UM RECURSO PARA LEGITIMAR: A MEMÓRIA DO MOVIMENTO REPUBLICANO NORTE-RIO-GRANDENSE CONTADA SOB UM ARQUÉTIPO CRISTÃO NAS OBRAS DE LYRA, POMBO E CASCUDO

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UM RECURSO PARA LEGITIMAR: A MEMÓRIA DO MOVIMENTO REPUBLICANO NORTE-RIO-GRANDENSE CONTADA SOB UM ARQUÉTIPO CRISTÃO NAS OBRAS DE LYRA, POMBO E CASCUDO Jônatas Ferreira de Lima1 Adalberto Marinho da Silva Júnior2 A conservação de um suposto passado é uma forma de produzir lembranças e esquecimentos. [...] Elementos vivos por uma concepção de tempo. Brinca-se com o tempo. Transforma-se com o invisível. Recria-se o passado. Reinventa-se a memória. Apagam-se os erros3.

O censo do IBGE do ano 2010 constou que em Natal 67,36% de sua população se manifestou como cristã católica apostólica romana.4 Se unirmos esses números aos cristãos evangélicos (todas as suas denominações) temos um total de quase 90% de cristãos vivendo na capital do Estado do Rio Grande do Norte. No mesmo censo, observemos que apenas 7,89% afirmaram não devotar-se a nenhuma religião. Os dados mostram que a cidade de Natal é predominantemente cristã. Na fala diária de sua população é possível observar os elementos dessa fé cristã. No âmbito popular, vemos como cristianismo e futebol são os principais assuntos conversados nas esquinas da cidade. Ultimamente, a “política” tem aparecido como outra opção de assunto nessas ditas conversas, mas ainda prevalecem os mencionados anteriormente. Para chamar a atenção dessa grande comunidade, o linguajar cristianizado seria o mais indicado. E o que seria um linguajar cristianizado? Desde a ascensão do cristianismo, no mundo ocidental, os líderes das grandes sociedades medievais, modernas e contemporâneas têm incrementado o “falar cristão” em seus “discursos inflamados”, na divulgação de sua própria imagem social, dentre outros usos. Os valores Graduado em História (Licenciatura e Bacharelado) pela UFRN. Graduado em História (Licenciatura) pela UFRN. 3 Retirado do texto: LAMEIRÃO, Marcelo; SILVA, Paulo. História, memória e patrimônio: paradigmas da contemporaneidade. In: Identidades: XIII Encontro de História Anpuh-Rio, p. 03, 2008. 4 IBGE/BR. Censo de 2010: religião em Natal. Disponível em: . Acesso em: 7 abr. 2014. 1 2

cristãos ainda são os principais legitimadores de personalidades no poder, principalmente no referido ocidente. Não foi diferente nas primeiras histórias escritas sobre o Estado do Rio Grande do Norte e sua capital nos primórdios da instalação do Partido Republicano em fins do século XIX e primeiras décadas do século XX. Quando falamos de “História do Rio Grande do Norte”, lembramos imediatamente de Luís da Câmara Cascudo e por ele também retomamos a outros dois autores: Rocha Pombo e Tavares de Lyra. Tentando construir a imagem, e uma boa imagem dos primeiros republicanos do Estado, esses autores se dedicaram a escrever para divulgar o espírito, o sentimento republicano e nada melhor do que familiarizar a leitura com estratégicos elementos cristãos. Para convencer, precisava se adequar e integrar as falas ao contexto do povo predominantemente cristão. Representar uma personagem e forjar sua boa imagem era/é sinônimo de roupagem “apostólica” (isto é: cordeiro, missionário, caridoso, dedicado, popular, santo, que faz milagres, autoridade divina). Mostrar ao grande público que seu representante político foi escolhido por Deus, pensando na famosa expressão popular: “vox populi, vox Dei” (a voz do povo é a voz de Deus, em latim), a propaganda republicana e sua democracia, cresceram rapidamente nas ruas da cidade nas primeiras décadas do século XX, perdurando até os dias atuais. Portanto, é objetivo deste trabalho apresentar os principais elementos cristãos da propaganda republicana norte-rio-grandense, construída na História por seus principais autores: Tavares de Lyra, Rocha Pombo e Câmara Cascudo. Analisaremos e investigaremos como esses elementos poderiam explicar e legitimar na memória, a proposta republicana no entendimento do povo cristão, então maioria no Estado. Primeiro arquétipo legitimador: Tavares de Lyra Augusto Tavares de Lyra (1872-1958) é considerado o primeiro historiador a produzir uma história do Rio Grande do Norte. Foi responsável pelo IHGRN (Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte), órgão oficial encarregado da produção historiográfica no Estado desde 29 de março de 1902, o que já demonstra todo o peso legitimador e relevância do seu discurso e como o mesmo poderia usufruir, de qualquer maneira, da importância e do renome do IHGRN. Ao longo da construção da história oficial do RN percebemos, na exaltação da figura do dr. Pedro Velho (1856-1907), os elementos

cristãos católicos e como eles foram se apresentando de um modo muito bem articulado como uma estratégia de convencimento para a consolidação do Partido Republicano no Rio Grande do Norte a partir da conquista da fé do povo norte-rio-grandense. Segundo Tavares de Lyra “[...] a alma do movimento [Republicano] foi o dr. Pedro Velho” (LYRA, 2008, p. 319). Desde o início é possível perceber a estratégia usada por Tavares de Lyra ao fazer uma ligação direta entre o movimento republicano e os ideais cristãos católicos como forma de convencimento e legitimação de sua memória para a população no Estado. A figura de Pedro Velho é construída, erguida e memorizada como republicana, desde o movimento abolicionista, tornando-o o principal responsável pela divulgação das propostas republicanas, pois “[...] foi como propagandista republicano e, mais tarde, como chefe de partido e homem de governo, que revelou, em toda sua plenitude, os dotes excepcionais de seu grande espírito” (LYRA, 2008, p. 319). Dessa forma, vemos, mais uma vez, como os aspectos cristãos são utilizados tanto para enaltecimento da figura de Pedro Velho, quanto às suas grandes qualidades – uma verdadeira providência divina – para a administração do governo no Rio Grande do Norte. A fundação do Partido Republicano surge sob a sombra e a tutelar do cristianismo católico, quase como uma “benção”, ao se utilizar do trecho da fundação do Partido no Estado: [...] nesta Capital na residência do cidadão João Pereira de Vasconcelos – era situada em frente à do Rosário, na praça que tinha este último nome, no bairro da Ribeira – a primeira reunião do partido republicano nesta província, após os movimentos revolucionários tragicamente afogados no sangue dos patriotas de 1871 e 1824 (LYRA, 2008, p. 319).

O sangue dos “mártires” do partido republicano é apresentado de modo a fazer uma alusão ao exemplo do martírio dos primeiros seguidores na história do cristianismo, sendo recordado e destacado com o objetivo de denotar o caráter precioso, relevante, salvífico do Partido Republicano no Estado. “A república, como um novo Cristo, teve o seu precursor; e o Batista desse novíssimo evangelho foi a liberdade dos escravos” (LYRA, 2008, p. 322). O movimento é apresentado, por Tavares de Lyra, a partir desse trecho retirado do manifesto que foi dirigido à província, com uma ideia de salvacionismo (note o arquétipo cristão), já que a República traria a ordem (e não é uma ordem comum,

mas semelhante ao da fé no Cristo) para o caos que existia no regime monárquico. Nada mais convincente, para legitimar os interesses e a memória do Partido Republicano, do que construir no coração da população do Rio Grande do Norte um espaço destinado às coisas ditas realmente importantes: a fé em Deus. E agora, a fé – e porque não dizer a esperança! – na República. Pois como afirma o autor “[...] este nobre e infeliz povo terá o coração fechado e inacessível à grande luz redentora da república?” (LYRA, 2008, p. 323). Diante de um regime tenebroso, escuro, atrasado, nada melhor do que ser substituído por outro que traga “raios” de esperança e salvação para o Brasil. Ao falar do “precursor” do Partido Republicano, vemos, mais uma vez, o processo de criação e de legitimação utilizado por Tavares de Lyra, sugerindo que haveria, no Brasil, desde o movimento abolicionista, os interesses pela República. Em outro momento, Tavares de Lyra demonstra como o jornal A República foi um importante instrumento de propaganda para os projetos do Partido Republicano. Nele percebe-se claramente o modo como os argumentos cristãos católicos são usados para incrementar as intenções do grupo republicano. Isso foi percebido na República em um dos boletins, ao falar que “[...] Purificou-se enfim o Continente! [...] A alma nacional, inundada de júbilo, destitui o Império [...] Os ódios e rancores partidários não cabem em corações cheios de luz redentora da Liberdade [...]” (LYRA, 2008, p. 326). Na referência de Lyra destacada acima, todos os adjetivos foram usados para criar uma imagem salvífica sobre como a República era a resposta mais acertada para consertar o momento vivido pelo Brasil. Pelo menos é isso que o autor deixa transparecer ao fazer a ligação entre o discurso religioso como um discurso político, pois nada mais significativo do que recorrer aos sentimentos, às crenças, às motivações das pessoas para constituir, sustentar e desenvolver o Partido Republicano e sua memória, aliado à figura de Pedro Velho como representante máximo. “A destruição do Império abriu espaço à soberania popular, quebrando todos os grilhões, todos os jugos” (LYRA, 2008, p. 327). A fala do Partido Republicano se mescla com o discurso de Lyra a partir da construção historiográfica feita pelo próprio autor através da fala de Pedro de Velho. Portanto, acerca da citação acima podemos inferir, como a substituição do regime monárquico pela República é construído de modo a assemelhar-se como a quebra de “grilhões” representando a substituição de uma velha mentalidade por uma nova mentalidade.

Desse modo notamos como o discurso cristão católico se conecta com a ascensão da República no Rio Grande Norte servindo como uma ferramenta dentro das estratégias usadas pelos partidários da República. Segundo arquétipo: Rocha Pombo Outro grande nome que construiu a história do Rio Grande do Norte foi o historiador, jornalista, advogado, professor e escritor, José Francisco da Rocha Pombo (1857-1933). O autor nasceu no Estado do Paraná (no município de Morretes), mas construiu sua carreira no Rio de Janeiro, então capital do Império. Envolvendo-se em política, foi deputado pelo Partido Liberal em 1886, sendo um abolicionista e republicano “devoto”. Também foi membro ilustre do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e homenageado pela Academia Paranaense de Letras com a Cadeira nº 1 desta instituição5. Sua grande obra foi História do Brasil, publicada na primeira década do século XX. Contudo destaquemos, neste estudo, a sua História do Rio Grande do Norte, publicada por encomenda em 1921 pelo governo vigente no Estado para “dialogar” com a obra anterior publicada pelo autor Tavares de Lyra, já comentado anteriormente. Essa obra de Rocha Pombo, produzida no Rio de Janeiro, chegou ao Estado, por comemoração aos 100 anos de independência do Brasil. Como podemos perceber na escrita do autor Rocha Pombo, o elemento “catequizador” republicano? Assim como já discorrido, os elementos “chave” cristãos compunham veementemente a propaganda do Partido Republicano. Portanto, na escrita propagandista apresentada por Pombo, devemos atentar para alguns elementos legitimadores que, a saber, são: dizer que o sistema em vigência é o opressor do povo, é um deles; depois, apresentar-se como salvação desse povo oprimido durante séculos de colonização e império; utilizar exemplos anteriores: os primeiros “mártires” para mostrar que o movimento tem história, memória e foi combatido por tentar “libertar” a população do jugo pesado da estagnação colonial; deixar claro que o movimento não foi silenciado no passado é um importante fator de credibilidade, principalmente quando se é acompanhado por fatos e nomes do presente; vincular o movimento de reforma contemporâneo aos que sucederam no passado, para legitimá-lo historicamente; e outro 5 HOERNER JÚNIOR, Valério; BÓIA, Wilson; VARGAS, Túlio. Bibliografia da Academia Paranaense de Letras - 1936/2001. Curitiba: POSIGRAF, 2001. p. 256.

importante elemento do discurso é vincular o povo à história do movimento, mostrando que ele (o povo) é peça insubstituível para o sucesso do proposto. No trecho a seguir, da obra sobre o Estado do Rio Grande do Norte, de Rocha Pombo, podemos perceber como o autor introduz sua fala ao se referir à construção do sentimento republicano norte-riograndense: A revolução de 1817 demonstra irrecusavelmente que contra as iniquidades e humilhações do regimen colonial havia na terra, contendo-se no fundo dos corações, um pensamento de protesto que só espera o ensejo de explodir. E a prova de que na alma dos norte-rio-grandenses nem o escarmento podia mais extinguir sentimentos e tendências, que a propria historia da colonia havia creado, está na tocante, quasi religiosa veneração com que se cultivou sempre ali a tradição dos heróes sacrificados, como André de Albuquerque, Miguelinho, e outros (POMBO, 1921, p. 455).

Observemos como é arquitetado esse sentimento republicano. O autor retoma a revolta de 1817 (tem-se o fato histórico), na qual o “povo” norte-rio-grandense participou, deixando explícita a vontade deste povo em se libertar dos maus tratos proporcionados pelo regime monárquico (tem-se então, a inclusão do povo na história do Estado). Este sentimento é enfatizado pelo autor na expressão: [...] quasi religiosa veneração com que se cultivou sempre ali a tradição dos heróes sacrificados [...]. O processo de legitimação de seus “heróis” já pode ser percebido também nesta fala do autor: [...] como André de Albuquerque, Miguelinho, e outros. Alertamos que não é o foco deste trabalho falar daqueles que “lucraram” com a implantação do poder Republicano no Estado, mas sim os elementos cristãos na fala dos autores Lyra, Pombo e Cascudo. Retomemos por um instante o porquê de abordar os “elementos” cristãos que se inserem no discurso republicano na fala dos autores em questão. Supomos que, pelos dados apresentados, referentes ao número de pessoas que professam a fé cristã no Estado ser bastante alto, que nos tempos dos autores assim também o seria, isto é, um Estado com bastante cristãos e mais ainda de cristãos católicos. No entanto, uma das propostas republicanas, é combater o conservadorismo da instituição Católica. Então à que tipo de cristão a propaganda reformista republicana seria mais bem recepcionada? Há algum grupo de cristãos protestantes? Com certeza foi aos próprios fiéis católicos, predominantes na população. Na verdade, vemos que os “fiéis católicos” são chamados pelos autores de “povo”, para se criar uma unidade a favor da instauração da República, situação esta que “ofuscaria” a

questão do conservadorismo da Igreja Católica no país, aos olhos de leitores cristãos, principalmente católicos.6 O arquétipo do arquétipo: Pombo e Cascudo O famoso historiador do Rio Grande do Norte, Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), que dispensa maiores comentários a seu respeito, foi leitor de Lyra e Pombo, utilizando-os na produção de sua obra também chamada História do Rio Grande do Norte de 1955. Cascudo faz menção à propaganda republicana opositora do conservadorismo da Igreja: O manifesto republicano de 3 de dezembro de 1870 subscrito pelos “históricos” fora transcrito em Natal pela folha “O Liberal do Norte”. Houve a revista “O Echo Miguelino”, de 11 de julho a 30 de novembro de 1874, escrita quase exclusivamente pelos jovens Joaquim Fagundes [...] e José Teófilo, [...], em campanha viva contra D. Frei Vital, Bispo de Olinda, anticatólica e anti-monárquica (CASCUDO, 1955, p. 205).

Retomando o autor Rocha Pombo, observe como o mesmo descreve a participação dos adeptos republicanos após a abolição da escravidão em 1888 e como ele os chama: No dia seguinte ao da abolição, os mesmos apóstolos que tinham triumphado continuavam em campo, e agora mais incendidos de coragem, a agitar o novo pensamento, que se considerava como corollario da causa triumphante (POMBO, 1921, p. 456).

O autor mostra ao leitor que as conquistas destes “apóstolos” republicanos, não seriam sinônimos de acomodação, devido ao triunfo mediante ao conservadorismo, mas de perseverança na busca de novos desafios e espaços para levar estas “boas-novas” a todos os “povos” (neste caso, os municípios do Estado). Na fé cristã, sabe-se que Jesus é reconhecido como o Cristo, ou seja, o Messias, o Escolhido, o Ungido, muitas vezes é mais divindade do que homem e quando aparece como homem é tratado como alguém a frente de seu tempo e, se lido ao pé da letra, também dotado de atributos sobrenaturais, que inclui a própria vida eterna. O “cristo” é aquele esperado para governar num reino “perfeito” (no caso dos autores, seria republicano e democrata), dotado de uma autoridade inquestionável, 6 É importante mencionar que o autor Rocha Pombo mostra que padres também participaram do movimento republicano. Ver padre José Paulino (POMBO, p. 456-457).

dentre outros atributos. A grande habilidade para se comunicar (retórica/oratória) é outro importante elemento que compõe uma pessoa chamada de “cristo”. A República norte-rio-grandense tem seu cristo, seu maior exemplo. Vamos identificá-lo de acordo com o autor Rocha Pombo: [...] Apparece neste momento um homem, “cujo espirito parecia talhado para evangelizador de grandes idéas”. Logo depois da abolição, declarou-se o dr. Pedro Velho francamente republicano, e com successo tal que o levou a resolver immediatamente a creação de um nucleo de propaganda (POMBO, 1921, p. 456).

O autor apresenta um homem apto para ser republicano, um homem [...] cujo espirito parecia talhado para evangelizador de grandes idéas [...], ou seja, o mais indicado para ser o “cristo” do Estado, aquele que foi “aclamado”, segundo a narrativa dos três autores, pelo “povo” como se verá posteriormente. Este é o modo de como os autores iniciam o processo de legitimação da pessoa de Pedro Velho de Albuquerque Maranhão como instaurador da República, nascido em Natal e que por “coincidência” era sogro do autor Augusto Tavares de Lyra, já apresentado. Assim como em Lyra, o autor Rocha Pombo mostra como a instituição republicana foi construída com sangue e suor de seus “mártires”. O “povo” precisava reconhecer quem é o seu “senhor”, pois não é viável servir a dois, como menciona o autor: [...] que não podia continuar entregue aos dois partidos7 sem idéas que a exploravam (POMBO, 1921, p. 457). O autor deixa claro que a “salvação” da nação depende da escolha do povo. O elemento cristão do discurso ferve e, como mostra Pombo, o ideal republicano se espalha rapidamente: Nesse manifesto desenhava-se a situação do paiz, commentavam-se factos e processos da politica imperial, e pregava-se a necessidade de mudar a forma de governo e fazer a republica para salvar a nação, que não podia continuar entregue aos dois partidos sem idéas que a exploravam. “As tradições republicanas do Rio Grande do Norte – dizia-se – foram escriptas com sangue: não podem achar-se obliteradas. Ellas reverdecerão”. – Com effeito, o novo partido cresceu rapidamente em toda a província (POMBO, 1921, p. 457).

O autor quer deixar a mensagem para o leitor de como o povo tem parte nesta empreitada republicana, construindo uma imagem 7 O autor Rocha Pombo não deixa claro quais partidos são esses. Contudo supomos que o Conservador é um deles.

aguerrida do movimento, porém, também de uma inigualável harmonia e ambiente de paz. Como já comentado, vemos o uso dos elementos pertinentes, forjando o espírito republicano do povo. Os autores, no momento em que escrevem sobre a propaganda do Partido Republicano, não escondem desígnios para gerar este sentimento de “drama” para com aquele que lê. Segundo o autor Rocha Pombo [...] Para que os esforços da propaganda se fizessem mais efficazes, creou-se, alguns mezes depois, um orgão do partido na imprensa, o Republica, em cuja redacção Pedro Velho, e o grupo de intellectuais que o cercavam, se mostraram de realmente de coragem inexcedível, de uma firmeza e segurança de quem sabe que a victoria não tarda (POMBO, 1921, p. 457).

Isto é, na escrita do autor, supondo, pensaríamos da seguinte forma: a vitória é certa; Deus escolhe seus membros; homens de atributos diferenciados, aptos a reger cada município deste Estado; seu modelo é o cristo Pedro Velho; era o início de uma nova era. Observemos como é óbvia a forja de um sentimento em apoio ao Partido Republicano. No entanto, percebemos também uma fala interessante do autor: [...] Para que os esforços da propaganda se fizessem mais efficazes, creou-se, alguns mezes depois, um orgão do partido na imprensa. Para ter escrito desta forma, o autor sabia que não era tão fácil assim obter a concordância do povo (do leitor) quanto ao movimento republicano, por isso enfatiza que houve a existência de órgãos de imprensa que publicaram a favor do movimento, pois precisava, ainda, consolidar sua proposta de “salvação” do Estado, como mencionou o autor. A narrativa do autor não é diferente da história de evangelização da Igreja, pois se sabe que foi uma árdua luta para convencer as pessoas da “verdade” cristã. Voltemo-nos às seguintes citações dos autores Rocha Pombo e Câmara Cascudo: Durante os poucos dias de seu governo, revelou-se o dr. Pedro Velho como homem publico, dando provas de altas qualidades politicas – muito prudente, de grande tolerancia, mas firme e enérgico, ponderado e seguro. [...] Ia o chefe republicano levando com toda moderação e habilidade aquele inicio da nova era, quando se soube em Natal que estava nomeado um Governador para o Rio Grande do Norte (POMBO, 1921, p. 461-462). A 1 de Julho, Pedro Velho publica “A República”, Orgão do Partido Republicano, impresso no prelo do “Correio Natal” [...]. Reuniram-se os republicanos a 14 de julho para a escolha dos candidatos à deputação geral

nas eleições de 31 de agosto. [...] “A República” publicou vinte números até 15 de novembro. Convocara os correligionários para uma sessão a 1º de dezembro, escolha da chapa de deputados provinciais, na eleição de 31 do mesmo mês (CASCUDO, 1955, p. 207).

Observe como ambos os autores apontam a necessidade do Partido Republicano em se afirmar no Estado. Isso mostra como há a preocupação dos mesmos em deixar evidente (em suas narrativas) que, a consolidação apresentada na fala de Pombo, por exemplo, só se fez possível pelo investimento em propagandas, como apresenta Cascudo8, objetivando o convencimento do leitor/ouvinte para a simpatia do movimento. Quanto à literatura cristã, temos a figura daquele que vem para impedir que o “escolhido” não tome seu devido “trono” no poder. Tomando, por exemplo, as falas de Pombo e Cascudo, identificam-se quem são os inimigos que se levantam para propagandear falsos testemunhos daquele que foi “aclamado” para o governo pela voz popular9, bem como o que é o falso “senhor”: [...] De tudo isso se aproveitou a opposição, representada na imprensa pela Gazeta de Natal. Deu-se á vinda do delegado do Governo Provisorio apparencias de prevenção contra o dr. Pedro Velho, que se fez passar como destituido do cargo para que fôra acclamado. [...] A administração do dr. Adolpho Gordo durou apenas dois mezes, e deixou a impressão de uma interinidade rapida e pacifica, da qual não ficaria vestigio ou tradição no Estado (POMBO, 1921, pp. 463; 465). As três horas da tarde de 17 de novembro, Pedro Velho assumiu o posto de Presidente aclamado, pelo capitão tenente Leôncio Rosa, [...] Não houve teatralidade, gritos, intimações, protestos, retórica. Tudo quieto, combinado, tranquilo, sereníssimo, apenas um exaltado rasgou a ponta de espada o retrato do Imperador, numa exibição de fidelidade perfeitamente dispensável (CASCUDO, 1955, p. 209).

O usurpador é o advogado paulistano Adolpho Affonso da Silva Gordo (1858-1929) cujos autores o descreve com um “gentil”10 que não é recomendado para o Governo do Estado. Ambos os autores, bem Será que encontraríamos mais elementos, que estamos chamando de “catequéticos”, nestas propagandas republicanas? 9 vox populi, vox Dei. 10 Não é uma palavra utilizada pelos autores, mas sua intenção é clara: gentil é o nome dado aquele que não é da “parte”, ou seja, “não faz parte”. Gentil no cristianismo é aquele que não é cristão, ou pecador. Na experiência republicana, utilizamos para mostrar que Gordo era paulista (um gentil). 8

como Lyra, dessa forma, apresentam ao leitor, um Pedro Velho heroico, que foi aclamado pelo povo. Um leitor mais atento desses textos perceberá que esse “clamor” do povo foi construído pelas propagandas do Partido Republicano. Os autores em suas narrativas, não vinculam essa necessidade da propaganda (com esses elementos cristãos, tornando o discurso popular) ao “clamor” do povo pela pessoa de Pedro Velho ao Governo do Estado. A própria ideia de “aclamado” é um termo legitimador, demonstrando a participação popular que, como já observamos, também foi forjada nas obras dos autores. Para crescer (urdir) mais ainda o ego do dr. Pedro Velho (já falecido na época da publicação de todas as três obras, mostrando que eram à outros os endereçados – a saber, à família Albuquerque Maranhão), os autores mostram como seu nome era “querido” em centros importantes do país como Recife e Rio de Janeiro. Veja o que dizem os autores Rocha Pombo e Cascudo sobre a presença de Pedro Velho no Rio de Janeiro: [...] O dr. Pedro Velho fôra muito bem recebido na capital da Republica. Sciente do que se passava no Rio Grande do Norte, assegurou-lhe o governo dictatorial todo apoio e confiança, entregando-lhe toda direcção politica na phase de organização do Estado (POMBO, 1921, p. 466). Tobias Monteiro, residente no Rio [...], republicano fervoroso, endereçou a Pedro Velho uma carta, a 19-8-1888, convidando-o à chefiar o movimento na província [...] (CASCUDO, 1955, p. 205).

O autor Rocha Pombo reconhece um importante princípio do fazer histórico: não se podem julgar as temporalidades. É necessário esperar para ver e/ou estudar segundo as concepções que regiam a época estudada. Para refletir se o movimento republicano será “eterno” ou não, é de grande sabedoria estar em uma certa distância (temporal) para percebê-lo de longe (contexto geral) e pelos seus escritos (do autor), uma visão mais “de dentro”. Mas em seu tempo o autor revela: é praticamente unânime a aprovação do apostolado republicano no Estado. [...] Ia, pois, o Rio Grande do Norte entrar numa phase nova da sua vida. É claro que não temos ainda, daqui em diante, propriamente historia. Por emquanto vai tudo em elaboração e só mais tarde a historia ha de fazer-se. Julgar contemporâneos – homens e factos – corre sempre o risco de pôr o juiz em suspeição perante os vindouros: e o que se requer é que tal juiz entre neste tribunal só com a responsabilidade da sua consciencia, e não com a dos proprios olhos e do proprio coração. Só aos posteros, pois, compete dar sentenças para as quaes podem os contemporaneos ter mesmo

a imparcialidade e espirito de justiça indispensaveis, mas não merecem a fé que é preciso attribuir a que julga. – O mais que nos cumpre fazer aqui, portanto, é registrar, segundo o nosso criterio, os factos de mais importancia que sirvam amanhã como documentação para o historiador futuro. [...] O primeiro Governador eleito foi o dr. Pedro Velho, a quem coube a tarefa de normalizar a nova administração. São unanimes os testemunhos do tempo em assignalar a moderação de que deu provas o illustre chefe republicano em um posto, no qual, mais que a firmeza e coragem que revelára no apostolado, cumpria pôr em acção virtudes civicas inseparaveis da legitima democracia (POMBO, 1921, p. 471).

Na produção posterior11 do autor Câmara Cascudo, observe como é descrito a imagem “final” da pessoa de Pedro Velho: A chapa de Pedro Velho é outra suprema habilidade. Reúne todos os trunfos, estaduais, federais, antigos e modernos. Panóplia com todas as armas, responderia a qualquer ataque. [...] A lápide do seu túmulo, no cemitério do Alecrim, diz o título que lhe deram ainda em vida: Organizador do Estado Republicano. (CASCUDO, 1955, pp. 212; 217).

Esta é a imagem que os autores estudados, querem deixar na memória, para a posteridade, quanto à pessoa de Pedro Velho, bem como do movimento republicano. Através do presente trabalho buscamos discorrer e analisar como os elementos cristãos católicos foram usados como instrumentos de propaganda para legitimar o Partido Republicano no Rio Grande do Norte e sua memória para posteridade. Para isso utilizamos as três principais historiografias acerca do Estado para apresentar nosso estudo: Tavares de Lyra, Rocha Pombo e Câmara Cascudo. Tavares de Lyra, um dos fundadores do IHGRN, dispôs dos meios e da autoridade para produzir sua historiografia uma vez que o IHGRN promoveria a solidez necessária para tudo o que fosse produzido por ele no Estado. Depois, com Rocha Pombo, que se valeu de fontes do IHGB do Rio de Janeiro para escrever sua obra, por encomenda do Estado, percebemos que o discurso cristianizado não era uma arma de legitimação restrita somente aos autores locais (vimos o caso do Rio de Janeiro). E, Câmara Cascudo, renomado articulador das primeiras historiografias e histórias sobre o Estado do Rio Grande do Norte na 11

35 anos depois das Histórias do Rio Grande do Norte de Lyra e Pombo.

segunda metade do século XX, retoma os discursos de Tavares de Lyra e Rocha Pombo para compor sua História do Rio Grande do Norte, inclusive utilizando os mesmos elementos cristãos católicos (o arquétipo do arquétipo) para demonstrar como a ideia da República era a melhor opção para o Estado naquele momento. REFERÊNCIAS BUENO, Almir de Carvalho. Visões de República: ideias e práticas políticas no Rio Grande do Norte (1880-1895). Natal: EDUFRN, 2002. CASCUDO, Luis da Câmara. História do Rio Grande do Norte. Natal: Imprensa Oficial, 1955. DOSSE, François. Uma história social da memória. In:____. A História. EDUSC, 2003. LYRA, A. Tavares de. Período Republicano até a organização do Estado. In: ______. História do Rio Grande do Norte. 3. ed. Natal: EDUFRN, 2008. PEIXOTO, Renato Amado. Espacialidades e estratégias de produção identitária no Rio Grande do Norte no início do século XX, Revista de História Regional 15(1), Verão, 2010. p. 169-193. POMBO, Francisco José da Rocha. Sobre o Novo Regimen. In: ______. Historia do Estado do Rio Grande do Norte: edição commemorativa do centenario da independência do Brasil (1822-1922). Rio de Janeiro: Annuario do Brasil, 1921. ROCHA, Raimundo Nonato A. da. A República no Rio Grande do Norte: memória e historiografia. In: MATA, Sérgio Ricardo da; MOLLO, Helena Miranda; VARELLA, Flávia Florentino (orgs). Anais do 3º Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: EDUFOP, 2009. p. 05-06.

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