Como exemplo de semelhantes instrumentos à disposição do consumidor individualmente considerado, na mera reprodução dos termos da Lei 8.078/90, podemos citar: o (art. 103) extensão

fim processual, que, pela necessária coerência e coesão sistêmica, não aceitam qualquer dissonância interpretativa, em suma, “a perspectiva instrumentalista do processo é teleológica por definição” nas palavras de CANDIDO RANGEL DINAMARCO A instrumentalidade do Processo, 14ª ed. rev. e atual., São Paulo: Malheiros, pp.177/178 53 GRINOVER, Ada Pelegrini e outros, idem, p.703. 54 Idem, idem, p. 704 55 NEWTON DE LUCCA, em seu tratado a respeito do tema (Direito do Consumidor – Teoria Geral da Relação Jurídica de Consumo, 2ª ed., São Paulo, Quatier Latin, 2008. pp. 99 seg.), expõe, de forma profunda e exauriente, toda a construção do conceito de relação jurídica consumerista. Suas investigações partem do átomo do conceito de “relação” caminhando em direção à uma construção complexa e complexiva dos elementos que lhe emprestam o caráter jurídico-consumerista.

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subjetiva da coisa julgada, nos casos de ações coletivas apenas em benefício dos interesses individuais; o (art. 6º, VIII) inversão do ônus da prova nas situações em que haja verossimilhança ou hipossuficiência do consumidor; o (art. 84) a concessão do resultado prático equivalente nas sentenças que condenam à obrigação de fazer; e o (art. 83) que concede ao consumidor o manejo de toda e qualquer ação para a efetiva tutela jurisdicional. Outro exemplo de disposição típica à efetiva tutela do consumidor é a ampla aplicabilidade do provimento de antecipação de tutela, seja in limine, ou no decorrer do processo, que, fundado nos princípios de vulnerabilidade, reparação e prevenção, previstos nos artigos 4º, inciso I e 6º, incisos VII e VIII, encontra-se positivado, no artigo 84, § 3º do Código de Defesa do Consumidor. Note-se que a concessão de medidas de antecipação de tutela restou amplamente utilizada nos casos de inscrição em cadastros de proteção ao crédito, suspensão de cobrança questionadas judicialmente ou devolução de valores indevidamente pagos. Tais exemplos de aplicabilidade refletem o aspecto pragmático no fundamento de tal disposição legal, a revelar não mais do que a amplitude e a difícil reversibilidade do dano que um fornecedor pode hipoteticamente a causar em uma relação de consumo. Tal disposição presente no artigo 84, §3º, ainda mostra-se diversa daquela que foi incorporada pela Lei 8.952/1994 ao artigo 273 do Código de Processo Civil, pois, o diploma consumerista elege condições outras para a “sua” antecipação de tutela, as quais devem ser interpretadas conforme o sistema particularmente protetivo ali estabelecido, portanto, ampliativa das hipóteses em que será concedida a referida antecipação. Evidente, assim, a intenção instrumental da tutela no CDC, assunto tratado por RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO em seu Manual do Consumidor em Juízo, o qual, em vista da amplitude de provimentos jurisdicionais oferecidos ao consumidor, pondera:

“…Essa instrumentalidade revela-se particularmente importante na tutela judicial do consumidor, porque dentro os seus direitos básicos está a 'efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos', a par da 'facilitação da defesa de seus direitos' (CDC, art. 6º, VI e VIII, respectivamente)…” 56

Em vista desses poucos exemplos, conclui-se que a disciplina do processo individual no Código de Defesa do Consumidor está, por óbvio, estritamente ligada à natureza da relação jurídica

56

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Idem, p.40.

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estabelecida entre consumidor e fornecedor. Deste modo, a construção de uma disciplina procedimental e processual que garanta a tutela efetiva do consumidor, melhor, que garanta, antes e além desta tutela, a possibilidade prática de acesso e permanência na “justiça”, ou ainda, aos centros emanadores de decisões juridicamente vinculantes, decorre não diretamente de elementos jurídicos estritamente considerados. No entender da doutrina consumerista 57, essa necessária disciplina decorre de fatores econômicos, da relação de natureza social, captada pela sensibilidade jurídica, como elemento relevante e suficiente para ser disciplinado. Afirmar, portanto, a necessidade de mecanismos que garantam o acesso e a efetividade na prestação jurisdicional das demandas individuais, fundadas na relação de consumo é reconhecer de plano que, sem a intervenção do Estado-legislador, corre-se grave risco de desequilíbrio na relação processual entre pessoas que ocupem polos contratuais de consumo

58

em um eventual litígio.

Observação assim sintetizada por JOSÉ GERALDO BRITO FILOMENO:

“…É com os olhos postos nesta vulnerabilidade do consumidor que se funda a nova disciplina jurídica. Que enorme tarefa, quando se sabe que esta fragilidade é multifária, decorrendo ora da atuação dos monopólios e oligopólios, ora da carência de informação sobre qualidade, preço, crédito e outras características dos produtos e serviços…”59

Essa é uma constatação que não pode ser afastada sob o risco da perda da base sociológica, e historicamente construída, da tutela consumerista 60. Até mesmo porque, no quadro geral de uma relação não abstrata de consumo, o fornecedor, em face de seus concorrentes, detém a priori, e como pressuposto para a manutenção de sua posição de mercado, informação, conhecimento e detalhamento amplos e sigilosos quanto aos seus serviços e produtos. O que se dizer quanto ao desequilíbrio de informações em face do consumidor? Outro exemplo que corre no sentido de afirmar a necessidade de um procedimento diferenciado ao consumidor individual em juízo é a forma eventual com a qual este se relaciona com o poder

V. g. o trabalho de JOÃO BATISTA ALMEIDA. A Proteção Jurídica do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1993. pp. 15/20. Nesse sentido, talvez, a própria dicção legal traga uma noção que transcende a ideia negocial e contratual que juridicamente estabelece a posição consumidor/fornecedor, por exemplo no artigo 17 do diploma consumerista. Inegável que a definição das partes em relação de consumo é, a despeito da tautologia, de natureza relacional por imposição do próprio teor dos artigos 2º e 3º do código. Uma dificuldade inerente à extração de substantivos e adjetivos a partir dos verbos consumir e fornecer. O tom distintivo e hermeneuticamente relevante é, de fato, a oposição do conceito de “destinatário final” brilhantemente analisado por CLAUDIA LIMA MARQUES em seu Manual de Direito do Consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.71 e segs. 59 GRINOVER, Ada Pelegrini e outros, Código de defesa do consumidor - Comentado pelos autores do Anteprojeto, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999, p. 7. 60 Por todos, remetemos a NEWTON DE LUCCA, op.cit.. pp.46/79. 57 58

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judiciário. Tal ponto foi também objeto de comentário por parte de ADA PELLEGRINI GRINOVER, a qual define a posição do consumidor, antes do advento da Lei 8.078/90, como “pulverizada, isolada, enfraquecida perante a parte contrária que não é, como ele, um litigante meramente eventual”. A devida afirmação quanto às bases da tutela do consumidor individual, ao invés de parecer meramente prolixa, ou mesmo política, tem sua importância, no presente momento, à medida que expõe o pressuposto de que detém o consumidor para o manejo das “ações” que lhe sejam conexas ao interesse. A disposição nesse sentido é, como visto, expressa pelo código em seu artigo 83, trazendo a prerrogativa de uso de quaisquer “ações” “capazes de propiciar a adequada e efetiva tutela”. São, portanto, segundo o CDC manejáveis toda a sorte de “ações” cuja variabilidade dependerá do provimento pretendido pelo demandante, seja ele declaratório, cominatório, constitutivo, executivo ou, mesmo, de natureza mandamental

61

. Previsão, esta, em forte consonância com o

preceito constitucional insculpido no artigo 5º, inciso XXXV. Note-se, entretanto, que o entendimento quanto a existência de “diversas ações” é amplamente refutado pela doutrina, o que se consubstancia em erro terminológico presente no CDC. A manutenção de referido termo, típico à teoria imanentista – necessária correlação entre direito processual e material – leva a crer que a tutela consumerista estaria vinculada ao direito material, ou em termos mais estritos, à causa de pedir conforme delineada na peça vestibular. De fato, não é isso que ocorre, pelo menos, em face dos modelos de direito processual autônomo e de atipicidade do direito de ação. Todavia, também, é inegável que a própria disciplina processual do CDC se dirigiu e se instaurou em decorrência da espécie, amplitude e forma da relação jurídica travada na base do universo de consumidores e de fornecedores. A previsão processual ali constante, como se disse linhas acima, não se deu por outro motivo que não a promoção do reequilíbrio das partes. Como conciliar semelhantes observações? Ora, a conciliação vem do fato de que não seria o CDC uma exceção, um caso de direito material que instituiu diverso processo, ainda que nele sejam previstas regras específicas para as questões

Quanto a possibilidade de pedido de natureza mandamental, reportamo-nos à exposição de KAZUO WATANABE esclarecendo que, no provimento mandamental, “... é o próprio juiz que, através da expedição de ordens, que se descumpridas farão configurar o crime de desobediência, e de realização pelo por ele de atos materiais (como o fechamento de um estabelecimento comercial ou industrial, ou a cessação efetiva da publicidade enganosa se necessário, com impedimento da circulação do veículo de publicidade, da interrupção da veiculação de um anúncio pela televisão etc., ou a retirada do mercado, com uso de força policial, se necessário, de produtos e serviços danoso à vida, saúde e segurança dos consumidores), é o próprio magistrado – repita-se – que praticará todos os atos necessários para que o comando da sentença seja cumprido de modo específico.“ (in GRINOVER, Ada Pelegrini e outros, Código de defesa do consumidor - Comentado pelos autores do Anteprojeto, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999, p.747.) 61

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probatórias, antecipatórias de tutela ou mesmo de profundidade cognitiva, cuja natureza foge do âmbito meramente procedimental. Tais previsões variam da mesma forma no tocante à legitimação e à competência diante de tantos outros direitos materiais, ainda que não consumeristas, em litígio sob o rito comum ordinário sob a regra exclusiva do CPC. 62 Não se trata de outro processo. O sistema de tutela do CDC decorre de adequado regramento voltado à eficiência, naqueles exatos termos relacionais já expostos. Sendo, para tanto, o procedimento adequado ao provimento, em estrito respeito à interpretação mais sistemática dos conceitos de processo e ação. Nessa toada, salta aos olhos, que, em vista das disposições processuais constantes no código acrescidas pela previsão expressa de subsidiariedade do CPC (artigo 90 do CDC) na tutela judicial dos direitos previstos pela Lei 8.078/90, teríamos certa especialidade procedimental – ainda que em juízo provisório – para a ação manejada pelo consumidor. A previsão desse procedimento especial não é, contudo, incólume aos efeitos decorrentes da natureza da tutela. Há uma ligação estreita entre a forma tutelada e a satisfação de interesses prometida pelo referido rito procedimental. Exemplo processual relevante é a questão do alargamento das hipóteses de competência jurisdicional (artigo 101, inciso I do CDC), de onde se extrai a previsão de competência territorial do juízo de domicílio do autor, nas ações que buscam a responsabilização civil do fornecedor de produtos e serviços. Nesse quesito, mais uma vez é necessário pontuar que essa previsão processual decorre do modo e da forma com que se dá a relação jurídica de consumo, a qual obriga, para a preservação do equilíbrio entre consumidor e fornecedor em litígio, sejam adotados regramentos a facilitar a atuação processual do polo hipossuficiente 63. BARBOSA MOREIRA, por exemplo, expõe a superioridade com que contaria o fornecedor se este pudesse opor a dicção do artigo 94 do CPC:

“...é por demais óbvio que tanto mais árdua será uma disputa judicial quanto mais distante do domicílio do consumidor se situar o campo de batalha: aos encargos financeiros normais, se acrescentarão outros, extraordinários, como os indispensáveis ao deslocamento dos autos, de seu domicílio para o do réu, na tentativa de contratar profissional que ali possa representá-lo em Juízo, bem assim aqueles necessários à posterior comunicação entre cliente Sobre esse aspecto o ensaio de HEITOR VICTOR MENDONÇA SICA, Reflexões em torno da teoria geral dos procedimentos especiais, Revista de Processo, vol. 208, jun/2012, p. 61. 63 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Idem, pp.48/55. 62

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e advogado...” 64

Assim, em vista da subsidiariedade da disciplina do procedimento ordinário e dos demais previstos no CPC, bem como da positivação dos princípios de proteção e facilitação do acesso à justiça, todos, renitentemente, afirmados pelo CDC, abre-se o mais amplo leque de competências; a qual poderá tanto seguir o disposto no referido artigo 101, inciso I, quanto, por expressa disposição do próprio CDC (respectivamente artigos 101 e 90) poderá seguir disposição do artigo 93 do mesmo diploma ou, ainda, desde que presente a necessidade de facilitação de acesso do consumidor ao juízo, a disciplina do artigo 94 do Código de Processo Civil 65. Em resumo, temos extensa possibilidade de escolha do foro à disposição do consumidor, que poderá optar pelo local de seu domicílio, pelo local de ocorrência do dano ou pelo local de domicílio do fornecedor. Outro aspecto que se mostra relevante para exemplificar a tipicidade de rito na tutela do consumidor individual é o tocante à inversão do ônus probatório, um dos pontos mais controversos dentre as inovações procedimentais concernentes às relações de consumo. Como cediço, o CDC prevê duas formas de inversão do ônus probatório: uma ope legis, presente no artigo 38, aplicável às circunstâncias quanto a prova de veracidade e correção das informações ou comunicações publicitárias; e outra, ope iudicis, mais ampla e ligada às bases teleológicas do próprio código, prevista pelo disposto no artigo 6º, inciso VIII. Dentro daquilo que se mostra relevante para essa fase do presente trabalho, a previsão de inversão ope iudicis se destaca na medida em que é aplicável como elemento de garantia de acesso do consumidor ao sistema de tutela jurisdicional, elemento diretamente ligado ao acesso à justiça a medida que concede plena disposição de meios para provar o alegado 66 Assim, do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor nas relações a ele inerentes (artigo 4º, inciso I do CDC), decorre a base teleológica para que seja concedido regime diferenciado A Defesa do Consumidor em Juízo, in Revista de Processo, ano 16, nº 61, Jan/Mar, 1991, p. 179. RIZZATO NUNES, Luiz Antônio. Curso de Direito do Consumidor. 7ª ed. rev. e atua. São Paulo: Saraiva, 2012 66 Nesse sentido o trabalho de ROBSON RENAULT GODINHO Prova e Acesso à Justiça: Apontamentos sobe a distribuição do ônus da prova in Aspectos Processuais do Código de Defesa do Consumidor, trata a contento o tema, revelando a nítida relação entre essa previsão do CDC e o acesso à justiça. Referido autor ainda, sustenta, escorado em entendimento de LUIZ GUILHERME MARINONI que “o direito de acesso à jurisdição - visto como um direito do autor e o réu - é um direito à utilização de uma prestação estatal imprescindível para a efetiva participação do cidadão na vida social, e assim não pode ser visto como um direito formal e abstrato – ou como um simples direito de propor ação e de apresentar defesa -, indiferente aos obstáculos sociais que possam inviabilizar o seu efetivo exercício, a questão do acesso à justiça, portanto, propõe a problematização do direito de ir a juízo – seja para pedir a tutela do direito, seja para se defender – a partir da ideia de que obstáculos econômicos e sociais não podem impedir o acesso à jurisdição, já que isso negaria o direito de usufruir de uma prestação social indispensável para o cidadão viver harmonicamente em sociedade”. 64 65

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de distribuição de carga probatória 67, o que sem dúvida permite que mais consumidores possam acessar o sistema judiciário na busca de satisfação jurídica. Nesse sentido, a Lei elege dois requisitos para que o magistrado determine a inversão do ônus probatório: (i) a verossimilhança da alegação; e (ii) a hipossuficiência do consumidor face o fornecedor. Pondo-se a salvo do “campo de batalha” que se travou na busca por uma adequada interpretação desses requisitos. Tanto a definição do caráter alternativo ou aditivo dos requisitos

68

, quanto a

extensão que se deve dar à interpretação do que vem a ser uma alegação verossímil 69 ou, mais ainda, sobre enumeração das diversas categorias possíveis de hipossuficiência 70, o fato é que a Lei concede a possibilidade da inversão do ônus probatório explicitamente na tutela dos direitos do consumidor 71 e na busca pelo almejado equilíbrio processual. Outro aspecto alvo de acalorado debate tem sido o momento para a aplicação da inversão do ônus probatório, sendo basicamente duas as correntes. A primeira delas, adotada expressamente pelos elaboradores do anteprojeto do Código 72, defende a inversão como regra de julgamento, o que levaria ao entendimento de que estando o juiz carente de convencimento fático do quanto ocorrido no momento de proferir a sua sentença, deve ele aplicar a inversão a fim de evitar o non liquet. Outra corrente é aquela que, no ânimo de evitar o cerceamento de defesa, defende a inversão do ônus probatório no momento de saneamento processual 73. Fato é que, sem qualquer juízo de mérito quanto as correntes citadas, ambas firmam o entendimento de que o processo para a satisfação de interesses em relação de consumo é eminentemente especial, seja pela sua qualificação em momento de Aqui nos reportamos, evidentemente, ao regime de distribuição de ônus probatório legalmente delimitado pelo artigo 333 do CPC, que, “rígido” ao prever a distribuição do ônus de provar os fatos constitutivos ao autor e os impeditivos ao réu, não tem a condição de adaptar-se a eventuais disparidades entre as partes desequilibrando a produção da prova. 68 Remetemos, por exemplo, à posição aditiva proposta por ANTONIO GIDI Aspectos da inversão do ônus da prova no Código do Consumidor in Revista de Direito do Consumidor, nº 13 São Paulo: RT, Jan-Mar. 1995. 69 Tal ponto foi tratado por BARBOSA MOREIRA Notas sobre a inversão do ônus da prova em benefício do consumidor in Revista de Processo, nº 86, Abr-Jun 1997. 70 Tema tratado, e talvez exaurido, por CLAUDIA LIMA MARQUES em Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 3ª ed. São Paulo: RT, 1992. 71 Há autores, dentre eles LUIZ GUILHERME MARINONI, que defendem a extensão da inversão ope iudicis do ônus da prova para outras relações de direito material que não as de consumo, tal posição sustenta o entendimento de ROBSON RENAULT GODINHO, Op. cit., que se expressa da seguinte forma: “Na realidade a inversão do ônus da prova deve ser estendida a todas as situações em que as regras do art. 333 do CPC ferem uma real desigualdade entre as partes ou tornem a uma delas excessivamente onerosa ou mesmo impossível a demonstração da verdade fática que lhe interessa, isso porque 'a inversão do ônus da prova é imperativo do bom senso quanto ao autor é impossível, ou muito difícil, provar o fato constitutivo, mas ao réu é viável , ou muito mais fácil, provar sua inexistência'', sendo que, nos casos em que a produção da prova é muito difícil ou impossível para ambas as partes, chegando o juiz ao final do procedimento sequer sem uma convicção de verossimilhança, ' determinada circunstância de direito material pode permitir a conclusão de que a impossibilidade de esclarecimento da situação fática não deve ser paga pelo autor', invertendo-se o ônus da prova”. Importante pontuar a relevante discussão em torno de semelhante possibilidade ser aplicável às ações coletivas, ponto que será tratado posteriormente. 72 GRINOVER, Ada Pelegrini e outros, idem, p. 714/715. 73 FREDIE DIDIER JR. (et. all.) Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. 7ª Ed. Salvador: juspodivm, 2012, p. 85/88 67

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saneamento processual, seja pela profundidade cognitiva e adoção de pressupostos de julgamento. Ponto, ainda, de curial importância é o ressaltado por KAZUO WATANABE ao deixar claro que tal previsão de inversão de ônus é inafastável em processos onde se discutem direitos decorrentes de uma relação de consumo 74 , por seu turno, revelador do caráter sui generis do procedimento de tutela dessa espécie de relação jurídica. A responsabilidade objetiva figura como mais um elemento claro de qualificação da tutela individual nas relações de consumo, sua incorporação ao Código de Defesa do Consumidor deu-se mediante a previsão do artigo 18 do referido diploma. A despeito das posteriores imersões sobre os efeito decorrentes da responsabilidade objetiva dos fornecedores, vale adiantar o que ficou conhecido com a “erosão dos filtros de reparação de danos”, do qual a desconsideração do elemento culpa é o tipo básico. ANDERSON SCHREIBER, em seu trabalho sobre o tema 75, fornece uma reconstrução histórica dos eventos que vieram afastar a necessidade de demonstração de culpa para a responsabilização civil. Tal desenvolvimento histórico decorreria da crescente conscientização jurídica quanto aos limites que a responsabilização subjetiva impunha: (i) na prova de ocorrência da culpa – a notória probatio diabolica –; e (ii) na assunção do agente econômico 76 de condutas que seriam eivadas de risco por natureza, esta última conhecida como responsabilização pelo risco. Percebe-se de pronto que ambas as perspectivas que levaram ao Legislador consumerista a adotar o regime de responsabilidade objetiva são inerentes à sociedade de massa, suas complexidades, e o consequente afastamento entre o consumidor e o fornecedor, bem como a supremacia técnica, econômica e informacional detida por este. Note-se, por fim, que o presente exame – quanto a intervenção do Estado-legislador para a adequação do equilíbrio processual consumidor/fornecedor – leva diretamente à questão atinente aos efeitos desse tom de especialidade no rito que ficou reputado como legalmente concernente às relações jurídico-processuais originadas das previsões do Código de Defesa do Consumidor. Efeitos esses que, no nosso entender, têm duas vertentes muito claras a primeira a sedimentar o acesso à justiça abrindo fluxo permanente e de crescimento inveterado rumo aos centros emanadores de decisões vinculantes, em especial àqueles onde o acesso se torna tanto mais facilitado, no caso os Juizados Especiais Cíveis.

GRINOVER, Ada Pelegrini e outros, idem, p. 713. Novos Paradigmas da Responsabilidade civil – Da Erosão dos Filtros de Reparação à Diluição dos Danos, 2ª ed., São Paulo: Atlas, 2009. 76 Adotamos aqui a pressuposição de que o referido agente é econômico em respeito aos termos do presente trabalho. 74 75

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E uma segunda que tem a capacidade de transcender a tutela meramente individual de certa forma reverberando na natureza coletiva, latente e “oculta”, sob a relação de consumo individualmente tutelada.

2.3. Tutela coletiva dos Interesses dos Consumidores

Como já pontuado, o reconhecimento da necessidade de trato coletivo de demandas originadas de certas relações jurídicas remonta à segunda metade do século XX, tendo como uma das origens mais diretas o artigo de MAURO CAPPELLETTI denominado “Formações Sociais e Interesses Coletivos Diante da Justiça Civil”. Tanto o referido artigo quanto a pesquisa, “Acesso à Justiça”, coordenada pelo jurista italiano em companhia de BRYANT GARTH, vieram exercer forte inspiração ao legislador consumerista que, levando à devida conta serem as relações de consumo vinculadas a um plano de interesses, na maioria dos casos, dispersos pela sociedade, criou, através da Lei 8.078/90, boa parcela da base instrumental para a tutela coletiva. Retomam-se aqui todas as considerações quanto as decorrências da relação jurídica de consumo a alicerçar o modus operandi das tutelas coletivas, à medida que as relações de consumo encontramse dispersas no seio da sociedade, nada mais coerente que, para uma adequada satisfação, sejam elas, ou tratadas coletivamente, na extensão de sua natureza coletiva, ou coletivizadas na extensão de sua conveniência. Tal ponto de vista quanto as relações de consumo têm foco estreito sobre uma abordagem mais adequada, abordagem que KAZUO WATANABE chama de “molecularização” em contraste com a “atomização” do tratamento de demandas. Uma tutela que ao ser promovida “molecularmente” permite cognição mais “efetiva e abrangente”. 77 A doutrina especializada evidenciou, de forma precisa, a importância da legislação consumerista na estruturação do microssistema da tutela coletiva no direito brasileiro 78. A criação e

GRINOVER, Ada Pelegrini e outros, Código de defesa do consumidor - Comentado pelos autores do Anteprojeto, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999, p. 725. 78 Dentre outros destaca-se a opinião de ANTÔNIO GIDI, “Coisa Julgada e Litispendência nas Ações Coletivas” São Paulo: Saraiva, 1995, p 77, para quem a parte processual do Código de Defesa do Consumidor constitui um “ordenamento processual coletivo de caráter geral, devendo ser aplicado a todas as ações coletivas”, NELSON NERY JUNIOR, “Código de defesa do consumidor – Comentado pelos autores do anteprojeto” p. 907, também corrobora com o mesmo entendimento, remetendo à perfeita interação entre o CDC e a Lei da Ação Civil Pública, em especial no que concerne aos últimos artigos da Lei 8.078/90, normas extensoras do molde coletivo da disciplina processual consumerista. 77

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a sedimentação de conceitos pelo CDC - ainda que tal conduta seja tecnicamente criticável - permitiu fechamento interpretativo, adequando o tom da série de debates em torno da determinação das espécies de direitos coletivos, seus limites e características. Assim, nos reportamos a um dos dispositivos processuais nucleares do CDC, constante nos incisos do artigo 81, onde se distinguem três espécies do gênero tutela coletiva 79: (i) interesses e direitos difusos; (ii) interesses e direitos coletivos em sentido estrito; e (iii) interesses e direitos individuais homogêneos. Definições essas que teriam o condão de determinar, para toda ordem normativa brasileira, as circunstâncias práticas que lhe seriam pressuposto. Quanto às perspectivas mais abrangentes da nova ordem coletiva instaurada pela Lei 8.078/90 e sua vocação extensiva para todo o sistema de interesses coletivos, RODOLFO MANCUSO resume:

“embora se cuide de uma Lei sobre relações de consumo, esses conceitos são aplicáveis a interesses metaindividuais de outras áreas, em virtude de certas normas de extensão constantes no CDC; arts. 110 e 117;”80

E, de fato, o CDC instaurou um sistema coletivo para a tutela de direitos, sejam estes coletivos ou não, em busca de uma adequada apreensão da realidade social, caracterizada pela ruptura com o modelo individualista do processo, insuficiente, ante a pluralidade de envolvidos nas relações sociais contemporâneas. A nota de especialidade nas relações de consumo, principalmente à medida que estas se sobrelevam pelo seu caráter de dispersão social, teve, portanto, importância central no estabelecimento do modelo de tutela previsto pelo código. Uma necessidade que, por uma obrigação lógico sistemática, vem dar sentido às três expectativas definidas pelo CDC como deflagadoras de um tratamento coletivo da demanda 81. Não obstante tal vocação coletivista, é conclusão quase intuitiva que, da mesma forma que a tutela individual, a tutela coletiva dos direitos dos consumidores tem como pressuposto de sua eficiência a perspectiva instrumental. Talvez, até de modo mais pronunciado, a instrumentalidade e a efetividade, no caso da necessária tutela coletiva, seja mesmo a mola propulsora da noção de direitos Tutela coletiva em gênero que abarcaria a rigor apenas duas espécies bem delimitadas por TEORI ZAVASCK como “Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos”, espécies que podem ser também abordadas conforme a dicotomia exposta por BARBOSA MOREIRA em termos de Direitos Essencialmente Coletivos e Direitos Acidentalmente Coletivos, diferença já explicitada no Tópico 2. 80 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Manual do Consumidor em Juízo. 2ª ed. rev. e atua. São Paulo: Saraiva, 1998, pp. 27/28. 81 Ver distinção apresentada nos Tópicos 1.1 e 2. 79

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coletivos, por um lado, e da coletivização de direitos individuais por outro. Trata-se assim da ruptura com a ideia de processo a partir da “pertinência subjetiva do interesse” para “a pertinência objetiva do interesse”, o que, no intento de tutelar efetivamente, segundo entendimento de ADA PELLEGRINI GRINOVER:

“exigia a criação de novas técnicas que, ampliando o arsenal de ações coletivas previstas pelo ordenamento, realmente representassem a desobstrução do acesso à justiça e o tratamento coletivo de pretensões individuais que isolada e fragmentariamente poucas condições teriam de adequada condução” 82

Para tal desiderato foram desenvolvidos mecanismos ora comuns à tutela individual ora específicos ao modelo de processo coletivo todos a integrar-se ao plano de ações coletivas, que até a promulgação do CDC restringia-se na prática às disposições da Lei da Ação Civil Pública, 7.347/85 que prevê, no cerne de suas disposições legais, a concessão de legitimidade a determinados representantes em busca de satisfação jurídica coletiva. Assim, a Ação Civil Pública, em entendimento acatado doutrinariamente, tornou-se meio ordinário pelo qual esse terceiro legitimado deveria acessar o sistema judiciário em busca de tutela de interesses de natureza coletiva, ou de interesses “coletivizados” por “conveniência”. O procedimento da Ação Civil Pública, posto “à mão”, permitia pressupor, a todo o momento que se pretende aplicar a disciplina do CDC no plano processual coletivo, uma consequente aplicação da Lei 7.347/85, dado que o processo iniciado em nome de terceiro legitimado, mas no interesse alheio, estará via de regra sob os pressupostos de legitimação constantes em referida Lei. Respeitando, no entanto, a disposição constitucional insculpida nos artigos 127, caput, e 129, inciso III, que outorgam ao Ministério Público a legitimidade para defesa de “interesses sociais e individuais indisponíveis”. O histórico e renitente manejo da Ação Civil Pública como meio de tutela de interesses coletivos não fica imune às criticas, sendo seu uso caracterizado por respeitável doutrina como espécie de “tábua de salvação” para a atuação dos legitimados em quaisquer dos casos previstos pelos incisos do parágrafo único do artigo 81 do CDC. Tais críticas são principalmente voltadas à distinção entre o modo de tutela dos Direitos Individuais coletivamente tratados (Individuais Homogêneos) e o modo

GRINOVER, Ada Pelegrini e outros, Código de defesa do consumidor - Comentado pelos autores do Anteprojeto, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999, p.704. 82

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de tutela de Direitos Difusos e Coletivos em Sentido Estrito. A promulgação do CDC como diploma que definiu o âmbito de cada espécie de tutela do gênero coletivo tem sido apontado como o principal causador da utilização genérica e indevida do procedimento previsto pela Lei da Ação Civil Pública, segundo TEORI ZAVASCKI:

“A origem contemporânea e comum dos mecanismos de tutela de um e outro desses direitos, acima referida, explica, talvez a confusão que ainda persiste em larga escala, inclusive na Lei e na jurisprudência. Com efeito, a partir do advento do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, que introduziu mecanismo especial para a defesa coletiva dos chamados direitos individuais homogêneos, passou-se a considerar tal categoria de direitos para todos os efeitos como espécie dos direitos coletivos e difusos. Lançando-os, todos eles em vala comum, como se lhes fossem comuns e idênticos os instrumentos processuais e as fontes normativas de legitimação para sua defesa em juízo” 83

Resta claro, portanto, que, para cada um daqueles dispositivos que reputamos como nucleares (art. 81, parágrafo único, incisos I a III) na determinação da disciplina coletiva, decorre uma necessária e adequada forma pela qual será promovida a ação. Todavia, em que pese a conceituação quase didática presente do CDC, a delimitação no plano prático dos limites entre os Direitos Individuais Homogêneos e os Direitos Coletivos Difusos e em Sentido Estrito não é fácil. Na adequada apreensão das dificuldades quanto a delimitação dessas três definições é necessário reiterar a distinção elaborada por BARBOSA MOREIRA ao distinguir aquelas situações onde os direitos encontram-se coletivos em sua essência das situações em que os direitos encontram-se “acidentalmente coletivos”, distinção que foi examinada à minúcia, por TEORI ZAVASCK, principalmente pela ótica material do direito e seus desdobramentos no modo de tutela. Assim, por motivos de organização temática, trataremos primeiramente do modelo procedimental para Tutela Coletiva dos consumidores manejável no sentido da primeira ordem de direitos (parágrafo único, incisos I e II, do artigo 81 do CDC), ou seja, aquilo que BARBOSA MOREIRA chamaria de Diretos Essencialmente Coletivos, mas que TEORI ZAVASCK trataria pela perspectiva de Tutela de Direitos Coletivos.

ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: Tutela dos Direitos Coletivos e Tutela Coletiva dos Direitos. 3ª ed. rev. atua. e amp. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 37. 83

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Uma primeira aproximação à definição de tutela desses direitos coletivos leva perceber sua natureza imanente de transindividualidade, tal circunstância resta destacada pela dicção do CDC. Desta feita, seriam interesses (direitos) Difusos ou Coletivos, respectivamente, (i) “os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato” e (ii) “transindividuais de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base”. Assim, apoiados no entendimento de RODOLFO MANCUSO

84

, é necessário pontuar a

característica de “fluidez” inerentes aos direitos coletivos, decorrente de sua própria transindividualidade. Direitos estes sujeitos ora a uma situação de fato, ora a uma relação jurídica, ambas dispersivas, ou seja, passíveis de efeitos sobre uma pluralidade de pessoas momentânea ou permanentemente indeterminadas. Nesse sentido, quer-se dizer que a nota distintiva dos direitos essencialmente coletivos é - até por questões lógicas de garantia destes mesmos direitos - sua permanente indivisibilidade ontológica como direito a exigir, portanto, tratamento coletivo no interesse de pessoas indeterminadas ou determináveis 85 exemplos que no ramo do direito do consumidor são os mais diversos, haja vista casos que vão desde a veiculação de propaganda à colocação de produto adulterado em mercado, ou mesmo a discussão quanto ao aumento de mensalidades escolares. Em verdade, ainda que sem maiores desdobramentos procedimentais, a real distinção entre os direitos difusos e coletivos em sentido estrito encontra-se em dois dos elementos apontados pelo código: o caráter subjetivo, sendo ele, no primeiro caso, (direito difuso) indeterminado e indeterminável e, no segundo caso, (coletivo em sentido estrito) indeterminado mas determinável pertencente a categoria, classe ou grupo; e sua origem, sendo ela no primeiro caso (direito difuso) decorrente de um fato e, no segundo caso, (coletivo em sentido estrito) decorrente de uma relação jurídica. Outra decorrência dessa apontada fluidez é a incapacidade de apreensão prévia pelo sistema normativo das inúmeras possibilidades com que podem se apresentar os direitos coletivos, ponto apoiado na crescente complexidade social, principalmente, no plano do consumo. Embora esse aspecto permita a melhor distinção entre os direitos coletivos e individual

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Manual do Consumidor em Juízo. 2ª ed. rev. e atua. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 26. 85 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: Tutela dos Direitos Coletivos e Tutela Coletiva dos Direitos. 3ª ed. rev. atua. e amp. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 39. 84

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homogêneo, cumpre notar que no plano dos direitos de titularidade indeterminada encontra-se o maior potencial de variabilidade a permitir até mesmo a tutela de natureza preventiva, por exemplo, impedindo a futura oferta de serviço com potencial para causar danos a consumidores indeterminados. 86 Assim, retomando à pertinência dos meios para a tutela de interesses coletivos, resta claro que o meio procedimental apto deve respeitar a abarcar as características comuns desses direitos, quais sejam: a indivisibilidade do objeto e a indeterminação (momentânea ou permanente) dos sujeitos. O que por força do artigo 83 do CDC 88 estende-se a todas as já mencionadas no tópico 2.2, dentro mesmo de uma perspectiva quinária (mandamental, executiva, declaratória, cominatória e constitutiva). Parece, portanto, adequado o procedimento denominado de Ação Civil Pública 89, previsto pela Lei 7.347/85, com a ampliação de tutelas concernente à apontada variabilidade de situações possíveis no caso das ações que tratem de direitos coletivos 90. De início, o exame dessa espécie procedimental nos mostra que, dentre os mecanismos processuais manejáveis ou colocados disposição do magistrado, há aqueles já tratados no plano da tutela individual do consumidor como, por exemplo, a possibilidade de concessão de tutela específica nas ações de obrigação de fazer (art. 84, caput e §5º do CDC com evidente semelhança ao art. 11 da Lei 7.347/85), ou a possibilidade de antecipação de tutela (art. 84, §§ 3º e 4º do CDC, por sua vez, diretamente associável ao art. 12 da Lei 7.347/85). O que tais previsões revelam é o fato de que, na esteira do já mencionado artigo 83 do CDC, todas as medidas judicias devem se adequar à satisfação jurídica dos interessados, ou seja, a amplitude de provimentos deve, por correspondência, satisfazer, nos limites da ordem jurídica e dos próprios interesses, a tutela. O que, por exemplo, exclui qualquer possibilidade de concessão de medidas de caráter individual à tutela de interesses coletivos, a ferir a base do direito de ação, na espécie da

O princípio da prevenção (art. 6º, incisos VI e VII, do CDC) sustenta em muito essa amplitude de tutelas que avoca o procedimento da Ação Civil Pública, veja-se, MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Manual do Consumidor em Juízo. 2ª ed. rev. e atua. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 41/42. 88 “Art. 83. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este Código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela.” 89 TEORI ZAVASCKI deixa claro que tal denominação possui relevância prática e didática inafastável, sendo tecnicamente melhor apontado como “o procedimento destinado a implementar judicialmente a tutela de direitos transindividuais, e não de direitos individuais, ainda que de direitos individuais homogêneos se trate”, Processo Coletivo: Tutela dos Direitos Coletivos e Tutela Coletiva dos Direitos. 3ª ed. rev. atua. e amp. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 66. 90 A despeito de um foco excessivo no plano do direito dos consumidores, remetemos nos ao trabalho de HUGO DE NIGRO MANZILI, A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural e outros interesses, 22ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009. pp. 75/82, com uma lista das “espécies” de “ações civis públicas” divididas por temática, matéria e fundamento. 86

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adequação do interesse de agir. A possibilidade de tutelas foi, por disposição do Código, amplificada ao “todas as ações” 91 tudo a demonstrar que a coerência com que foi desenvolvido o sistema jurisdicional de proteção do consumidor dialoga correntemente com a necessidade de uma dinâmica atenta ao caráter coletivo intrínseco às relações de consumo

92

. Ademais, o CDC foi expresso na ampliação de caráter

pragmático, equiparando a qualidade de consumidor toda coletividade indeterminada, mas determinável, de pessoas que tenham intervindo em uma “relação jurídica básica”(art. 2º, parágrafo único e art. 29). No tocante à competência para o processamento das demandas relativas aos direitos coletivos de consumo, seu regramento decorre, também, da Lei de Ação Civil Pública. Pois o que se denota é o silêncio do CDC, especificamente, quanto a eventual competência específica para o exercício da defesa nos casos previstos nos incisos I e II do parágrafo único do artigo 81, ainda que os autores do anteprojeto preencham de natureza integrativa a disposição do artigo 93 do mesmo diploma 93. Deste modo, alça-se à competência absoluta (funcional) e determinada pelo local onde ocorrer o dano – nos termos do artigo 2º da Lei 7.347/8 -, o que, no entender de HUGO DE NIGRO MANZZILLI, permite que as ações para a defesa de direitos coletivos esquivem-se de eventual competência territorial

94

, portanto relativa, que poderia ser extraída dos termos do referido artigo 93 do CDC. O

caráter integrativo do artigo 93 do CDC resta útil, por exemplo, à medida que expande o critério de local do dano mesmo às tutelas cautelares (“local onde ocorreu ou deva ocorrer o dano”), ou da competência para o processamento de danos de natureza nacional ou regional (inciso II do artigo 93 do CDC), ambos, aspectos não tratado pela Lei 7.347/85. Ainda, no que se refere à competência, é necessário destacar que a mesma Lei 7.437/85 elege o critério de prevenção no parágrafo único de seu artigo 2º, segundo o qual, a propositura da ação torna preventa a jurisdição do juízo para todas as ações com a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto. Note-se, todavia, que, em certos casos, a ideia de jurisdição deve ser interpretada à luz do inciso II do artigo 93 do CDC. Isso, pois, se adotada a regra de jurisdição ordinária, onde jurisdição se remete a critérios territoriais outros, seria em tese cabível mais de uma ação coletiva de interesse nacional, por exemplo, uma proposta na capital do estado de São Paulo e outra proposta na capital do

Novamente a questão da vinculação às “ações” no sentido de “tutelas”, vide Tópico 2.2, diretamente vinculadas ao provimento do direito, nesse caso, direitos coletivos. 92 Importante pontuar ainda que tal caráter coletivo intrínseco resta expresso no caput do art. 81, pois a extensão da tutela coletiva se dá não apenas ao diretamente envolvidos, mas também àqueles que foram vítimas dos danos. 93 GRINOVER, Ada Pelegrini e outros, Código de defesa do consumidor - Comentado pelos autores do Anteprojeto, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999, pp. 775/776. 94 HUGO DE NIGRO MANZILI, A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural e outros interesses, 22ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009. pp. 280/282. 91

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estado da Bahia. Sendo Jurisdição o território sob o qual o estado tem poder para se pronunciar sobre uma matéria jurídica, vemos esvaziada qualquer possibilidade de ampliação ou redução desta para danos nacionais. Ponto que torna competentes, por disposição legal, as comarcas das capitais dos Estados. Nada mais lógico que diante da ideia de jurisdição em todo o território nacional, será prevento entre o juízo de São Paulo Capital e Salvador aquele que primeiro receber a ação, isso por decorrência do inciso II do artigo 93 do CDC 96. Característica que, também, concerne aos pressupostos lógicos da tutela de direitos coletivos é a determinação da extensão da coisa julgada, que por disposição do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública 97 deve ser, em alguns casos, de natureza erga omnes 98. Tal previsão de extensão subjetiva decorre da própria natureza do direito controverso, ou seja, coletivo, assim resume TEORI ZAVASCKI:

“...a imutabilidade da sentença na ação civil pública, segundo o artigo 16 da Lei 7.347/85, é 'erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator'. A extensão subjetiva universal (erga omnes) é consequência natural da transindividualidade e da indivisibilidade do direito tutelado na demanda. Se o que se tutela são direitos indivisíveis e pertencentes a coletividade, não há como estabelecer limites subjetivos à imutabilidade da sentença. Ou ela é imutável, e, portanto, o será para todos, ou ela não é imutável, e, portanto,

Vale a ressalva quanto ao entendimento dos autores do anteprojeto (GRINOVER, Ada Pelegrini e outros, Código de defesa do consumidor - Comentado pelos autores do Anteprojeto, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999, p. 779) no sentido de que a competência para o julgamento de danos de abrangência nacional é inderrogavelmente do Foro do Distrito Federal. Fato é que se colhe da casuística entendimento até hoje contrário, veja-se os seguintes julgados do STJ, CC 17533/DF, CC 112.235/DF, REsp 712006/DF e REsp 944464/RJ . 97 Muitas criticas se instauram contra ineficácia da alteração promovida pela lei 9.494/97 ao referido artigo 16 da lei de Ação Civil Pública, não entraremos no mérito de semelhante alteração, visto se tratar de regra tida como inócua por ampla doutrina, a respeito, vide GRINOVER, Ada Pelegrini e outros, Código de defesa do consumidor - Comentado pelos autores do Anteprojeto, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999, p. 781,818/821; HUGO DE NIGRO MANZILI, A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural e outros interesses, 22ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009. pp. 274/280. 98 Há, contudo, pela própria letra do CDC, a previsão de Coisa Julgada ultra partes aplicável às ações para tutela de direitos coletivos em sentido estrito, também manejável pelo procedimento da Ação Civil Pública, (inciso II do parágrafo único do artigo 81 e inciso II do artigo 103 do CDC). Todavia, em que pese a distinção legal entre erga omnes e ultra partes na prática a própria conceituação leva a crer na necessária ampliação do que se aponta como uma restrição dos “efeitos da sentença aos membros da categoria ou classe, ligados entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base” (GRINOVER, Ada Pelegrini e outros, Código de defesa do consumidor - Comentado pelos autores do Anteprojeto, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999, p. 824/825), ponto salientado pelos próprios elaboradores do anteprojeto do Código de Defesa dos Consumidores é o fato de que a sentença teria condão de surtir efeitos mesmo a eventuais membros de uma categoria que não estejam juridicamente vinculados à parte (substituto) processual. Um outro exemplo que pode ser de grande valia para demonstrar a limitação do conceito seria o caso de eventual sentença que condene o fornecedor a promover certa alteração contratual. Inegável que todos os eventuais e futuros consumidores (difusamente) serão beneficiados pela referida sentença, bastando eles um dia contratarem com tal fornecedor. É de se questionar se quanto a esses futuros contratantes haveria a imutabilidade da coisa julgada. 96

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não faz coisa julgada.” 99

A própria extensão da coisa julgada está diretamente atrelada à natureza da relação jurídica estabelecida entre os consumidores e o eventual réu, qual seja, uma natureza coletiva e incindível. Por outro lado, a exceção à imutabilidade subjetiva da coisa julgada ocorre em caso de improcedência da demanda por insuficiência de provas, situação na qual será cabível a propositura de nova ação por qualquer um dos legitimados, devidamente instruída com novas provas. Tal previsão, constante in fine do referido artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, é extraída em seus termos da já ventilada Lei da Ação Popular (artigo 18) em pressuposição lógica quanto a tutela de direito de natureza coletiva, inerente a ambas 100. Assim, na esteira de semelhante circunstância, é necessário pontuar que havendo improcedência da ação por qualquer fundamento que não seja a falta de provas a coisa julgada recai sobre os efeitos da sentença com a mesma natureza erga omnes, sem qualquer vedação, frise-se, ao manejo de eventuais ações individuais. Outro ponto que merece realce na Ação Civil Pública é toda a gama de legitimidade para a tutela dos interesses de natureza coletiva, o que nos remete a boa parte do que foi abordado na distinção entre os interesses coletivos e individuais com foco na representação processual de ambos. A ampliação da legitimidade para diversos agentes dialoga com a já apontada ampliação dos mecanismos de tutela dos direitos coletivos. Percebe-se, para além, o motivo lógico pelo qual a legitimidade em tela é de natureza concorrente e disjuntiva, pois, respectivamente, (i) a legitimidade de um determinado substituto não exclui a do outro, e (ii) não é necessário que os substitutos litiguem juntos no mesmo processo 107. Dentre esses personagens que poderiam assumir a gestão do litígio coletivo por “vocação” 108 estaria justamente o Ministério Público até mesmo por força do texto constitucional expresso no artigo 129, §1º, 109. Entendimento reforçado por RODOLFO MANCUSO:

“…a razão de ordem prática está em que esses interesses metaindividuais, TEORI ALBINO ZAVASCKI, Processo Coletivo: Tutela dos Direitos Coletivos e Tutela Coletiva dos Direitos. 3ª ed. rev. atua. e amp. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 66. 100 HUGO DE NIGRO MANZILI, A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural e outros interesses, 22ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009. p. 560. 107 Ainda que diante da eventualidade de mesmo objeto ou causa de pedir seja aplicável o instituto da conexão (artigos 103 e 105 do CPC). 108 KAZUO WATANABE atribui de fato o termo “vocação” ao MP para a salientar a sua legitimidade para a defesa de interesses com relevância social, veja-se em GRINOVER, Ada Pelegrini e outros, Código de defesa do consumidor Comentado pelos autores do Anteprojeto, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999, p. 733/734 109 “Art. 129 (Omissis) (...) § 1º A legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei.” 99

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por sua própria natureza, estão esparsos pela coletividade, concernindo a todos e a cada qual de modo que não faria sentido 'eleger-se' apenas um expoente que os pudesse representar em juízo…” 110

Colocadas semelhantes premissas conclui-se, consequentemente, o motivo da similitude dos artigos 5º da 7.347/85 e 82 da Lei 8.078/90, sendo que este último cuidou, em seu inciso III, de adicionar a possibilidade de propositura de ação mesmo por entidades estatais sem personalidade jurídica. Assim, o rol taxativo 111 dos referidos artigos reflete a pertinência que, no direito brasileiro, deve haver entre o objeto e o substituto processual, onde, pondo a salvo o interesse público primário cuja defesa é inerente aos órgãos estatais, exige-se determinação estatutária expressa e critérios temporais de constituição para o manejo de ações coletivas por associações (inciso IV do artigo 82 do CDC e alíneas a e b do inciso V do artigo 5º da Lei 7.347/85), delimitações legais mais concernentes de uma aproximação com o conceito jurídico indeterminado da representatividade adequada 112, o que segundo parcela da doutrina não se verifica no direito coletivo brasileiro. 113 Todavia, não se restringem a esses parcos exemplos as peculiaridades no plano das ações coletivas, pois, como cediço, o CDC elege três situações em que a tutela se dará coletivamente. E, por decorrência da peculiaridade de uma delas, o referido código logrou promover uma das mais fortes inovações na disciplina jurídica brasileira

114

, introduzindo um modelo procedimental

explicitamente inspirado nas Class Actions do direito anglo-saxão. Diz-se anglo-saxão, pois a origem histórica de semelhante procedimento remonta ao século XVII na Inglaterra onde os procedimentos denominados de Bill of Peace – medida jurisdicional que

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Manual do Consumidor em Juízo. 2ª ed. rev. e atua. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 33. 111 Taxativo, pois, a legitimidade ordinária exige expressa autorização legal (artigo 6º do CPC). 112 Não caberia, pelas limitações deste trabalho um aprofundamento quanto a celeuma que se instaura na doutrina a respeito da representatividade adequada, instituto fundamental do processo coletivo e que de certo modo estabelece o liame da substituição processual, vide, para uma perspectiva ampla, o trabalho de MAXIMILIAN FIERRO PASCHOAL, A Representatividade Adequada na Ação Coletiva Brasileira: Lei da Ação Civil Pública e Código de Defesa do Consumidor, tese sob orientação de KAZUO WATANABE para obtenção do título de mestre, FDUSP - Departamento de Direito Processual, 2007. 113 Conforme aponta ANTÔNIO GIDI, A Representação Adequada nas Ações Coletivas Brasileiras: Uma Proposta, in Revista de Processo, vol. 108, out/2002, p. 61, para doutrinadores como ADA PELLEGRINI GRINOVER, PEDRO DINAMARCO, NELSON NERY e ARRUDA ALVIM, diferentemente do modelo norte americano “não há controle judicial da adequação do representante nas ações coletivas”, sendo que os dois últimos doutrinadores entendem ser vedada a avaliação da representação adequada pelo magistrado. 114 Ainda que o CDC tenha implantado o sistema de tutela dos Direitos Individuais Homogêneos, já havia no direito brasileiro anterior experiência de tutela coletiva de direitos individuais, no caso das leis 7.913/89 e 6.024/74, respectivamente, para a tutela de danos causados a investidores no mercado de ações e danos decorrentes da liquidação administrativa de instituições financeiras. 110

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não se adstringia à exigência comum de que todos os interessados deveriam figurar em juízo 115 – eram aceitos nas Courts of Chancery, segundo a CASSIO SCARPINELA BUENO:

“As class actions, narra a doutrina norte-americana, têm sua origem no bill of peace do direito inglês do século XVII, procedimento no qual era possível propor uma ação ou sofrer uma ação por intermédio de partes representativas (representative parties). Seus requisitos assemelhavam-se aos da atual class action, porquanto tinham cabida quando o número de pessoas envolvidas no litígio era muito grande, de forma a inibir sua reunião, quando os membros deste grupo compartilhavam entre si um interesse comum na questão a ser julgada e, finalmente, quando as partes nomeadas eram representantes adequadas dos interesses daqueles que não figuravam, pessoalmente, no processo. Reunidas, cumulativamente, todas estas exigências, o julgamento da ação seria obrigatório para todos os membros do grupo, tivessem, ou não, participado diretamente da relação processual” 116

Ressalte-se, também, que as Class Action do direito norte americano têm aptidão para a tutela tanto daqueles direitos de apontamos como essencialmente coletivos como os, ora tratados, “acidentalmente” coletivos. De fato a previsão do artigo 23 da Federal Rule of Civil Procedure (diploma norte americano que regula a referida Class Action) divide em seus incisos em ações de classe de caráter obrigatório (mandatory) e não obrigatório (not mandatory) 117. Entretanto, o que ADA PELLEGRINI GRINOVER aponta como a origem do modelo implantado no sistema brasileiro foi uma posterior alteração do artigo 23 da Federal Rule of Civil Procedure, datada de 1966. Alteração esta que viria dar novos contornos à determinada espécie de not mandatory Class Action denominda de Spurious Class Action, “justamente aquela destinada aos casos em que os membros da class são titulares de direitos diversos e distintos, mas dependentes de uma questão comum de fato ou de direito” 118. Tal característica, ainda que não configuradora de uma natureza coletiva às pretensões, era suficiente para o trato coletivo do direito. É basicamente esse caso a que o CDC se refere no inciso III do parágrafo único do artigo 81, denominando-o de Direito Individual Homogêneo. Espécie esta que, ao contrário do que ocorre com TEORI ALBINO ZAVASCKI, Processo Coletivo: Tutela dos Direitos Coletivos e Tutela Coletiva dos Direitos. 3ª ed. rev. atua. e amp. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 25/26. 116 CASSIO SCARPINELA BUENO, As Class Actions Norte-Americanas e As Ações Coletivas Brasileiras: Pontos Para Uma Reflexão Conjunta, in Revista de Processo, vol. 82. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, pp. 92-151. 117 Da Class Action for Damages à Ação de Classe Brasileira: Os Requisitos de Admissibilidade, in Revista da Pósgraduação da Faculdade de Direito da USP, vol. 2, Porto Alegre:Síntese, 2000, p. 50. 118 Da Class Action for Damages à Ação de Classe Brasileira: Os Requisitos de Admissibilidade, in Revista da Pósgraduação da Faculdade de Direito da USP, vol. 2, Porto Alegre:Síntese, 2000, p. 49. 115

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os direitos coletivos em sua essência, representa o mais patente direito subjetivo, com a qualidade de ser decorrente de uma “mesma causa fática ou jurídica” 119. Nesse sentido, o que fez o legislador consumerista no plano processual foi inserir a partir do artigo 91 a disciplina pormenorizada das “Ações Coletivas para a Defesa de Interesses individuais Homogêneos”, para a tutela dos danos causados individualmente à massa de consumidores 120, uma verdadeira Class Action for Damages, onde estão elencadas regras de competência, legitimidade para a propositura de referidas demandas, natureza da sentença e forma de sua execução, bem como, da liquidação da sentença proferida. Todavia, os elaboradores do anteprojeto destacam que, para a além da letra da Lei (“ação civil coletiva de responsabilidade pelos danos individualmente sofridos”), a matéria regulada no artigo 91 “não esgota todo o repertório dos processos coletivos em defesa dos direitos individuais homogêneos” 121, como evidente, as condenações resultantes de um pedido de natureza homogênea podem se estender a condenações de dar, fazer ou não fazer. Outra nota se refere à extensão dessa condenação a todos os lesados, ainda que não consumidores, mas a estes equiparados (artigo 17 do CDC). No que se refere a questão da legitimidade, o artigo parece claro à medida que estende aos elencados no artigo 82 do CDC a possibilidade de propositura da demanda, legitimidade que recebe a mesma qualificação já apontada, disjuntiva e concorrente. E que, ainda nesse caso dos direitos individuais homogêneos, gera menor discussão quanto sua natureza de substituição processual (em nome próprio para determinados interesses alheios). Todavia, o que resta como alvo de certo debate é a legitimidade do Ministério Público para a defesa dos direitos Individuais Homogêneos. Tal fato vem por decorrência do caráter disponível dos interesses “aglomerados” pela demanda Individual Homogênea, o que segundo algumas interpretações constitucionais impediria, em alguns casos, a figura do Ministério Público como legitimado ativo. O ponto pacífico no tocante a legitimidade do Ministério Público vem de seu caráter institucional, como já referido, no sopesamento da crescente ampliação das legitimidades extraordinárias – exceções ao artigo 6º do CPC – por força da própria constituição federal. Essa legitimidade extraordinária, constitucionalmente prevista, passa pela previsão de tutelas de natureza individual propriamente dita (v.g. mandado de segurança coletivo) chegando aos termos mais amplos TEORI ALBINO ZAVASCKI, Processo Coletivo: Tutela dos Direitos Coletivos e Tutela Coletiva dos Direitos. 3ª ed. rev. atua. e amp. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 166. 120 O que se qualifica na doutrina americana como Mass Tort Cases. 121 GRINOVER, Ada Pelegrini e outros, Código de defesa do consumidor - Comentado pelos autores do Anteprojeto, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999, p. 769. 119

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que concedem legitimidade ao Ministério Público para a defesa dos “interesses sociais” (artigo 127 da Constituição Federal). É em torno da definição desses interesses sociais que se fundou a legitimidade do Ministério Público para a defesa de interesses individuais homogêneos, quer adotemos uma corrente mais pacífica, com foco na expressa determinação normativa, quer adotemos a zona de debate, ou seja, a defesa de interesses individuais pelo Ministério Público mesmo sem qualquer previsão legal específica. Pressupondo sempre a matéria do litígio como de natureza socialmente relevante, resta inafastável a legitimidade do Ministério Público, que decorreria, portanto, uma auto-aplicabilidade do artigo 127 da Constituição 122. Relevância que, no caso dos direitos dos consumidores, tem a facilidade da expressa menção encontrada nos artigos 5º, inc. XXXII e 170, inciso V da Constituição. Sendo, nesse sentido estrito, um interesse social ou, como queira, público a defesa de interesses nas relações de consumo. No tocante à competência, reitera-se tudo o quanto já tratado supra, em vista do fato de que a disposição constante no artigo 93 do CDC tende a ser aplicável tanto à tutela dos interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos. Tendo as características de: (i) absoluta com base no local do dano, portanto, ainda que territorial, improrrogável; (ii) excetuada pelo caso de competência da justiça federal onde houver (artigo 109, incisos da Constituição Federal), de competência da justiça local; e (iii) no caso de danos regionais ou nacionais a competência da dos foros da Capital do Estado ou do Distrito Federal, com as cautelas já apontadas supra. Aspecto muito relevante para nosso trabalho se encontra no plano da sentença, ou melhor, da cognição que formará a sentença nas ações para a tutela de interesses individuais homogêneos. Tal ponto se coloca à medida que a cognição em referidas ações teria o condão de se ater unicamente aos plano de homogeneidade autorizador da molecularização de diversos interesses individuais em um único processo. Essa constatação se deve ao KAZUO WATANABE 123 que bem percebeu o fato de que na cognição processual convivem duas ordens de amplitude: (i) uma de natureza horizontal – referente à extensão do conflito; e (ii) uma de natureza vertical – referente à profundidade de exame da parcela de conflito examinada. O que se tem no caso dos direitos individuais homogêneos é justamente esse recorte. Nesse sentido TEORI ZAVASCK:

Esse é o entendimento proposto por TEORI ZAVASCKI (Processo Coletivo: Tutela dos Direitos Coletivos e Tutela Coletiva dos Direitos. 3ª ed. rev. atua. e amp. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 245 e segs.) que defende a auto aplicabilidade do artigo 127 da Constituição Federal. 123 Da Cognição no Processo Civil, 4ª Ed., São Paulo Saraiva, 2010, passim. 122

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“A repartição da atividade cognitiva é pois, uma característica técnica inerente ao procedimento da ação coletiva. Procedimento que, desde logo, englobasse as duas partes da cognição não seria genuinamente o de uma ação coletiva. Mesmo se movida por substituto processual, seria uma espécia de demanda multitudinária, de cognição plena, na qual se examinaria a situação individual de todos os titulares do direito, com todas as vicissitudes daí decorrentes, idênticas às de um litisconsórcio ativo regido pelo procedimento comum.” 124

Nessa ordem de raciocínio bem fundamentada é a natureza genérica da sentença nas ações coletivas que versam sobre conflitos individuais homogêneos. Genérica, pois, a sentença julgará apenas os elementos coletivos da tutela o que, por outro ponto de vista, corresponde àqueles requisitos de admissibilidade que, na doutrina americana das Class Actions, são denominados de Prevalência e Superioridade 125. E, por fim, como sentença genérica deverá colocar em relevo o ponto mais complexo do tema, ou seja, aquele referente aos limites da coisa julgada que, dada a dificuldade de determinação de cada um dos efetivamente tutelados, operará com efeitos erga omnes. A grande questão quanto à possibilidade de efeitos erga omnes à coisa julgada nas ações civis para a tutela de direitos individuais homogêneos é justamente essa amplitude indeterminada de indivíduos que tiveram seu interesse julgado sem necessariamente participar do processo. Instaurada, pois, a forte dissonância com todas as garantias de due process of law 126 , e que na experiência americana foi adequada às previsões constitucionais pelos mecanismos da Representatividade Adequada e do opt out. Para evitar semelhantes dificuldades entre a compatibilização prática do sistema de garantias processuais individuais e coletivas o legislador brasileiro optou pela solução que determina os limites da coisa julgada de acordo com o resultado da demanda, ou melhor, secundum eventum litis. Assim, segundo o CDC (artigo 103, inciso III e § 2º), será erga omnes a sentença que julgar procedente a ação civil para a tutela de direitos individuais homogêneos, adendo seu caráter genérico, retomando, em termos já expostos, a parcela horizontal do conflito. Por outro lado, a coisa julgada

Processo Coletivo: Tutela dos Direitos Coletivos e Tutela Coletiva dos Direitos. 3ª ed. rev. atua. e amp. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, pp. 174/175. 125 ADA PELLEGRINI GRINOVER, Da Class Action for Damages à Ação de Classe Brasileira: Os Requisitos de Admissibilidade, in Revista da Pós-graduação da Faculdade de Direito da USP, vol. 2, Porto Alegre:Síntese, 2000, p. 50. 126 Para uma verdadeira imersão nesse ponto remetemos ao ponto 2.2 do trabalho de CASSIO SCARPINELA BUENO, As Class Actions Norte-Americanas e As Ações Coletivas Brasileiras: Pontos Para Uma Reflexão Conjunta, in Revista de Processo, vol. 82. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, pp. 92-151. 124

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não afetará os indivíduos em caso de improcedência qualquer que seja a causa. O que, ainda, no entendimento dos autores do anteprojeto, permitiria a nova propositura da ação, mesmo pelo autor derrotado, no caso de insuficiência de provas 127. Por outro lado, o entendimento do legislador foi que, para se beneficiar quanto aos limites da coisa julgada secundum eventus litis, o indivíduo deverá requerer a suspensão de eventual processo dentro de 30 dias após da ciência nos autos da propositura de ação coletiva (artigo 104 do CDC). Por fim, considerando o caráter genérico da sentença que julgar a ação civil para a tutela de direitos individuais homogêneos, caberá sua liquidação e execução, na extensão dos danos experimentados por cada um dos indivíduos que foram processualmente substituídos em juízo. Tal liquidação, por seu turno deverá ocorrer individualmente e por artigos, ponto objeto de inúmeras críticas quanto aos reais benefícios da ação coletiva no sentido de promover na prática a economia processual. Todavia, a necessária liquidação por artigos reafirma a natureza individual dos interesses “molecularizados” na ação coletiva, ela pressupõe a variabilidade de demandas e de valores devidos por conta de cada um dos danos causados. Ademais, a necessária liquidação por artigos permite um controle mais eficaz quanto ao devido processo legal, à medida que cada uma das pretensões individuais será satisfeita mediante a devida e profunda cognição judicial do cui debeatur (quem é o titular do direito) e o quantum debeatur (qual a prestação a que titular tem direito), com exercício regular de contraditório 128. Nesse ponto vale a ressalva de que a necessária liquidação por artigos presume a existência de fato novo que deva ser apurado, presume, mais, a necessidade de apuração, sendo, portanto, incabível nas obrigações de fazer e não fazer devidas em partes iguais (fazer uma mesma e determinada coisa) a diversos indivíduos. O que no dizer de TEORI ZAVASCKI, reflete “a margem de heterogeneidade”, ou ainda, nos termos de KAZUO WATANABE a extensão horizontal não abrangida pela sentença genérica. Fechando esta exposição sucinta quanto as características mais básicas das ações coletivas para a tutela dos direitos dos consumidores, devemos tratar rapidamente a respeito da liquidação e execução na ação para a satisfação de interesses individuais homogêneos, cuja ressalva recai na possibilidade do que os autores do anteprojeto cunharam como o Fluid Recovery do direito brasileiro. Essa previsão legal determina que, passado um ano sem habilitações à execução, os legitimados para a propositura da ação poderão liquidar e executar o valor compatível à extensão do dano, sendo que GRINOVER, Ada Pelegrini e outros, Código de defesa do consumidor - Comentado pelos autores do Anteprojeto, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999, p. 809. 128 A liquidação por artigos deve seguir o disposto no CPC, artigos 475-E e segs. 127

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o produto deverá ser revertido a um fundo comum, previsto pelo artigo 13 da Lei 7.347/85. Todavia, essa última menção à Fluid Recovery revela uma das razões mais importantes para a promoção de ações para a tutela de direitos individuais homogêneos. É o caso das micro-lesões patrimoniais, existentes nas relações de consumo e que, vez ou outra, são noticiadas pela mídia as quais não mobilizariam o interesse individual pela propositura de uma ação. As “micro-lesões” patrimoniais podem ser bem exemplificadas por uma redução mínima na quantidade de um produto colocado a venda, ou a cobrança de alguns centavos a mais no boleto de cobrança de um determinado serviço. De fato, essa lesão patrimonial mínima não ensejaria quaisquer ações individuais, pois, a rigor o custo para essa demanda (ainda que fossem utilizados meios gratuitos de acesso à justiça – Juizados Especiais) seria mais oneroso do que os ceitis envolvidos em cada ato lesivo. Ocorre que a união de milhares “micro-lesões” constituem um relevante enriquecimento ilícito e uma lesão dispersa à coletividade dos consumidores, o que reflete interesse passível de tutela. Um ponto que surge como resultado do cotejo entre o modelo de tutela coletiva e de tutela individual é a possibilidade de cognição profunda desta. No que concerne ao plano pragmático das ações coletivas, é evidente que sua instrução será, se não exaustiva, no mínimo mais demorada e atenta, em vista da relevância econômica do caso e do afastamento da série de características procedimentais de concentração do processo individuais para a tutela nas relações de consumo. Ainda no sentido de uma cognição mais profunda, acrescente-se que, sendo o Ministério Público autor da demanda, teríamos a possibilidade de realização do Inquérito Civil, procedimento inquisitório realizado pelo parquet com vistas ao esclarecimento de fatos, mediante investigação, tendente por si a permitir um exame mais apurado do objeto do litígio, 130 com todas as ressalvas no plano processual decorrentes do caráter relativo da prova colhida através desse procedimento. Por óbvio outra utilidade das ações coletivas para a satisfação de interesses individuais homogêneos se estende aos casos de danos mais relevantes, cujo interesse individual resta economicamente factível sob um juízo de proveito na propositura de uma demanda. Bem da verdade, na prática, este se revela como um dos mais importantes escopos do modelo de tutela através da ação civil coletiva; sendo intuitivo que a busca por um tratamento “molecularizado” das demandas tende a fazer sentido apenas se tais ações tivessem vocação econômica para serem ajuizadas

Para uma visão mais profunda do Inquérito Civil remetemos à leitura de HUGO DE NIGRO MANZILI, A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural e outros interesses, 22ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009. p. 447 e segs. 130

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individualmente (“atomizadamente”) levando a uma enorme busca pela satisfação individual. 131 Sem dúvida, os diversos mecanismos e características procedimentais previstos para a tutela coletiva, ainda que deem preferência às indenizações individuais 132, demonstram ser vocacionados a promover uma redução no processamento dessas mesmas demandas individuais, por exemplo, pela simples possibilidade de suspensão dos feitos individuais nos casos do artigo 104 do CDC 133. Nesse ponto, e o que de mais importante se revela na utilidade das ações civis coletivas é a quantidade de ações individuais movidas por consumidores, principalmente nos Juizados Especiais Cíveis, tudo a demonstrar que a via da tutela jurisdicional individual tende a ser, sob um juízo de aproveitamento econômico e estratégia processual da parte, preferida na grande maioria dos casos.

Para uma proposta de interpretação quanto à origem comum e às questões comuns que configurariam a possibilidade de tutela de direitos individuais homogêneos, remetemos a LUCIANO PICOLI GAGNO, Direito Individual Homogêneo: em busca de uma interpretação mais coerente com o direito fundamental de acesso à justiça, Publicado nos Anais do XVII congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF, disponível em http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/brasilia/12_619.pdf 132 Como cediço, há preferência nas execuções individuais em face das coletivas nas ações que condenem tanto danos difusos quanto individuais homogêneos, ver artigo 99 e parágrafo único do CDC. 133 SÉRGIO CRUZ ARENHART, A Tutela Coletiva de Interesses Individuais: Para além da Proteção de Interesses Individuais homogêneos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, pp. 70/72. 131

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3. Os Juizados Especiais como porta do Acesso à Justiça

LUCIANA GROSS CUNHA

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identifica dois enfoques possíveis para o Acesso à Justiça. O

primeiro mais amplo e ligado à ideia de "resolução pacifica de conflitos" com maior valorização dos resultados obtidos do que com os efeitos políticos decorrentes desse acesso. O segundo com enfoque definindo o acesso à Justiça como exercício afirmativo do poder estatal, uma proposta que vê o acesso como "acesso às instituições judiciárias". Esse último ponto de vista, na esteira das problemáticas apresentadas, em especial, aquelas decorrentes da afirmação dos direitos de índole coletiva, talhou uma ligação lógica entre garantia de direitos sociais, garantia de acesso à justiça e o processo de democratização experimentado pelo Brasil durante a década de oitenta. Colocava-se, assim, como um novo papel dos entes estatais a instituição dos mais variados mecanismos de acesso ao poder judiciário, ou mais amplamente, de satisfação de interesses jurídicos. Dentre esses mecanismos surge o sistema dos Juizados de Pequenas Causas (atualmente, Juizados Especiais Cíveis, posteriormente acrescidos dos Juizados Especiais Federais e os Juizados da Fazenda Pública dos Estados) como alternativa para a satisfação das duas carências na atuação do Estado perante a sociedade, quais sejam: legitimidade e pró-atividade. Em sentido mais pragmático a função dos juizados, entretanto, foi revestida pelo argumento de satisfação ao cidadão que se via alijado na busca pela resolução de seu conflito. Cerceamento de acesso decorrente da impossibilidade de trazer ao poder judiciário os litígios latentes de menor valor econômico e menor complexidade, por conta dos altos custos processuais, da morosidade e do excesso de formalismo jurídico.135 As ideias que deram origem aos atuais Juizados Especiais remontam ao início da década de 80, sendo apontadas historicamente duas fontes diversas. A primeira das fontes seria a experiência promovida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul denominada de Conselho de Conciliação e Arbitragem e a segunda, com origem no poder executivo, mais precisamente no Ministério da Desburocratização, nesse período, sob coordenação do Ministro Hélio Beltrão e do advogado João Geraldo Piquet Carneiro. 136 Juizado Especial: Criação, Instalação, Funcionamento e a Democratização do Acesso à Justiça, Saraiva, 2012, pp. 5/7. 135 LUCIANA GROSS CUNHA, Juizado Especial Cível e a democratização do Acesso à Justiça, p. 7, disponível em 136 MARIA CECILIA MAC DOWELL DOS SANTOS, Juizados Informais De Conciliação Em São Paulo:Sugestões Para A Pesquisa S6cio-Jurídica, Trabalho apresentado ao XII Encontro Anual da ANPOCS, Aguas de São Pedro-SP: 1988, pp. 134

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Em 1982, a primeira das experiências veio a partir de uma iniciativa da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul em busca de uma resolução alternativa e não jurisdicional das demandas com pouca expressão econômica. Embora tal proposta tenha se consubstanciado em uma série de procedimentos conciliatórios, os bons resultados dos Conselhos de Conciliação e Arbitragem se restringiram, segundo LUCIANA GROSS CUNHA, a um movimento local 137, cujas atividades ficaram cerceadas nas poucas comarcas em que foram instalados. O funcionamento dos Conselhos, cuja inspiração remonta à experiência no mesmo sentido promovida na Alemanha, tinha por critérios a quebra de limitações econômicas ao acesso à justiça. Um procedimento voltado ao trato extrajudicial de causas de qualquer matéria desde que possuíssem valor reduzido (até 40 OTNs, cerca de 5 salários mínimos), sob a rubrica da simplicidade e oralidade, sendo exclusivamente presididos por um árbitro não remunerado e escolhido pela associação de magistrados gaúcha. 138 Todavia, ainda que a contribuição seja reconhecida, a experiência do Conselhos restou historicamente superada pela proposta originada do poder executivo, em especial, pelo Ministério da Desburocratização. Como ficou registrado pela literatura 139, JOÃO GERALDO PIQUET CARNEIRO, na função de coordenador do Programa Nacional de Desburocratização, teve a oportunidade de testemunhar o cotidiano das Small Claim Courts do Estado de Nova York nos EUA. A realidade de tal "experiência", que remontava aos anos 30 do século XX, muito se assemelhava as necessidades de desburocratização visadas pela pasta por ele representada. Saltaram aos olhos do Programa de Desburocratização o fato da Small Claim Court, nas palavras de LUCIANA GROSS CUNHA, "julgar um número expressivo de processos de forma rápida, barata e informal" 140. A informalidade do rito processual, a baixa necessidade de investimentos e a forma oral como se desenvolvia o procedimento serviria bem aos objetivos e na superação dos entraves para implantação dos Juizados. Assim, na intenção de adequar a proposta de uma experiência, à brasileira, das Small Claim Courts, o ministério da desburocratização formou uma comissão de juristas, presidida por PIQUET CARNEIRO, cujo principal objetivo foi elaborar o texto do anteprojeto de Lei dos Juizados de Pequenas Causas.

6/8. 137 Juizado Especial: Criação, Instalação, Funcionamento e a Democratização do Acesso à Justiça, Saraiva, 2012, p. 29, no sentido contrário, quando a importância dos Conselhos para a cristalização do modelo dos Juizados veja-se: RICARDO TORRES HERMANN. O Tratamento Das Demandas De Massa Nos Juizados Especiais Cíveis, Rio de Janeiro: FGV Direito, 2010, disponível em , pp. 22/23. 138 Op. Cit., p. 30. 139 Análise da Estruturação e do Funcionamento do Juizado de Pequenas Causas da Cidade de Nova York, in Juizado Especial de Pequenas Causas, coord. KAZUO WATANABE, pp. 23/26. 140 Juizado Especial: Criação, Instalação, Funcionamento e a Democratização do Acesso à Justiça, p. 17.

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Após a superação de algumas posições contrárias 141 foi aprovada a Lei 7.244/84, que autorizou a instituição dos Juizados de Pequenas Causas. Dentre as principais diferenças entre o procedimento nos conselhos de conciliação do Rio Grande do Sul e na Lei dos Juizados de Pequenas Causa estava a ampliação considerável do limite pecuniário para a apreciação das demandas. Isso, pois, na Lei 7.244/85, ficou determinado que a competência estaria restrita aos 20 salários mínimos. Ao lado dessa modificação, ressaltava-se, também, que a Lei dos Juizados desenhava um procedimento jurisdicional e não apenas conciliatório, embora esse fosse um de seus escopos. Um procedimento jurisdicional que, fechado sobre suas regras, construía uma sistemática voltada à satisfação de interesses jurídicos de menor expressão econômica e social. Quanto a esse ponto, um dos participantes da comissão elaboradora do anteprojeto, justamente KAZUO WATANABE, dissertaria a respeito dos aspectos filosóficos básicos por traz da Lei recém aprovada. O que se extrai da análise filosófica a respeito dos Juizados de Pequenas Causas (Lei 7.244/84) é a proposta de sua atuação como mecanismo voltado à solução de conflitos sociais latentes. Espécies de conflito 142 elencadas, grosso modo, da seguinte forma:

“…1) conflitos que podem ser distribuídos ao judiciário para a solução estatal e autoritativa; 2) os conflitos que ficam completamente sem solução, muitas vezes até pela renúncia total do direito prejudicado…"

É sobre a segunda espécie que conflitos que KAZUO WATANABE constrói o termo "litigiosidade contida", patologia jurídico-social a ser sanada pelo mecanismo dos Juizados de Pequenas Causas. Esse seria o objetivo sobre o qual se curvaria o novo sistema, na busca da apreciação legítima e jurisdicional de questões jurídicas marginais e não dos demais problemas já experimentados pelo judiciário, fato bem determinado pela exposição de motivos do projeto de Lei:

“…Os problemas mais prementes, que prejudicam o desempenho do Poder Judiciário, no campo civil, podem ser analisados sob, pelo menos, três enfoques distintos, a saber: a) inadequação da atual estrutura do Judiciário para a solução de litígios que a ela já afluem, já sua concepção clássica de litígios individuais; b) tratamento legislativos insuficiente, tanto no plano Tais entraves tinham relação com a forte oposição da classe dos advogados em vista da desnecessidade de patrono nas causas em trâmite nos Juizados, conforme previsto pelo projeto de Lei 1.950/83. (tópico 4.1). Uma perspectiva mais abrangente dos debates que cercaram a Lei 7.244 pode ser vista no trabalho de LÉSLIE SHERIDA FERRAZ, Juizados Especiais Cíveis e acesso à Justiça Qualificada: uma análise empírica, São Paulo: FDUSP, 2008, pp. 28/29 e em LUCIANA GROSS CUNHA, Juizado Especial: Criação, Instalação, Funcionamento e a Democratização do Acesso à Justiça, Saraiva, 2012, pp. 35/39. 142 Filosofia e Características Básicas do Juizado Especial de Pequenas Causas in Juizado Especial de Pequenas Causas, São Paulo: RT Editora, 1985, p. 2. 141

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material quanto no processual, dos conflitos coletivos ou difusos que, por enquanto, não dispõem de tutela jurisdicional específica; c) tratamento processual inadequado das causas de reduzido valor econômico e consequente inaptidão do Judiciário atual para a solução barata e rápida desta espécie de controvérsia. (…) A ausência de tratamento judicial adequado para as pequenas causas – o terceiro problema acima enfocado – afeta, em regra, gente humilde, desprovida de capacidade econômica para enfrentar os custos e a demora de uma demanda judicial." 143

Assim, a Lei dos Juizados revelou-se mais do que um novo procedimento especial voltado às demandas de menor complexidade e à facilitação de acesso ao poder judiciário. Seu objetivo foi de fato instituir uma sistemática voltada à satisfação de demandas relacionais (e.g. brigas de vizinho ou familiares de teor disponível) ou pontuais entre pessoas físicas (tais como batidas de carro sem vítimas), verdadeiro problema a ser enfrentado pelo novo sistema, em detrimento daqueles apontados pelas letras “a)” e “b)” da exposição de motivos supra. MARIA TEREZA SADEK sublinha tal vocação dos juizados, sendo-lhes completamente alheia a ideia de resolução dos problemas da justiça ordinária “[o]u seja esses juizados não foram criados para solucionar ou amenizar os problemas que marcam a justiça tradicional” 144. A Lei que instituiu os Juizados fez criar, portanto, um novo órgão de cunho especializado, cujos limites de atuação viriam ser determinados pelos princípios gerais do processo 145. Segundo CANDIDO RANGEL DINAMARCO 146, os Juizados fizeram mais ao inaugurar um verdadeiro “novo processo” cuja nota de inovação foi o manejo de revolucionários “critérios informativos” com vistas a implementação de uma nova mentalidade processual. A instituição desse novo órgão, e do procedimento que lhe incumbiu, em atenção aos objetivos políticos almejados, necessitava obviamente da construção de novas abordagens dos valores e princípios jurídico-processuais em busca do acesso à ordem jurídica justa. Assim, dentre os “critérios”

Projeto de Lei nº 1.950/1983 – Disponível em , pp. 67/68. 144 Juizados Especiais: o processo inexorável da mudança in CATHERINE SLAKMON, MAÍRA ROCHA MACHADO e PIERPAOLO CRUZ BOTTINI (org.), Novas Direções na Governança da Justiça e da Segurança, Brasília: Ministério da Justiça, p. 251. 145 Quanto a esse ponto CANDIDO RANGEL DINAMARCO já alertava que os princípios que orbitam o procedimento dos Juizados estavam necessariamente, pela própria natureza jurisdicional do novo órgão, alinhados com os princípios gerais do processo, Princípios e Critérios no Processo das Pequenas Causas in Juizado Especial de Pequenas Causas, São Paulo: RT Editora, 1985, p. 103. 146 Princípios e Critérios no Processo das Pequenas Causas in Juizado Especial de Pequenas Causas, São Paulo: RT Editora, 1985, p. 105. 143

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que engendrariam essa nova abordagem, encontravam-se não apenas objetivos de ordem social, mas também propostas de inovação procedimental e técnica, privilegiando a simplicidade, a economia processual, a celeridade e a conciliação (cf. art. 2 da Lei 7.244/84). Dessa forma, podemos abordar os elementos principiológicos dos Juizados em torno de dois eixos: o primeiro, com olhos nos objetivos políticos; e o segundo, atento à formatação dos atos dentro dessa nova “espécie de processo”. Na primeira abordagem, os princípios podem ser considerados segundo sua capacidade de promover o acesso à justiça. Assim valores como simplicidade, economia processual e desnecessidade da participação de advogados iriam de encontro com entraves burocráticos e financeiros vivenciados pela justiça de então. Nessa perspectiva, temos a acessibilidade como palavra de ordem, sendo ela o objeto político consagrado pelo sistema. Acessibilidade que deveria, ainda, ser alcançada por via da diminuição de custos bem como da concentração e da informalidade de atos, consubstanciados em celeridade, oralidade e simplicidade em termos propositivos, além é claro das demais regras dispersas na lei. 147 Em uma segunda abordagem, temos os princípios como norteadores fatidicamente procedimentais e técnicos. Assim a celeridade, a oralidade, a simplicidade e a economia viriam dar forma ao proceder dentro desse novo órgão. Ficando claro que, por essa abordagem, os juizados tomavam dinâmica muito diversa daquela inerente a qualquer dos procedimentos previstos pelo CPC, promovendo fortes mudanças na relação processual travada em seus domínios. A sistemática claramente independente que os juizados inauguraram diante da justiça civil já constituída viria, também, cristalizar este procedimento particular. A possibilidade de instauração de juizados (cf. art. 1 da Lei 7.244/84) com estrutura independente - embora na prática utilizasse espaço físico das varas cíveis - e procedimento jurisdicional completo (duplo grau de jurisdição à cargo de um colegiado de juízes de primeiro grau) revelava a forma com o processamento dos Juizados era apartada do restante da estrutura jurisdicional. Os efeitos práticos dos primeiros anos de atuação dos Juizados foram justamente inseridos no âmbito de sua proposta: um procedimento informal, barato, conciliatório e voltado para a pacificação de conflitos entre pessoas físicas em, por exemplo, questões de vizinhança, acidentes de veículo sem vítimas, locações e etc.; conflitos, como dito, mais coerentes com a ideia de “litigiosidade contida” 148. Pareceria em um primeiro momento de fundamental importância a experiência conciliatória e de mediação dos Conselhos de Conciliação e Arbitragem do Rio Grande do Sul. Uma forma mais

Percebe-se aqui a forma como a mentalidade por trás dos Juizados estava em estreita consonância com as propostas colhidas dos resultados obtidos pelas pesquisas do Projeto Florença. 148 Juizado Especial: Criação, Instalação, Funcionamento e a Democratização do Acesso à Justiça, Saraiva, 2012, p. 30. 147

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vinculada às relações de natureza continuada, não muito coerente com outras espécies de relações onde a posição das partes demandava uma postura mais ativa do juízo para o reequilíbrio endoprocessual. Extrai-se disso um primeiro e evidente efeito relativo à primeira fase da busca pelos Juizados. Efeitos ligados a lógica do novo procedere na relação estabelecida entre todas as partes – passiva, ativa e imparcial – envolvidas no processo, principalmente, quando excluídos os casos de necessária atividade decisória. Caso em que os participantes não estariam vinculados a uma relação processual de soma zero onde a possibilidade de um acordo seria remota ou nefasta para a parte hipossuficiente 149. Um efeito, também, decorrente da limitação de alçada e da matéria que viria a ser oferecida à jurisdição durante a passagem dos anos 80 para os anos 90. Em um momento posterior, o texto constitucional de 1988 (art. 98, I) incorporaria a obrigatoriedade na implantação de tal sistema, agora denominado de Juizado Especial 150, em todos os Estados da federação, dando o passo derradeiro para o que hoje se concretizou na ampliação do modelo para todo o Brasil. Estudos estatísticos conduzidos pelo IBGE mostram a distribuição dos Juizados Especiais em todas as regiões brasileiras a cerca de cinco anos:

Municípios, total, com serviço de assistência jurídica e com juizado especial, por tipo, segundo as Grandes Regiões e as Unidades da Federação - 2009 Grandes Regiões e Unidades da Federação Brasil

Total 5.565

Norte

449

Nordeste

1.794

Sudeste

1.668

Sul

1.188

Centro-Oeste

466

2.

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa de Informações Básicas Municipais, 2009 151.

Embora haja defensores do uso de mecanismos conciliatórios no âmbito das relações repetitivas o fato é que a utilização desse meio traz sérios riscos. OWEN FISS apresenta uma síntese do que ele entende como óbices à utilização do acordo em Um Novo Processo Civil: estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade, Coord. da Trad. CARLOS ALBERTO DE SALLES, Trad. DANIEL PORTO GODINHO DA SILVA e MELINA DE MEDEIROS RÓS, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, pp. 121/145. 150 Sobre a alteração do nome dos Juizados de Pequenas Causas para o de Juizados Especiais veja-se crítica relevante na esteira da representatividade da denominação do foro aos seus usuários em LÉSLIE SHERIDA FERRAZ, Juizados Especiais Cíveis e acesso à Justiça Qualificada: uma análise empírica, São Paulo: FDUSP, 2008, pp. 33/34. 151 Tabela completa disponível em 149

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Essa ampliação foi impulsionada especialmente a partir do ano de 1995, quando entra em vigor a Lei 9.099, revogando a Lei de 1984 e legislando a respeito dos Juizados Especiais em duas modalidades Cível e Criminal – que por sua vez foi acompanhada pelas Leis 10.259/2001 e 12.153/2009, as quais instituíram respectivamente os Juizados Especiais Federais e os Juizados da Fazenda Pública 153. A, hoje vigente, Lei 9.099/95 tem em sua base principiológica toda a construção relativa ao diploma de 1984, inserindo, contudo, novos elementos procedimentais 154 e relativos a competência tais como a ampliação do teto pecuniário, que passaria de 20 salários mínimos para 40 salários mínimos. Tem-se que esse novo teto pecuniário (40 salários mínimos) tomou lugar de verdadeiro qualificador daquilo que determina as pequenas causas ou causas de menor complexidade, que no caso da Lei 7.244 era elemento nuclear dentre os requisitos de competência, excluindo dentre eles a complexidade da matéria jurídica envolvida na demanda 155. Na Lei 9.099/95, o valor da causa, torna-se componente secundário da competência 156, embora no plano dos efeitos práticos das decisões esse critério tenha grande relevância, a exemplo da admissão de montante superior a esse teto por decorrência de imposição de multa cominatória 157. Acrescenta-se, nesse aspecto, a relevância do arbitramento de indenização a título de danos morais, que, embora não precise necessariamente constar de valor expresso na inicial, deverá se ater, também, ao valor máximo de 40 salários mínimos. Por outro lado a especificação clara que a Lei 9.099 dá aos legitimados para a propositura de ações nos Juizados também reitera o sentido dos princípios já presentes no cerne da Lei anterior e agora elencados em seu artigo 2º. Inicialmente, apenas as pessoas físicas capazes poderiam utilizar A criação dos Juizados Especiais Federais “JEFs” decorreu da correção de uma aparente distorção presente no texto constitucional (artigo 98, I) que previa, originalmente a criação de Juizados Especiais pela União apenas no âmbito do Distrito Federal e de Territórios. Através da emenda constitucional nº 22 de 1999 foi inserido o parágrafo único ao referido artigo 98, com a seguinte redação: “Lei federal disporá sobre a criação dos juizados especiais no âmbito da justiça federal”. Esse juízo tem como base de princípios o modelo da Lei 9.099, mas, entretanto, voltado em sua grande parte às causas onde entes da federação representam o polo passivo. As causas mais comuns nesses casos são majoritariamente as de natureza previdenciária contra o INSS. 154 Importante destacar a função central que o Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE), fundado em 1997, teve na construção das diretrizes procedimentais da Lei 9.099/95, segundo o site do FONAJE sua função gira em torno de três objetivos básicos: ”I – Congregar Magistrados do Sistema de Juizados Especiais e suas Turmas Recursais; II – Uniformizar procedimentos, expedir enunciados, acompanhar, analisar e estudar os projetos legislativos e promover o Sistema de Juizados Especiais; e III – Colaborar com os poderes Judiciário, Legislativo e Executivo da União, dos Estados e do Distrito Federal, bem como com os órgãos públicos e entidades privadas, para o aprimoramento da prestação jurisdicional”. 155 Sobre tal aspecto o artigo 8º, §2º, da Lei 7.244, era expresso em apenas determinar ao magistrado que alertasse às partes a conveniência de um advogado “se a causa apresentar questões complexas”. 156 Segundo RICARDO CUNHA CHIMENTI, Teoria e Prática Dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais e Federais, 11ª Edição, Saraiva, 2009, pp. 28/29 , os Juizados Especiais não aceitam causas cujo valor exceda 40 salários mínimos, ponto sobre o qual discordamos à medida que os Juizados aceitam causas de quaisquer valores, desde que o autor renuncie o valor que superar o teto de alçada. 157 Tal previsão consta do enunciado nº 25 do FONAJE. 153

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daquele foro para a resolução de suas demandas 158. Segundo alguns comentadores 159 essa restrição visa, sobretudo, evitar a utilização dos Juizados como balcão de cobrança de empresas que porventura detenham créditos contra pessoas físicas 160. A limitação quanto a legitimação ativa parece, entretanto, mais bem fundamentada se for interpretada conforme os princípios genealógicos do sistema, o quais, conforme já se tratou suficientemente, foram criados no interesse de satisfazer pretensões jurídicas do cidadão, provendo assim o acesso ao sistema jurisdicional. Acrescenta-se a isso também a forte exigência que a Lei impõe à identidade pessoal do autor quando pessoa física. Essa identidade decorreria da exigência de comparecimento a qualquer das audiências sob pena de extinção do processo sem julgamento de mérito a despeito de qualquer tipo de intimação, nos termos do artigo 51, inciso I da Lei 9.099/95. A completa gratuidade dos Juizados em primeira instância, ponto de forte afirmação do escopo de facilitação de acesso em torno do procedimento simplificado, encontra aqui uma verdadeira exceção. Essa peculiaridade se deve ao fato de que será exigida a cobrança de custas caso a parte autora dê causa à extinção do processo nos termos do artigo 51, inciso I. Tal entendimento é ainda afirmado pelo enunciado nº 28 do FONAJE 161. Essa problemática em torno da extinção do processo trata de forma bem clara a respeito da importância que se deu à presença física das partes nas pequenas causas. Exigência que revela ademais a concentração procedimental dos Juizados, que buscam a resolução do processo na menor quantidade de encontros em juízo, sendo o momento processual por excelência aquele das audiências de conciliação e instrução, atos que concentram quase a totalidade do procedimento dos Juizados. Assim não é outra a medida mais comum tomada pelos diversos estados que a realização de ambas as audiências na mesma oportunidade, na prática das pequenas causas é denominada de convolação. Na realidade a redação da Lei 9.099 não traz qualquer óbice à realização das duas audiências no mesmo dia com a concentração de atos conciliatórios e instrutórios. Uma análise pormenorizada dos artigos 21 a 29 da Lei revela, ainda, que o legislador não obrigou a separação por qualquer prazo desses dois momentos. A Lei apenas ressalva que, na impossibilidade de realização no mesmo dia deverá se designar a audiência de instrução para um dos 15 dias subsequentes, saindo as partes cientes Tal restrição foi posteriormente levantada pelo artigo 74 da Lei complementar 123 que instituiu o Estatuto Nacional de Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. Atualmente essas empresas, ali incluídos os empresários individuais, também, têm legitimidade para a propositura de demandas nos JECs quanto a isso verificar os enunciados nº 48 e nº 110 do FONAJE. 159 E. g. RICARDO CUNHA CHIMENTI, Teoria e Prática…, p. 80. 160 A experiência de pequenas causas em países de tradição da Common Law sofreram justamente com esse evento o qual é narrado por CAPPELLETTI e GARTH, Acesso à…, p.105/106. 161 “Havendo extinção do processo com base no inciso I, do art. 51, da Lei 9.099/1995, é necessária a condenação em custas.” 158

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da data (cf. art. 27, parágrafo único). No sentido das enormes variações encontradas nos procedimentos dos Juizados espalhados pelas diversas unidades da federação, vale frisar que a Constituição determinou competência concorrente para que União, Estados e Distrito Federal legislem a esse respeito (art. 24, X da CF), de modo que não há qualquer óbice à estipulação de lei estadual específica sobre questão procedimental, sendo competência da União apenas legislar no âmbito geral do tema. Ainda no que concerne ao caráter concentrado dos atos dentro dos Juizados releva-se a prescrição do artigo 29 da Lei que prevê que a audiência instrutória será conduzida de modo que todos os incidentes deverão ser decididos de plano. Quanto a esse aspecto, também, entra-se alguma divergência a respeito da impossibilidade de interposição de agravo de instrumento durante o trâmite do processo. O que nos parece um tanto desarrazoado ante a possibilidade de concessão de medidas de natureza liminar dentro do procedimento do JEC, a qual deverá ser confrontada pela via do agravo de instrumento devidamente dirigido à turma de recursos competente 162. Como pontuando acima a delimitação do que para o sistema dos Juizados seria seu escopo de análise de mérito, ou seja, a demanda de menor complexidade, teríamos diretamente vinculado ao valor da causa o componente relativo à viabilidade da produção probatória. Prova cujo meio deve estar adstrito aos limites procedimentais do novo sistema, sendo, por isso, excluída a produção de natureza intrincada tal como a pericial de maior abrangência e custos 163. Essa limitação probatória segue no sentido da maior economia procedimental para a resolução rápida dos litígios, a evitar a dilação probatória desnecessária em seu aspecto técnico. Todavia, o sistema, aparentemente vislumbrando um deslinde de relações mais cotidianas, permitiu ao magistrado a possiblidade de utilização de sua experiência comum (art. 5º) para a formação de convicção sobre as provas produzidas. Na seara das relações de consumo, os Juizados se vêm muito pouco induzidos ao reconhecimento da existência de matérias cuja produção probatória poderia ser qualificada como complexa. Isso pela a aplicação da responsabilidade objetiva e a inversão do ônus probatório previstos no CDC 164 sobre o fornecedor. Acrescenta-se como razão disso a recorrente apresentação de provas técnicas pré-constituídas, segundo ELLEN CRISTINA GONÇALVES:

Entretanto, não é esse o entendimento de grande parte da jurisprudência dos Juizados, ponto que ficou explícito na redação do enunciado nº 15 do FONAJE: “Nos Juizados Especiais não é cabível o recurso de agravo, exceto nas hipóteses dos artigos 544 e 557 do CPC”. 163 Existem enunciados do FONAJE que sustentam também essa perspectiva relativa à complexidade e a matéria dos Juizados (enunciado nº 69 – “Ações envolvendo danos morais não constituem por si só matéria complexa” e nº 54 – “A menos complexidade da causa para fixação de competência é aferida pelo objeto da prova e não em face do direito material”). 164 Vide tópico 2.2 162

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“… o fornecedor, no mais das vezes, utiliza-se de estudos técnicos préelaborados ou mesmo a oitiva de técnicos, ante a coibição do sistema para a prova pericial, os altos custos e o fato de possuir muitas vezes várias ações com idênticas ou semelhantes causas, sendo mais comum nesse foro a produção de prova oral e documental somente, não constituído, portanto, óbice para o acolhimento ao tratamento das ações envolvendo direito do consumidor” 165

Outra mudança da Lei 9.099 é a presença da figura do advogado que passaria ser obrigatória para as partes pessoas físicas em causas superiores a 20 salários mínimos; caso a parte contrária, também pessoa física, esteja representada; ou, por fim, para recorrer da decisão do juiz. Já nos casos de pessoas jurídicas em litígio a participação dos advogados é sempre obrigatória. Quanto a representação das pessoas jurídicas, principalmente diante do estimulo à conciliação, vale ressaltar que o sistema dos Juizados permite a constituição pela empresa de preposto previamente cadastrado 166 para os atos que importem a assunção de obrigações. Como frisa RICARDO CUNHA CHIMENTI, inicialmente a alguns Juizados entenderam cabível uma interpretação estrita da constituição de preposto, sendo ilegítima a constituição de representante da pessoa jurídica pelo seu patrono, todavia esse entendimento sofreu relevante alteração:

“…Isoladamente, o entendimento originário era o mais compatível com um sistema que tem a conciliação dente seus princípios. Uma nova visão do Sistema do juizados, porém, determina o reconhecimento de que a aplicação automática da revelia nos casos em que a carta de preposição era assinada por advogado afastava dos Juizados o principio mais valioso que era o da prolação de decisões justas e equânimes para cada caso concreto (art. 6º da Lei n. 9.099/90) E diante da massificação do Sistema, que somente no Estado de São Paulo já recebe mais de 600.000 novos processo por ano creio que hoje o entendimento que fornece maior segurança e justiça caso não haja acordo é o que induz à apreciação da questão de fundo e prestigia a informalidade que também rege os Juizados…” 167

No tocante aos atos processuais, estes continuariam o mais das vezes informais e de reduzido custo, por exemplo, a previsão da Lei 9.099 para a validade da citação através de carta com aviso de

O Direito do Consumidor e os Juizados Especiais Cíveis, São Paulo: IOB Thomson, 2006, p. 81. Cf. artigo 9º, § 4º da Lei 9.099/90. 167 Teoria e Prática Dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais e Federais, 11ª Edição, Saraiva, 2009, p. 142. 165 166

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recebimento firmado pelo destinatário, no caso de pessoa física, ou de qualquer encarregado da recepção, quanto o citado é Pessoa Jurídica ou firma individual 168 (cf. art. 18, II). Outra característica marcante do procedimento dos Juizados é a interpretação muito particular do sistema de nulidades processuais presente no CPC, cuja formatação é talvez, dentro do sistema jurídico brasileiro, a mais próxima da ideia de processo instrumental. Assim a determinação expressa (art. 13, §1º) de que os atos serão válidos sempre que atingirem seus objetivos - elevação ao máximo do princípio do pas de nulite sans grief. Como se verifica, a manutenção do sistema tal como pensado na Lei 7.244 deveria ter sustentado uma via clara de acesso à justiça. Um acesso à justiça baseado nas premissas de não resolução dos problemas estruturais do Judiciário, mas da chamada “litigiosidade contida”, com foco na simplificação do procedimento em proporção à simplicidade dos processos ali iniciados. A manutenção dessa via de acesso, além da já citada elevação do teto pecuniário, fato que ampliaria objetivamente o número potencial de causas, seria também tributária de inovações como cristalização de elementos de informalidade, celeridade e do vislumbre primordial da finalidade do processo nos Juizados Especiais buscando o mais das vezes a identidade pessoal entre autor, réu e magistrado ou, sendo o caso, o conciliador. E, de fato, esse acesso à justiça se ampliou. Todavia, algo de errado foi diagnosticado quanto aos objetivos almejados pelo sistema:

“…Passados, no entanto, 8 anos da aprovação da lei 9.099, um problema antes não imaginado acabou se impondo como preocupante obstáculo à realização dos princípios norteadores dos Juizados Especiais Cíveis. Por conta da ação reincidente de um conjunto de empresas, processadas pelas mesmas práticas abusivas no âmbito do direito do consumidor (órbita em torno da qual giram cerca de 80% dos seus litígios), os JEC’s correm o sério risco de cair na morosidade característica da Justiça Comum. Em meados de 2002, por exemplo, ações que no início da implantação dos JEC’s duravam no máximo 3 meses passaram a demorar até 1 ano; audiências de conciliação inicialmente marcadas para 15 dias começaram a ter que esperar 60

Alguns Juizados, como é o caso do Juizado Especial de Sergipe, possuem uma forma mais “prática” para a representação processual das pessoas jurídicas que, segundo o Art. 42 da Resolução 37/2006 a instituir o sistema de processo eletrônico naqueles Juizados, poderão depositar em juízo os seus atos constitutivos para sua representação processual: ”…Pessoas jurídicas reconhecidamente muito demandadas nos Juizados Especiais Cíveis poderão depositar em juízo documentação que comprove sua personalidade jurídica, bem como as cartas de preposição de seus representantes, fazendo-se constar no termo de audiência quando necessário…”. 168

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dias…”169

Isso significava, de algum modo, que os Juizados, inicialmente concebidos para o tratamento de demandas de menor complexidade, fundadas nas relações de pequena expressão econômica estavam recebendo outra ordem de processos. Demandas cuja repetição deveriam em pouco tempo causar o efeito de paulatino travamento do sistema em contrariedade à sua função, dentre as quais não estava incluída a resolução dos problemas estruturais da justiça ou a tutela de demandas em massa. Tal circunstância foi também identificada por KAZUO WATANABE, que diante do desvirtuamento das funções do Juizado assim se colocou:

“...Os antigos Juizados Especiais de Pequenas Causas foram concebidos para propiciar um acesso mais facilitado à justiça para o cidadão comum, principalmente para a camada mais humilde da população. O objetivo jamais foi o de resolver a crise da justiça, sua morosidade e ineficiência na solução de conflitos, crise essa que tem causas inúmeras e não apenas aquelas enfrentadas na concepção dos Juizados Especiais de Pequenas Causas. (…) À continuidade de semelhante situação, que é de extrema gravidade, a finalidade maior dos Juizados, que é de facilitação do acesso à justiça e de celeridade na solução dos conflitos de interesses, estará irremediavelmente desvirtuada, com o lastimável comprometimento da própria razão de ser desses Juizados. Os que não entenderam a ideia básica dos Juizados procuraram fazer deles uma solução para a crise da justiça, e com isto não somente estão matando os Juizados, como também agravando mais ainda a crise que há muito afeta a nossa Justiça… “170

É evidente que os litígios encaminhados pelos cidadãos aos Juizados eram decorrentes de questões jurídicas represadas pela falta de portas de acesso ao Judiciário. Mas, acrescidos a esses conflitos estavam aqueles originários de novos direitos que foram sendo afirmados a partir do final dos anos 80 e no decorrer de toda a década de 90. Não é excesso de imaginação associar a positivação do direito dos consumidores através da Lei 8.078/90 com a ida massiva ao Foro Especial. Também não é um exagero pensar na relação direta que a expansão do consumo, durante a primeira década dos anos 2000, teve nessa explosão de demandas nos JECs. Note-se ainda que essa expansão do consumo ocorreu, justamente, na classe social que durante o período imediatamente MARCO MONDAINI, O Acesso À Justiça Nos Juizados Especiais Cíveis - Uma Análise Sociológica, disponível em . 170 GRINOVER, Ada Pelegrini e outros, Código de defesa do consumidor - Comentado pelos autores do Anteprojeto, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999, p. 717/718.) 169

62

anterior (fim dos anos 80 e início dos anos 90) foi alvo da política do Acesso à Justiça a qual, por simples lógica de identificação, deveria buscar o sistema dos Juizados para a satisfação de outra ordem de interesses. Serve de grande exemplo o gráfico abaixo que mostra o crescimento de casos novos Juizados Especiais entre 2004 e 2012:

4.400.000 4.200.000 4.000.000 3.800.000 3.600.000 3.400.000

3.200.000 3.000.000 2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

3

. Gráfico construído a partir dos dados do relatório Justiça em números do CNJ disponíveis em .

No estado de São Paulo, por exemplo, ANA CAROLINA CHASSIN

171

revela um aumento

expressivo no número de ações que ingressaram nos Juizados entre 2000 e 2004, cujo volume de demandas passou de 67.144 a 125.853, processos anuais. Ademais, é importante frisar que o ponto controverso não é obviamente a realização do acesso à justiça, pois, em última análise, a ida do cidadão ao Judiciário reflete ao menos duas coisas. A primeira é a existência de direitos reconhecidos ou de crises jurídicas quanto a garantias de direitos subjetivos que deram motivo à procura por meios de tutela; e a segunda é, mais importante talvez, a existência do meio de acesso à justiça. Ora, sob um juízo de funcionalidade, qualquer que seja o aumento no número de demandas refletiria o eventual êxito da proposta do Acesso à Justiça. Contudo, seria essa a intenção da instauração dos Juizados? Ou, ainda, seria o modelo procedimental dos Juizados adequados para esse trato?

Uma Simples Formalidade: estudo sobre a experiência dos Juizados Especiais Cíveis de São Paulo, São Paulo: FFLCH – USP, 2007, pp. 94/95. 171

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3.1. O modelo procedimental dos Juizados

A via dos Juizados Especiais para a tutela dos direitos individuais tornou-se, talvez, o ponto fulcral de toda a disciplina para a promoção de tutela individual do consumidor e, mais ainda, o verdadeiro ponto de convergência para os princípios teleológicos do Código de Defesa dos Consumidores e a “onda” renovatória pela qual se inspirava o processo civil brasileiro durante as duas últimas décadas do século XX. Muitas pesquisas têm apontado a preferência do cidadão pelos Juizados para o tratamento das demandas de consumo de forma pulverizada. Chegando-se até mesmo a afirmação de que a concretização da tutela do consumo prevista pela Lei 8.078/90 foi “em função da facilitação do acesso ao Judiciário criado a partir de 1995 com a Lei 9.099/95”, nesse sentido, chega-se a dizer:

“…Em razão disso, o que se tem visto é a repetição de inúmeros conflitos por um mesmo tipo de relação de consumo, conflitos estes que se renovam e multiplicam diariamente nos Juizados Especiais Cíveis, com pequenas, ou por vezes, nenhuma nuance diferencial, frutos de um comportamento empresarial, em sua maioria, descompromissado com o contorno de uma sociedade mais digna, solidária e humana…” 172

Alguns trabalhos oriundos da própria magistratura 173 têm admitido essa nova proposta de abordagem dos Juizados, defendendo que a estrutura deste órgão deve buscar soluções que tratem do novo “grande contencioso” representado pelas demandas de consumo. Entendimentos que reputam como função dos Juizados sua instrumentalidade focada na gestão de conflitos de massa. Essa proposta de tradução das funções dos Juizados tem surtido efeitos nos órgãos administrativos da magistratura. Nesse aspecto, é importante trazer a crescente preocupação do Conselho Nacional de Justiça em mapear e coordenar a atuação dos Juizados em busca de propostas de incremento físico e administrativo. A concretização dessa proposta decorre, por exemplo, dos Provimentos nº 07 e nº 22, cuja iniciativa demonstra um primeiro impulso no sentido de

AUREA MARIA AMIRAT BETTINELLI BORGES DE CARVALHO, Conciliação nos Juizados Especiais Cíveis do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: FGV Direito, 2005, disponível em , p. 42. 173 JOÃO DOMINGOS DE ALMEIDA NETO, Turma Recursal do Sistema dos Juizados Especiais: Istrumento de Gestão de Conflitos de Massa in Curso Turmas Recursais: sistema dos juizados especiais, 2012, Rio de Janeiro. p. 60, disp. em: acessado em 21/04/2014. 172

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racionalização, ou no mínimo de compreensão, desse novo cenário. No plano do direito material o CDC é claro em eleger o sistema processual simplificado, representado pelos Juizados Especiais como uma das formas de promoção da Política Nacional das Relações de Consumo em seu artigo 5º, inciso IV:

“...Art. 5º Para a execução da Politica Nacional das Relações de Consumo, contará o Poder Público com os seguintes instrumentos, entre outros: (…) IV – criação de Juizados Especiais de Pequenas Causas e Varas especializadas para a solução de litígios de consumo...”

Note-se, entretanto, a dificuldade diante de todas as disposições tipicamente processuais do CDC as quais deveriam ser adequadas ao já existente sistema dos Juizados Especiais. Mais, em vista de toda a carga principiológica afirmada pela proposta de Acesso à Justiça, fica a questão concernente a qual sistemática subsidiária deveria ser aplicada, nos termos do CDC (artigo 90), quando este garante a ampla utilização de todos os meios para a defesa do consumidor. Teleologicamente o modelo processual do CDC indicava que muito da celeridade e da simplicidade já prevista nos Juizados deveria ser levada em conta quando se buscasse a fixação da profundidade cognitiva nas decisões, a facilitação na produção de provas e a ampla disposição de Foros para ajuizamento. Importante o fato de que temos - qualquer que seja a interpretação quanto ao que de fato a Lei 9.099/95 tenha inaugurado - um sistema processual, uma ordem de regramentos que devem ser respeitados para que uma determinada demanda cumpra o seu pro cedere dentro dos JECs. Os efeitos do acoplamento entre essa disciplina processual e o sistema de regras para a tutela individual do consumidor é o que será tratado daqui em diante. Parece suficiente assim para que, acompanhados de certa base doutrinária, possamos retirar as aspas da relação jurídico processual consumerista quando mais acima (tópico 2.2) a adjetivamos de qualificada. A contribuição dos Juizados de Pequenas Causas, Lei 7.244/84 - posteriormente substituídos pelos Juizados Especiais Cíveis instituídos pela Lei 9.099/95 - para o aumento das demandas judiciais visando a tutela da parte hipossuficiente nas relações de consumo deve ser examinada dentro dessa proposta de que a relação processual estabelecida entre consumidor de fornecedor é qualificada e tende a surtir efeitos na forma como se desenvolve e se estimula o acesso à justiça. Devendo, pois, se satisfazer, na medida da competência dos Juizados, deste procedimento especifico para a tutela de 65

interesses relativos ao consumo. Contudo o que se questiona aqui é a limitação procedimental que a tutela qualificada do consumidor sofre dentro do plano dos Juizados Especiais Cíveis. Seara onde, no início dos anos 2000, foram realizados diversos estudos empíricos que demonstraram a relação entre o modelo de tutela consumerista implantado pelo CDC/Juizados e o crescimento vertiginoso do número de demandas judiciais. As fontes de dados desses estudos passam pelos relatórios “Justiça em Números” disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) desde o ano de 2003 e as pesquisas empíricas promovidas por órgãos como o Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais o CEBEPEJ. Um dos trabalhos de fundamental importância para a constatação desse cenário é a pesquisa empírica realizada pelo CEBEPEJ, entre 2004 e 2006, e analisada por LESLIE SHERIDA FERRAZ 175, onde foi feito um levantamento minucioso da natureza das ações promovidas nos Juizados Especiais Cíveis espalhados por todo o Brasil. Em referida pesquisa, foi constatado que dentro de uma média nacional 37% das demandas propostas nos Juizados Especiais tratam de relações de índole consumerista 176. Segundo os dados percebidos por ANA CHASSIN 177, essa tendência fica reafirmada chegando a uma média de 64% dos litígios, nos Juizados pesquisados pela autora, com origem em relações de consumo. Percentual já superior aos 49% obtidos por LUCIANA GROSS CUNHA 178 em sua pesquisa sobre o Juizado Central de São Paulo entre os anos de 1992 e 2002. Verifica-se, ainda, o número que representam, hoje em dia, os novos litígios que ingressaram para a fase de conhecimento dentro dos Juizados Especiais Cíveis de todo o Brasil cujo montante, segundo o relatório “Justiça em Números”179 do Conselho Nacional de Justiça no ano de 2011 foi de 2.718.562180 (dois milhões, setecentos e dezoito mil, quinhentos e sessenta e dois) novos processos, em face dos 5.900.419181 (cinco milhões, novecentos mil, quatrocentos e dezenove) processos de

Juizados Especiais Cíveis e acesso à Justiça Qualificada: uma análise empírica, São Paulo: FDUSP, 2008. Vide pag. 26 do relatório Juizados Especiais Cíveis – estudo promovido pelo CEBEPEJ no trabalho “Avaliação dos Juizados Especiais Cíveis” desenvolvido entre os anos de 2004 e 2006, disponível no site http://www.cebepej.org.br/pdf/DJEC.pdf 177 Uma Simples Formalidade: estudo sobre a experiência dos Juizados Especiais Cíveis de São Paulo, São Paulo: FFLCH – USP, 2007, pp. 103/104. 178 LUCIANA GROSS CUNHA, Juizado Especial Cível e a democratização do Acesso à Justiça, pp. 21/22, disponível em 179 CNJ relatórios “Justiça em Números” disponíveis em http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/eficienciamodernizacao-e-transparencia/pj-justica-em-numeros/relatorios 180 Relatório CNJ “Justiça em Números”, ano 2011, p. 325. 181 Relatório CNJ “Justiça em Números”, ano 2011, p. 160. 175 176

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conhecimento protocolados na Justiça Cível Estadual. Já no ano de 2012 foram propostos para conhecimento um total de 2.823.244 182 (dois milhões, oitocentos e vinte e três mil, duzentos e quarenta e quatro) processos nos Juizados Cíveis revelando uma pequena queda na proporção face os 6.861.384183 (seis milhões oitocentos e sessenta e um mil, trezentos e oitenta e quatro) processos novos na Justiça Civil Estadual. No biênio 2012/2013 mais uma pesquisa foi realizada com vistas a obter um recorte dos juizados especiais. Tal análise, dessa vez promovida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) através do termo de cooperação nº 002/2012 firmado com o CNJ, obteve dados de Juizados distribuídos em três estado brasileiros Rio de Janeiro, Ceará e Amapá, obtendo como resultado o índice médio de 74% dos litígios como decorrentes de relações de consumo 184. Tais dados indicam uma relação estreita entre uma explosão no exercício do Acesso à Justiça por meio dos Juizados Especiais e a tutela nas relações de consumo. Talvez o exemplo mais contundente quanto a relação CDC/Juizados é o fenômeno enfrentado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em decorrência do Cartão Megabônus 185. Caso paradigmático de modelo de gestão decorrente das variadas demandas de ordem massificada que podem acometer ao sistema dos Juizados Especiais. As demandas do Megabônus se referiam ao fato de que o banco fornecedor do cartão não informava adequadamente aos consumidores que a funcionalidade de crédito do produto (cartão Megabônus) estava vinculada a certas condições predeterminadas. Assim, os consumidores adquiriam um cartão pré-pago crentes que possuíam um cartão de crédito, tendo, por fim, suas compras negadas nos estabelecimentos comerciais por “falta de saldo”. Diante do primeiro avanço da propositura de ações contra a conduta lesiva da emissora do cartão, os Juizados Especiais Cíveis do Estado do Rio de Janeiro deram uma “resposta efetiva e rigorosa”, aplicando indenizações em patamar relativamente alto. Todavia, a contrapartida Jurisdicional, ao contrário de coibir a ação da empresa evitando a continuidade da propaganda enganosa, teve o efeito adverso de estimular, através do “boca-a-boca”, os demais consumidores lesados a ingressarem no Judiciário. Nesse sentido, o relato de uma das magistradas que teve a

Relatório CNJ “Justiça em Números”, ano 2012, p. 160. Relatório CNJ “Justiça em Números”, ano 2012, p. 325. 184 Síntese de dados do Diagnóstico sobre os Juizados Especiais Cíveis - Relatório Descritivo, p. 20, disponível em http://www.cnj.jus.br/images/poder-judiciario/Diagnstico_sobre_Juizados%20verso%20chamada%20pblica.pdf 185 NATHÁLIA CALIL MIGUEL MAGLUTA, A Massificação dos Conflitos de Consumo e o Sistema dos Juizados Especiais Cíveis como Instrumento de Pacificação in Curso Turmas Recursais: sistema dos juizados especiais, 2012, Rio de Janeiro. pp. 126 e segs, disp. em: acessado em 21/04/2014. 182 183

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oportunidade de atuar nesse episódio:

“…É imperioso notar que a lesão ao direito do consumidor havida, à época, foi em massa, porque em massa foi a oferta do cartão em tela, e em massa se deu sua contratação no mercado consumidor. Tratou-se, pois, de exteriorização do fenômeno antes referido, dando ensejo à massificação, também – e como não poderia deixar de ser – das ações nos Juizados Especiais Cíveis tratando do ‘cartão de crédito megabônus’…” 186

Segundo a mesma magistrada, o resultado da propositura dessas demandas não foi outro que não o travamento das pautas dos Juizados. A repetição de decisões que consideravam a ausência de informações adequadas acrescida da negativa de crédito como dano moral in re ipsa serviu de estímulo à propositura de novas ações nos exatos mesmos termos. Restava, assim, ao Judiciário no âmbito de uma gestão processual das demandas de massa a busca pela contenção da propositura de ações. Dentre as medidas tomadas estavam a realização sucessiva de mutirões de audiências; e o acionamento das entidades representativas dos direitos dos consumidores. Dentre essas entidades acionadas estavam Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro que promoveu a abertura do Inquérito Civil nº 156/2008 o qual, por sua vez, teve por decorrência o estabelecimento do Termo de Ajustamento de Conduta com a fornecedora no sentido de se evitar a continuidade da propaganda enganosa antes perpetrada. O que se percebe, nesse caso, é que a iniciativa para a contenção das diversas demandas ajuizadas veio não dos Fornecedores mas sim do próprio sistema jurisdicional que não estava conseguindo suportar, dentro do plano estrutural, a enxurrada de novos processos. Verificando-se, nesse caso, que os efeitos massificados das demandas individuais tocaram o sistema dos Juizados, sensibilizando-os de que havia uma verdadeira causa coletiva latente nas inúmeras ações propostas 187. Medidas Jurisdicionais de contenção que culminaram na edição da Súmula nº 149 do TJRJ:

"NAS AÇÕES INDENIZATÓRIAS DECORRENTES DA CONTRATAÇÃO DO "CARTÃO MEGABÔNUS", OS DANOS MORAIS NÃO PODEM SER CONSIDERADOS IN RE IPSA, CUMPRINDO AO CONSUMIDOR DEMONSTRAR A OFENSA À HONRA, VERGONHA OU HUMILHAÇÃO, NATHÁLIA CALIL MIGUEL MAGLUTA, A Massificação…, p. 133 É de se notar que conforme relato a empresa que fornecia o cartão Megabônus possuía, no início de 2008, cerca de 350 processos em trâmite, quantidade que passou aos cerca de 4350 processos ao final do mesmo ano, dado extraído de NATHÁLIA CALIL MIGUEL MAGLUTA, A Massificação… pp. 126 e segs. 186 187

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DECORRENTES DA FRUSTRAÇÃO DA EXPECTATIVA DE SUA UTILIZAÇÃO COMO CARTÃO DE CRÉDITO." REFERÊNCIA: UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N º . 2009.018.00009 JULGAMENTO EM 29/03/2010 - RELATOR: DESEMBARGADOR MARIO ROBERT MANNHEIMER. VOTAÇÃO POR MAIORIA.”

Embora a situação do estado do Rio de Janeiro seja talvez a mais extrema em nosso país, dado que em 2009 seus Juizados Especiais concentravam cerca de 50% de todos os processos em trâmite (aproximadamente 850.000 processos), resolvendo em mais de 90% dos casos questões relativas ao consumo 188, o exemplo do “Cartão Mega Bônus” parece demonstrar algo de interessante sobre as peculiaridades dos JECs para o tratamento das demandas massificadas. De algum modo, as decorrências externas diretamente vinculadas às posições privilegiadas dos Litigantes Habituais - os Repeat Players de GALANTER - talvez estejam silenciosamente estimulando uma situação de equilíbrio dentro desse foro. No exemplo do Megabônus, podemos elencar uma série de benefícios os quais os Repeat Players usufruíram, sendo talvez o mais preponderante aquele relativo à capacidade de gestão e previsibilidade de resultados nas diversas perdas decorrentes da imposição de danos morais, ou mesmo na possibilidade da gestão econômica da massa de demandas e o contato direto com os órgãos decisórios ou representativos. Essas circunstâncias estariam vinculadas ao fechamento procedimental dos Juizados como, por exemplo: a limitação do teto de alçada; a diminuição de custos com a produção de provas (em sua grande maioria vedadas no plano do procedimento simplificado); a inexistência de custas em primeiro grau; a desnecessidade de mobilização de departamentos internos para o recebimento de oficiais para citação; a representação da empresa fornecedora no foro através de preposto constituído ad hoc; a recorrente cooperação entre fornecedores e órgãos jurisdicionais com medidas para a redução do arquivo de ações e etc. 189 Dessa forma, a possibilidade de aferição dos resultados nas demandas dos Juizados, em longo prazo, permitiria de plano ao Litigante Repetitivo uma análise pormenorizada de condutas e a tomada de medidas até no plano externo do litígio com vistas de reduzir o resultado das ações contra eles propostas.O que não significa necessariamente a cessação da conduta danosa pela imposição das penas.

FLÁVIO CITRO VIEIRA DE MELO, A Turma Recursal como Elemento de Política e de Administração Judiciária para Gestão do Contencioso de Massa in Curso Turmas Recursais…, pp. 27/33, disp. em: acessado em 21/04/2014. 189 A realização de mutirões para conciliação de demandas de massa é prática mais que recorrente entre as administrações do Juizados e os fornecedores representando mais um mecanismo para a diminuição das ações em cartório. 188

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Principalmente se considerado o fato de que essas ações, cujos custos econômicos são em sua grande parte fixos, possuem alto grau de aferição aritmética. Algo que ironicamente lembra a seguinte situação: "…É pura aritmética. O enunciado de um problema. Se o novo carro fabricado pela minha companhia sai de Chicago em direção ao oeste a noventa quilômetros por hora, e o diferencial traseiro trava, o carro bate e pega fogo com todo mundo dentro, minha empresa deve iniciar um recall? Pegue o número total de veículos na área (A) e multiplique pelo índice provável de defeitos (B), depois multiplique o resultado pelo custo médio de um acordo extrajudicial (C) (A) vezes (B) vezes (C) é igual a X. Isso é o que vai nos custar se não iniciarmos já o recall. Se X for maior do que custará para recolher o carro, faremos o recall, ninguém vai se machucar. Se X for menor do que custará para recolher o carro. Então não faremos o recall…" 190

Interessante perceber que a pacificação da conflituosidade em massa representada pela enxurrada de ações do Megabônus apenas foi atingida quando da alteração do paradigma de satisfação das demandas individuais para o modelo de tutela coletiva. Entretanto, essa alternativa pareceu viável a partir do momento em que uma crise de natureza coletiva foi identificada pelo judiciário tão e somente após o verdadeiro travamento do sistema de tutela individual de consumo. Seria o caso de analisarmos mais profundamente alguns dos benefícios dos Repeat Players dentro da sistemática dos Juizados Especiais Cíveis.

CHUCK PALAHNIUK, Clube da Luta, Rio de Janeiro: Editora Leya, 2013. Não obstante a remissão à literatura, o cenário descrito por CHUCK PALAHNIUK tem inspiração no caso “Ford Pinto”, Grimshaw v. Ford Motor Company (119 Cal.App.3d 757), onde foi provado que a requerida Ford possuía cálculos claros quanto aos custos decorrentes do ressarcimento de danos, dentre eles incluídos o evento morte, causados por falhas de projeto de seu veículo. 190

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4. Os efeitos da litigância repetitiva/massificada nos Juizados

A questão está colocada, justamente na afirmação de que a relação estabelecida entre a tutela individual nas relações massificadas, nesse caso as relações de consumo, e o procedimento simplificado dos Juizados Especiais teria por hipótese a capacidade de provocar efeitos externos à relação jurídica processual. Isso teria origem primeiramente na perspectiva detida pelos Players repetitivos e no manejo de posições processuais estratégicas, muito favorecidas pela sistemática barata, célere, simplificada e, em grande parte, fechada dos Juizados Especiais Cíveis. Como já salientado a tutela de natureza consumerista tem origem direta na afinidade das relações jurídicas nascidas com a sociedade de consumo. Uma sociedade de consumo que gera questões de natureza repetitiva e massificada, sendo nota distintiva dessa segunda qualificação o comportamento em bloco dos autores/consumidores nela envolvidos. A análise das estratégias que paulatinamente foram sendo desenvolvidas pelos litigantes repetitivos leva a constatação de que o acoplamento entre o modelo procedimental dos juizados em sua estrita simplicidade e a tutela do consumo nos moldes como previstos pela Lei 8.078/90 permitiram uma previsão muito clara do desenvolvimento e dos resultados das demandas com grande capacidade dos Repeat Players manipularem meios de protelação ou mitigação externa das perdas dentro do foro. Dentre essas facilidades estariam as seguintes: a) O litigante habitual detém maior experiência na relação em longo prazo com o tema jurídico das demandas fato que possibilita capacidade de planejamento de cada litígio e do conjunto de litígios em que eles estão ou estarão envolvidos; b) A economia de escala, representada pelo conjunto de demandas observado pelo lado do litigante habitual, reflete, se houver o fenômeno da massificação, na redução de custos para a atuação em Juízo, ponto que se consubstancia na prática em um número expressivo de autores reduzidos a um número pequeno de matérias jurídicas, com efeitos em todo o procedimento de defesa, incluída aí a produção de provas; c) A possibilidade de relações informais entre os membros dos órgãos decisórios é ponto que de certo modo retro alimenta a gestão em escala dos processos, inclusive inserida a possiblidade de “troca de interesses” entre os órgãos decisórios e os litigantes habituais para a manutenção do equilíbrio de processos; d) Os litigantes habituais têm ainda a possiblidade de realização de cálculos muito precisos 71

dos riscos da demanda dada a amostragem maior de casos, diminuindo o peso de cada derrota, que será́ eventualmente compensado a longo prazo; e) O teste de estratégias, ou o juízo de oportunidade para o teste de estratégias jurídicas é outro benefício que o litigante habitual detém, pois o controle de um volume considerável de processos permite a visão perspectiva da mudança de entendimento dos órgãos julgadores. Ao que parece, o modelo procedimental dos Juizados permitiu em muito a maximização destes “benefícios” ao Litigante Repetitivo apontado por MARC GALANTER. Evidentemente que, sob a figura ideal desse litigante, não se pode deixar de ponderar algumas peculiaridades. GALANTER 191, em sua qualificação quanto a recorrência, vai além, dividindo de um lado os que “têm” (os Haves) condições de se valer de sua superioridade estratégica, no uso de elementos como poder, riqueza e status e, de outro lado, os que “não têm” (os Have-nots), os quais seriam, em sua grande maioria, os Players carentes de características que lhes privilegiam a presença, ainda que recorrente, no foro. A localização dessas espécies típicas estaria vinculada à ideia de usuários da justiça que, sem necessariamente possuir formas mais rebuscadas (ligadas à ideia do “ter”) para aumentar suas chances de vitória ou diminuir os efeitos de uma derrota, ainda assim utilizam e frequentam com certa recorrência o foro. 192 Desse modo, para o desfrute de eventuais benefícios auferidos, os Repeat Players tenderiam não apenas a presença no foro, mas também, à capacidade de gestão desse convívio cotidiano. O fato é que, no âmbito das relações de consumo reclamadas na Justiça Especial, torna-se difícil imaginar a presença de uma distinção dentro da espécie dos litigantes eventuais entre aqueles que “não têm” e que “têm”. Isso porque em decorrência do próprio regramento procedimental a vedação à propositura de ações por empresas nos Juizados serviria como um relevante empecilho para que um litigante com capacidade de gestão em massa integre a parte autora, obrigando que sempre aquele que “não têm” esteja necessariamente do lado ativo do balcão. Acrescente-se o fato de que o senso de recorrência, no caso dos Juizados Especiais Cíveis, pode ser elevado às alturas, sendo na prática impossível comparar a possibilidade de se beneficiar detida por um litigante repetitivo, (principalmente nos moldes em que GALANTER imaginava), e o litigante repetitivo no litígio massificado.

Why the Haves..., p. 100. GALANTER pondera a presença de tipos intermediários como os criminosos profissionais, litigantes repetitivos que podem ou não, em atenção às características econômicas, sociais e políticas, “ter” condições de se beneficiar de sua posição de repetitividade. Why the Haves..., p. 103. 191 192

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Temos como exemplo dessa nova dimensão os dados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, denominado de “Empresas Mais Acionadas”

193

. Tais dados apontam um volume de

430.768 ações nos últimos 12 meses, contra apenas 30 empresas mais processadas naquele estado. Frise-se que esse volume de processos está em trâmite apenas nos Juizados Especiais Cíveis. É considerável nesse quesito a capacidade de gestão que o litigante repetitivo deveria desenvolver para a administração desse volume de processos. Uma capacidade que estaria diretamente ligada à ideia do “ter”, subdividida entre recursos humanos e, hoje talvez muito mais importantes, recursos computacionais de administração. Passando é claro pela própria capacidade de gestão em massa pelos escritórios de advocacia, sendo o caso da administração externa de demandas. Aqui a sistemática procedimental dos Juizados chega a ser notoriamente favorável ao litigante repetitivo. Imagine-se, em um único exemplo, o último colocado dentre os mais acionados nos Juizados Especiais Fluminenses, cuja tabela a pouco referida traz o volume de 2.759 ações dentro do período de 1 ano. Caso fossemos imaginar o ato de citação pela via da Justiça comum essas 2.759 ações demandariam, em tese, de diligências correspondentes, cabendo, para cada qual, um ato do oficial de justiça. Dentro de cada mês, seriam 229 diligências, a cada dia (incluídos aí fins de semana e feriados) seriam 7 novas citações. Caso considerássemos a primeira colocada da referida tabela, cuja quantidade de ações soma o volume de 71.008, os valores mensais saltariam para 5.917 citações mês e 197 citações por dia. Evidentemente, embora a previsão já constasse do próprio Código de Processo Civil 194 , a possibilidade concedida pela Lei da citação através de carta com aviso de recebimento (artigo 18, II) revela-se como uma dentre as grandes facilitadoras da gestão das ações repetitivas massificadas 195. Outro ponto que parece importante em relação à diferença de atuação (estratégia) e aos benefícios a ela inerentes é o motivo que acaba compelindo os usuários da justiça a irem em busca da satisfação de suas pretensões 196. Em resumo, qual é o interesse que normalmente as partes buscam Dados disponíveis em acessado em 11/09/2014. A inclusão da possiblidade de citação por Carta na generalidade dos processos cíveis foi incluída pela Lei 8.710/93, pela redação anterior do CPC a possiblidade de citação por carta era apenas voltada ao “réu comerciante ou industrial domiciliado no brasil” (art. 222, red. orig.). Segundo se verifica dos termos do projeto de Lei que deu nova redação ao dispositivo sua alteração visava justamente a “simplificação, celeridade no cumprimento das diligências e economia quanto àe custas processuais”, vide PL 2654/1992, pp. 14/15, disponí vel em . 195 Quanto a implementação de recursos tecnológicos nesse tema é importante ressaltar o uso dos meios virtuais de citação, tal como prevê o acordo recentemente firmado entre CNJ e empresas dos ramos bancário e de telefonia: acesso em 11/09/2014. 196 Nesse sentido, veja-se WILLIAN L. F. FELTINER The Emergence and Transformation of disputes: Naming, Blaming, 193 194

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ver satisfeitos nos casos de ações de consumo movidas nos Juizados? Essa não é uma resposta singela, trazendo um questionamento que pode se iniciar no plano da reparação financeira pura e simples, decorrente de um dano material e quantificável de consumo, passando pela satisfação de um dano de natureza moral, e chegando à pura satisfação de um senso de justiça 197 eventualmente detido pelo autor. Contudo, não se pode ignorar até mesmo à hipótese de viés lucrativo visado com a demanda de consumo. Todavia, é de se salientar, essas são apenas causas externas para a utilização e para o “despertar” de um interesse de judicialização de conflitos por parte dos consumidores. Nesse caso, temos a origem do interesse com base em uma série de fatores, ora mais ora menos objetivos, que indicariam a alternativa jurisdicional como a mais viável. Pesquisas já realizadas sobre o tema, em especial a desenvolvida pela Fundação Getúlio Vargas e coordenada por LUCIANA GROSS CUNHA e DANIELA MONTEIRO GABBAY 198, indicam que a trajetória de judicialização do conflito seguiria uma lógica de duas frentes complementares. A primeira, já apontada, tem origem externa à própria burocracia jurisdicional e pode ser relativa à regulação das relações consumeristas no plano administrativo ou legislativo, à ocorrência de eventos socioeconômicos, ou à própria forma de gestão por parte dos fornecedores. Segundo as autoras do trabalho de FGV:

“Os conflitos ou potenciais conflitos surgem, em regra, a partir do confronto de interesses incompatíveis ou do reconhecimento de um direito ou prejuízo; a interpretação dos direitos positivados ou restringidos (‘zonas cinzentas regulatórias’) pode gerar a criação de teses jurídicas (oportunidade). Na disseminação e no acesso a informações sobre esses direitos ou sobre teses jurídicas, os advogados e a mídia revelam-se como importantes interlocutores em relação às partes envolvidas. Esse processo pode ou não culminar na judicialização do conflito e consequentes impactos ao funcionamento da máquina judiciária” 199 Claiming... in Law and Society Review, vol. 15, nº3/4, 1980/81, p. 637. 197 Definir o conceito de senso de justiça parece nesse ponto um pouco mais de psicologismo do que necessariamente de análise jurídica dos motivos que eventualmente compelem ao autor a propositura de uma ação. Prefere-se assim utilizar o termo senso de justiça como a expectativa de um direito a ser tutelável com base em influências mais objetivas como por exemplo a divulgação de teses favoráveis através da mídia ou através da classe da advocacia. Nesse sentido veja-se LUCIANA GROSS CUNHA e DANIELA MONTEIRO GABBAY, Litigiosidade Morosidade e Litigância Repetitiva no Judiciário: uma análise empírica, São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 37/39. 198 idem, Litigiosidade…, p. 37. 199 ibdem, Litigiosidade…, p. 37/38.

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Já a segunda frente estaria vinculada à gestão interna dos tribunais, ou seja, a forma como o trâmite das ações e a resposta jurisdicional impacta no ânimo dos autores para a propositura de uma demanda. Nesse caso, podemos elencar fatores afeitos a gestão e ao próprio entendimento das cortes, tais como indeferimento em massa ou adoção em massa de uma tese jurídica, falhas no gerenciamento e, mesmo, infraestrutura mais ou menos amigável e acessível 200. Nesse segundo aspecto, os termos práticos para facilitação do acesso à justiça é a primeira nota relevante no caso dos Juizados. Quer se dizer com isso que a própria excelência na forma com a qual os Juizados lidam com seus princípios, ou seja, de modo simplificado, célere, econômico e oral tendem a induzir e a ida do consumidor aos seus balcões. A questão, contudo, muda de viés se observada pela perspectiva do réu das relações de consumo. Parece óbvio que para ele a satisfação de seu interesse jurídico é localizada em um espaço completamente particular. Se partirmos de uma pressuposição a respeito de um eventual interesse do réu, podemos imaginar com bom grau de acuidade que tal objetivo se insere em um quadro claramente diverso do que o apresentado pelos consumidores/autores. Propomos aqui, pelo menos, duas motivações chave que podem influenciar as estratégias dos réus: uma referente à não proliferação de demandas sobre um mesmo caso; e, outra, relativa à diminuição dos efeitos econômicos que essas demandas tenderiam a provocar nas atividades profissionais do réu. Não podemos, contudo, esquecer que a essas esferas de motivações acrescentam-se muitas outras como: o interesse na manutenção da imagem empresarial (seja perante os próprios consumidores, seja perante o judiciário e demais órgãos públicos); a necessidade administrativa interna à própria empresa fornecedora; ou a assunção de riscos empresariais para a entrada ou permanência em um mercado. É natural que as estratégias processuais dos fornecedores estejam vinculadas a umas dessas esferas, entretanto todas elas têm em comum sua origem na peculiaridade da atuação tradicional de toda empresa em mercado. Ora, uma atuação sempre voltada expressamente ao interesse final da atividade do empresário que é a maximização de lucros. Assim, é relevante pontuar que a presença do litigante repetitivo, se levarmos em conta a motivação de suas condutas, tem em última instância o objetivo de elevar seus ganhos ou, de outro modo, diminuir suas perdas.

Um dos pontos levantado em recente processo do CNJ para adequação da prestação de serviços jurisdicionais nos Juizados é justamente relativo aos aspectos de infra-estrutura e acessibilidade física. Pontos que podem ser verificados no próprio sistema do CNJ nos autos eletrônicos do processo nº 0005981-25.2009.2.00.0000, aberto pelo corregedor nacional de Justiça Min. Francisco Falcão. 200

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Nesse aspecto entram todas as pretensões cujos litigantes repetitivos tendem a sustentar no plano mais amplo de gestão de demandas individuais. Pretensões que de modo pragmáticos podem estar na capacidade de determinar as melhores oportunidades para, por exemplo, a interposição de um recurso, a realização de um acordo, ou mesmo o pagamento puro e simples do dano, com o reconhecimento da pretensão jurídica. A estrutura de satisfação de pretensões jurídicas em foro revela-se muito dual, não importando necessariamente que se considere apenas as motivações relativas à parte que acionou o mecanismo jurisdicional em busca de satisfação. A posição de vantagem do litigante repetitivo, que lhe permite o contato direto com o foro e a visão ampla dos efeitos endo e extra processuais do conjunto de demandas, de certo modo opera no sentido de desestabilizar o sistema jurisdicional neutro, segundo GALANTER, “Essa posição de vantagem é um dos caminhos pelos quais um sistema jurídico, formalmente neutro entre os que ‘têm’ e os que ‘não têm’, pode perpetuar e aumentar as vantagens dos primeiros” 201. Veja-se assim que as relações estabelecidas entre as partes previamente ao litigo de consumo são em grande parte contínuas e não baseadas em um aspecto de disputa desde sua gênese. Os interesses da parte fornecedora têm, na maior parte dos casos, natureza burocrática, organizacional e profissional. Elementos que dão o caráter voltado ao cunho econômico no trato dessa continuidade contratual. Por outro lado os consumidores, embora tenham interesses que possam ser a uma primeira vista reduzidos à natureza econômica, possuem principalmente na ótica voltada ao consumo interesses satisfativo, não raro de necessidades básicas na vida humana. Essa colocação leva a algumas ponderações importantes. Uma primeira ponderação é a dificuldade inerente nessa espécie de relação para o controle informal de conflitos. Pois é natural que sendo uma relação de grande volume os interesses de um consumidor devam ser tratados em bloco, seja legislativamente, seja administrativamente. Um tratamento mediante mecanismos coercitivos na maior parte dos casos com abstração suficiente para sanar e gerenciar as diferenças de poder entre as partes. A gravidade dos mecanismos coercitivos previstos para o tratamento das demandas individuais pelo CDC indica sua vocação para a massificação. Fato que se inicia no próprio plano do direito material ao propor a ruptura com os clássicos filtros de responsabilidade, elegendo como padrão a responsabilidade objetiva dos fornecedores 202.

Tradução livre, Why the haves..., pp.103/104. Remetemos novamente ao trabalho de ANDERSON SCHREIBER, Novos Paradigmas da Responsabilidade civil – Da Erosão dos Filtros de Reparação à Diluição dos Danos, 2ª ed., São Paulo: Atlas, 2009. 201 202

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Nos Juizados, um sistema procedimental onde a concentração de atos e a pouca possibilidade na “verticalização” 203 da matéria controvertida são regra, a responsabilidade objetiva torna-se um mecanismo de garantia. Uma grande garantia de tutela que, ante a evidente hipossuficiência técnica e jurídica do consumidor, permite ao réu/fornecedor, principalmente o repetitivo em massa: a perspectiva de redução de custos para a produção probatória já que essa prova será na maioria dos casos desnecessária, ou para sua eficiência, muito onerosa; ou a aferição muito aproximada da perda, já que essa perda será tão recorrente que se tornará calculável. Em resumo, podemos dizer que a visão mais ampla do Litigante Repetitivo concede a capacidade de extrapolação dos interesses litigiosos para o plano externo à crise jurídica. Criam-se efeitos alheios a lógica processual interpartes, uma externalidade inerente ao sistema da justiça simplificada, concedendo-se ao Litigante Repetitivo a possibilidade gestão desse efeito mediante mecanismos de gestão. Colocada essa ordem dual dos interesses litigiosos, cabe ressaltar que a proposta de análise de GALANTER considerava, apenas os tipos ideais, tais como representados na Tabela 1 supra, apenas identificados pelos operadores parciais dentro dos litígios, ou seja, Players que se deteriam sobre interesses no resultado positivo ou negativo da demanda 204. Entretanto a necessidade de gestão processual dos operadores imparciais (Juízes, administradores cartoriais, gestores de políticas públicas) acrescenta complexidade ao cenário. Nesse aspecto é interessante destacar que, embora os litigantes repetitivos não tenham a capacidade de utilizar a superioridade de sua posição para alterar o teor de decisões imparciais, o eventual compartilhamento de interesses entre empresas e órgãos imparciais (tal como o da diminuição no volume de demandas) se acumula a essa vantagem natural. Possibilidade de convergência de interesses que permite raciocinar, ao menos, a respeito da melhor maneira de se conduzir e de se relacionar com o sistema procedimental. Os operadores jurisdicionais, ainda que imparciais ante o litígio individualmente considerado, adquirem uma boa dose de parcialidade em face dos desdobramentos de uma série massificada de processos. Fato que se concretiza na necessidade do cumprimento de metas, na redução do número de processos, na racionalização da estrutura cartorial e porque não na redução de custos de

Usamos o termo verticalização aqui no sentido de exame cognitivo profundo do tema envolvido com o direito pleiteado nas relações de consumo. 204 GALANTER chega a incluir os órgãos imparciais como elementos relevantes nas relações entre Litigantes Eventuais e Litigantes Repetitivos, mas contudo a sua análise de interesses tende a centrar foco nas posições claramente parciais em litígio. 203

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processamento 205. Um tema que se alinha com a ideia da gestão pública dos litígios de massa. Desse modo sabendo que o litigante repetitivo detém uma peculiar atuação processual, por exemplo, na redução de perdas ou na busca pela mudança para um entendimento jurisprudencial favorável, os operadores imparciais Juízes e gestores também atuam parcialmente em face da necessidade de manutenção de sua função distribuidora de justiça ou da operabilidade de seu cartório. Por fim, mas evidentemente não de modo exaustivo, o sistema dos Juizados finca, ainda, outra possibilidade rica de benefícios ao litigante repetitivo, por conta da massificação da matéria e da limitação na possibilidade de imersão quanto às peculiaridades pessoais de cada litígio (peculiaridades que muitas vezes sequer existem em conta da relação jurídica estabelecida). Esta é a redução de complexidade das causas nos Juizados a qual parece ser um ponto que se inclina sobre a possibilidade de gestão em massa pelos litigantes repetitivos e pelos próprios cartórios. A análise lógica da própria estrutura permitiria que, diante de uma série de decisões sobre uma mesma matéria, sujam pelo menos três efeitos diversos, os quais necessariamente tenderiam a beneficiar os litigantes repetitivos. Nessa hipótese, o conjunto de decisões proferidas poderia compor alguma das seguintes possibilidades: a) entendimentos diversos entre os inúmeros julgadores; b) entendimento pacificado, em qualquer medida, a favor dos interesses dos consumidores; e c) entendimento pacificado contrariamente e em qualquer medida aos interesses dos consumidores. No caso da primeira hipótese, temos o pleno uso da superioridade estratégica do litigante repetitivo, pois, diante de entendimentos diversos, ou seja, da matéria não pacificada, visualizamos uma indefinição coletiva da questão 206. Ora, nessa eventualidade nada é mais esperado do Repeat Player do que a exploração das certamente existentes decisões contraditórias. Essa medida deve-se ao fato de que o Repeat Player, ao contrário do órgão julgador e do litigante individual, detém meios de organizar argumentos favoráveis em decorrência de sua visão e atuação ampla 207. Argumentos que seriam acrescidos da forte carga de legitimidade decorrente de que todos possuem origem no entendimento pregresso do próprio poder judiciário, em julgamentos de demandas muito semelhantes sem a adequada imersão probatória decorrente das limitações e

Tal aspecto é muito considerado pela justiça e aferível, principalmente no estímulo ao uso dos Juizados, vide tópico 4.4. 206 Segundo constatado por GROSS CUNHA e GABBAY os litigantes repetitivos têm condições muito melhores de “avaliar de forma macro as possibilidades de êxito da tese” o que conforme os depoimentos colhidos entre os atores presentes nesse meio “dificulta a pacificação do conflito” ou ainda de acordo com um dos entrevistados “’se existe jurisprudência firmada, óbvio que não recorremos. Mas em alguns casos quando não há jurisprudência firmada, a gente decide apostar em uma tese tentando emplaca-la’” Litigiosidade…, pp. 127/128. 207 A possiblidade de gestão de argumentos favoráveis pelo consumidor é, também, um fato e interfere principalmente no fenômeno de busca pela tutela jurisdicional quando há o fenômeno da divulgação quanto a adoção uma determinada tese. Foi justamente esse fenômeno o observado em diversos casos que trouxeram uma verdadeira avalanche de demandas ao judiciário, a exemplo do caso da tarifa básica de assinatura, verdadeiro leading case. 205

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imposições do sistema Juizado/CDC. Na hipótese de um entendimento pacificado pró-consumidor, o efeito se torna diverso na medida em que estimula a entrada de novas ações com a mesma matéria, entrada que já estaria em grande parte facilitada pela clara inexistência de custos para o ingresso do consumidor. Esse foi o efeito vislumbrado, por exemplo, no caso do Cartão Megabônus, pois, inicialmente ante a desnecessidade de provas que resultaria no julgamento benéfico aos consumidores, os Juizados do Rio de Janeiro se viram diante de uma onda de processos que literalmente inviabilizou por algum período o seu funcionamento de maneira adequada. Nada mais natural que fosse procedida uma medida de contenção ao aumento de demandas através do encaminhamento da questão aos órgãos de proteção coletiva do direito dos consumidores. Entretanto, na prática, a reação dos órgãos jurisdicionais foi protagonista do cerceamento do direito de acesso individual à justiça, pois dentre os casos represados com a medida evidentemente estavam aqueles que, embora devessem, não puderam se ver beneficiados com a análise objetiva do dano moral. A última hipótese trata justamente da situação em que uma demanda é recorrentemente julgada de forma contraria a uma pretensão consumerista, nesse caso a hipótese é benéfica aos litigantes repetitivos primeiro pelo desestímulo representado pelas decisões contrárias e segundo pela gestão massiva da manutenção desse entendimento contrário ao interesse do consumidor/autor. Nesse segundo ponto, a capacidade de gestão torna-se mais facilitada dado o fato de que os Repeat Players detém ampla possibilidade de impor o entendimento como jurisprudencialmente uníssono durante o tempo que lhes aprouver. A repetição de matérias permite, como já dito, uma medida quase que maquinal e massificada dos atos dos procedimentos dos operadores repetitivos. Esse procedimento quanto mais concentrado e massificado mais permite a redução de custos, a produção de contestações, a análise atuarial das demandas e a gestão de perdas. E, de fato, é assim que o litigante repetitivo massificado, por lógica estratégica e em busca da redução de perdas, tende a observar e a gerir o litígio de consumo dos Juizados: Um procedimento barato, revelando a possiblidade de redução de custos (com uma perspectiva máxima de perda 208) na satisfação individual; um sistema de conciliação prévia, onde pode ser calculado o benefício da realização de um acordo ante a visão ampla da massa de litígios detida pelo litigante repetitivo; uma forma de pacificação individual com a satisfação do interesse privado do autor/consumidor e a

Essa perspectiva máxima de perda estaria trelada ao teto pecuniário das demandas no caso da Lei 9.099/95 40 salários mínimos. 208

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possibilidade de minoração dessa perda na grande massa de litígios; e, por fim, um sistema que, se mantida a capacidade de processamento cartorial dos juizados, estaria sempre estabilizado na lógica da gestão de massa a baixo custo e da satisfação individual dos danos decorrentes de uma relação de consumo massificada.

4.1. Advocacia no contencioso de massa

Como apontado anteriormente um dos grandes óbices à aprovação da Lei que instituiu o sistema de pequenas causas foi a oposição da classe da advocacia. Essa posição contrária se devia à facultatividade prevista pela Lei 7.244/84 quanto a presença de advogados nas causas dentro dos Juizados. Muito se debateu o acerto ou erro dessa facultatividade, sendo, para os autores do anteprojeto, um dos pontos nodais no estímulo à utilização dos Juizados. Os entraves burocráticos em grande parte atribuídos à presença dos advogados eram reconhecidos dentro das propostas basilares do projeto Florença 209, sendo por isso agregados à disposição reformadora da Lei 7.244. Segundo KAZUO WATANABE, esse movimento de repulsa decorreria de um receio por parte da classe dos advogados quanto à possibilidade de perda de mercado de trabalho. Ao seu modo um reconhecimento de que de fato havia uma grande parcela da população a qual iria buscar os Juizados a partir da desnecessidade de um advogado para tanto. Obviamente a posição da OAB foi refratária a tal previsão legal, entendendo ser inafastável a atuação do advogado para a concretização do procedimento jurídico justo. LUCIANA GROSS CUNHA 210 relata alguns dos argumentos dos advogados ao atacar a disposição da Lei 7.244/84. A principal entidade que se opôs a instituição original dos Juizados foi de fato a OAB, acompanhada das mais diversas associações de advogados. A posição contrária dos advogados era fundada em um receio generalizado da classe quanto a um eventual caráter autoritário da Lei 7.244, o qual seria evitado com a participação da advocacia, em seu papel de garantidora da justiça. Por seu turno, KAZUO WATANABE, na qualidade de um dos autores do anteprojeto, chegou a frisar os impactos positivos que a Lei teria na classe da advocacia:

Para CAPPELLETTI e GARTH a existência de advogados contribuía para a percepção do cidadão de que o procedimento era complexo sendo facultativo em muitas das experiências de tribunais de pequenas causas, ademais, a pesquisa do projeto Florença trouxe mapeamento quanto aos casos onde restaria até mesmo proibida a presença de advogados, Acesso à…, pp. 100/101. 210 Juizado Especial…, Saraiva, 2012, p. 32. 209

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“…Não se pode esquecer, também, que uma grande parte das pequenas causas, que irão aos JEPC, dirá respeito aos conflitos entre consumidores e fornecedores e nessas causas, de regra o réu será uma empresa, que dificilmente comparecerá ao Juizado sem a assistência de advogado. Haverá aí, então, ao invés de uma perda, uma verdadeira ampliação do mercado de trabalho…” 211 A ruptura processual e procedimental proposta pelos Juizados não alterou o main stream da prestação de serviços advocatícios. Os atores da advocacia originários do sistema do procedimento ordinário se viram compelidos a ingressar no novo modelo e utilizar, quando não desenvolver, mecanismos de gestão processual adequados à pratica dentro neste novo foro. Isso significa dizer que a inserção da atividade advocatícia em repetitividade massificada no sistema dos Juizados promoveu uma variação de qualidade do procedimento. Essa variação pode ser exemplificada por duas ordens de efeitos de certo modo interligados: o primeiro relativo à verdadeira explosão no número de litígios encaminhados aos Juizados; o segundo relativo à gradual concentração que foi se somando à cadência procedimental dos juizados. A presença dos advogados, que em primeiro momento (Lei 7.244/84) estaria vinculada à necessária representação das empresas, polo passivo das ações, viria a sofrer a influência da nova disciplina representada pela Lei 9.099/95. O fato é que, de acordo com o novo dispositivo, que aumentava o teto pecuniário das ações propostas nos Juizados para 40 salários mínimos, tornava-se obrigatória a presença do advogado nas causas cujo valor superasse os 20 salários mínimos. Embora a disciplina determine como obrigatória a presença dos advogados nas causas cujo valor ultrapassa os 20 salários mínimos, é importante salientar que a assistência desse profissional ao autor varia enormemente entre os diversos Juizados do país. Conforme se observa das pesquisas realizadas pelo CEBEPEJ e pelo IPEA, respectivamente, nos anos de 2006 e 2013 212, comparando, os três Estados cuja análise se repetiu em ambas as pesquisas, podemos notar um aumento no número de ações cuja presença do advogado representando a parte autora foi verificada:

Filosofia e Características…, p. 5. Vide p. 30 do relatório Juizados Especiais Cíveis – estudo promovido pelo CEBEPEJ no trabalho “Avaliação dos Juizados Especiais Cíveis” desenvolvido entre os anos de 2004 e 2006, disponível em e p. 28 do Diagnóstico sobre os Juizados Especiais Cíveis - Relatório Descritivo, disponível em 211 212

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Estado

Percentual de Presença de Advogados (CEBEPEJ - 2006)

Percentual de Presença de Advogados (IPEA - 2013)

AMAPÁ

22,1%

30,49%

CEARÁ

15,3%

48,62%

RIO DE JANEIRO

51,9%

78,42%

4

. Tabela construída a partir dos dados dos relatórios: Juizados Especiais Cíveis – estudo, p. 30, e Diagnóstico sobre os Juizados Especiais Cíveis - Relatório Descritivo, p. 28.

Por outro lado, sendo a representação por advogado obrigatória a todo o caso em que uma empresa fornecedora figurar em uma demanda, resta inegável a afirmação feita por KAZUO WATANABE a qual indica uma verdadeira oportunidade para o surgimento de um mercado para o advogado especializado na defesa dos fornecedores dentro dos litígios de consumo em massa. Como GALANTER ressalta, o advogado é um litigante repetitivo por natureza 213, sendo atribuída essa característica pela simples necessidade profissional de gestão rotineira de processos. Em outras palavras, o advogado, principalmente no plano do contencioso, é um profissional do gerenciamento de demandas. Evidente que nunca passou despercebida a superioridade estratégica detida por esse profissional, sendo este, inclusive, o principal dos argumentos que originariamente obrigam o patrocínio da causa em detrimento da autodefesa. Não é de se estranhar, portanto, que já diante do próprio fenômeno de massificação de demandas deveríamos esperar o surgimento de uma advocacia especializada nessa categoria de litígio. Ademais, após a estabilização da ideia de que o sistema dos Juizados Especiais era de fato vocacionado ao trato de demandas massificadas de consumo, esperava-se surgir toda uma fauna de serviços de advocacia para esse ramo. Uma especialização focada no gerenciamento de demandas judiciais em massa, especialmente nos Juizados. Gerenciamento de demandas que, a partir do momento em que adquire escala, principalmente por decorrência da prestação de serviços aos Litigantes Repetitivos deveria refletir em uma mudança qualitativa do serviço. O ganho da capacidade de prevenção ou ainda na mera aplicação de experiência e habilidade no trato dos procedimentos, já naturalmente esperados do advogado tradicional, deveria se acrescentar o conteúdo de repetitividade e de gestão em escala industrial. A capacidade de gestão da advocacia de massa decorreria, sobretudo, da “garantia” de resultados. Uma proposta muito controversa para a atividade que tradicionalmente se cunhou como de meio. Isso se deve, primeiramente, ao fato de que os resultados aqui considerados decorrem da natureza claramente extra-litigiosa com que as relações jurídico/processuais foram paulatinamente 213

Why the haves..., pp. 114.

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sendo encaradas pelos litigantes repetitivos. Segundo RICARDO HERMANN:

“O perfil da advocacia hoje exercida no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis não é mais a de uma advocacia “artesanal”, praticada para a defesa de interesse de litigantes ocasionais. Atualmente, na representação das grandes empresas demandadas, notadamente das Concessionárias de Serviços Públicos, atuam nos Juizados Especiais grandes firmas de advogados que sabem como neutralizar o impacto desses megaconflitos” 214

A título de exemplo, temos os dados originados da “publicação de resultados” 215 de uma das mais notórias bancas de advocacia especializada em litígios de massa. O escritório JBM Advogados o qual se notabilizou nos últimos anos pela capacidade de gestão diante de um estudo estatístico inerente à forma ampla com a qual se moldou a gestão de enormes volumes de litígios.

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. Gráficos Extraídos do Site do Escritório JBM – J. Bueno e Mandaliti Advogados

RICARDO TORRES HERMANN. O Tratamento Das Demandas De Massa Nos Juizados Especiais Cíveis, Rio de Janeiro: FGV Direito, 2010, disponível em , p. 113. 215 Tais resultados foram disponibilizados no site do Escritório os quais encontram-se atualizados até fevereiro do ano de 2012, disponíveis em , inserindo-se no mecanismo de pesquisa o termo “resultados”, acesso em 10/09/2014. 214

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A capacidade de gestão de escritórios como o JBM decorre claramente da natureza massificada das demandas e da respectiva simplificação dos procedimentos necessários para a gestão dos processos. Como se verificou, a semelhança da matéria envolvida e a superficialidade na cognição dos processos encaminhados aos Juizados, em especial nos casos de litígios de consumo, levou à possiblidade de redução da atividade criativa da advocacia com a reprodução de teses em massa. Os atos da grande parcela dos advogados desses escritórios resumem-se, na maior parte das vezes, à atividade de reprodução de teses e adaptação de modelos já pré-estabelecidos em atenção à macro estratégia de defesa. Isso tende a se refletir em queda na qualificação da atividade desses advogados “de piso”, nos quais se centraliza a produção de defesas em massa, alimentados pela grande oferta da mão de obra jurídica e paralegal em nosso país. No início do ano de 2014 a Fundação Getúlio Vargas, através da FGV Projetos, publicou um estudo denominado “Exame da Ordem em Números” contendo dados referentes ao aumento dos cursos jurídicos no Brasil bem como as informações relativas às aprovações no exame de admissão aos quadro a da OAB 216. Os resultados revelaram que dentro de um curto espaço de tempo foram inseridos no mercado uma grande quantidade de novos bacharéis. Segundo o estudo:

“…Entre 1977 e 1995 (um ano antes da aprovação da nova LDB), eles saltaram de 127 para 235 (o equivalente a um crescimento de 185%): uma média de seis novos cursos por ano. Já entre 1995 e 2011, foram criados, em média, 55 novos cursos por ano, totalizando 1.121 cursos de Direito ao final desse período. A expansão foi capitaneada por instituições privadas: em 1995, 68% dos cursos de Direito eram privados, contra 86% em 2011.”

O aumento do que aqui poderíamos chamar de um “estoque” de bacharéis que, conforme o referido estudo entre, os anos de 2009 e 2012 formavam-se nas faculdades de direito uma média anual de 93,1 mil bacharéis, sendo que apenas no ano de 2012 formaram-se 97,3 mil novos bacharéis. Sendo que considerando a partir de 2012, “um acréscimo da ordem de 7% no número de advogados no Brasil” anualmente 217. Grande explosão de cursos de direito que é interessantemente contemporânea à promulgação da Lei 9.099 de 1995. O estudo ainda pondera o seguinte:

Exame da Ordem em Números, FGV Projetos, 2014, p. 33, disponível em . 217 Idem, p. 37, disp. em . 216

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“…Cabe notar, entretanto, que nem todos os formados em Direito são prontamente integrados ao quadro de advogados da OAB. Em 2010, dos 1,3 milhões de bacharéis, 715 mil (55% do total) presentavam registro na Ordem, encontrando-se aptos para o exercício profissional da advocacia. Atualmente, o Brasil conta com mais de 790 mil advogados regularmente cadastrados neste quadro…” 218

Dadas as peculiaridades da atuação é esperado que a divisão de atividades dentro dessas bancas especializadas seja desenvolvida em basicamente dois níveis distintos, um primeiro voltado à gestão de teses e ao desenvolvimento de procedimento de defesa em lote. E outro composto por uma segunda ordem de profissionais completamente diferentes, focada na produção das defesas segundo a determinação das diretrizes pré estabelecidas. Não por acaso o quadro desses escritórios especializados na gestão de grande volume de processos é comparativamente enorme em relação e essa segunda ordem de profissionais. Havendo, nos mais atuais modelos de gestão, uma pulverização pelas diversas localidades do país, cujo reflexo primeiro é a redução de custos para a oferta de um serviço de gestão jurídica que passa a ser calculado em função da enorme quantidade de processos administrados. 219

“…Enquanto os escritórios com foco em fusões e aquisições e em Direito Tributário amealham milhões de reais em processos, — há advogados cujos honorários chegam a R$ 1 mil por hora trabalhada — cada processo paga ao JBM módicos R$ 100. No entanto, o modelo idealizado pelo escritório de Bauru funciona: o faturamento da empresa deve chegar aos R$ 110 milhões em 2011…” 220

Essa atividade de mera adaptação de peças processuais e cumprimento de prazos tem ainda mais um grande aliado. O desenvolvimento da informática na gestão de grandes lotes de dados elevou - e tende a aumentar ainda mais – o nível de automatização dos escritórios de advocacia. Atualmente a oferta de softwares especializados em gestão de escritórios é notória. A nova fronteira a ser Idem, ibdem, disp. em . Segundo dados obtidos do Anuário Análise Advocacia 500 2013, atualmente, a maior banca de advogados do país em relação ao número de advogados contratados, é o escritório Nelson Wilians e Advogados Associados com 1.372 advogados contratados, ainda que não haja dados relativos ao volume da atuação desse escritório nas demandas de consumo. O escritório conta com uma grande pulverização de filiais, cerca de 46 unidades espalhadas pelo país, sendo objetivo do sócio Nelson Wilians expandir para mais 72 filiais até o fim do ano. Sobre esses dados veja entrevista disponível em , acessado em 07/09/2014. 220 A Salsicharia do Direito no JBM, Revista Exame, edição de 20/04/2011, disponível em acessado em 17/09/2014. 218 219

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alcançada por esses serviços é uma integração mais adequada entre o processo judicial eletrônico e a automação interna das atividades das bancas de advogados. 221 A paulatina ampliação do sistema de peticionamento eletrônico tende a reduzir ainda mais os custos de gestão de processos, implicando redução do corpo de advogados para a representação processual em massa. No limite, diante dos avanças da informática e da gestão do que nos últimos anos recebeu o nome de Big data 222, a possibilidade de peticionamento por via dos instrumentos certificadores 223 permitiria que a partir de um mesmo terminal sejam protocoladas, em nome de um só advogado, uma quantidade infindável de peças. Acrescente-se a isso outros benefícios decorrentes do aparelhamento tecnológico das atividades dos advogados, a exemplo dos meios de comunicação extremamente desenvolvidos, onde o recebimento de uma petição inicial é quase que imediatamente encaminhado ao escritório de advocacia responsável pela defesa. A gestão técnica dos escritórios de advocacia incrementou em muito a eficiência com a administração de documentos o reaproveitamento do arquivo de teses, ou mesmo das bibliotecas jurídicas, elemento fundamental das atividades de um “escritório tradicional”. A falta de limites geográficos permite com que advogados em partes longínquas trabalhem em cooperação, atuando em conjunto e em contato direto com os interesses e com a gestão econômica e administrativa de seus clientes 224. Em resumo, a atividade jurídica ante o novo cenário quantitativo sofreu claras variações qualitativas em sua atuação.

Quanto a capacidade de gestão detida pelas grandes bancas de advogados veja-se, por exemplo, o teor da entrevista cedida pelo José Edgard Bueno no ano de 2013, disponível em , acessado em 10/09/2013. 222 Por se tratar de um conceito diretamente ligao à tecnologia da informação não houve qualquer problema em buscar o conceito de Big Data no Wikipedia, segundo o qual o Big Data constitui um fenômeno informacional relativo à capacidade de gestão e de armazenamento de grande contingente de dados. A utilização crescente do conceito de Big Data é diretamente vinculada à praxiologia - ciência da tomada de decisões -, sendo para tanto utilizados, dentre outros, mecanismos de estatística e probabilística. Ainda segundo o Wikipedia: “No Brasil, a existência da profissão de Estatístico, regulamentada pelo Decreto Federal nº 62497 de 19686 , vigente, é vantagem do conhecimento nacional frente aos países desenvolvidos, uma vez que esse profissional é o que melhor pode trabalhar com esse tipo de sistema porque é treinado em estruturas de dados, em seu manuseio para extração de informação estratégica, nos métodos estatísticos de análise e em programação para sua análise estatística, de modo a se obter conclusões com margens de erro controladas para a tomada de decisões com base nos dados disponíveis.” Disponível em < https://pt.wikipedia.org/wiki/Big_data> acessado em 17/09/2014. 223 Segundo a Lei 11.419/06 o ato jurídico realizado em processos judiciais eletrônicos depende de assinatura eletrônica a qual concede uma forma inequívoca de identificação do signatário do ato. Essa assinatura é baseada em um certificado digital (cartão magnético, senha, ou, ainda, pendrive criptografado) emitido por uma autoridade certificadora que tem a responsabilidade de certificar a identidade, perante terceiros, dos dados do signatário. Segundo a mesma Lei, havendo a digitalização dos autos e o processamento exclusivo por meio digital, a realização dos atos será admitida mediante o uso da assinatura eletrônica. 224 STEPHEM W. MAYSON, Law Firm Strategy: Competitive Advantage and Valuantion, Oxfor University Press, 1ª Ed., 2007, p. 5/6. 221

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Uma das principais variações qualitativas se refere justamente à adequação à matéria massificada, um contato cada vez mais estreito com a repetição do tema o que resulta em suma em um melhor desempenho no desenvolvimento de teses pelos corpos técnicos - advogados de primeira ordem - desses escritórios. A superioridade nesses casos é natural em decorrência da rotineira relação dos advogados com as dificuldades inerentes aos clientes e à expertise acumulada pela constante alimentação do sistema com dados de desempenho, custos, entendimento jurisprudencial consolidado ou não, dentre muitos outros fatores. A gestão desse contencioso torna-se assim a peça chave para a manutenção de “resultados positivos” para os interesses dos réus nas relações de consumo.

“…No contencioso de massa, embora as atividades pareçam repetitivas, há atualmente uma enorme confluência de ideias e estratégicas (sic), dignas de grandes campanhas de guerra. Para tanto, é necessário que o escritório esteja a par de tais possibilidades, podendo se antecipar aos anseios do cliente, antes que tal anseio se transforme em frustração…” 225

A formação de dois escalões dentro das grandes bancas de litígio de massa tende a indicar um fenômeno que GALANTER restringia apenas aos advogados dos litigantes eventuais

226

, a origem

sócio-econômica mais baixa e a menor especialização, ou mesmo, a existência de uma verdadeira exploração das atividades dos advogados, por assim dizer, “de piso”, isto é, os operadores que produzem os atos processuais massificados. O volume e o modo de trabalho requerido para a atividade de piso a reprodução de peçasmodelo ou o cumprimento de prazos é substancialmente diferente daqueles naturalmente vinculados a uma atividade intelectual, virtuosa e mais substancial. O resultado é uma equalização de atividades desse escalão com pouca ou quase nenhuma diferença entre os diversos advogados (funcionários). Isso se reflete principalmente na questão dos honorários pagos para esses advogados, que, segundo as notícias publicadas sobre esse ramo 227, giram em torno de metade da remuneração média SOLANO DE CAMARGO, Administração Eficiente e Consumo, São Paulo: Valor Econômico, Caderno Legislação & Tributos, p. E1, publicado em 03/04/2012. 226 Why the haves..., pp. 118. 227 Segundo notícia publicada pela revista Exame, ainda no ano de 2011, as remunerações dos escritórios voltados e esse ramo diferem substancialmente daquelas formas tradicionais: “Grandes escritórios, como Pinheiro Neto ou Machado Meyer, atuam em nichos extremamente rentáveis, como fusões, aberturas de capital ou direito tributário. Assim, podem se dar ao luxo de ter sedes portentosas (o Pinheiro Neto fica no prédio do extinto Banco Santos, em São Paulo) e advogados estrelados que cobram até 1 000 reais pela hora trabalhada. No caso do JBM, essa mamata era inviável. Não existe, no direito empresarial, nada menos glamoroso, nada menos rentável do que o tal contencioso de massa. Cada processo rende aos escritórios uma merreca — cerca de 100 reais, no máximo. Já numa abertura de capital, por exemplo, 225

87

de um advogado em início de carreira na cidade de São Paulo. Por outro lado, a criatividade e a capacidade de gestão são pontos comuns no corpo jurídico dito técnico dentro das bancas da advocacia de massa. Os advogados de primeiro nível tendem a ser selecionados por capacidades que, em acréscimo ao seu alto grau de conhecimento jurídico, chega aos conhecimentos de contabilidade/atuária, economia, gestão de pessoas, otimização de atividades, dentre outras. Esse fato já foi pontuado por GALANTER na distinção técnica inerente aos advogados dos Litigantes Repetitivos, uma atividade que estaria adstrita, como dito, à ideia de expertise 228. Por fim, essa especialização da advocacia e a sucessiva capacidade de gestão tendem a cada vez mais concentrar a atuação das grandes bancas, segundo os últimos dados fornecidos pela pesquisa Análise Advocacia 500 229 os cinco maiores escritórios do Brasil concentram cerca de 1,7 milhão de causas, sendo cerca de 79% (1,343 milhões) relativas a causas da área contenciosa, causas cuja atuação precípua é decorrente dos processos de massa.

4.2. A (mera) satisfação de interesses individuais

Outro efeito que se extrai essa busca individual de satisfação nos “balcões” dos Juizados Especiais é a forma como uma questão de base coletiva tem sido satisfeita pelo modo de tutela individual. Como já apontado, a relação jurídica de consumo provoca inegavelmente danos independentes aos envolvidos, fato que poderia ser inquinado apenas com um devido aprofundamento na questão atinente aos eventos externos que lhe são decorrentes. Eventos e possibilidades de reunião de demandas que, sob a ótica da acidentalidade ou da conveniência, poderiam ser agrupadas. Se é certo que, por um lado, os litigantes repetitivos tendem a aferir suas vantagens em um ambiente muito mais coerente em longo prazo, ou melhor, sob uma perspectiva de efeitos econômicos mais amplos, os litigantes eventuais tem sob seu foco de objetivos a satisfação de interesses mais a curto prazo, restritos em um horizonte mais estreito de eventos.

os advogados podem faturar meio milhão de reais... Existem nos arredores de Bauru oito faculdades de direito, e os advogados que saem delas aos borbotões se dispõem a trabalhar por 1 500 reais mensais. Um iniciante em São Paulo custaria quase o dobro. Longe dos grandes centros urbanos, os funcionários costumam almoçar em casa — o que, segundo os sócios, melhora a produtividade. ‘Nosso negócio não tem gordura para queimar’, diz Bueno.” acessado em 17/09/2014. 228 Why the haves..., pp. 119. 229 Dados obtidos no site , acessado em 05/09/2014.

88

GALANTER 230, também, pontuou esse aspecto ao ponderar que os litigantes eventuais, de um modo geral, não estão muito atrelados aos resultados decorrentes de suas pretensões individuais. Em suas palavras, a lógica para o litigante eventual é a de maximizar seu ganho em seu caso específico, sendo pouco provável a busca pela afirmação de determinados pontos que para ele parecerão periféricos se sua pretensão em juízo estiver satisfeita. Nesse caso, podemos imaginar o pouco interesse de um litigante eventual recorrer de uma decisão que seja juridicamente anulável, se sua pretensão reparatória lhe parecer suficientemente tratada. Quer se dizer assim que a perspectiva do litigante eventual é no plano do meramente tangível, a suficiente satisfação de interesses individuais. Use-se como exemplo a indenização decorrente de danos dentro de uma relação de consumo. Em semelhante caso, pouco se dá ao autor individual se o dano foi perpetrado em diversos casos similares, desde que, aquele que lhe foi causado seja devidamente indenizado. Entretanto, requer cuidado em se tratar da satisfação de interesses individuais com o termo “mero” que, à primeira vista, poderia parecer de cunho fortemente pejorativo. O uso desse termo vem no sentido de revelar a natureza parcial como que é visto o litígio, e na maioria das vezes tutelado o direito, por parte do litigante eventual nas suas idas esporádicas ao foro. Para quem a satisfação de interesses é no mais das vezes voltada à natureza individual e aos valores privados ali envolvidos. A alegação de que o aumento da satisfação de danos decorrentes da ruptura dos mecanismos de filtro indenizatório levaria à chamada “indústria do dano moral” 231 tem, de certo modo, origem nessa alegada tendência do litigante eventual em buscar sua satisfação a despeito do sistema como um todo. Esse ponto merece bastante atenção já que revela traços muito relevantes da cultura e do senso de justiça. Como já insistentemente colocado, o panorama do litígio pelo ponto de vista do litigante eventual é parcial e carente de informações – assimetria informacional – a respeito do conjunto de demandas muitas vezes idênticas à sua

232

. Entretanto, uma das circunstâncias que notadamente

podem compelir a busca pela satisfação de interesses individuais no foro é de fato a satisfação de um senso particular de justiça, “um fazer justiça” propriamente dito.

Why the haves..., p. 101 Quanto e esse ponto remetemos mais uma vez ao trabalho de ANDERSON SCHREIBER, Novos Paradigmas da Responsabilidade civil – Da Erosão dos Filtros de Reparação à Diluição dos Danos, 2ª ed., São Paulo: Atlas, 2009, e ao interessante artigo publicado por ARTHUR ROLLO, A Indústria Do Desrespeito Ao Consumidor, disponível em , acesso em 15/07/2014. 232 SÉRGIO CRUZ ARENHART, A Tutela Coletiva de Interesses Individuais: Para além da Proteção de Interesses Individuais homogêneos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, pp. 61/62. 230 231

89

Resguardando

a

evolução

histórica

representada

pelo

reconhecimento

da

possibilidade/interesse 233 na busca por um sistema oficial de satisfação de pretensões jurídicas, é interessante perceber o quão variado pode ser o senso de satisfação na busca por essa justiça. Tal aspecto pode ser esclarecido em termos do direito penal – cuja legitimidade ativa, na imensa maioria dos casos, é sabiamente pública – dada a variedade de opiniões quanto a pena que faz jus um dado caso concreto, indo da aplicação de medidas de caráter sócio educativo à pena de morte, isso em uma gama muito variada de opiniões. Nesse sentido, a utilização ampla dos Juizados pelas pessoas físicas, o foco da atuação do órgão, tem sido satisfatoriamente demonstrada pelas pesquisas empíricas já realizadas desde o período anterior à própria criação 234, passando pelas pesquisas mais atuais, tais como as empreendidas por LÉSLIE SHERIDA FERRAZ 235 que compara a busca pelos Juizados entre Pessoas Físicas, Condomínios e Micro Empresas 236, conforme a tabela abaixo: Pessoa Física

Micro Empresa

Condomínio

Estado Nº

%



%



%

Amapá

502

77,8

143

22,2

0

0,0

Bahia

723

87,7

40

4,9

61

7,4

Ceará

583

91,5

14

2,2

40

6,3

Goiás

592

93,7

37

5,8

3

0,5

Minas Gerais

593

91,1

58

8,9

0

0,0

Pará

532

95,0

8

1,4

20

3,6

Rio de Janeiro

666

98,1

13

1,9

0

0,0

Rio Grande do Sul

612

91,2

45

6,7

14

2,1

São Paulo

637

98,5

10

1,5

0

0,0

BRASIL

5.440

91,5

368

6,2

138

2,3

6

. Dados Extraídos Juizados Especiais Cíveis e acesso à Justiça Qualificada: uma análise empírica, p. 55,

Tratamos aqui da ideia representada pela Possibilidade no sentido da existência de meios de tutela e Interesse no sentido de reconhecimento pelo autor de que a tutela e possível. 234 Quanto a esse ponto remetemos à leitura do artigo produzido por MARIA CECILIA MAC DOWELL DOS SANTOS, Juizados Informais De Conciliação Em São Paulo:Sugestões Para A Pesquisa S6cio-Jurídica, Trabalho apresentado ao XII Encontro Anual da ANPOCS, Aguas de São Pedro-SP: 1988, pp. 235 Juizados Especiais Cíveis e acesso à Justiça Qualificada: uma análise empírica, São Paulo: FDUSP, 2008, p. 55. 236 Como verificado, foi admitida a possibilidade de utilização dos Juizados por Micro e Pequenas Empresas, vide nota 145 supra. 233

90

Essa utilização reflete que os Juizados têm sido reconhecidos como meio idôneo para a satisfação de interesses jurídicos individuais, com sua procura dispersa pelos vários graus de escolaridade, formação e renda. Um forte contraponto às dificuldades esperadas em decorrências do aumento do número de demandas. A pesquisa conduzida pelo CEBEPEJ chegou a índices da ordem de 81% 237 dos usuários que apontaram o atendimento como bom, muito bom ou ótimo nos Juizados pesquisados. Ou seja, para as pretensões dos usuários, os Juizados têm sido uma alternativa boa e viável para suas pretensões. Nesse sentido, as pesquisas empreendidas por FABIANA LUCI

DE

OLIVEIRA e RICARDO

MORISHITA 238 vêm demonstrar que as impressões a respeito dos Juizados são em sua grande maioria relativas à resolução definitiva das pretensões e a capacidade que este órgão teria de prover a satisfação de índole pecuniária dos danos morais nas relações de consumo. Compondo, assim, um segundo passo da utilização dos meios administrativos para a resolução de conflitos de consumo como, por exemplo, o PROCON 239. A constatação, todavia, parece-nos descortinar uma questão diversa a respeito do estímulo à busca individual do Judiciário, como o projeto do Acesso à Justiça intentou fazer. Uma questão consubstanciada na satisfação de interesses jurídicos em vista da limitação da capacidade coercitiva de órgãos com os administrativos no caso das relações de consumo. O procedimento administrativo envolvido no caso é o previsto pelo Decreto nº 2187/97 que determina a formas de atuação dos órgãos de defesa e proteção dos consumidores, componentes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, espalhados pelo Brasil. Todavia o que se percebe é a notória incapacidade, decorrente das atribuições e competências limitadas desses órgãos, para a satisfação de uma tutela reparatória. Ainda que hoje esteja em pauta a ampliação do caráter coercitivo dos órgãos administrativos de defesa dos consumidores 240, o mais comum nas autuações, é a imposição de multas decorrentes da coleção de reclamações fundamentadas realizadas individualmente pelos consumidores.

LÉLIE SHERIDA FERRAZ, Juizados Especiais Cíveis e acesso à Justiça Qualificada: uma análise empírica, São Paulo: FDUSP, 2008, pp. 56/59. 238 O Comportamento da Nova Classe Média Brasileira as Relações Consumo in Direito do Consumidor: os 22 anos de vigência do CDC, pp. 47. 239 Vide nota 43 supra. 240 Veja-se, por exemplo, Projeto de Lei nº 5196/2013 que, em sua atual redação, insere diversos artigos nas Leis 8.078/90 e 9.099/95, e que transforma a autoridade administrativa em verdadeira antessala dos Juizados Especiais, constituindo em títulos executivos extrajudiciais os acordos homologados pelos PROCONs e permitindo que as audiências realizadas nos PROCONS sejam consideradas pelos magistrados dos Juizados Especiais como verdadeiras audiências prévias de conciliação. A versão mais atualizada do Projeto de Lei encontra-se atualmente aguardando a apreciação conclusiva das comissões de Constituição de Justiça e de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados, disp. em , acessado em 24/08/2014. 237

91

Diante desse aspecto, é natural que o caminho para a reparação do consumidor que se vê lesado em matéria de responsabilidade civil, ou outra para qual a ação dos órgãos administrativos seja insuficiente, tenha como única via a utilização dos meios jurisdicionais de tutela. Assim é possível a construção da mais variada gama de interesses inquinados nos balcões dos JECs, o quais vão desde: o autor/consumidor qualificado como “mal intencionado", ou seja, aquele que busca na justiça a possibilidade lucrativa; até a hipótese do autor/consumidor “cego pela busca da justiça”, no caso daquele que ainda que satisfeita sua pretensão busca a todo modo trazer “problemas” à empresa fornecedora. Essas possibilidades em tese tendem a reforçar a afirmação de que o Acesso à Justiça teria o condão de promover uma cultura judicialista 241. Alguns grupos inclusive chegaram a buscar nos próprios Juizados uma das origens dessa cultura que em tese estaria desenvolvendo no Brasil um “excesso de acesso à justiça” 242. Segundo MARCO MONDIANI a proposta que tinha os Juizados como um foro voltado ao estímulo do litígio poderia ser vista do seguinte modo:

“Em primeiro lugar, o consumidor estaria usando a Justiça de maneira indevida, abarrotando a própria estrutura do judiciário com ações voltadas para o ganho de um valor excedente. A imagem do cidadão que consome aqui construída é repleta de características negativas, repetidas de forma extenuante. Ao final, ele não seria um “anjo”, pois agiria de “má-fé”, procurando o Juizado diretamente, sem antes buscar um acordo, justamente com vistas ao ganho de algum benefício financeiro extra. A procura imediata da Justiça nada mais seria que uma “estratégia racional do consumidor”, ou, de maneira menos sofisticada, uma “armação do cliente” que vê nos Tome-se, por exemplo, da ideia da judicialização exacerbada o conteúdo de discurso proferrido Min. Gilmar Mendes no STF em abril de 2008: “De fato, são visíveis os acertos representados por medidas como a criação de juizados especiais e a implementação das súmulas vinculantes e, mais recentemente, do instituto da repercussão geral, que hoje representa a grande possibilidade de descompressão no ritmo de atuação do Supremo. Todo o Judiciário está desafiado a contribuir para esse esforço de racionalização, sem que para isso se efetive, necessariamente, a expansão das estruturas existentes. Assim, a ênfase há de ser colocada na otimização dos meios disponíveis. A busca incessante pela melhoria da gestão administrativa, com a diminuição de custos e a maximização dos recursos, resultará seguramente no aperfeiçoamento do serviço público de prestação da justiça. Se, por um lado, a multiplicação de processos em escala exponencial corrobora o forte protagonismo do sistema judicial, ou seja, a ampla aceitação, pelos brasileiros, do primado do Direito, da jurisdição como via institucional de resolução de conflitos, por outro é grave indício de que há necessidade de se debelar a cultura “judicialista” que se estabeleceu fortemente no País, segundo a qual todas as questões precisam passar pelo crivo judicial para serem resolvidas, o que faz o Judiciário ser chamado a atuar na solução de questões cotidianas, mais afetas às atribuições de competência de setores administrativos. Somente dessa maneira o Judiciário deixará de ser o único escoadouro - como se estivesse entre as próprias funções a de atuar como provedor social -, dos reclamos mais iminentes da cidadania, das demandas impulsionadas pelo direito de resistência de comunidades carentes.” (grifo nosso), disponível em < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/posseGM.pdf> acessado em 10/08/2014. 242 Nesse sentido, veja-se ADRIANA GOULART DE SENA ORSINI e LUIZA BERLINI DORNAS RIBEIRO, A Litigância Habitual nos Juizados Especiais em Telecomunicações: A Questão do “Excesso de Acesso à Justiça, in Revista do Tribunal Regional do Trabalho 3ª Região, Belo Horizonte, v. 55, n. 85, p. 21-46, jan./jun. 2012, disponível em , acessado em 15/08/2014. 241

92

JEC’s uma fonte de renda fácil, verdadeira poupança dos autores das ações. Não se satisfazendo mais apenas com a resolução do seu problema específico, o consumidor teria construído a famosa “indústria do dano moral”. Em suma, com a facilidade do acesso à Justiça, o povo teria deixado de procurar os serviços de atendimento ao consumidor das empresas para ir diretamente ao Juizado, construindo sempre novos artifícios para lucrar.” 243 As pesquisas realizadas por MARCO MONDIANI indicam que a figura do “consumidor mal intencionado”, aqui entendido como aquele que deseja apenas ver-se beneficiado pelo ingresso no judiciário, não seja de fato a mais comum nos Juizados. Todavia, a hipótese é que o procedimento estimula esse tipo de conduta, pois a satisfação individual sem a respectiva visão geral de, uma eventual lesão coletiva, leva com que o autor busque pelas vias individuais a tutela. Ademais o próprio estabelecimento dos Juizados como meio ordinário de satisfação aos danos sofridos pelo consumidor, estimula sua busca, em decorrência da renitente formação de opinião originada dos mais diversos meios, sejam eles a mídia ou a atividade de advogados especializados 244. Assim nada mais coerente que o consumidor dirija-se diretamente aos balcões dos JECs mesmo sem buscar satisfação em mecanismos administrativos tais como o PROCON e demais órgãos. A utilização de modernos meios comunicação, também, corrobora com a busca pelos Juizados de forma ordinária (ou única) para a satisfação de interesses individuais nas relações de consumo. A esse respeito, temos, por exemplo, mecanismos como o site “Processe Aqui” 245. Esse portal virtual funciona em consonância com a vocação da tutela e o procedimento adotado pelos Juizados Especiais. Sua principal função é fornecer um meio para que o consumidor lesado redija de forma prática, simples e gratuita petições iniciais a serem distribuídas nos Juizados Especiais Cíveis em busca da sua tutela de índole consumerista. Em linguagem direta o site basicamente oferece o serviço simples denominado da seguinte forma: “Consumidor, você foi lesado? Gere sua petição gratuita em 4 passos”. O site, ainda, identifica sua vocação ao fazer alusão à ideia de que “disponibiliza petições gratuitas para todo o cidadão brasileiro poder fazer valer os seus direitos quanto dor lesado em uma relação de consumo”. Assim o consumidor vê facilitado o caminho ao seu “direito”, mediante a

O Acesso À Justiça Nos Juizados Especiais Cíveis - Uma Análise Sociológica, originalmente in Sociedade e Acesso à Justiça, Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2005, também disponível em p. 8. 244 As influências externas para o caminho do litígio, principalmente os de consumo, podem ser verificadas no já citado LUCIANA GROSS CUNHA e DANIELA MONTEIRO GABBAY, Litigiosidade Morosidade e Litigância Repetitiva no Judiciário: uma análise empírica, São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 37/38 e 114/127. 245 243

93

confecção de petições e o protocolo nos JECs, sem a necessidade de advogados até o valor máximo de 20 salários mínimos 246. A natureza “pedagógica” do site “Processe Aqui” fica clara na medida que suas diversas postagens tratam da possibilidade ou, ainda, da probabilidade de sucesso do consumidor nos mais diversos temas de consumo. Para verificar a proposta do site, o “passo-a-passo” para gerar a petição foi testado durante a confecção desse trabalho revelando uma variedade surpreendente da temática, vinculada à área de atuação do fornecedor/réu, ao dano sofrido pelo consumidor, e aos fatos envolvidos com o evento danoso. A forma auto-explicativa do site permite com que realmente, após 4 passos, sua petição seja automaticamente confeccionada possuindo, ainda, elementos doutrinários e jurisprudênciais atinentes à cada caso. A petição confeccionada pelo site é encaminhada para o e-mail do usuário com as instruções necessárias para o ajuizamento da ação nos Juizados Especiais. Outro site que se alinha com a mesma proposta é o “Youlaw” 247, cujo foco segundo os próprios termos de uso

248

são o acesso à justiça especializada em relações de consumo e o estímulo à

conciliação. A distinção que surpreendeu é o fato de que a confecção da peça pelo “Youlaw” é menos automatizada, mas integra ao pedido inicial um valor relativo à proposta de conciliação que eventualmente seria aceita pelo usuário. A controvérsia em torno destes mecanismos, com se espera, é ampla, principalmente em decorrência da posição contrária esboçada pela OAB, que aponta forte mercantilização da atividade da advocacia e um estímulo pelos administradores do site ao exercício irregular da profissão.

Esses pontos são expressamente destacados nos Termos de Uso do site, “DOS SERVIÇOS OFERECIDOS - O Processe Aqui é uma ferramenta eletrônica Gratuita de Geração de Petição para todo cidadão e consumidor brasileiro, maior de 18 anos e capaz civilmente, tem como fundamento legal o art. 9º da Lei nº. 9.099/95 possibilita a qualquer pessoa civilmente capaz entrar na justiça, através do Juizado Especial Cível, sem advogado, desde que o valor da causa não ultrapasse 20 salários mínimos. Já no Juizado Especial Federal o valor é de 40 salários mínimos.” disp. em , acessado em 14/07/2014. 247 < http://www.youlaw.com.br/> 248 Segundo a cláusula 1.1 dos Termos de Uso do site “O sistema virtual de acesso à justiça especializada em relações de consumo e de estímulo à conciliação no âmbito das relações consumeristas denominado “YouLaw” ou “Os Seus Direitos” - é um sistema eletrônico que permitirá aos seus usuários, diretamente ou por intermédio de seus procuradores, ingressarem com ações judicias cuja causa de pedir derive de relações de consumo. Auxiliará seus usuários a consagrem o direito constitucional de acesso à justiça, os orientando a preparar petições iniciais em causas de até 20 salários mínimos e os auxiliando a acessar o Poder Judiciário de sua localidade. Por fim, objetivará fomentar a conciliação online, mostrando a população e, principalmente, aos fornecedores de produtos e serviços que conciliar é legal e fundamental para a preservação e desenvolvimento das relações de consumo. O YouLaw informará aos consumidores sobre empresas fornecedoras de produtos e serviços que se destacam no cenário econômico por respeitarem padrões éticos de mercado.” 246

94

Todavia, a revista eletrônica Conjur, em notícia recente 249 pontuou que o proprietário do site “Processe Aqui”, o advogado Giovani dos Santos, a despeito das críticas da OAB, chegou a inscrever seu site no XI Prêmio Inovare, notório por premiar as soluções jurídicas inovadoras no Brasil. A mesma notícia revela o volume de buscas e de petições geradas pela plataforma em seu primeiro ano de existência. Segundo a Conjur, o site “Processe Aqui”, até o momento, teria gerado em torno de 14 mil petições, com 44 mil pessoas cadastradas e 1 milhão de visualizações. Surpreende, ainda, os serviços que o proprietário do site pretende implementar nos próximos anos, segundo a Conjur:

“…O Processe Aqui estuda ainda a implementação de novos serviços. O principal é um serviço pago de alerta que avise à empresa quando alguém gerar uma petição contra ela, para que a companhia possa, através do próprio site, buscar um acordo com aquele consumidor…”

Quanto ao site “Youlaw” a controvérsia não é menor, chegando de fato às vias jurisdicionais, com uma ação movida pela Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Rio de Janeiro, no ano de 2012 250. A ação de obrigação de fazer 251 movida pela OAB-RJ visava impedir com que o site comercializasse o que ele denominava de “pacote jurídico” composto por diversos serviços ao preço de R$ 150,00. Segundo a entidade a conduta seria claramente ofensiva à regular prestação de serviços advocatícios, incluída aí clara mercantilização da profissão. Em primeira instância foi julgado improcedente o pedido da OAB-RJ, sob o fundamento de que a imposição de limites aos serviços oferecidos pelo “Youlaw” seria um atentado contra o “direito de acesso à justiça”. Entretanto, a entidade viu seu apelo receber provimento pela 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da Segunda Região, cujo acórdão recebeu a seguinte ementa, com destaque ao tópico 4. do voto:

APELAÇÃO. ADMINISTRATIVO. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. CAPTAÇÃO DE CLIENTELA. ESTATUTO DA ADVOCACIA. CÓDIGO DE ÉTICA E DISCIPLINA DA OAB. SÍTIO ELETRÔNICO QUE VEICULA SERVIÇOS ADVOCATÍCIOS. VEDAÇÃO. APELAÇÃO PROVIDA.

A notícia, veiculada em 29/09/2014, por decorrência do primeiro ano de funcionamento do site Processe Aqui está disponível em , acessado em 01/10/2014. 250 Uma descrição do referido processo pode ser obtida em , acessado em 15/08/2014. 251 Ação distribuída à 17ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro sob o nº 0001142-50.2012.4.02.5101. 249

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(…) 4. Não se pode entender que a coibição de condutas, como a que se revelam no presente caso, conotem obstáculo de acesso ao Judiciário, como afirmado na sentença monocrática. Ao revés, a acessibilidade à Justiça não pode prescindir de profissional devidamente habilitado para a postulação de direitos, ressalvada, evidentemente, as causa de menor complexidade e de baixo valor econômico, que prescidem da intermediação de advogado, como ocorre nas ações de competência dos Juizados Especiais.

O que se percebe de semelhantes exemplos é a clara natureza de meio à resolução individual e massificada de controvérsias a que se vocacionou o sistema dos Juizados Especiais Cíveis. Verificase que há um verdadeiro estímulo à forma “atomizada” de resolução de conflitos, incrementado pelo uso de mecanismos como os acima expostos. Notório ainda que, conforme se extraiu dos testes realizados nas plataformas online de confecção de petições 252, os temas mais recorrentes e os modelos oferecidos, são justamente aqueles que possuiriam uma verdadeira ligação de base originária comum, questões atinentes a condutas danosas e repetitivas dos fornecedores, em resumo, direitos individuais homogêneos. Uma modelagem que revela a temática com que os autores/consumidores buscam a tutela jurídica, os quais, na maioria dos casos, não detêm capacidade técnica para a aferição de que sua demanda é na base de natureza coletiva. O resultado é o simples ajuizamento da pretensão no mecanismo de acesso facilitado pelos Juizados Especiais. Por óbvio, se existe uma verdadeira “Cultura Judicialista” no Brasil, ela é decorrente de uma ponderação de custo/benefício que lança o autor à via que para ele é a mais eficaz e que trará a satisfação de suas pretensões. A perspectiva de uma ampla “má intenção” do autor/consumidor merece assim ser equilibrada, pois, ao que parece, o próprio sistema induz a um exame puramente quantitativo da demanda. Isso, ainda, a despeito de se comprovar de fato a existência da dita “indústria do dano” qualquer que seja a modalidade desta em nosso país 253. Quantitativa, aliás, é a própria análise feita pelos Juizados a respeito da medida satisfatória da indenização. A aplicação da disciplina da responsabilidade civil leva ao ápice os critérios econômicos Foram extraídas no site “Processe Aqui” petições relativas a três dos segmentos expostos pelo site, justamente aqueles apontados como os mais demandados nas ações movidas nos Juizados Especiais segundo o relatório “Empresas Mais Acionadas”divulgado pelo TJRJ (vide nota 179 supra): Telecomunicações, Bancário e Varejo. 253 Pelo contrário, estudos empíricos realizados recentemente têm demonstrado até mesmo uma perspectiva diversa, apontando para a inadequação dos valores indenizatórios arbitrados pelos tribunais, nesse sentido veja-se: FLAVIA PORTELLA PÜSCHEL, A quantificação do Dano Moral no Brasil: Justiça, segurança e eficiência, São Paulo: Direito GV, 2011, disp. em acessado em 19/09/2014. 252

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que norteiam a decisão do magistrado, a capacidade de reparação, o caráter pedagógico do valor arbitrado, e sendo a aplicabilidade deste último muito questionável no plano doutrinário e jurisprudencial. Uma análise econométrica que pode ser resumida em possibilidade de reparação x custos para acesso ao sistema. Uma análise que o polo ativo faz, logicamente, pelo seu único ponto de vista: o individual.

4.3. Os Custos e as Perdas nos Juizados

É intuitivo que os benefícios usufruídos pelos litigantes repetitivos, dentre eles a análise econômica dos litígios de massa, permitiriam em hipótese a alocação de recursos a fim de minorar as perdas dentro do ambiente procedimental dos Juizados. Essa possibilidade de alocação de recursos para a redução de perdas não é, contudo, uma matéria nova ou mesmo restrita aos Juizados Especiais, sendo a análise atuarial da demanda, ou seja, o exame da probabilidade de perda e a alocação de recursos para a diminuição das perdas, passível em todos os procedimentos jurisdicionais254. Estudos recentes têm indicado que a possiblidade de gestão de demandas tende a refletir inclusive nos resultados contábeis de uma empresa, sendo possível a utilização de dados como a expectativa de perda para a gestão de resultados contábeis reduzindo o disclousure em face dos investidores255. Nesse mesmo sentido, o contingenciamento contábil, a partir do momento em que visualiza o grande passivo judicial representado pelas demandas de consumo, se revela como um mecanismo útil de gestão256. A característica massificada das demandas, a quase certeza da sucumbência e os custos

Destacam-se nesse quesito as empresas de seguros, cuja análise atuarial prévia permite o grau de aferição econômica da viabilidade de se submeter à álea. Os domínios sobre a gestão dos riscos do negócio, como pontuado por TÚLIO ASCARELLI, Economia de Massa..., crescem à medida que cresce o mercado ou o universo de envolvidos. 255 Nesse sentido remetemos ao trabalho de ANTÔNIO DE CÍSTOLO RIBEIRO, Provisões, Contingências e Normas OCntábeis: Um Estudo de Gerenciamento de Resultados com Contencioso Legal no Brasil, dissertação de Mestrado, Ribeirão Preto: FEARP – USP, 2012, onde o autor analisa a introdução de normas contábeis, em especial, a CPC 25 para a contabilização de provisões de ativos e passivos contingentes. 256 No ano de 2009, a revista Consultor Jurídico trouxe uma interessante notícia sobre o tema. Tratando a respeito do uso de mecanismos contábeis e informatizados de gestão de passivos contingenciais, a revista apresentou dados fornecidos por alguns escritórios e empresas demonstram a capacidade de diminuição na expectativa de perdas em decorrência da análise apurada dos dados originários dos processos em massa. A notícia está disponível em: , acessado em 10/09/2014. 254

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reduzidos relativos aos JECs dão aos mecanismos econométricos e contábeis um elemento inexistente na maioria das contingências, ou seja, perdas aferíveis baseadas em um critério de risco. Esse elemento seria a redução extrema de custos e a expectativa máxima de perdas envolvidas nas causas dos Juizados, por decorrências dos próprios princípios e critérios norteadores de seu procedimento. A certeza do fornecedor/réu de que nunca será processado individualmente pela totalidade dos consumidores lesados se complementa à possiblidade de uma aferição clara da média de indenizações, dado o conhecimento minucioso da massa de litígios 257. O resultado, assim como do lado do autor, é um raciocínio puramente econômico em termos de “qual será a despesa com a indenização em face dos custos que podem ser repassados ao consumidor”. Nesse sentido, MARCO MONDIANI, faz alusão ao exposto:

“…Numa relação custo/benefício, é bastante interessante a uma determinada mentalidade empresarial afrontar o consumidor de forma coletiva, quando se tem ciência de que a sua punição, nas situações em que isto ocorre, se dá de maneira individual fragmentada…” 258

A fragmentação das demandas e o limite pecuniário à tutela pecuniária nos Juizados impede mesmo a hipótese de que seja utilizada a indenização de natureza punitiva. Isso, pois, respeitado o teto pecuniário o limite global dessas indenizações seria, ainda que absurdamente, o de 40 salários mínimos, multiplicados pela totalidade de ações movidas. O contingenciamento contábil e as modernas ferramentas de gestão em massa de processos detidas pelos grandes escritórios especializados contribuem muito para que essa gestão seja a mais eficiente possível. Em contrapartida o “custo extra” representado pela presença nos Juizados é de valor substancialmente reduzido - quando não vinculado unicamente aos míseros R$ 100,00 gastos em honorários - compondo um grande estímulo para o Repeat Player litigar dentro deste procedimento. Ademais, a indução ao trato das demandas de consumo nos Juizados tende a promover um efeito em cascata, já que as empresas que estão sujeitas uma demanda em trâmite pelo procedimento ordinário sofrem com os custos e incertezas inerentes a este foro, enquanto as empresas que se

Esse conhecimento minucioso decorre da própria posição do Repeat Player, que se relaciona com o aparato organizacional dos Juizados rotineiramente. Segundo GALANTER essa experiência em favor dos Litigantes Repetitivos atenta contra a neutralidade processual, como já pontuado no tópico 4.1., em especial, essa capacidade é detida pelos representantes do Litigantes Repetitivos, os advogados. GALANTER traz ainda a experiência narrada por HERBERT JACOB a respeito do “creditors colonization” um dos efeitos mais marcantes da autorização que as Small Claim Courts concederam aos credores nas cobranças de dívidas, Why the Haves..., p. 99. 258 O Acesso a Justiça nos…, p. 21. 257

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defendem nos JECs, de alguma forma “economizam”. Por óbvio que o fornecedor não precisa chegar ao extremo de considerar a circunstância de contingenciar valores correspondentes ao cenário de teto pecuniário em todas as ações movidas nos Juizados. Até mesmo porque esse grau de conservadorismo no contingenciamento de perdas não é admissível nem mesmo sob um risco extremo ligado a massa de litígios. Um risco que, por ser pautado em critérios objetivos decorrentes do acoplamento entre tutela de consumo e juizados especiais, possui uma natureza plenamente quantificável. Entretanto, a questão pode ser curiosamente representada em termos aproximados já que revela uma grande capacidade de alocação de recursos para a redução dos efeitos do litígio. Nesse sentido, o pensamento exposto por GUIDO CALABRESI 259 representa em boa medida o caminho para a aferição dos custos inerentes aos danos eventualmente causados. Nesse sentido, LÉSLIE SHÉRIDA FERRAZ

260

revela que, dentro de uma amostra de 7.000

processos movidos contra instituições bancárias no Juizado Especial Central de São Paulo, uma das formas de se explicar semelhante fenômeno é a possibilidade de um cálculo quase primário pela instituição financeira, já que ela no procedimento dos JECs:

“…paga 1% de juros ao mês e empresta esse mesmo dinheiro a 10%. Ele inclusive fez caixa em cima do Judiciário e usa a morosidade perversamente a seu favor…” 261

A possibilidade de que o custo relativo aos riscos contingenciais nas demandas dos Juizados seja, assim, integrado aos custos de operação do grande litigante é proporcional à facilidade com que esses custos conseguem ser aferidos. Haveria assim a hipótese de que as ações nos JECs “compensem mais” pelo fato de que elas sejam compensáveis de uma forma mais adequada e menos onerosa do que as ações na Justiça comum. O procedimento dos JECs ganha assim um equilíbrio com a eventualidade da reparação de danos nas relações de consumo. Tomemos, por exemplo, o sistema de responsabilidade civil objetiva, que ao alocar os custos indenizatórios ao fornecedor deveria em tese estimular a precaução. Tal ponto é esclarecido por

Some Thoughts on Risk Distributions and the Law of Torts, pp. 499/505. LÉSLIE SHIEAMENTE ESS, Sucesso dos Juizados Especiais levou a seu desvirtuamento, diz pesquisadora, entrevista disponível em: , acessado em 12/09/2014. 261 Idem. 259 260

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FERNANDO MINEGUIN e MAURÍCIO BUGARIN 262 com base nos trabalhos de COOTER e ULEN:

“…Os autores explicam que, na hipótese de um mercado com produtos diferentes e probabilidades diferentes de gerar danos, os consumidores perfeitamente informados, se não houver responsabilização por parte do produtor, escolherão o produto mais eficiente. No entanto, se os compradores não possuírem todas as informações necessárias quanto à qualidade do produto e os riscos de acidente envolvidos, correm o risco de balizar sua decisão apenas pelo preço da mercadoria, que não reflete seu custo social, e comprar bens com alta probabilidade de gerar acidentes. Mas, se houver responsabilização objetiva, mesmo no caso de haver informação assimétrica, o que é o comum no mercado consumidor, o preço dos produtos incorporará o custo social deles e, assim, o consumidor fará uma escolha eficiente…”

A probabilidade de um evento ligado a uma relação de consumo que resultara em uma necessária indenização, segundo FERNANDO MINEGUIN e MAURÍCIO BUGARIN 263, decorre de uma função que tem como fator a prevenção necessária para que o dano seja evitado. O prejuízo de ordem moral ou material, pressupostamente indenizável, deve necessariamente guardar relação com os custos para que os danos sejam evitados, ou seja, para que haja a prevenção. Por outro lado o pagamento de uma eventual indenização deve guardar relação com custos do dever de indenizar e com os limites indenizatórios. A partir do momento em que a repetitividade massificada rompe com a ideia de que a indenização é um custo que exorbita à atividade do fornecedor, a ida do Repeat Player ao foro é alocada como custo de operação e não como um custo que deve ser evitado. Em consequência, os valores depreendidos com a indenização são necessariamente acrescidos dos custos para o cumprimento do devido processo legal que culminaria com a legalidade/legitimidade do dano assim arbitrado. Os custos dos Litigantes Repetitivos dentro dos Juizados Especiais são reduzidos na proporção do relacionamento cotidiano com o foro, vantagem que se acrescenta às já citadas: economia de escala, a realização de risco da demanda na maior amostragem de casos, e o teste de estratégias. Todos redutores dos gastos com eventuais indenizações e ampliadores das distinções entre “os que têm” e “os que não têm” 264.

Um Modelo Econômico para a Responsabilidade Civil na Defesa do Consumidor in Economic Analisys Law Review, V. 3, nº 2, Jul-Dez, 2012, p. 195. 263 Um Modelo Econômico para..., p. 193. 264 Why the Haves..., pp. 98/101 262

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Como já exposto, estudos empíricos têm demonstrado que sequer há uma verdadeira correspondência entre a quantificação das indenizações dentro do sistema jurídico brasileiro e os custos sociais causados pelas condutas dos envolvidos 265, a negação do dano como um meio de enriquecimento. Ao que parece os custos para a coletividade de consumidores – alheios pela assimetria informacional e pela perspectiva individual do litígio - não considera a somatória dos custos com as despesas para a satisfação de eventuais indenizações individuais ou, sequer, os custos para saneamento de eventuais condutas causadoras de dano. Os quais poderiam ser descritos como os gastos relativos aos danos e os gastos relativos à precaução. Por consequência o sistema simplificado e pouco oneroso dos Juizados parece tirar os custos da linha de produção ou do balcão da fornecedora e colocar os custos nos balcões do judiciário e nas linhas da sentença judicial.

4.4. Gestão processual nos Juizados

O volume representado pela litigiosidade massificada na maior parte dos casos traz uma série de dificuldades para a satisfação dos princípios norteadores dos Juizados Especiais em seu escopo de acesso à justiça facilitado pela celeridade e simplicidade do sistema. É natural que tal circunstância decorra da própria estrutura simplificada dos Juizados Especiais, que, a despeito de estar dimensionada e ter em suas bases históricas outra ordem de interesses 266, recebe um enorme volume de ações. Segundo RICARDO HERMANN 267 a distribuição de centenas, às vezes milhares de petições iniciais, relativas na maior parte dos casos a demandas de consumo, comprometem a estrutura desses órgãos. Para LÉSLIE SHERIDA FERRAZ 268, a falta de uma adequada averiguação das demandas que são propostas nos Juizados Especiais, ou melhor, uma eventual distorção em sua função, pode comprometer a sua capacidade de processamento. O que refletiria na referida lentidão e, se superado

FLAVIA PORTELLA PÜSCHEL, A quantificação do Dano Moral no Brasil: Justiça, segurança e eficiência, São Paulo: Direito GV, 2011, disp. em acessado em 19/09/2014. 266 Vide tópico 3. 267 O Tratamento Das Demandas De Massa Nos Juizados Especiais Cíveis, Rio de Janeiro: FGV Direito, 2010, disponível em , p. 102. 268 Juizados Especiais Cíveis e acesso à Justiça Qualificada: uma análise empírica, São Paulo: FDUSP, 2008, p. 14. 265

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esse entrave, na incapacidade de prestação jurisdicional adequada. Todos esses efeitos incluiriam a situação atual da prestação jurisdicional nos Juizados dentro do quadro amplo da crise da justiça brasileira 269. Um índice comumente utilizado para indicar o fenômeno da incapacidade de funcionamento pelo excesso de demandas é o que se denominou de “taxa de congestionamento” 270. Todavia, partindo de uma hipótese de “travamento” do sistema, referido índice na realidade tem demonstrado que os Juizados especiais cíveis de todo o país apresentam há cerca de 10 anos uma taxa de congestionamento estável com percentual médio em torno de 50%, conforme se verifica no gráfico abaixo: 90%

14000000

80% Casos novos para Conhecimento (JECs)

12000000

70% 10000000

60% Casos novos para Conhecimento (Justiça 1º Grau) Taxa Percentual de Congestionamento (JECs) Taxa percentual de Congestionamento (Justiça 1º Grau)

50%

8000000

40%

6000000

30%

4000000

20% 2000000

10% 0%

0 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

7

Gráfico construído a partir dos dados dos relatórios Justiça em números do CNJ disponíveis em

A comparação com os dados originário da justiça comum indica que o sistema dos Juizados parece compreender uma lógica muito mais estável de entrada e baixa de processos. Isso todavia, não quer dizer que os Juizados tenham mantido uma relação de equilíbrio ante a Justiça Comum, pelo contrário, os dados indicam que a Justiça Comum tem representado uma paulatina diminuição da razão entre suas demandas e as demandas dos Juizados:

Nesse sentido veja-se MARIA TEREZA SADEK, JudiciTerezMudanças e Reformas, in Revista de Estudos Avançados, da Universidade de São Paulo, v. 18, n. 51 (2004), pp. 79/98, , acessado em 25/09/2014. 270 Segundo o CNJ a taxa de congestionamento é um índice que tenta analisar a efetividade de um determinado tribunal com base na quantidade de processos baixados, dividida pela soma entre processos novos e processos pendentes de julgamento, disp. em < http://www.cnj.jus.br/gestao-e-planejamento/gestao-e-planejamento-dojudiciario/indicadores/486-rodape/gestao-planejamento-e-pesquisa/indicadores/13659-03-taxa-de-congestionamento>, acessado em 19/09/2014. 269

102

60 50 40 30 20 10 0 2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

2013

8

Gráfico obtido a partir da representação percentual do número de processos novos nos Juizados face o número de processos novos na Justiça comum ano a ano, todos os dados foram extraídos dos relatórios Justiça em números do CNJ disponíveis em

Realizando-se um cálculo percentual entre o valor absoluto de demandas de cada um dos sistemas percebe-se que, desde o ano de 2004, o número de novas ações nos JECs tem aumentado em cerca de 1,7% em relação à Justiça Comum, entretanto os Juizados mantiveram a proporção de sua taxa de congestionamento dentro da faixa de 47% a 54%, não variando além desses sete pontos percentuais nos últimos 10 anos. Esses dados tendem a indicar que os Juizados possuem de algum modo a capacidade de gestão processual para absorver um crescimento paulatino e constante de sua procura. A mera expressão pública dessa capacidade de gestão e seus desdobramentos – como, por exemplo, a ideia de uma melhor prestação jurisdicional dentro do quesito tempo – tendem também a servir como elementos internos de estímulo à litigiosidade

271

. Desse modo, o interesse na manutenção de uma gestão

adequada e célere é um indicativo ao público de que a via dos Juizados seria um modelo adequado para satisfação de pretensões jurídicas 272. Um outro destaque que deve ser feito se refere ao fato de que a gestão processual das demandas de massa não é um tema que estaria apenas no horizonte de interesses dos litigantes, partes imparciais da demanda. O interesse pela gestão de um volume como visto crescente de processos é ao seu modo necessário para a manutenção da operacionalidade dos cartórios judiciais. Sendo esse tema tratado

Veja-se LUCIANA GROSS CUNHA e DANIELA MONTEIRO GABBAY, Litigiosidade Morosidade e Litigância Repetitiva no Judiciário: uma análise empírica, São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 37/39 272 Nesse sentido, FABIANA LUCI DE OLIVEIRA e RICARDO MORISHITA, O Comportamento da Nova Classe Média Brasileira as Relações Consumo in Direito do Consumidor: os 22 anos de vigência do CDC, pp. 44/47, em suas pesquisas revelaram que a impressão de lentidão e de má gestão da Justiça é um elemento refratário à busca pela solução jurisdicional. 271

103

pelo viés da gestão processual pública. Ao contrário do que afirma GALANTER 273 parece demasiado amplo admitir que os aparatos institucionais permaneçam hoje como entes passivos na gestão de processos em massa. O que se verifica é de fato a existência de enormes zonas de interesses orbitando em torno de todos os agentes parciais e imparciais envolvidos com o processo. A atuação dos cartórios e Juízes, em especial aqueles dos Juizados – notadamente limitados na capacidade de gestão de grandes contingentes processuais 274 – segue em busca de mecanismos de gestão eficiente, na tentativa de manter estável o ponto de equilíbrio entre o sistema composto pela prestação jurisdicional e busca pela satisfação dos interesses nos balcões erigidos pelo movimento de acesso à justiça. A própria falta de gestão processual é vista por boa parcela dos especialistas como o grande entrave para a administração da justiça 275. Problema o qual o pensamento corrente das políticas públicas de acesso julga estar resolvido com a adoção de medidas como a capacitação de pessoal, aparelhamento cartorial e desenvolvimento de modelos de gestão adequados. Todavia, segundo esclarece PAULO EDUARDO ALVES DA SILVA 276, a proposta de gestão não pode estrar desvinculada da capacidade de distribuição de justiça do processo, sua forma instrumental insistentemente reafirmada. Os procedimentos de fiscalização e as metas originadas das políticas administrativas do CNJ 277 são alguns meios de equalização de um modelo que seja responsivo às repetidas demandas. Entretanto, na ausência de mecanismos de gestão mais eficientes 278, as propostas de tratamento de demandas de massa, visando apenas a redução do tempo entre propositura e julgamento e a busca pela redução do índice de congestionamento, tendem a provocar efeitos mais nítidos na capacidade distributiva de justiça com os escopos de simplicidade, celeridade, baixo custo e eficácia pacificadora individual. A gestão processual eventualmente mal realizada permite o compartilhamento dos objetivos de celeridade e simplicidade entre os litigantes repetitivos, com seus mecanismos de gestão em massa, Why the haves..., p. 119/120 Quanto a esse ponto ver o cerne da pesquisa empreendida por RICARDO TORRES HERMANN, O Tratamento Das Demandas De Massa Nos Juizados Especiais Cíveis, Rio de Janeiro: FGV Direito, 2010, disponível em , onde o autor coloca em xeque justamente a capacidade de gestão de ações massificadas nos Juizados Especiais. 275 Nesse sentido veja-se PAULO EDUARDO ALVES DA SILVA, Gestão de Processos Judiciais, São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 29/31. 276 Gestão de Processos Judiciais, São Paulo: Saraiva, 2010, p. 33. 277 Verifica-se a aqui a importância dos procedimentos administrativos para a equalização da prestação jurisdicional adequada nos Juizados Especiais espalhados pelo país, nesse sentido remetemos novamente aos autos do processo eletrônico nº 0005981-25.2009.2.00.0000 disponível no site do CNJ. 278 Temos que os meios de gestão mais eficientes não podem comprometer a capacidade de sensibilização do poder judici ário para com o benefício experimentado pelos litigantes repetitivos. 273 274

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e o poder público, na tentativa de operabilidade de prestação jurisdicional. Litigantes e gestores que se beneficiam dos mecanismos de tratamento em lote à medida que eles próprios necessitam da resolução em lote das demandas. As decorrências da busca por uma gestão processual adequada com o grande avanço do número de demandas e a matéria a elas relativa refletem, também, na gradual perda do modelo procedimental, nos moldes como imaginados pela proposta original dos Juizados. Isso, pois, a superioridade decorrente da capacidade de gestão econômica das empresas se reflete ainda na “anulação” de mecanismos como a possiblidade de conciliação. Sendo a capacidade de gestão do Repeat Player, por exemplo, refletida na sua administração do massivo ingresso de demandas, deflagradora de uma verdadeira “necessidade da concordância/autorização” para que os processos sejam resolvidos mediante o sistema de acordos judiciais. Acrescente-se o fato de que a eventual sobreposição de interesses na manutenção do acervo cartorial em termos de uma resolução nem célere nem lenta do processo, tende a afetar o vértice mais fraco da relação. Nesse sentido, nada garante que a cadência impressa no procedimento será distribuidora de justiça, principalmente se o exame for pautado apenas por uma lógica de “linha de produção” de decisões judiciais ou de acordos. A controversa utilização de meios alternativos no âmbito dos Juizados tende a refletir esse aspecto. A exemplo desse ponto, estão os diversos modelos de conciliação em lote, anualmente, adotados pelos Juizados Especiais de todo o país como meio de redução do número de demandas em acervo 279. Um ponto de forte incoerência surge ao se garantir o acesso ou a capacidade de processamento de ações que, em massa, deveriam representar crises jurídicas que sequer deveriam estar às portas dos Juizados. Desse modo, parece um tanto equivocado sustentar a necessidade de gestão processual de litígios dimensionada à lesão de direitos em massa. Como era de se esperar diante de uma lógica industrial, que inegavelmente orbita em torno dos Juizados Especiais, a reação do sistema à enxurrada de novas ações parece ter sido no sentido de apenas buscar um equilibro possível entre casos novos x casos baixados. Bem observado pela grande adulteração prática do procedimento no uso de mecanismos, nem sempre eficazes, de concentração

O número expressivo de programas e semanas de acordo revelam claramente a sua natureza voltada à resolução de conflitos consumeristas em escala. Uma breve pesquisa realizada no site do Conselho Nacional de Justiça revelou que mais do que promover uma oportunidade para o acordo, na grande maioria dos casos, essas sessões são organizadas entre o fornecedor e o poder judiciário, revelando o interesse comum na resolução desse conflito pela via do acordo. 279

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de atos e redução do tempo procedimental 280. Outro exemplo claramente vinculado aos efeitos por essa busca de celeridade e gestão suficiente de processos é a utilização dos meios de julgamento em lote, exemplificado aqui pela previsão do artigo 285-A do CPC

281

e amplamente utilizado no paradigmático caso da assinatura básica de

telefonia 282. Mecanismos de contenção/desestímulo à escalada crescente de ações nos juizados se elencam ainda, na ampla utilização da conciliação em lote, tais como os mutirões de conciliação realizados no estado do Rio de Janeiro. Tais mecanismos tenderiam a promover um efeito de racionalização de decisões que tendem a promover um distanciamento ainda maior entre os Repeat Players e os One Shoters. Entretanto, ao passo que é realizada uma verdadeira gestão/contenção de forma a permitir a operacionalização dos Juizados seus aspectos econômicos continuam dentro dos domínios do ponderável do calculável pela ótica o litigante repetitivo. Isso porque economicamente, o funcionamento satisfatório da máquina de julgamento de litígios individuais representa a redução dos custos de indenização envolvidos com a atuação em mercado dos Repeat Players. Essa perspectiva de custos se extende, como dito, aos entornos dos interesses da administração pública. FLÁVIO CITRO VIEIRA DE MELO ressalta que, nos Juizados do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, o custo médio de uma ação gira em torno de “R$ 1.000,00 só recuperado com o pagamento de custas pela parte vencida em caso de recurso sem êxito” 283 valor que aumenta em uma vez e meia por processo movido na Justiça Comum daquele Estado. Acrescente-se a este ponto o dado descrito por FLÁVIO CITRO 284 de que as ações que versam sobre interesses disponíveis e circunscritas ao valor de quarenta salários mínimos na justiça comum são em grande parte (65%) beneficiárias da justiça gratuita. Ou seja, a manutenção do sistema dos Juizados em pleno funcionamento tende a ser de interesse óbvio por parte do próprio administrador à medida que a pacificação individual do litígio pela via dos JECs representa no mínimo a economia Dentre os mecanismos mais comumente utilizados estão a convolação de audiências, a supressão de um exame apurado da matéria fática envolvida com os processos nas relações de consumo, a tolerância quanto a invalidades no procedimento de citação e intimação. 281 Muitas críticas se colocam em torno da utilização do mecanismo de julgamento de improcedência em lote inaugurado pelo artigo 285-A do CPC indico por todos um exemplar de cada corrente: DANIEL MITIDIERO. A multifuncionalidade do direito fundamental ao contraditório e a improcedência liminar (art. 285-A, CPC): resposta à crítica de José Tesheiner, p. 105-112. Revista de Processo, ano 32; nº 144; fev/2007. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. 282 Quanto e esse caso veja-se DANIELA MONTEIRO GABBAY, Ações Coletivas e Contencioso: O Caso da Assinatura Básica de Telefonia Fixa, in CARLOS ALBERTO CARMONA e SIDNEI AMENDOEIRA JUNIOR (org.), Estratégias Processuais na Advocacia Empresarial, 1ª ed. São Paulo: Saraiva, v. 1, pp.125/149. 283 A Turma Recursal como Elemento de Política e de Administração Judiciária para Gestão do Contencioso de Massa in Curso Turmas Recursais…, p. 29, disp. em: acessado em 21/04/2014. 284 Idem, idem. 280

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os cofres do Estado. Notório o interesse secundário do administrador para que as ações sejam encaminhadas aos Juizados Especiais. Sendo mais um forte estímulo para a ampliação do alcance da forma de tutela desempenhada por esse procedimento. Fato que insere a atividade pública como um dos grandes elementos de estímulo, em alguns casos até mesmo direto, para que os usuários da justiça busquem o sistema dos JECs. Ao que parece nesse sistema a área de interesse comum entre os litigantes repetitivos e os gestores públicos é ampla sendo aqui colocados apenas alguns exemplos com a possibilidade o encaminhamento da demanda aos meios de resolução alternativa em lote; o cuidado tomado por parte do sistema jurisdicional na tomada de decisões que possam estimular inesperadamente a propositura de demandas similares; a necessidade de, para se garantir a “função prestadora de justiça individual” se evitar o reconhecimento de um interesse de natureza coletiva oculto.

107

5. Uma alternativa para o sistema

O que se sustenta, portanto, é a estabilização do sistema composto por elementos externos e internos às demandas de consumo movidas nos Juizados Especiais. Tal hipótese tem em vista a capacidade de comunicação entre a superioridade estratégica dos litigantes habituais, a previsibilidade jurídica dentro do foro especial e a possibilidade de minoração econômica dos efeitos decorrentes das perdas experimentadas no sistema de tutela de consumo operado nos Juizados. Toda essa superioridade se vê ainda beneficiada na busca pela gestão processual eficiente dos cartórios judiciais, no sentido de que uma eventual solução para o fenômeno da repetitividade massificada está apenas na melhora administrativa do sistema de justiça. Esse problema parece, ainda, mais sério se considerados os princípios constitucionais de garantia de acesso à justiça (art. 5º, inciso XXXV da Constituição), firmada em seu aspecto formal pelo direito de inafastabilidade jurisdicional ali explícito. Por um outro lado, a tentativa de efetivação material desse direito, posto em prática pelo movimento histórico de acesso à justiça, veio ser concretizado em nosso país por mecanismos que buscaram enfrentar entraves sociais e econômicos através de mecanismos como o próprio sistema jurisdicional dos Juizados Especiais Cíveis. Assim, na eventualidade de existir, pelo cenário acima descrito, uma estabilização no sistema de tutela individual das relações de consumo pelos Juizados, onde: a) Os litigantes eventuais buscam satisfação decorrente de danos originados de relações massificadas de consumo, dentro de um sistema procedimental onde há estímulo a busca de tutela individual; e b) Os litigantes habituais, em face de demandas massificadas – estas compreendidas como de semelhança fática e jurídica onde a parte correspectiva se comporta de forma razoavelmente previsível – ajuizadas dentro de um sistema procedimental menos custoso e que, dada a sua simplificação procedimental, permite ao Repeat Player uma melhor assimilação econômica dos efeitos das ações contra ele ajuizadas. pareceu interessante, para o encerramento do presente trabalho, a exposição sucinta de uma proposta para a desestabilização dessa lógica, principalmente no tocante à utilização do meio de tutela coletiva ou da manipulação de mecanismos de gestão coletiva das questões individuais de consumo. A metáfora utilizada por MARCO MONDAINI 285 aponta de forma muito precisa a incapacidade 285

O Acesso À Justiça Nos Juizados Especiais Cíveis - Uma Análise Sociológica, originalmente in Sociedade e Acesso

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dos Juizados Especiais Cíveis. A utilização dos meios de tutela individual, ou seja, a mera satisfação de lesões pulverizadas de uma relação massificada de consumo é como impedir o naufrágio de um barco em alto mar usando apenas um copo. Segundo o mesmo autor:

“…Em suma, o problema decisivo que prejudica a atuação dos Juizados Especiais Cíveis, nos dias atuais, diz respeito ao fato de que os conflitos microscópicos (individuais), em virtude da sua repetição, acabam por se tornar

meta-individuais,

dando

forma

a

conflitos

macroscópicos

(coletivos)…”

A falta de um exame mais apurado dos elementos integrantes dessas ações refletiria a alta probabilidade de decisões contraditórias. Sendo o efeito mais pernicioso a incapacidade de órgãos como os Juizados Especiais detectarem a existência de uma demanda coletiva. A utilização dessas contradições internas ao próprio judiciário, como dito, é uma clara forma de desequilíbrio em prol do litigante repetitivo. Esse cenário torna ainda mais inadequada a utilização dos meios de solução alternativa de conflitos, já que o uso de instrumentos conciliatórios induziria na prática à manipulação da realização de acordos. Todavia, o sistema de tutela das relações de consumo não passou ao largo dos meios coletivos de satisfação. Isso refletiria a dimensão coletiva inerente à relação jurídica ali estabelecida, parecendo, pois, mais lógica a utilização desse meio, MARCO MONDAINI esclarece:

“…Ora, com as ações coletivas, uma gama cada vez maior de consumidores seria beneficiada, uma vez que as suas demandas são impressionantemente idênticas. Além disso, por seu intermédio, as associações da sociedade civil e o próprio Ministério Público seriam impulsionados a se organizarem em função desta luta social por justiça. Pensar a realização da justiça de forma coletiva talvez fosse um primeiro passo rumo à transformação de uma sociedade tão marcadamente individualista…” 286

à Justiça, Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2005, p. 22. 286 Idem

também

disponível

em

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SÉRGIO CRUZ ARENHART 287, traz três grandes razões funcionais para o tratamento de demandas individuais de forma coletiva. A primeira seria decorrente do fato de que essa forma de tutela concederia a possibilidade de encaminhamento de lesões seriais de pouca expressão econômica à resolução jurisdicional. Essa funcionalidade, estaria voltada aos casos cuja lesão seja de difícil comprovação; cuja utilização de meios coletivos, permitiria um exame mais aprofundado de demandas e cuja dispersão social revela-se como óbice à defesa individual. É o caso do tratamento das micro-lesões. Em segundo lugar, estariam a capacidade de tratamento uniforme de situações que podem se enquadrar em uma mesma hipótese normativa. Quanto a essa utilidade o autor afirma:

“Tratando-se casos iguais da mesma forma, o Estado gera certeza jurídica a respeito da solução a ser dada a certo tipo de situação conflituosa, favorecendo a planificação do comportamento na sociedade. Ademais, essa uniformização desestimula o litigante temerário – que confia no erro judiciário, ou dissolve os custos de sua violação na difusão das pretensões individuais apresentadas em juízo – ao pautar sua conduta pelo baixo índice de procura da tutela jurisdicional do Estado.”

Por fim, uma terceira função estaria atrelada à racionalização da distribuição da prestação jurisdicional, cuja ausência teria por efeitos práticos a massificação desnecessária de demandas (ajuizamento de casos idênticos), o desenvolvimento de uma racionalidade duvidosa com os gastos do judiciário, a celeridade processual ineficiente ou coletivamente injusta e a explosão numérica de ações. Esse é justamente o cenário que parece dominar o sistema de tutela de consumo nos Juizados Especiais. Esse último ponto funcional do tratamento coletivo de demandas traz ao tema uma grande carga de questionamentos quanto ao real papel do judiciário na tutela individual e qual seriam os limites cabíveis para uma possível limitação ao direito individual de ação. A incapacidade do Judiciário para a sensibilização ante a enxurrada de demandas individuais pode ser um grande indicativo de que o caminho para a satisfação de direitos pode estar seguindo uma diretriz equivocada. O equilíbrio que hipoteticamente teria se instaurado dentro do sistema indica, todavia, que a despeito de promover uma resposta jurisdicional definitiva, a proposta de tratamento individual é A Tutela Coletiva de Interesses Individuais: Para além da Proteção de Interesses Individuais homogêneos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, pp. 125/127. 287

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paliativa e satisfaz, com base em um senso de racionalização econômica, propósitos unicamente individuais, seja dos litigantes habituais, dos eventuais ou da própria administração da justiça. Ao que parece, pelos aspectos até aqui expostos, a função das ações coletivas para a desestabilização do sistema de tutela individual dos consumidores através dos Juizados garantiria a ocorrência pelo menos dos dois últimos efeitos positivos supra expostos. Os quais trariam, na pior das hipóteses, uma análise das demandas massificadas, por parte do Judiciário, ao modo do Litigante Repetitivo. Um senso de todo, com a verdadeira contraposição de macro estratégias entre o representante da coletividade e o fornecedor. 288 Nesse sentido, o manejo dos mecanismos de tutela coletiva já existentes parece prescindir unicamente de uma gestão processual pública voltada a outros objetivos. Instaura-se aqui uma controvérsia a respeito do limite para a supressão de um “pleno” direito individual de ação e da limitação da ubiquidade na defesa das relações de consumo. Teria assim o direito de ação essa natureza absoluta? A limitação dos direitos individuais de acesso à justiça poderia fincar suas bases em uma premissa lógica inerente à própria natureza da moderna concepção do direito. Algo como o Kantiano “meu direito vai até onde se inicia o direito alheio”. Com esse escopo a manutenção das demandas em modelo de tutela individual manteria a falta de perspectiva ampla do universo de demandas, sendo em um extremo apenas visualizada pela máquina jurisdicional quanto viesse bater a sua porta os efeitos de travamento do sistema. Parece-nos que na relação jurídico-processual base das milhões de ações de consumo movidas individualmente para a tutela de lesões teríamos a negação prática do tertium nom datur, onde o grande maleficiado é o consumidor que eventualmente não tenha movido sua ação individual, nesse caso, um lesado indefinível ou indefinido. Uma pitada de ilusão ao acesso à justiça individual e uma pitada de controvérsia na existência de direitos coletivos decorrentes desse cenário. Dentro de uma ótica mais pragmática para o uso dos procedimentos coletivos, podemos acentuar a necessidade de contraditório coerente com as dimensões da demanda. Nesse aspecto, os mecanismos de coletivização, mediante inquéritos públicos e minuciosas análises da macro conduta dos Players econômicos, mostra-se, nesse caso, muito mais eficaz para a gestão dos litígios de massa. Ademais, a capacidade de aprofundamento da cognição permitiria também um exame mais adequado de elementos que nas ações individuais poderiam passar ao largo da necessidade indenizatória, no

Esse método de equiparação dos poderes atingindo o cerne das diferenças estratégicas no foro é uma das propostas centrais para resolução da distinção entre One Shoters e Repeat Players trazida por GALANTER, nesse sentido veja Why the Haves..., pp. 135 e segs. 288

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mais das vezes, ansiosa da celeridade jurisdicional. Todavia, alguns óbices se colocam na utilização de meios coletivos para o tratamento de demandas individuais. Dentre os grandes óbices, estão a dificuldade na definição dessa grande massa de litígios como decorrentes de uma origem comum (em outras palavras, a sua adequação com o disposto no artigo 81, III do CDC), a representatividade adequada e a comprovação da afinidade entre as questões da massa movidas pelos autores/consumidores. Como já tratado, a representatividade para a tutela de direitos coletivos é talvez a nota mais polêmica quanto a possibilidade de trato molecularizado das demandas 289 cujo interesse perpassa o subjetivo e individual. Tal exigência toca as basilares condições da ação ao passo que, para a própria manifestação da função jurisdicional, exige da parte que lhe rompeu a inércia, legitimidade para tanto. Legitimidade cuja natureza no caso dos direitos acidentalmente coletivos é extraordinária. É de se verificar que, no caso particular das ações para a defesa coletiva de diretos, o substituto processual (quem atua no processo) transcende a chamada “pertinência subjetiva” com o objeto do litígio, sendo em alguns casos mais próxima (uma entidade de classe ou uma associação de defesa de determinados interesses institucionais) em outros casos mais remota (via de regra, o ministério público, também, para a tutela de interesses públicos, e porque não institucionais, coletivos), clara a ligação com a figura do interesse/proveito. 290 Estaria então imposta a “pertinência objetiva” para a concessão de legitimidade extraordinária na necessidade de que o substituto esteja em defesa dos mais variados interesses individuais. Uma gestão mais adequada desse tipo de demanda é proposta por SÉRGIO CRUZ ARENHART 294 dado serem efetivos casos cuja origem remonta a uma mesma conduta do Repeat Player. Casos que para o autor enquadraria essas demandas massificadas no modelo de típicos direitos individuais homogêneos. Ademais é importante verificar que a proposta legislativa do CDC não deixou de prever a possiblidade dos mecanismos de tutela satisfatória dessa espécie, ou seja, tutelas coletivas de caráter “incidental” ou convencional verdadeira tutela coletiva de interesses 295. O necessário exame de profundidade cognitiva exauriente, ou seja, concedendo possibilidade de inspeção de dados relativos à própria conduta dos fornecedores em escala ampla permitiria, talvez,

Tal polêmica é ressaltada por FREDIE DIDIER e HERMES ZANETI, Curso de Direito Processual Civil: Processo Coletivo, vol. 4, 6ª ed. rev., atual., e amp. Salvador: Jus Podvum, 2008, p. 207 290 Veja-se, por exemplo, o reconhecimento de legitimidade pela súmula 643 do STF “O ministério público tem legitimidade para promover Ação Civil Pública cujo fundamento seja a ilegalidade de reajuste de mensalidades escolares”, típico exemplo de ação para tutela de direitos coletivos em sentido estrito. 294 A Tutela Coletiva de Interesses Individuais: Para além da Proteção de Interesses Individuais homogêneos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, pp. 142/152. 295 TEORI ALBINO ZAVASCKI. Processo Coletivo: Tutela dos Direitos Coletivos e Tutela Coletiva dos Direitos. 3ª ed. rev. atua. e amp. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008 289

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afirmar com mais veemência o que a despeito de uma forma documental mais concreta parece uma incerteza. Esse exame mais apurado com uma devida investigação do fato poderia, em tese, revelar que o Repeat Player exerce essa superioridade econômica mesmo que a estrutura pareça conceder um modelo neutro a eventuais vantagens. A gestão coletiva dessa espécie de conflito pode, também, ser articulada pela via administrativa, o que, entretanto, na modelagem hoje vigente significa abrir mão da possibilidade de uma satisfação indenizatória das eventuais lesões sofridas

296

. A atividade administrativa reguladora, ou ainda,

fiscalizadora, nesse sentido estaria limitada à imposição de multas para coibir praticas nocivas ou, no máximo das circunstâncias, à imposição das mesmas multas para punir a renitente lesão a consumidores que, por ventura, tenham reclamado aos órgãos de defesa. A utilização desses meios, ou seja, a utilização de ações coletivas manejadas pelos órgãos administrativos, tendem assim a surtir efeitos no desestímulo dos Repeat Players à prática de determinadas condutas gravosas. Uma incursão nos registros dos processos movidos pelos PROCONs contra fornecedores com a aplicação de multas por decorrência do registro de sucessivas reclamações revela o potencial para tais medidas. Todavia, essas medidas, como dito, não têm capacidade de indenizar os lesados pelas práticas, sendo a eles indicada a via dos Juizados. Tomada a medida de judicialização por parte do consumidor ingressa-se nos domínios do Repeat Player o argumento da satisfação individual e por consequência a inutilidade da ação coletiva proposta. A questão quanto a capacidade dos órgãos administrativos para a administração de questões relativas aos direitos dos consumidores direcionadas aos JECs é um ponto sensível em busca de uma solução. Uma possibilidade que poderia ser compatibilizada com uma postura administrativa tomada pelos representantes dos interesses coletivos. Talvez a melhor hipótese de conduta por parte desses órgãos seria o verdadeiro mapeamento das questões coletivas a eles encaminhadas individualmente para, também, permitir uma visão global dos macro litígios 297. Para então, na seara das questões atinentes à legitimidade na substituição processual, ser aplicada toda a sistemática da tutela coletiva

Como dito algumas linhas acima há proposta legislativa determinando a utilização dos termos de acordo lavrados pelos órgãos de defesa dos consumidores como título executivo extrajudicial. Todavia, essa proposta tão pouco tem o efeito desejado de coletivização das demandas ao passo que apenas suprime uma fase cognitiva do processo. 297 Uma inciativa no sentido de racionalização entre as demandas coletivas e as individuais foi tomada pelo CNJ através da Resolução Conjunta nº 2, de 21 de junho de 2011, disponível em: . Essa resolução pretendeu dar publicidade para as medidas coletivas protagonizadas pelo Ministério Público nos diversos Estados da federação. A intenção foi instituir um cadastro nacional de informações sobre ações coletivas, inquéritos civis e termos de ajustamento de conduta. A operacionalização desse cadastro se dá pelo site www.consumidorvencedor.mp.br onde são disponibilizadas as diversas medidas tomadas por parte do MP no sentido da satisfação coletiva de interesses de consumidores dentre os quais se destaca os individuais homogêneos relativos às ações de consumo. 296

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em lugar dos litígios em massa. O que poderia levar à compreensão do problema aqui tratado dentro de uma incapacidade de sensibilização dos órgãos jurisdicionais e administrativos quanto aos conflitos que a rigor não são individuais, mas sociais.

114

6. Conclusão As premissas de que parte esse trabalho, principalmente sua proposta meramente expositiva, impedem a afirmação de pontos definitivos sobre o tema. A questão está lançada como hipótese a ser trabalhada, refutada ou provada por pesquisas empíricas que tratem da existência do sistema em equilíbrio acima descrito. Todavia, o que poderia ser trazido à guisa de constatação é que a reconstrução histórica de duas proposições jurídicas – tutela de direitos coletivos e concretização do direito coletivo de ação -, como dito anteriormente paralelas e relacionadas, teve o condão de apontar um norte. Uma indicação temática que busca, na liberdade de escolha de fenômenos sociais para análise, um novo paradigma no estudo da instrumentalidade/eficiência do processo como mecanismo distribuidor de justiça. O questionamento sobre a eficiência do sistema processual dos juizados, na lógica das relações complexas, para a tutela satisfatória de interesses individuais, sem, no entanto, provocar reflexos indesejáveis (contrários aos interesses consumeristas) no plano meta individual, foi justamente o objeto teórico para a constituição desse paradigma. Essa proposta poderia ser exportada para outras técnicas e ramos jurídicos a serem muito mais trabalhados e desenvolvidos e que resultarão em trabalhos certamente melhor elaborados (ao gosto do futuro pesquisador) que a singela exposição de exemplos aqui levada a cabo. Os efeitos do processo civil e do direito como um todo nos ambientes extra normativos como dito na introdução do presente trabalho - são e devem ser cada vez mais estudados, para uma perspectiva, no dia-a-dia, certeira das dimensões empíricas e práticas decorrentes daquilo que esta grafado nas nossas leis e o que pretendemos obter com aquilo que buscamos fazer regra.

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