Um sacrifício para pôr fim a todos os sacrifícios: Uma leitura girardiana da concepção de sacrifício do Novo Testamento

June 30, 2017 | Autor: Tiago Cadedo | Categoria: Sacrifice (Anthropology Of Religion), René Girard, Teologia, Teoria Mimetica
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Um sacrifício para pôr fim a todos os sacrifícios: uma leitura girardiana da concepção sacrificial do Novo Testamento

! IX Congresso de Teologia 2015, ITESP ! Tiago Cadedo !

Teólogo algum do nosso tempo poderá escapar da enorme influência que Rudolf Bultmann exerceu sobre os estudos bíblicos. Uma conhecida ferramenta de seu método interpretativo é conhecida por “desmitologização”, e consiste em interpretar os supostos elementos mitológicos do texto à luz da razão moderna, que rejeita uma visão de mundo pré-científica. Tal método gerou frutos inquestionáveis para nossa exegese, mas seu abuso e sua aplicação irrestrita tornou-se questionável, pois mostrou-se capaz de cegar nossa visão para elementos importantes da teologia bíblica que foram descartados sob acusação de mitologia. Parece que a concepção neotestamentária de sacrifício foi ela própria sacrificada por este método hermenêutico, mas acreditamos que ressuscitá-la comportará uma espécie de salvação para o nosso entendimento dos textos do Novo Testamento. Neste ensaio recorro à antropologia de René Girard, cuja teoria à respeito dos sacrifícios foi considerada pelo teólogo Hans Urs Von Balthasar como “o projeto mais dramático a ser tomado hoje no campo da soteriologia e na teologia em geral”. (BALTHASAR, 1994, pg 299) Não tenho a pretensão de esgotar o assunto, nem sequer de corresponder às descobertas mais recentes dos estudos bíblicos. Gostaria apenas de sugerir que a concepção sacrificial do Novo Testamento não precisa ser lida em chave mitológica e que, pelo contrário, precisamente a sua compreensão do sacrifício de Cristo possibilita a desmitologização de todos os outros sacrifícios. Com isso quero dizer: A epistemologia da mais radical desmitologização parte da própria Sagrada Escritura. Para tal fim, sugiro um roteiro que passa pela teoria antropológica de René Girard, ferramenta que nos auxiliará a interpretar textos do Antigo e do Novo Testamento, e nos auxiliará a perceber as especificidades de cada um em relação ao contexto maior do sacrifício na antiguidade.

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A teoria mimética e o bode expiatório

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“O homem é a criatura que não sabe o que desejar, e ele se volta para os outros afim de descobrir. Nós desejamos o que os outros desejam porque imitamos seus desejos”. Com esta definição somos introduzidos ao mundo da teoria mimética. O homem não tem desejos inatos, mas aprende a desejar segundo um modelo. Imitando o outro

aprendemos a falar, socializar e desejar. Eventualmente o desejo do modelo e o desejo do aprendiz convergem para um mesmo objeto, e neste momento temos um impasse. Quando se trata de um objeto limitado, não passível de ser apropriado por ambos, o conflito se instala. Na medida em que o conflito se instala, o desejo de cada um dos rivais se confirma, pois a atestação por parte de um e de outro que o objeto é desejável, torna o objeto cada vez mais disputado e o conflito violento iminente. Imaginemos que este conflito não seja restrito a dois rivais, mas a centenas de rivais que disputam uma quantidade limitada de objetos. É precisamente no momento mais alto deste impasse que uma resolução sacrificial se apresenta. Girard explica:

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“Apenas uma vítima arbitrária pode resolver a crise, pois todos os fenômenos de violência, sendo miméticos, são por toda parte idênticos e são de forma idêntica repartidos no meio da comunidade. Ninguém pode atribuir à crise uma origem, distribuir responsabilidades. E essa vítima expiatória acabará necessariamente por aparecer e reconciliar a comunidade, pois a própria exasperação da crise, ligada a um mimetismo sempre crescente, deve necessariamente suscitá-la”(GIRARD,1978, pg 47)

Mais adiante, Girard expõe os efeitos do mecanismo vitimário: A comunidade sacia sua raiva contra essa vítima arbitrária, na convicção absoluta de ter encontrado a causa única de seu mal. A seguir, ela se encontra privada de adversários, purificada de qualquer hostilidade contra quem, um instante antes, ela demonstrava uma raiva extrema. O retorno à calma parece confirmar a responsabilidade dessa vítima nos distúrbios miméticos que agitaram a comunidade. A comunidade percebe-se como passiva diante de sua própria vítima, que aparece, ao contrário, como o único agente responsável pelos acontecimentos. (GIRARD, 1978, pg 49)

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O exercício de imaginação que fizemos acima com os componentes do triângulo mimético nos ajudam a entender a exasperação da rivalidade mimética que aconteceu no processo de hominização. Para que o homem não desaparecesse da face da terra por causa da rivalidade crescente foi necessário desenvolver o mecanismo vitimário. A vítima por sua vez, percebida como “salvadora” do grupo, é sacralizada. Uma vez que a crise foi resolvida, é apenas questão de tempo para que novas exasperações conflituais voltem a ocorrer. Agora, porém, o grupo já sabe o que fazer para resolver a crise. Quão mais graves forem os conflitos, tão mais urgentemente o grupo encontrará uma vítima para evitar que o pior aconteça. O que antes havia acontecido espontaneamente, agora toma a forma de um ritual. A estabilização de um grupo após várias crises miméticas resolvidas por meio da vítima expiatória terá efeito civilizatório. Estes grupos começarão a criar interditos para, junto com o rito, criar mecanismos de prevenção contra a contaminação mimética da violência. Por fim, após milênios de estabilização social a partir da vitimização de bodes

expiatórios, será possível ao homem trocar suas vítimas humanas por vítimas animais, um estágio da humanidade cuja superação certamente deve ter custado muito esforço aos seus contemporâneos. Segundo Girard, o sacrifício não é somente a origem dos ritos, mas também dos mitos. Os mitos são responsáveis por contar a história da comunidade do ponto de vista dos linchadores, isto é, dos sobreviventes. Nestes relatos míticos, portanto, as crises se resolvem pela expulsão ou morte de algum ser que precisava desaparecer para conferir estabilidade ao grupo. A vítima, portanto, é ambivalente: por um lado é reconhecida sua capacidade soteriológica, pois ao ser expulsa a comunidade se reintegra. Por outro lado, para justificar o linchamento, é necessário que a vítima seja culpada e mereça a morte que lhe foi imputada. Poderíamos ilustrar esta narrativa mítica com centenas de exemplos, mas bastanos um para efeito de comparação. Pensemos, portanto, no mito da fundação de Roma, a estória dos irmãos Rômulo e Remo. O primeiro mata o segundo, um ato sem dúvida lamentável, mas que de qualquer forma era necessário, afinal Remo não respeitou a divisão territorial traçada por Rêmulo, e, para existir, Roma necessita que suas leis (interditos) sejam respeitadas. A morte da vítima está, pois, justificada e é ela que confere estabilidade à cidade que viria a ser fundada sobre os esboços desenhados por Rêmulo.

! A especificidade das Sagradas Escrituras: Antigo Testamento !

Tomemos agora o exemplo bíblico de Caim e Abel. O assassinato ocorre de

maneira análoga, e a primeira cidade humana é fundada pelo irmão assassino. Também aqui a cultura humana é fruto do assassinato fundador. Mas há uma pequena sutileza no texto que o separa radicalmente das outras narrativas míticas: o assassinato não é justificado. Diz Girard:

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“No mito de Caim, ao contrário, embora como acabei de mostrar ele disponha, no fundo, dos mesmos poderes, mesmo que seja escutado pela divindade, Caim é apresentado como um vulgar assassino. O fato de que o primeiro assassinato desencadeie o primeiro desenvolvimento cultural da humanidade não absolve de forma alguma os assassinos aos olhos do texto bíblico. O caráter fundador do mito tem significado tão claro e até mais claro que nos mitos não-bíblicos, mas há algo de diferente, ou seja, o julgamento moral. A condenação do assassinato prevalece sobre qualquer outra consideração. ‘Onde está o teu irmão Abel?’” (GIRARD, 1978, pg 189)

Girard aponta diversos outros relatos no Antigo Testamento (“José do Egito”, “O

Servo sofredor”) que possuem semelhante estrutura: os vitimizadores não são justificados. Poderíamos ainda citar os primeiros capítulos do livro do Gênese, que são de

uma desmitologização radical: O mundo veio a existir não por meio de uma batalha cósmica na qual o derramamento de sangue é necessário para a estabilização da ordem, mas por meio de uma disposição criativa do único Deus criador que não está em rivalidade com ninguém, e que cria todas as coisas de modo pacífico, de maneira que a sua monotonia é uma crítica radical às cosmogonias fundadas nas guerras celestes do mundo pagão. Na Bíblia o derramamento de sangue e a morte não são essenciais à criação, mas apenas os frutos de um acidente histórico, e é para evitar que o derramamento de sangue tome proporções megalomaníacas que Deus condescende com os rituais de sacrifício, capazes de canalizar a violência e eliminá-la temporariamente. Os relatos do Antigo Testamento, portanto, estão entremeados de narrativas sacrificiais que endossam os sacrifícios de uma maneira provisória, mas que, por isso mesmo, compreendem que Deus não precisa deles por Si mesmo; Ele os institui com a finalidade de nos salvar. Eis a ambiguidade dos sacrifícios veterotestamentários: Deus não os tinha em mente no princípio, mas Ele os tolera para o bem do homem, uma solução que, todavia, permanece sem vislumbrar a saída para um mundo não-sacrificial. Como dissemos anteriormente, os mitos e os ritos são produções do mecanismo vitimário. Uma vez que vimos a desautorização parcial dos sacrifícios nos mitos do Antigo Testamento, cabe a nós, agora, tentar reconstruir os ritos praticados pelos israelitas afim de verificar como se dá esta concepção sacrificial em sua forma ritualística. Se no Pentateuco está condensado o essencial da religião de Israel no pós-exílio, o Levítico encontra-se no núcleo dos “livros de Moisés”, no centro deste núcleo está o ritual do grande perdão. O ritual é aquele descrito no Levítico: O sumo sacerdote sacrifica um novilho para ser purificado de seus pecados e entra no Santo dos Santos. Veste a túnica de linho e a insígnia com o Nome sobre a fronte. Sacrifica e então outro animal, o “cordeiro do Senhor”, para o perdão dos pecados do povo de Israel. O sangue deste cordeiro é então esparramado primeiro no Santo dos Santos, depois no grande salão do templo. Após este gesto, o Sumo Sacerdote impõe as mãos sobre um outro animal, “o cordeiro de Azazel” para o qual ele transfere os pecados do povo. Por fim, o cordeiro de Azazel é levado para o deserto e o Sumo Sacerdote pronuncia o Nome para que seja glorificado pelo povo de Israel. Detenhamo-nos um momento no sentido teológico deste ritual. Ora, se ao final do rito o Sumo Sacerdote impõe as mãos sobre o “cordeiro de azazel” afim de transferir-lhe os pecados, então a lógica requer que ele tenha carregado os pecados do povo de Israel desde o sacrifício do “cordeiro do Senhor” até aquele momento. Recordemos que, segundo Êxodo 28:38, o uso da insígnia do Nome sobre a fronte não tem outra finalidade

senão habilitar o Sumo Sacerdote a carregar as faltas cometidas. Em outras palavras, o que temos é um rito no qual o Sumo Sacerdote, fazendo as vezes do próprio Deus, carrega as faltas e sacrifica em benefício do povo de Israel. Se para todo o mundo antigo os sacrifícios serviam para aplacar a ira dos deuses ou renovar a ordem do mundo, através da ritualização da violência caótica primordial, em Israel, no papel do sumo sacerdote, Deus mesmo tomava os pecados de seu povo para purificá-lo de seus males. Recapitulemos a particularidade de Israel: Nos mitos e nos ritos há desautorização parcial dos sacrifícios e a intuição de que é o Criador quem em última instância suporta os sacrifícios pelo bem de seu povo.

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A especificidade das Sagradas Escrituras: Novo Testamento

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“Ouvistes o que foi dito aos antigos: Não cometerás homicídio; aquele que cometer um homicídio responderá por ele no tribunal. Pois eu vos digo: todo aquele que se encolerizar contra seu irmão responderá por isso no tribunal; aquele que disser a seu irmão: ‘Imbecil’ estará sujeito ao julgamento no sinédrio” (Mt 5, 21 – 23)

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Dizendo estas palavras Jesus recua do cumprimento da Lei para a esfera do desejo, e com isso voltamos à discussão sobre o desejo mimético do homem. Sabemos que o sermão da montanha é reconhecido universalmente por sua exigência ética admirável, mas esta admiração é quase sempre acompanhada de ceticismo no que toca à práxis. A suspeita de impossibilidade prática é justificável, e, certamente, não é contemporânea. Num mundo em que o desejo mimético sempre degenera em violência, a única saída vislumbrada pelos antigos era o abandono do próprio desejo. Jesus, no entanto, não pede a seus discípulos que renunciem ao desejo como tal, mas que abandonem a mimesis conflituosa, uma forma de desejo que só pode levar à morte. Em contrapartida, exorta os discípulos a desejarem o bem de seus inimigos, e assim Ele mostra que o seu seguimento não se resume ao abandono do desejo conflituoso, mas consiste, sobretudo, numa atitude de desejo positivo.

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“Ouvistes o que foi dito: amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem, a fim de serdes verdadeiramente filhos do vosso Pai que está nos céus, pois ele faz nascer o seu sol sobre os maus e os bons, e cair a chuva sobre os justos e os injustos. Pois se amais aqueles que vos amam, que recompensa tereis por isso? Não agem da mesma forma até os coletores de impostos? E se saudais somente vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não fazem os pagãos a mesma coisa? Vós, portanto, sereis perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celeste” (Mt 5, 43 – 48)

Jesus quer que seus discípulos o imitem, afim de que aprendam a desejar de modo

totalmente novo; um desejo que dispensa mesmo qualquer tipo de reciprocidade; que é

identificado com o padrão de desejo criador do próprio Deus: “Vós, portanto, sereis perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celeste” Em outras palavras, a proposta evangélica não é uma recusa da mimesis que constitui o ser humano, mas exortação à direcionar nossa capacidade imitativa para o único modelo que não está em rivalidade com ninguém: Jesus Cristo. Isto porque o modelo não apenas se recusa a apropriar-se de qualquer objeto em disputa – “a quem quer conduzir-te ante o juíz para tomar a sua túnica, cede-lhe também o teu manto”(Mt 5, 40) – mas também porque ele mesmo direciona todo seu desejo para um Modelo que está completamente fora da lógica da retribuição – “vosso Pai que está nos céus faz nascer o seu sol sobre os maus e os bons, e cair a chuva sobre os justos e os injustos”. Em sua recusa de apropriar-se das coisas dos homens e das coisas de Deus, Jesus está imune a qualquer tipo de contaminação conflituosa. Esta imunidade confere a ele uma existência vivida como graça: Tudo o que ele tem, inclusive a própria vida, é dom do Pai. É essa existência que Jesus tenta comunicar aos seus discípulos ao propor-lhes o Reino. Uma proposta que, porém, será gradualmente recusada por todos, começando pelos conterrâneos de Jesus, passando pelos doutores da Lei e terminando com seus próprios discípulos. É que tal proposta não pode coexistir com a mimesis conflituosa que estrutura a cultura humana – “o príncipe deste mundo” – e precisa ser eliminada para que o mundo dos homens subsista. Chegamos, assim, ao ápice do mecanismo vitimário no Novo Testamento.

! Eucaristia e Ressureição: Dessacralização da morte !

Na noite em que foi entregue, Jesus conferiu à refeição que realizou com seus

discípulos um sentido específico e totalmente novo. Para dizer as palavras que efetivariam esta alteração de significado, Jesus utilizou não apenas expressões da linguagem sacrificial de Israel “Isto é o meu corpo”, “isto é o meu sangue”, mas também algumas frases da linguagem profética “Que é dado por vós”, “que é derramado por vós e por muitos” Isto significa que Jesus, naquela altura, fizera uma interpretação salvífica da morte que estava por alcançá-lo. Calar-se ou fugir seria aceitar que diante de um mundo fundado sobre a violência, e portanto, sobre a marginalização e a exclusão, não há outro modo de agir senão submetendo-se à realeza da lógica sacrificial. Jesus aceita livremente a morte que está por alcançá-lo, mas antes quebra o pão da ceia pascal e o identifica com seu corpo, oferece também o vinho e diz “Isto é meu sangue”, por fim, ordena a seus discípulos que repitam a ceia em sua memória. Se retomarmos o que dizíamos no início à respeito do mecanismo vitimário, daremo-nos conta da importância que o memorial adquire aqui. É que a comunidade, após saciar sua raiva contra a vítima recém

executada, experimenta os efeitos pacíficos de reintegração social. A vítima, para todos os efeitos, parece mesmo ter sido responsável pelos distúrbios que haviam abalado a comunidade. “Fazei isto em memória de mim”: Lembrai-vos da vítima inocente. A identificação dos objetos de culto, pão e vinho, com o corpo e o sangue da vítima é a revelação do que está na origem de todos os rituais: uma vítima humana. O que os ritos fazem é legitimar, ou seja, sacralizar o papel da vítima afim de que ela se torne um bode expiatório sancionado coletivamente, capaz de catalisar a exasperação do conflito mimético na comunidade. Este paralelismo entre assassinato coletivo e rito sacrificial é o fundamento da composição da Paixão em João: Jesus é crucificado no mesmo momento em que os sacerdotes sacrificavam os cordeiros no Templo. Embora a concepção sacrificial de Israel estivesse há anos luz à frente de qualquer ritual do mundo antigo, permanecia a necessidade de vítimas expiatórias para coalizão do grupo. Sabia-se pelo culto que Deus tolerava e operava os sacrifícios pelo bem de seu povo, mas Israel continuava sem saber como transferir todo o impacto dessa descoberta para a ação ética cotidiana. Percebendo que não conseguia agir conforme as palavras do profeta Oséias “É o amor que me agrada, não o sacrifício” (Os 6,6) Israel recorria à expiação como se recorre a um remédio. Toda a atividade de Jesus, passando pela Eucaristia e culminando na autoentrega da cruz é reunião do ético e do litúrgico, e portanto, do sacrifício profético e sacerdotal. A Eucaristia é, portanto, a plenitude do culto de Israel e o exato oposto dos ritos sacrificiais pagãos, pois associa o culto não a um sacrifício sancionado e necessário, mas a uma vítima inocente cuja morte é testemunhada como desnecessária por um pequeno grupo de pessoas. Ao revelar a inocência da vítima, a eucaristia dessacraliza sua morte e mostra o que ela de fato é: mero assassinato. Mas a eucaristia não é simplesmente uma revelação “secular” sobre a tendência humana de sacralizar vítimas, pois nesta revelação está implícito o amor daquele que deu a sua vida livremente– e assim fez o único e verdadeiro sacrifício – afim de que suas testemunhas pudessem ter acesso a um modo de viver não comprometido com a lógica sacrificial deste mundo. É claro que esta compreensão só nos é possível através da fé na ressureição, pois se Jesus permanecesse no túmulo, suas palavras teriam caído no vazio e, então, o impacto de sua morte sobre os discípulos, e a reintegração da comunidade sobre seu cadáver teriam confirmado a necessidade de sua eliminação. Em outras palavras: Jesus seria transformado em uma vítima ambivalente como todas as outras. É no túmulo vazio e nas aparições do Ressuscitado que a inocência de Jesus é confirmada

por Deus: A vítima necessária para que o mundo sacrificial dos homens continue a existir simplesmente não está lá. O mecanismo vitimário está desmontado. Detenhamo-nos aqui um momento. Uma leitura piedosa deste relato pode nos afastar da terrível desestruturação que ele é capaz de comunicar. Dizer que o mecanismo vitimário está desmontado é dizer que toda a cultura humana está desestruturada. O mundo fundado por Caim está comprometido. A presença do Ressuscitado é, portanto, desestabilizadora. Ao ressuscitar Jesus dentre os mortos, Deus se mostra em favor dele, e se Deus se mostra em favor daquele que foi condenado pelas autoridades civis e religiosas (Roma e Jerusalém), então os interditos também perdem sua legitimidade. A Ressureição é não apenas a confirmação da dessacralização do rito operado pela Eucaristia, mas também a dessacralização dos interditos operada pela reabilitação do condenado. A Ressureição de Jesus põe fim ao mecanismo vitimário que sustenta a cultura humana e assim desestabiliza a própria identidade do homem. As testemunhas deste acontecimento são submetidas à uma experiência de Revelação (Apocalipse) divina e antropológica. Digamo-lo novamente: a dessacralização operada pela Ressureição da vítima não é mera secularização; não é mera acusação que se faz aos homens por suas tendências homicidas, pois é também revelação de um Poder capaz de subverter a violência humana, e que ao fazê-lo, trilha com os homens um novo Êxodo rumo à transfiguração do mundo. A percepção de que Deus toma a iniciativa afim de tomar sobre Si a violência humana e devolver aos homens uma existência não-dependente da morte, faz com que a experiência de dessacralização da vítima também seja uma espécie de Yom Kipur, um dia do grande perdão.

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Interpretação neotestamentária da morte de Jesus Jesus, morto e Ressuscitado, convida os seus discípulos a formarem uma nova comunidade, desta vez não mais dependente da vitimização de bodes expiatórios, mas estruturada na sua própria morte e ressureição. A igreja, comunidade do Ressuscitado, flui da Eucaristia, rito pelo qual A Vítima se aproxima de seus discípulos para perdoar-lhes as atitudes vitimárias e oferecer-lhes a conversão. Enquanto estavam submetidos a este processo de descoberta, ficava cada vez mais claro para os seguidores de Jesus, que a Revelação definitiva de Deus não poderia estar dissociada do sacrifício de Cristo, e que era só através da Ressureição do Senhor que se poderia vislumbrar a superabundância do amor do Pai. Jesus então é inserido no contexto do Deus que se sacrifica pelo seu povo. É um engano pensar que a interpretação neotestamentária da morte de Cristo recai num arcaísmo sacrificial. O que o ocorre é justamente o oposto. A superação do mundo

sacrificial é alcançada mediante um sacrifício ao revés – o único e verdadeiro, pois capaz de revelar a vítima e não esconder – que Deus se dispôs a fazer pelos homens. Assim a morte de Cristo foi interpretada como um ato de amor gratuito de Deus, superando as nossas barreiras sacrificiais e abrindo o caminho para o Paraíso, onde as vítimas não são mais necessárias para a convivência humana. “Deus, com efeito, amou tanto o mundo que deu o seu Filho, o seu único, para que todo homem que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Por fim, eu gostaria de fazer uma consideração de tudo o que foi falado aqui com relação ao tema deste congresso: a palavra grega para "sentir compaixão" no Novo Testamento é σπλαγχνίζοµαι (splanchnizomai). A raíz da palavra, splancha, referia-se originalmente às partes internas da vítima sacrificial, mas passou a designar também, na Bíblia, as vísceras dos seres humanos, que eram como que “consumidas” quando estes sentiam compaixão - As vísceras correspondiam ao centro das emoções, tal como hoje corresponde o coração. Ora, uma indicação como esta, tão superficial, nos mostra o quanto o significado das palavras referentes aos nossos valores mais nobres (no caso, a compaixão ou a misericórdia) depende de uma correta interpretação daquele fenômeno que está na origem da formação destas palavras: O sacrifício.

! Biliografia ! !

Alison, J - Some thoughts on the Atonement Alison, J - On being liked, 2003 Balthasar, Hans Urs - Theo-Drama IV, 1994 Girard, R– Coisas ocultas desde a fundação do mundo, 1978 Girard, R – Violent Origins, 1988. Hengel, M - Crucifixion in the ancient world and the folly of the message of the Cross Milgrom, J - Leviticus 1–16 (Anchor Bible Series), 1991 Ratzinger, J – God is Near Us: The Eucharist, the Heart of Life, 2003 Spicq, C., & Ernest, J. D - Theological lexicon of the New Testament, 1994

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