Um Salve por São Paulo: cidade, mídia e violência em duas narrativas

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Um Salve por São Paulo: cidade, mídia e violência em duas narrativas 1 Around Sao Paulo: city, media and violence in two narratives 2

Marília Bilemjian Goulart (Mestrado – ECA- USP)

Resumo: O artigo discute os modos como a cidade de São Paulo é construída nos longas-metragens Salve Geral e Inquilinos. Com narrativas atravessadas pelos ataques do PCC realizados em maio de 2006 na cidade de São Paulo, ambos os títulos mantêm a tradicional poliformia paulistana e constroem diferentes cidades na tela. Mais do que tramas centradas em nichos distintos, as diferenças entre os longas passam intensamente pelos elementos formais articulados em cada filme.

Palavras-chave: Cinema e cidade, São Paulo, PCC, violência.

Abstract: The article discusses the ways in which the city of Sao Paulo is built on the feature films Time of Fear and The Tenants - Don't Like It, Leave. Marked by the attacks against Sao Paulo carried out by the criminal organization PCC in May 2006, both movies keep cinema’s tradition of a multifaceted Sao Paulo as they create different cities on the screen. The distinct cities shown on each film are built more upon formal choices than specific sets or characters.

Keywords: Cinema and city, Sao Paulo, PCC, violence.

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Trabalho apresentado no XVIII Encontro Socine de Estudos de Cinema e Audiovisual, na sessão “Espaços, cidades e fronteiras no cinema”. 2 Mestranda pelo Programa de Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicação e Artes - USP, bolsista Fapesp, desenvolveu pesquisas sobre violência urbana nas áreas de Antropologia e Sociologia da Comunicação durante graduação em Ciências Sociais. Atua também como editora de curtas-metragens.

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Desde sua fundação, a cidade de São Paulo parece sempre se reinventar. Em certa sintonia com a voracidade paulistana, a filmografia ambientada nessa cidade não apresenta traços paisagísticos ou fisionomias recorrentes que ajudem a consolidar uma identidade da São Paulo do cinema. Essa característica polifórmica é recorrente tanto nas produções de diferentes momentos – como São Paulo- Sinfonia da Metrópole (1929), São Paulo S/A (1965), O Bandido da Luz Vermelha (1968) e Cidade Oculta (1986) –, quanto em produções de uma mesma década – como em O Invasor (2001), Carandiru (2003) e Contra Todos (2004). Essa tendência se expressa nos títulos Salve Geral (Sérgio Rezende, 2009) e Os Inquilinos (Sérgio Bianchi, 2009) que se situam em torno dos ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC) e 3

constroem diferentes sentidos à cidade de São Paulo ambientada em maio de 2006 . Nas duas narrativas, diferentes figuras arquetípicas da vida urbana, como o trabalhador, a classe média, o bandido e a polícia, vivenciam os ataques e a cidade de modos diversos. Mais do que tramas centradas em núcleos distintos, as distâncias entre a São Paulo de Salve Geral e de Inquilinos passam intensamente pelos elementos formais articulados em cada longa-metragem. Estruturado em torno de uma narrativa clássica, Salve Geral se centra nos personagens Lúcia e Rafa, mãe e filho de classe média que têm sua decadência acirrada com a prisão do jovem. Seu encarceramento justifica a aproximação do universo do PCC e dá início à cadeia de ações e reações, ou “situação-ação-situação” que marca a grande forma da imagem ação do cinema clássico (DELEUZE, 1985). Após a desestabilização acirrada com a prisão de Rafa, mãe e filho passam a conviver com o PCC dentro e fora da cadeia e reestabelecem a harmonia ao lado da facção. Os ataques do PCC reativam suas trajetórias e impulsionam a resolução do filme. No campo da linguagem Salve Geral é marcado pela decupagem clássica – que varia entre uma montagem ora estável, ora fervilhante nos moldes do filme de ação (BORDWELL, 2008) em cenas nas quais a violência desponta de modo literal, isto é explicitada em imagens. Ao longo do filme a linguagem clássica se combina com a do jornalismo tradicional que surge tanto pelo uso de imagens de arquivo quanto pela emulação de reportagens. A mídia – que aparecerá também em Inquilinos, representa em Salve Geral uma inspiração iconográfica e também de conteúdo.

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Esta apresentação é parte da dissertação “Um Salve por São Paulo: narrativas da cidade e da violência em três obras recentes” que além de aprofundar questões levantadas aqui, inclui o longa Inversão (Edu Felistoque, 2010) no corpus da análise.

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O trânsito – elemento que, vale destacar, atravessa a poliforme São Paulo do cinema – é um movimento fundamental em Salve Geral. O trânsito caracteriza a trajetória dos personagens: primeiro para junto do PCC e então para longe. O movimento abre o filme e mimetiza a decadência inicial da família através da descida do apartamento na região central para as bordas da cidade; após os inúmeros deslocamentos temos então o trânsito final quando Lúcia e Rafa deixam a cidade.

Figura 1 – movimento que anuncia a

Figura 2 – deslocamento final de Salve

decadência familiar. Salve Geral, Sérgio

Geral, Sérgio Rezende.

Rezende.

Além de marcar a trama, o trânsito constrói a cidade fílmica: com o constante e intenso deslocamento dos personagens, Salve Geral cria uma cidade imensa que se estende no horizonte. Após a descida da primeira sequência a mise-en-scène dos personagens é essencialmente horizontal – horizontalidade reforçada pelos diversos planos aéreos que destacam as malhas viárias que atravessam a cidade. A enorme cidade também é construída através da montagem que articula ações que correm em paralelo em diferentes locais como casa, célula do PCC, delegacia e presídio. Além de gigante a cidade também é plural: os deslocamentos dos personagens descortinam a segmentação social e geográfica da desigual metrópole. O trânsito atravessa marcos da cidade – como Avenida Paulista, Anhangabaú e Banespinha – e locais periféricos anônimos apontando que “está tudo dominado”, isto é, que a prática do crime não se restringe às zonas pobres como alguns títulos nacionais aludem.

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Figura 3 – plano aéreo que reforça a horizontalidade da cidade fílmica. Salve Geral, Sérgio Rezende.

A cidade fílmica de Salve Geral é, em grande parte, composta por locações e cenários de Paulínia e Campinas. Nesse sentido os diversos planos aéreos que se avolumam ao longo do filme sugerem a intenção de conferir unidade aos inúmeros locais onde a narrativa se desenvolve e fazer das múltiplas locações de São Paulo-Campinas-Paulínia “a cidade” do filme. A escolha de construir São Paulo através de locações em outras cidades contrasta com a defesa do diretor de utilizar um presídio desativado (o Complexo Penitenciário carioca Frei Caneca) onde, segundo Rezende, “a 4

realidade é mais poderosa que a imaginação” . A discrepância entre o “cenário real” do presídio e o “irreal” de São Paulo pode apontar que, para Rezende, em sua imensidão São Paulo não tenha identidade, ou ainda que essa imensidão que abraça espaços anônimos e marcos da cidade seja, em si, sua identidade. Apesar do constante deslocamento e da intensa presença da cidade na narrativa, Salve Geral não vai além das malhas viárias por onde os personagens circulam, pouco penetra nos espaços que surgem de modo plano como palco dos ataques e das demais ações. De modo semelhante, a aproximação com o universo carcerário também é pontual e mantém certo distanciamento. Dessa forma, as problemáticas do urbano, dos ataques, do cárcere e da segurança pública não surgem para além do drama da família de classe média que nos guia para junto da facção. A separação entre universo abordado e o filme é reforçada também pela banda sonora. Além da impecável sonoplastia que destaca os ruídos das ações, as trilhas originais remetem de modo genérico aos soundtracks e,

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Disponível em: . Acesso em: 25 jul. 2014.

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com a música tema (Slavonic Dance, de Antonin Dvorák), apontam para a distância entre o ponto de vista dos realizadores e o universo urbano e carcerário que são abordados. De modo bastante diverso, Inquilinos se desenvolve em uma narrativa mais frouxa e com uma linguagem mais poética. O filme se estrutura em torno do cotidiano de Valter entre trabalho 5

(Ceasa, Zona Oeste), escola (Valo Velho, Zona Sul) e bairro (periferia genérica ) onde vive ao lado da esposa Iara e dos filhos Fernanda e Diogo. Sem grandes acontecimentos que despontam ao longo da trama e sem uma meta que mova os personagens, a narrativa se passa nesse constante trânsito entre os espaços. Nessa relativa banalidade cotidiana perduram o medo e a curiosidade que fomentam o mistério que move a trama. Sem cartões postais ou a pluralidade de cenários vistos em Salve Geral, a São Paulo de Inquilinos é composta pelos locais de trabalho e de estudo de Valter e, de modo central, pela vizinhança onde os personagens residem. O bairro é o local onde o filme se inicia e termina, e também o espaço onde grande parte das cenas se passa. Composto exclusivamente pelas ruas de frente da casa de Valter e pela rua de cima, o bairro – e com peso a casa da família – concentra a força dramática da trama. A chegada dos misteriosos inquilinos que passam a morar no terreno ao lado atualiza e se mistura com os perigos narrados pela TV, pelos diálogos e pelas constantes fofocas, alimentando um quadro repleto de suposições. Na casa, sala e cozinha são os ambientes mais explorados. Em ambos, as vidraças e a TV se apresentam como “janelas para o mundo” que conectam a família às notícias sobre ataques e violência e, simetricamente, à “cena” da casa ao lado. O dia a dia é ação, mas também linguagem. Além da repetição dos eventos, a noção de cotidiano é construída através da composição dos quadros: a ida e a volta de Valter para casa pela mesma ladeira, os jantares tardios junto a Iara e as despedidas em frente ao portão constroem imageticamente a repetição diária que dá ritmo à trama. A despeito do constante trânsito entre zonas extremas da cidade a maior parte dos trajetos é omitida através de elipses em que passamos, por exemplo, da saída matinal ao retorno de noite. Nos poucos deslocamentos que vemos (são apenas quatro no constante trânsito), Valter circula pela paisagem afetada pelos ataques. Dessa forma, a imensidão da cidade não surge através das distâncias literalmente percorridas pelos personagens (como em Salve Geral), mas por meio desse constante chegar e sair de uma periferia a outra, 5

Apesar de muitas proximidades com algumas características da Brasilândia (bairro da Zona Norte paulistana onde boa parte do longa foi rodado), a narrativa não nos oferece nenhuma informação sobre sua localidade e constrói um bairro periférico genérico.

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deslocamentos esses que podem ser pensados como uma das características que confere identidade à cidade construída no filme.

Figuras 4 a 9 – o cotidiano em quadros. Inquilinos, Sérgio Bianchi.

Além dos quadros que se repetem e da recorrente omissão dos trajetos que reforçam a importância da vizinhança, o cotidiano fortemente atrelado ao bairro surge também através dos sons, ou, mais especificamente, do “som território” (CHION, 2008). Diferentemente da sonoridade de Salve Geral, Inquilinos se abre aos sons cotidianos e incorpora às cenas vozes e ruídos da vizinhança como o estouro de fogos de artifício, ruídos de avião e de animais que, sem se relacionarem com a 6

trama ou com a ação em quadro, são potentes na construção do ambiente e da atmosfera do filme . Apesar da importância e do pertencimento da família à vizinhança, o bairro contém um conflito latente que não se restringe à chegada dos inquilinos. A tomada inicial do filme nos apresenta um instigante morro coberto por casas sem reboco que, de modo genérico, remete às ocupações irregulares, às favelas. Essa paisagem inicial destoa da vizinhança de Valter composta por casas coloridas e com acabamento. Com o enquadramento que se fecha nos limites das habitações (como nas figuras 8 e 9), a vizinhança de Valter é recortada de seu entorno. Somente na metade do filme a paisagem se completa, revelando que o morro do primeiro plano é a paisagem que envolve o bairro

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As sonoridades de Salve Geral e Inquilinos refletem a escolha de se filmar em estúdio ou locação: diferentemente da casa de Lúcia – construída em um estúdio de Paulínia, a de Valter foi literalmente erguida na Brasilândia pela equipe do filme.

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onde a família reside. A segregação também se dá através das falas que caracterizam a favela como local perigoso, de onde emana o mal e de onde se supõe que vieram os inquilinos. A operação de isolar o espaço de seu entorno – realizada no campo da imagem através do recorte no quadro e das elipses – remete à configuração de São Paulo onde extremos contrastes convivem lado a lado – segregação que é exacerbada na cidade através dos enclaves fortificados (CALDEIRA, 2000).

Figura 10 – o entorno da vizinhança se revela. Inquilinos, Sérgio Bianchi. Desse modo, para além dos cenários específicos de cada obra, Salve Geral e Inquilinos constroem audiovisualmente diferentes cidades na tela, além de múltiplos sentidos para o urbano e para os personagens atravessados pelos ataques. Em Salve Geral a cidade se alonga em espaços plurais, cenários que, assim como os ataques, não têm seus sentidos discutidos ou problematizados. Já em Inquilinos, a narrativa fechada na vizinhança sobre o topo do morro constrói, junto a outros elementos, um comentário irônico e crítico sobre a sociabilidade na cidade invadida pela violência – prática que não surge através de imagens literais ou com o contorno espetacular de Salve Geral, mas que aparece como espectro que se instaura nas entranhas do cotidiano. A discrepância no tratamento da cidade e do mesmo evento oferece interessante quadro para discutir as possibilidades na abordagem do urbano e pensar nas formas como a cidade marcada pela violência é percebida, imaginada e temida, ao menos, no audiovisual. Vale lembrar que essas práticas e suas re-apresentações influem na configuração física do urbano, criando rupturas simbólicas que deslancham em consequências reais no uso do espaço (JAGUARIBE, 2007). As múltiplas formas como se narra a violência no cinema têm diferentes éticas e consequências (BENTES, 2003) podendo contribuir para construir ou desconstruir preconceitos.

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Referências Bibliográficas

BENTES,

Ivana.

"Estéticas

da

Violência

no

Cinema".

Interseções:

Revista

de

Estudos

Interdisciplinares. Rio de Janeiro, ano 5, 2003. Edição especial.

BORDWELL, David. A esthetics in Action - Kung-fu, Gunplay, and Cinematic Expression. In: ______. Poetics of Cinema. Nova Iorque: Routledge, 2008.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34, 2000.

CHION, Michel. A audiovisão: som e imagem no cinema. Lisboa: Texto & Grafia, 2008.

DELEUZE, Gilles. Cinema 1: a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.

JAGUARIBE, Beatriz. O choque do real: estética, mídia e cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

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