Um século de estudos curriculares

May 30, 2017 | Autor: Pedro Patacho | Categoria: Políticas Educativas, Teoria Curricular, Neoliberalismo E Educação
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Paraskeva, João M. (Org.) (2005) Um Século de Es tudos Curriculares. Lisboa: Plátano Editora. 140 pp. ISBN: 972-770-362-3

Pedro Patacho Instituto de Ciências Educativas – Portugal Júlio 31, 2007 A obra organizada por João M. Paraskeva reúne textos de vários autores que se têm destacado na análise e reflexão em torno das políticas educativas e curriculares. Apresenta um conjunto de perspectivas que problematizam as relações entre o currículo e o projecto político neoliberal, que se vem expandindo e consolidando no mundo, com visíveis impactos nos sistemas educativos em geral e no currículo em particular. Ao mesmo tempo, apresenta alternativas historicamente contextualizadas, alertando para os perigos de pensar que as propostas neoliberais são as únicas possíveis. No actual clima político e social, marcado pela hegemonia neoliberal, ganha especial relevância convocar para análise Um Século de Estudos Curriculares – o que se constitui como finalidade desta obra – pois, como recorrentemente nos chamam à atenção os autores, qualquer abordagem das instituições educativas actuais, da sua evolução, da construção e reformulação dos currículos, terá de ter necessariamente em conta a forma como estes aspectos estão umbilicalmente ligados às grandes correntes e contracorrentes sociais, associadas a conflitos e tensões seculares de natureza politica, económica e cultural, profundamente imersas em questões de raça, de género e de classe social (cf. Apple e Weis, 1997). Como é tornado claro nesta obra, os discursos educativos neoliberais, que actualmente ecoam por boa parte dos sistemas educativos, produzem toda uma retórica que não é realmente nova, mas antes um reforço das doutrinas sociais dominantes que moldaram a emergência do campo curricular como uma área de estudo formal, nos princípios do século passado e que, volvido um século, continuam a exercer a sua forte influência ainda hoje. Um Século de Estudos Curriculares estrutura-se em sete capítulos que, recuando até aos finais do século XIX e analisando o surgimento e o desenvolvimento do campo curricular, nos permitem uma reflexão acerca da educação contemporânea e, em particular, do caminho trilhado até aqui para, de forma fundamentada, compreender quais as raízes do projecto neoliberal que se tem conseguido impor como força dominante, quais os valores que o sustenta e quais os valores que são deixados para segundo plano, quais das suas

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principais concretizações, quais os riscos e perigos que comporta e que alternativas se têm esboçado. Procurando uma síntese integradora dos vários capítulos e dos seus diferentes contributos, ainda que sujeitos ao espaço limitado de uma resenha crítica, optamos aqui por uma hipótese de trabalho que passa pela análise conjunta dos dois capítulos mais longos da obra (capítulos quinto e sétimo), que mais demoradamente abordam a evolução do pensamento curricular, os fundamentos do projecto neoliberal e as propostas alternativas que se têm avançado para, integradas nesta análise, introduzirmos referencias aos contributos dos restantes capítulos. Situando-nos nos finais do século XIX e caminhando progressivamente até aos tempos actuais, as análises de Landon Beyer (capítulo quinto, pp. 59-84) e João M. Paraskeva (capítulo sétimo, pp. 97-140) permitem-nos compreender com detalhe o ‘caldo’ cultural, político e económico do qual emergiu o campo curricular, como área de estudo formal, bem assim como os interesses subjacentes à construção curricular e às recorrentes lutas pelo controlo dos conteúdos curriculares. Segundo os autores, que recuperam o trabalho dos primeiros grandes teóricos do currículo, como Bobbit, Charters, Sneden, entre outros, é no contexto de uma revolução industrial que prossegue a um ritmo avassalador que a doutrina da Eficiência Social se consegue impor como força curricular dominante, ‘aventando’ respostas tidas como adequadas às complexas condições sociais da época, que haviam colocado a escola no epicentro das preocupações a vários níveis, como uma instituição manifestamente desajustada das actividades práticas da vida. Tais respostas surgiram fundadas numa crença férrea na objectividade e certeza científicas, na definição de padrões ou estandartes, na avaliação, que se foi implementando cada vez mais como mera classificação (cf. Afonso, 1997), numa acentuada intencionalidade pragmática, procurando um ajustamento às necessidades do mercado de trabalho em crescimento exponencial, e em valores como o individualismo, o esforço, a eficiência e a segregação, não obstante a existência de vozes dissonantes com propostas de pendor mais progressista, assentes em valores como a equidade e a justiça social, das quais se destacaram John Dewey e William Kilpatrick, entre muitos outros que entendiam a educação como “vida em si e não uma mera preparação para a vida futura” (Kilpatrick, 2006). Importa aqui convocar o contributo de Steven Selden (capítulo primeiro, pp. 1742), que recupera e desafia a história do movimento eugénico nos EUA para nos mostrar a forma como certas interpretações deterministas da genética, enquadradas pelo discurso político, pelo contexto social, pelos media e pela cultura popular norte americana influenciaram a educação formal e não-formal de uma geração de americanos, ajudandonos a perceber como um certo quadro axiológico veio a influenciar o surgimento e o desenvolvimento do campo curricular e da educação em geral. Com efeito, desde os materiais escolares (sobretudo os manuais escolares), passando pelo cinema, pelas cerimónias religiosas, pela imprensa ou ainda pelas exposições estaduais ou por populares concursos como Beter Babies e Fitter Families, foram passadas mensagens de segregação baseadas na ‘herança genética’, apresentada como determinante não apenas de traços físicos, mas igualmente de uma infindável quantidade de características e até da conduta geral dos indivíduos. O recurso a “metáforas da biologia para moldar políticas sociais no que diz respeito a políticas da imigração, à segregação dos ‘inaptos’ da sociedade e para os programas de controlo da reprodução humana” (Selden, 2005, p.20) são exemplos da influência que à época o movimento eugénico exerceu no discurso político e, consequentemente, em inúmeras decisões que marcaram indelevelmente a sociedade dos Estados Unidos e, em particular, a educação dos cidadãos. Mesmo nas sociedades actuais encontramos fortes influências deste discurso determinista. Um claro exemplo é a actual discussão que percorre Portugal, a propósito da interrupção voluntária da gravidez, no seio da qual é possível ouvir e ler (muito com o contributo acrítico dos media) um conjunto de argumentos que não raro se resumem a

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interpretações abusivas de conceitos das ciências da vida. O mesmo sucede com discussões em torno da orientação sexual, de questões de género ou de raça. Como nos alerta Selden, assiste-se à transferência de um conjunto de imagens e de um determinado vocabulário das ciências da vida para o âmbito social, sugerindo, explicando, justificando e mesmo ajudando a criar categorias sociais e valores que legitimam acções políticas. Assim como nas primeiras décadas do séc. XX, também hoje a “fascinação pelos avanços da genética molecular [tem] levado a imagens deterministas… tão prevalecentes nos media” (Selden, 2005, p.19). É ao tomarmos consciência de que esta transferência acrítica de imagens e vocábulos da ciência para a esfera do social e para o discurso político legitima a segregação e a meritocracia, tal como sucedeu no passado, ao mesmo tempo que iliba o Estado das suas responsabilidades para com os pobres e os mais desfavorecidos, também nas escolas, que nos damos conta da urgência e necessidade de uma leitura critica das possibilidades e limitações das ciências da vida para explicar o comportamento humano, bem como das pressupostas relações entre as abordagens científicas e as políticas sociais. Ao longo de todo o século XX manteve-se sempre a tendência de olhar para “a educação e para o currículo como plataformas sociais (e políticas) capazes de fazer frente às sucessivas crises que foram esfrangalhando o tecido social” (Paraskeva, 2005, p.121). Contudo, importa salientar que durante igual período sempre houve resistências e diversas vozes a apontar caminhos diferentes, entre as quais se destacam as de Dewey e de Kilpatrick, no início do século XX, ou a de Kliebard, mais recentemente, entre muitos outros. De facto, chega-se à década de 70 do século XX e assiste-se a um período de profícua produção intelectual que marca uma “ruptura paradigmática explicita e clara” (Paraskeva, 2005, p.123) com as doutrinas dominantes que se foram ‘reinventando’ e mantendo um determinado staus quo, abrindo-se assim auspiciosas possibilidades para novas teorizações em torno do currículo e da educação em geral, o que continuou ainda a verificar-se no final da década de 80 e no início dos anos 90 desse século. No entanto, como salienta Beyer, faltou no passado e tem continuado a faltar “clareza e incisão” (Beyer, 2005, p.66) aos movimentos educacionais progressistas para se conseguirem impor como alternativas e desafiar o staus quo curricular que domina a educação contemporânea, sob a égide conservadora. Com efeito, as políticas de Direita conseguiram no passado e têm continuado a conseguir impor-se como forças dominantes, influenciando decisivamente a agenda educativa, ao passo que a “Esquerda educacional tem-se vindo a revelar um movimento desarticulado, revelando profundas diferenças e antagonismos, mesmo no seu seio” (Paraskeva, 2005, p.123). Como nos lembra Michael Apple, muitas vezes a Esquerda perde-se no altar da teorização (Apple, 2000) falhando nas ligações com a prática educacional. As propostas educativas que actualmente ‘varrem’ boa parte dos sistemas educativos, consubstanciando poderosas tentativas de restauração conservadora, não podem portanto ser desligadas dos importantes debates públicos e académicos que, em meados da década de 80 do século passado, aumentaram a sua ênfase na “forma e direcção dos currículos da escola e universidade” (Beyer, 2005, p.65), acabando por moldar o que podemos designar de agenda educacional neoconservadora. Relatórios influentes como “A Nation at Risk” (Beyer, 2005, p.65), produzido nos EUA durante a administração Reagan, entre outros estudos influentes da época, citavam as escolas como “promotoras de uma miríade de deficiências económicas, sociais e militares” (Beyer, 2005, p.65) que era urgente corrigir. Durante toda a década de 80 “a política da Direita articulou uma crítica dos currículos das escolas públicas e universidades e uma visão para a sua transformação” (Beyer, 2005, p.65). Dessa articulação emergiram as propostas conservadoras e uma sistemática desvalorização de outras práticas educacionais de pendor mais progressista. Actualmente, “Agenda Neoconservadora na Educação” (Beyer, 2005, p.60) fomenta a ideia de que vivemos em tempos críticos e que a “desintegração cultural,

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económica, moral e educativa” (Beyer, 2005, p.61) é eminente. Salienta a falta de valores comuns e a queda das tradições. Critica os currículos por tratarem de forma insuficiente os factos que representam a ‘nossa cultura comum’ e por não mais representarem a “procura desinteressada da verdade” (Beyer, 2005, p.61). A tónica é então colocada na transmissão de uma dita e tida ‘cultura comum’ que funcione como forma de ‘coesão social’ e que forneça os instrumentos adequados para a integração e participação política e social dos cidadãos. Neste âmbito, as propostas de trabalho conservadoras que, em rigor, se centram no ensino de factos e não no pensamento, vêem os conteúdos de escolarização e a formação do carácter como os aspectos primordiais a ter em conta, aqueles a que as escolas e os professores devem dar ênfase, “para [supostamente] enfrentar os males da sociedade” (Beyer, 2005, p.63) cuja origem se faz crer que é educacional. Assim, reclama-se a necessidade de objectividade, a definição de padrões estandardizados – o que possibilita o controlo apertado dos conteúdos, a propósito dos quais, de resto, se mantém convenientes silêncios (Paraskeva, 2005) – e proclama-se o ensino como um inestimável bem público, o garante contra os problemas sociais que impedem o desenvolvimento e o progresso de cada nação. Problemas esses que não são vistos como estruturais, mas como fraquezas individuais cuja incidência é maior nos pobres e nos mais desfavorecidos, cabendo à escola e à classe docente corrigi-los. O ónus da culpa pelos males da sociedade recai assim sobre os ombros das escolas e da classe docente, bem como nos de todos aqueles que são apontados como responsáveis pela sua miséria individual pois, fazendo-lhes crer que têm igualdade de oportunidades, é-lhes dito que simplesmente não se esforçam. É a falácia da cultura do esforço, ocultando-se quem realmente beneficia com tal e esforço e mais, o que se entende por esforço. Importa convocar aqui as importantes análises de Donaldo Macedo (capítulo terceiro, pp.43-54) e de Jurjo Torres Santomé (capítulo sexto, pp.85-96) esclarecedoras que são das reais consequências gravosas para a democracia desta agenda educacional neoconservadora, bem assim como os esclarecedores exemplos invocados por José Bravo Nico (capítulo quarto, pp.53-58). Ao mesmo tempo, importa também trazer à colação a análise de João Paraskeva, que retomaremos mais adiante, de como as políticas de “(sub) (re)significação” (Paraskeva, 2005, p.113) têm conseguido operar uma reconceptualização de “determinados conceitos chave e agendas que, historicamente se encontravam enraizadas na verdadeira medula do corpo educacional e curricular progressista, tais como justiça social e liberdade” (Paraskeva, 2005, p.112-113) e que paulatinamente vão aparecendo nos discursos conservadores completamente desnudados do seu sentido e significado originais. Donaldo Macedo (2005, pp.43-54) expõe de forma clara a errada ênfase que tem sido dada a uma forma de educação multicultural centrada no ensino da tolerância enquanto valor essencial do multiculturalismo e estratégia para lidar com a diferença. Na perspectiva do autor, uma educação desse tipo conduz a uma espécie de “paternalismo caridoso” (Macedo, 2005, p.43) que privilegia os detentores do poder, enquanto mantém a subordinação cultural das minorias, forçadas a viver num “drama cultural” (Macedo, 2005, p.45) que resulta do facto de experienciarem a subordinação da sua cultura nativa, desvalorizada pela cultura dominante que tentam adquirir, “muitas vezes sob condições coercivas” (Macedo, 2005, p.45). A visão predominante de educação multicultural, centrada no ensino da tolerância, fomentado pelos conservadores, oculta portanto as complexas relações de poder entre opressor e oprimido, colonizador e colonizado, perpetuando a injustiça social e o racismo e comprometendo as possibilidades de uma efectiva democracia cultural. É neste sentido que Donaldo Macedo alerta para o facto de que a educação multicultural terá de passar necessariamente pela desocultação das forças ideológicas que “constroem, moldam e mantêm a realidade cruel do racismo” (Macedo, 2005, p.45), o que implica a percepção, por parte dos grupos culturais subordinados, da sua condição

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subjugada e dos mecanismos que a matem. Será pois por aí que deverá prosseguir um multiculturalismo verdadeiramente comprometido com o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e cultural e economicamente igual. É, de resto, imoral fomentar a ideia de que todos têm igualdade de oportunidades e que em consequência disso são os únicos responsáveis pelos seus insucessos. Ao mesmo tempo, Macedo denuncia como estes movimentos educacionais multiculturais se encontram sob o jugo de um “empirismo ingénuo” (Macedo, 2005, p.46) que produz respostas que deliberadamente ocultam os elementos ideológicos que geram e mantém a segregação e a injustiça social, pelo que eles próprios são geradores de mais segregação e injustiça. Salienta como exemplo o ataque à educação bilingue e bicultural, nos EUA, sob os falsos argumentos da necessidade de objectividade, dados factuais e de rigor científico. Particularmente importante aqui é lembrar o poder dos media na construção de imagens sobre determinados grupos sociais, imagens essas que não raramente ostracizam as culturas subjugadas e endeusam uma certa visão do mundo ocidental. Os media operam frequentemente ao serviço do poder dominante, participando na edificação de um senso comum que fomenta os medos e as desconfianças relativamente a outros grupos culturais ou raças. Isto é particularmente evidente no mundo ocidental pós 11 de Setembro, pelo que se impõe fomentar a capacidade de leitura crítica dos media (Steinberg, 2006) que habitualmente operam para além das instituições educativas. Com efeito, nas sociedades actuais tornou-se banal o consumo de morte e de destruição através dos media, quase sempre perpetradas pelos mesmos grupos culturais, que são assim endemoninhados, e o fomento do ‘choque’ e ‘pasmo’ ante imagens grotescas veiculadas pelos media. Tais realidades consubstanciam a participação dos media na laboração de um senso comum hegemónico que actua desvalorizando os espaços púbicos, sob a égide de uma ‘cultura do medo’ que tudo justifica (Giroux, 2006), impondo uma dinâmica pautada pelo individualismo, pela competição, pela desconfiança e pela atormentadora noção de perigo eminente, legitimando políticas que atacam severamente os direitos dos cidadãos e restringem a sua participação pública. As políticas neoliberais encontram aqui terreno para reforçar o individualismo e o mérito, e privatizar os problemas públicos. Também Jurjo Torres Santomé (2005, pp.85-96) denuncia a forma como as propostas educativas baseadas em “modelos economicistas e neoliberais… [e] concepções conservadoras da vida social” (Santomé, 2005, p. 86) se consubstanciam num severo ataque ao ensino público e a uma educação verdadeiramente democrática, agravando a injustiça e a segregação social. Partindo do caso concreto do sistema educativo espanhol que, à semelhança de muitos outros, aposta na definição e avaliação sistemática de indicadores nas diferentes áreas e disciplinas dos ensinos básico e secundário, bem como no fomento de uma ‘cultura do esforço’, alerta-nos para a forma muito clara como estas medidas resultam: (1) numa valorização dos conteúdos mensuráveis e no consequente empobrecimento do trabalho desenvolvido nas escolas; (2) na legitimação de metodologias didácticas tradicionais, potenciando formas de estudo e de trabalho mais individualistas e ligadas à memorização; (3) num ataque à autonomia dos professores, forçando-os a centrarem-se nos conteúdos obrigatórios e alvo de avaliação para elaboração dos rankings de escolas; (4) na liquidação de propostas curriculares abertas e de modelos de trabalho mais construtivistas. Segundo o autor, a euforia dos indicadores ou estandartes tem a sua origem na intencionalidade subjacente às ideologias conservadoras de vigiar os conteúdos leccionados nas escolas para assim garantir o controlo da memória colectiva, aproximando-a da sua leitura política do mundo e das sociedades. Ao mesmo tempo, “coloca a nu um desejo de uniformidade” (Santomé, 2005, p.89), apontando para a fixação de padrões, tanto ao nível dos conhecimentos como dos comportamentos. É possivelmente uma das armas mais poderosas do projecto político neoliberal, cujas profundas contradições permanecem

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ocultas pois surge com um novo vocabulário que “torna mais difícil conseguir desentranhar o verdadeiro significado e os efeitos dos seus discursos e das suas práticas” (Santomé, 2005, p.88). Conceitos como a liberdade de escolha, a competitividade, a liderança, o mérito, a excelência, a maior responsabilidade das escolas e dos professores, entre outros, são trabalhados ao nível do senso comum e prosseguem alcançando um forte posicionamento na mente das pessoas. O desenvolvimento de uma opinião pública favorável à medição de indicadores através de exames escritos nacionais e posterior divulgação pública dos resultados em rankings passa então pela construção, ao nível do sendo comum, das ideias de que a medição de indicadores não só é necessária, como absolutamente imprescindível para perseguir a excelência e melhorar a qualidade da educação e de que avaliar é um procedimento meramente técnico. É neste contexto que devem ser entendidos os processos de (sub) (re)significação que vão construindo um “um senso comum hegemónico” (Paraskeva, 2005, p.112) estratégia aliás muito apoiada “pelos media [que vão] ajudando dinamicamente no processo de reconstrução deste senso comum hegemónico, ‘fabricando significados particulares e obliterando muitos outros, alguns deles, até muito recentemente quase inquestionáveis e, de alguma forma, intocáveis” (Paraskeva, 2005, p.112). Não é por isso de estranhar que os debates em torno da educação se voltem exclusivamente, e pacificamente, para o que se passa nas escolas e nas salas de aula discutindo-se a qualidade e a eficácia daquilo que aí acontece como da exclusiva “responsabilidade da classe docente e ainda, como consequência do ‘slogan’ oportunista da cultura do esforço, dos alunos e alunas” (Santomé, 2005, p.88). Quaisquer outras causas ou explicações são silenciadas e as responsabilidades do Estado vão-se diluindo, dando lugar a um mercado educativo avaliado de acordo com certos indicadores, tornados públicos em rankings, e onde todas as responsabilidades de centram nas escolas e nos alunos, conferindo-se aos pais a liberdade de escolha dos estabelecimentos educativos. Estas políticas ignoram, deliberadamente, questões culturais, étnicas, de género, religiosas, de classe social, entre outras, tratando de igual forma os grupos de crianças mais desfavorecidas e marginalizadas que, invariavelmente, protagonizam piores resultados nas avaliações estandardizadas. Em consequência, os estabelecimentos escolares localizados em zonas mais desfavorecidas, bem como os seus alunos e alunas, são desvalorizados e “frequentemente vistos como uma ameaça” (Santomé, 2005, p93) ao prestígio da educação, que é preciso controlar e ‘resolver’. Em síntese, e como nos destaca Maria Sanches (capítulo segundo, pp.31-42), socorrendo-se das abordagens de Michael Apple (1997), no “actual contexto de globalização, servido por uma crescente institucionalização económica, política e educativa de cariz neoliberal” (Sanches, 2005, p.34), assiste-se a uma redefinição do que se entende por democracia, por igualdade e por bem-comum, emergindo uma retórica axiológica que perpassa o discurso educativo e influencia as politicas educativas e curriculares, dirigindo a atenção para padrões de qualidade, para a disciplina, o esforço, a competição, o mérito, a excelência, o sucesso… Desta retórica jorra um discurso democrático sobre a educação que “contrasta violentamente com a intensificação das desigualdades de sucesso educativo em paralelo com novas desigualdades sociais…” (Sanches, 2005, p.34). Contudo, esse discurso aparece legitimado por argumentos que fazem uso de dados relativos a questões de raça, de género, de inteligência ou de estrato social, e é apoiado por uma nova classe média profissional que se une às elites económicas e sociais, numa aliança conjuntural em torno de preocupações comuns, valorizando o mérito e a ideia, construída ao nível do senso comum, de que nas sociedades é natural haver vencedores e vencidos, ricos e pobres, visto que uns se esforçam e outros não. Ao reflectir sobre o impacto destes fenómenos e dos discursos e respostas que produzem, em termos de democratização, cidadania e justiça social, a autora identifica profundas antinomias entre, por um lado, o que é dito, o que é

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defendido, o que é recomendado e, por outro lado, o agravamento das desigualdades económicas e sociais, o aumento da exclusão, da marginalização e da injustiça. Alerta assim para a urgência de repensar o currículo para além das abordagens meramente técnicas e instrumentais, que têm ocorrido até aqui, pois é um lugar político e social “onde os alunos desenvolvem ou mutilam expectativas e identidades… e através [do qual] preparam os seus futuros” (Sanches, 2005, p.41). Como bem salienta Beyer (2005, pp. 59-84), muitas das propostas conservadoras não são realmente ‘novas’, podendo encontrar-se similitudes entre elas e as que brotaram da doutrina da Eficiência Social que se conseguiu impor como força hegemónica e moldar a emergência do campo curricular, como uma área de estudo formal, no princípio do século XX. Também nessa época as preocupações (da maioria) estavam voltadas para a necessidade de objectividade, para a mensurabilidade, para a disciplina, para o individualismo, para o esforço, para o mérito, para a promoção de conhecimentos socialmente úteis, porque eficazes no mercado de trabalho em crescimento exponencial. A diferença era considerada potencialmente perigosa, pelo que se investiu na ‘americanização’ dos imigrantes, na valorização de uma ‘cultura comum’, a fim de garantir a estabilidade e a ‘coesão social’. O currículo socialmente relevante era aquele que favorecesse “a remoção de ideias políticas perigosas, pois preparava os futuros trabalhadores para os seus papéis na vida” (Beyer, 2005, p.76), submissos, cortando pela raiz ideologias políticas que ameaçassem a estabilidade. Mas tanto nessa época, como hoje, havia vozes a ecoar noutro ‘diapasão’. Dewey (2005), entre muitos e muitos outros educadores progressistas, cujas ideias vieram a consubstanciar muitas das críticas às doutrinas dominantes que influenciaram a evolução dos estudos curriculares e do próprio currículo, desafiou claramente muitos dos pressupostos educacionais que atravessaram toda a educação do século XX e que continuam a exercer a sua forte influência ainda hoje, bem manifesta nas propostas neoconservadoras. Como salienta Beyer (2005, pp. 59-84), é um erro pensar que as propostas avançadas pelas forças neoconservadoras são inevitáveis e que não há alternativas. Um século de Estudos Curriculares impõe-se como leitura obrigatória a todos aqueles que queiram compreender as intricadas dinâmicas que circunscreveram tanto a emergência como a evolução dos estudos curriculares e do próprio currículo até aos tempos actuais. Este importante livro oferece aos seus leitores, através das análises nele incluídas, inúmeros instrumentos críticos decisivos para uma ‘leitura’ fundamentada dos modelos educacionais contemporâneos. Actualmente, e particularmente no caso português, muitas medidas que têm sido tomadas denunciam a influência das forças conservadoras e os ocultos interesses do projecto político neoliberal. Em Portugal, resiste um Currículo Unificado Pronto-a-vestir de Tamanho Único, servindo-nos aqui da metáfora de João Formosinho (2007), o que denota interesses de padronização e controlo do conhecimento veiculado pelas escolas. A propósito dos conteúdos curriculares obrigatórios, raramente se ouvem ou lêem questionamentos, imperando incompreensíveis silêncios (Paraskeva, 2005). Glorifica-se a pedagogia das competências em articulação com uma visão da educação adaptada às necessidades do mercado de trabalho e de uma escola como mera produtora de capital humano necessário às empresas. Introduzem-se exames nacionais e indicadores que se classificam para a elaboração de rankings a partir dos quais é discutida a qualidade das escolas e da classe docente, sem se definir muito bem o que se entende por qualidade da educação. Impera uma cultura do esforço e uma meritocracia que privilegiam as classes dominantes enquanto culpabilizam os alunos e alunas mais desfavorecidos pelas suas dificuldades. Faz-se a apologia da gestão profissional das escolas, da eficácia, e da produtividade da classe docente. Apregoam-se as tecnologias como a solução dos inúmeros problemas educativos e do desfasamento entre a escola e vida social presente e futura dos alunos. Encerram-se e

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vendem-se escolas públicas. Poderíamos continuar a enumeração de aspectos que, em nosso entender, revelam bem a crescente influência do projecto político neoliberal nas escolas portuguesas. Acreditamos que Um Século de Estudos Curriculares oferece um conjunto de análises críticas que não só permitem compreender muitas das tensões e querelas seculares que têm influenciado e continuam a influenciar o campo curricular, como permitem uma análise crítica de muitas das questões educativas actuais e a compreensão das razões que subjazem a inúmeras medidas que têm sido tomadas como pretensas respostas a essas questões, bem assim como outras que se pretendem tomar. Sem dúvida, uma obra fundamental! Bibliografia Afonso, A. J. (1997). Políticas Educativas e Avaliação Educacional. Braga: Instituto de Educação e Psicologia – Centro de Estudos em Educação e Psicologia. Apple, M. (1997). Professores e o Currículo: Abordagens Sociológicas. Lisboa: Educa. Apple, M. (2000). Official Knowledge. Democratic Education in a Conservative Age. New York: Routledge. Apple, M. e Weis, L (1997). Considerando a Educação Relacionalmente. A Estratificação da Cultura e das Pessoas na Sociologia do Conhecimento Escolar. In M. Apple (1997). Professores e o Currículo: Abordagens Sociológicas. Lisboa: Educa, pp., 15 – 39. Dewey, J. (2005). A Concepção Democrática da Educação. Viseu: Pretexto Editora. Formosinho, J. (2007). Currículo Unificado – Pronto-a-vestir de Tamanho Único. Mangualde: Edições Pedago Giroux, H. A. (2006). Para Além do Espectáculo do Terrorismo: A Incerteza Global e o Desafio dos Novos Media. Mangualde: Edições Pedago. Kilpatrick, W. (2006). O Método de Projecto. Mangualde: Edições Pedago/Pretexto Editora. Paraskeva, J. M. (2005). ‘Circunlóquios’ de Silêncios sobre os Conteúdos Curriculares. In J. Paraskeva, C. Rossatto e R. L. Allen. (Org.). Reinventar a Pedagogia Crítica. Mangualde: Edições Pedago: 89-106. Steinberg, S. (2006). Usar a Capacidade de Leitura Crítica dos Meios de Comunicação para Ensinar Aspectos sobre o Racismo Contra Muçulmanos e Árabes. In J. Paraskeva (Org.) Currículo e Multiculturalismo. Mangualde: Edições Pedago. Sobre o organizador do livro: João M. Paraskeva é professor no Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho, professor visitante na Universidade de A Coruña, Espanha e na Universidade de Aberdeen, Escócia, onde leccionou e lecciona cadeiras de graduação e de pós-graduação, designadamente Teoria e Desenvolvimento Curricular; Prática Pedagógica; Teoria Educacional – Abordagens Críticas e Pós-Estruturais; Ideologia, Cultura e Currículo; Teoria Curricular Crítica. Fundador e co-editor da revista Currículo sem Fronteiras, pertence ainda a Conselhos Editoriais de várias Revistas Científicas. É membro fundador do Paulo Freire Special Interest Group, da American Educational Research Association. Tem artigos publicados em várias Revistas Científicas, tanto nacionais como estrangeiras, é autor e organizador de inúmeros livros publicados em Portugal e noutros países e é tradutor de inúmeros intelectuais críticos dos Estados Unidos da América, Inglaterra e Espanha. De entre as suas obras mais recentes destacam-se, entre outras: As Dinâmicas dos Conflitos Ideológicos e Culturais na Fundação do Currículo; Ventos de Desescolarização: A Nova Ameaça à Escolarização Pública (em co-autoria com Jurjo Torres Santomé e Michael Apple); Diálogos Curriculares à Esquerda (em co-autoria com Álvaro Hypolito e Luís Gandin); Reinventar a Pedagogia Crítica (em co-autoria com Ricky Lee Allen e César Rossatto); Currículo e Multiculturalismo; Currículo e Tecnologia Educativa – Volume 1 (em co-autoria com Lia Raquel Oliveira); Marxismo e Educação – Volume 1 (em co-autoria com Wayne Ross e David Hursh).

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Sobre o autor da recensão: Pedro Patacho é professor de Matemática e Ciências da Natureza do 2ºCiclo do Ensino Básico, no Instituto de Ciências Educativas, Odivelas, Portugal. Mestre em Educação pela Universidade de Lisboa, tem-se interessado recentemente pelo campo das Políticas Educativas e Curriculares, em particular pelas abordagens críticas e radicais críticas. **** Resenhas Educativas/ Education Review publica resenhas de livros recém-lançados na Educação, abrangendo o conhecimento e a prática em sua totalidade. Todas as informações são avaliadas pelos editores: • Editor para Espanhol e Português Gustavo E. Fischman Arizona State University • Editor Geral (inglês) Gene V Glass Arizona State University • Editora de Resenhas Breves (inglês) Kate Corby Michigan State University As resenhas são arquivadas e sua publicação divulgada por meio da listserv (EDREV). Education Review é um signatário da Budapest Open Access Initiative.

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