Um século de mensagens de Fátima

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José Barreto

Um século de mensagens de Fátima

Versão original portuguesa do artigo “I messaggi di Fatima tra anticomunismo, religiosità popolare e riconquista cattolica”, publicado na revista Memoria e Ricerca, Roma: Il Mulino, vol. 53, 3/2016, settembre-dicembre, pp. 395-420.

1. O contexto nacional da criação do culto de Fátima Entre 13 de Maio e 13 de Outubro de 1917, a Virgem terá aparecido seis vezes a três crianças de sete a dez anos de idade, Jacinta, Francisco e Lúcia, que guardavam ovelhas próximo da aldeia de Fátima, no centro de Portugal. A partir da segunda, as aparições contaram com a presença de multidões de crentes e curiosos da região, crescendo o seu número até Outubro para dezenas de milhares, muitos vindos já de longe. Instados pelos crentes, que faziam donativos para a Virgem, os pastorinhos assumiram-se como intermediários junto da entidade celestial, dirigindo-lhe pedidos pessoais de curas e conversões ou perguntas angustiosas sobre enfermos, o destino de soldados enviados para a guerra1, etc. Na primeira aparição, uma “senhora vestida de branco”, descida do céu sobre uma árvore, terá pedido aos pastorinhos que rezassem o rosário pelos pecadores e pelo fim da guerra. Na aparição de 13 de Junho, a senhora pediu a Lúcia que aprendesse a ler. A 13 de Julho, pediu orações pelo fim da guerra, transmitiu aos videntes um “segredo” que lhes proibiu de revelar e prometeu um milagre para dali a três meses. Na aparição de Agosto, a senhora pediu que o dinheiro dos donativos fosse aplicado em adereços de culto. Na aparição de 13 de Setembro, pediu que rezassem pelo fim da guerra, a qual estaria para acabar, e pediu a construção de uma capela no local. Na sexta e última aparição, a 13 de Outubro, durante a qual se terá verificado um fenómeno solar – testemunhado por muitos peregrinos que logo o identificaram como o prometido milagre –, a senhora identificou-se como Nossa Senhora do Rosário, pediu orações e penitência e garantiu que a guerra acabaria naquele mesmo dia e que os soldados em breve regressariam a sua casa. Nas mensagens do céu, para além do apelo à oração reparadora, à penitência e à conversão, sobressaía o tema da guerra2. Atentando apenas nos relatos coevos das aparições de 1917, contidos nos sucessivos interrogatórios a que os videntes foram submetidos, com respostas por vezes contraditórias, e considerando a profecia não realizada sobre o fim da guerra, que terminou só em Novembro de 1918 com um número de baixas portuguesas em França 1

Em 1917-1918, mais de 50.000 soldados portugueses foram integrados nas forças aliadas em França e outros tantos combateram os alemães em África. Registou-se um total de 10.000 mortos portugueses. 2 Os relatos coevos das aparições foram publicados em Documentação Crítica de Fátima, 15 vols., Santuário de Fátima, 1992-2013, e na selecção dessa obra, Documentação Crítica de Fátima: Selecção de Documentos (1917-1930), Fátima, 2013, adiante: DCF-SD.

muito superior ao de 1917, não seria fácil compreender como veio Fátima a tornar-se, em poucos anos, o maior santuário mariano português e, a breve prazo, um dos mais concorridos centros de peregrinação do mundo cristão3. Como explicar que a partir de um fenómeno de devoção marcadamente popular, com raízes ancestrais e características parcialmente regionais4, se tenha originado uma “mensagem” de sentido universal que, ao longo de um século, adquiriu um significado profundo para milhões de crentes e peregrinos de vários pontos do mundo5, cativando boa parte da hierarquia católica e até pontífices romanos que tiveram um importante papel na história do século XX, como Pio XII e João Paulo II? Se a espiritualidade singela dos três rudes pastorinhos não parecia ter, em sua substância, nada de novo com que atrair multidões de devotos e peregrinos de diversos estratos sociais, haverá que procurar em outros aspectos do fenómeno colectivo das aparições e, também, no contexto sociopolítico nacional e internacional, razões que permitam compreender o seu êxito fulgurante junto dos crentes e da Igreja institucional. Fátima abriu um canal de comunicação com o sobrenatural num período conturbado da história contemporânea de Portugal, iniciado com a revolução republicana de 1910, em que se assistiu à maior ofensiva contra a Igreja jamais ocorrida no país. Refira-se que o censo da população de 1900 registara 99,8% de católicos no país, embora se duvide do rigor do número6. Tal ofensiva só encontra algum paralelo na política secularizante levada a cabo pela revolução liberal do século XIX, que extinguiu as ordens religiosas, vendeu os seus bens e encerrou seminários. O constitucionalismo monárquico (18341910) manteve o catolicismo como religião de Estado, mas compeliu a Igreja a acomodar-se a um claro declínio de influência na sociedade, situação que um historiador católico resumiu como “uma gaiola nem sequer dourada”7. O retorno gradual, até final do século XIX, de parte das congregações extintas e a criação de novas atenuaram esse declínio, mas uma nova reacção anticlerical surgiu, protagonizada sobretudo por republicanos de inspiração maçónica, sob influência do laicismo francês. Com a instauração da república, a questão religiosa, que nunca desaparecera, agudizouse a ponto de historiadores falarem de “guerra religiosa”8. A política republicana de 1910-1917 teve um carácter não só espoliador, com a nacionalização de toda a propriedade da Igreja, como também propriamente anti-religioso. A breve trecho, os bispos foram acusados pelo governo de conivência com as tentativas restauracionistas armadas dos monárquicos. Foi posto em execução um projecto radical de laicização, do qual o fecho das escolas católicas constituía uma das principais frentes de combate, em Em 1926, o bispo de Leiria declarou a um diário católico de Lisboa que “as peregrinações de Fátima são mais imponentes e significativas que as de Lourdes.” (DCF-SD, p. 20). 4 Mostra-o o estudo de etnografia religiosa do Pe. Carlos de Azevedo, Porque Apareceu Nossa Senhora na Fátima?, Gráfica, Leiria, 1944. 5 Durante o ano de 2015, o santuário de Fátima foi visitado por 6,7 milhões de pessoas de mais de 90 países (dados divulgados em Março de 2016 pelo santuário). 6 Joel Serrão e A. H. Oliveira Marques (eds.), Portugal da Monarquia para a República, Lisboa: Presença, 1991, p. 479. 7 Manuel Clemente, Igreja e Sociedade Portuguesa do Liberalismo à República, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 30. O cardeal Manuel Clemente, um historiador, é o actual patriarca de Lisboa. 8 Maria Lúcia de Brito Moura, A Guerra Religiosa na Primeira República, Cruz Quebrada: Ed. Notícias, 2004. 3

nome do combate ao obscurantismo9. A isto as autoridades republicanas acrescentaram violências e humilhações, como a prisão de padres, o encerramento de locais de culto, o encerramento de seminários para neles se instalarem serviços públicos, a imposição de “associações cultuais” laicas, no quadro de uma legislação mais radical do que a francesa, a proibição da veste talar do clero e a interdição do culto em espaço público sem prévia licença das autoridades civis10. O condicionamento opressivo da Igreja pelo Estado provocou numerosas reacções dos católicos e do episcopado, nomeadamente através da publicação de protestos colectivos que, por sua vez, o governo castigou com o desterro dos bispos. Quando das aparições de Fátima de Setembro e Outubro de 1917, os principais bispos encontravam-se pela segunda vez desterrados das suas dioceses pelo governo, acusados de ilegalidades e indisciplina11. A tentativa de conotação política de Fátima era inevitável, e ela iniciou-se logo em 1917, quer do lado dos republicanos, que denunciaram a exploração da “crendice” popular pelas forças anti-republicanas, quer do lado destas últimas, que interpretaram as aparições da Virgem como anunciadoras do “milagre” do esmagamento da “serpente jacobina” – uma referência ao golpe de Estado de Dezembro de 1917, que retirou os republicanos radicais do poder e instaurou um regime presidencialista durante um ano12. A resistência dos católicos e, particularmente, do mundo rural à ofensiva anticlerical e anti-religiosa do novo regime não assumira especial vigor na região de Fátima, relativamente pacífica a esse respeito13. Por outro lado, as aparições de Fátima não recolheram de imediato o consenso das elites católicas. A Igreja, a começar pelo pároco de Fátima, actuou prudentemente, não desafiando as limitações legais ao culto em espaço público. Nas fotografias das reportagens realizadas localmente em 1917, o clero está ausente, apesar de nunca se terem visto tão grandes assembleias de fiéis em Portugal14. Não houve, pois, localmente, uma relação directa entre o eclodir do fenómeno das aparições de 1917 e a referida resistência católica à república. A afluência cada vez maior de peregrinos oriundos de regiões distantes e o gradual enquadramento do culto pelo clero local e pelas autoridades diocesanas, transformando em poucos anos Fátima num santuário de carácter nacional, são factos que, esses sim, podem espelhar mais claramente a resistência à laicização e a oposição à república ímpia e maçónica. Mas Fátima vinha também satisfazer um anseio muito anterior à república: a criação de uma “Lourdes portuguesa”, assim comummente designada, isto é, um centro nacional de mobilização da devoção popular e de conversão para um renascimento religioso do país, segundo o modelo da “recristianização de França” operada por Lourdes15. 9

Idem, pp. 431 e segs. Luís Salgado Matos, A Separação do Estado e da Igreja. Concórdia e Conflito entre a Primeira República e o Catolicismo, Alfragide: D. Quixote, 2011. 11 Idem, p. 444. 12 António Sardinha, “Dia da Padroeira”, jornal A Monarquia, 9 de Dezembro de 1917, p. 1. 13 Luís M. Ferraz, “Reflexos dos conflitos político-religiosos na imprensa local: o caso de Leiria”, Lusitania Sacra, 24 (2011), pp. 91-110. 14 L. S. Matos, op. cit., pp. 446-447. 15 José Barreto, “Aparições”, in Religião e Sociedade: Dois Ensaios, Lisboa: ICS, 2003, pp. 36-37. A primeira “Lourdes portuguesa” tinha sido o santuário do Sameiro, fundado em 1863 na cidade de Braga, o qual, sem um historial de aparições, não pôde desempenhar cabalmente essa função. 10

Além da questão religiosa desencadeada pela república, completa o quadro psicológico e sociopolítico em que se gerou o fenómeno colectivo de Fátima o clima de angústia e incerteza provocado não só pela mobilização maciça de soldados para a guerra, mas também pela desorganização económica, a escassez de géneros, a inflação galopante e a instabilidade política que acompanharam, internamente, a intervenção portuguesa no conflito. A Igreja, acusada pelo governo de ter tardado a manifestar o seu apoio patriótico, não fez, todavia, oposição à participação portuguesa na guerra, antes se empenhou, com êxito, em obter do Estado o envio de capelães militares para a frente. As aparições de Fátima situam-se nos meses finais do período jacobino da república, pouco antes do referido golpe militar de Dezembro de 1917, que inaugurou uma pacificação duradoura das relações entre a república e a Igreja, com a revogação de parte da legislação laicista e a retoma das relações diplomáticas com a Santa Sé. A futura Ditadura Militar (1926-1933) e, sobretudo, o Estado Novo autoritário (19331974) farão evoluir essas relações para um modelo de crescente harmonia, com a Igreja assumindo claramente o papel de aliada do regime e vendo nele uma dádiva da providência divina. Neste processo, a Igreja conotará ideologicamente Fátima: dali teria partido, a um sinal da Virgem, a dupla restauração, religiosa e “nacional”, de Portugal.

2. Da “restauração cristã” de Portugal à segunda guerra mundial: reformulação e internacionalização da mensagem de Fátima A institucionalização do culto de Fátima pela Igreja não foi, no plano formal, imediata, mas contou desde cedo com o apoio do episcopado, especialmente do bispo que em 1920 foi ocupar a então restaurada diocese de Leiria, extinta no século XIX. Mons. Correia da Silva, o artífice da criação da “Lourdes portuguesa”, adquiriu nesse mesmo ano o terreno destinado à construção do futuro santuário. O processo canónico diocesano de inquérito às aparições só seria lançado em 1922, concluindo-se em 1930 pelo reconhecimento formal da sobrenaturalidade dos acontecimentos, incluindo curas e conversões milagrosas entretanto ocorridas. Antes, porém, do veredicto do inquérito canónico, já um conjunto de factos consumados significara, na prática, o reconhecimento do culto pela Igreja: o empenho do clero no enquadramento eclesiástico do culto e na fixação da história oficial das aparições16, o afluxo sempre crescente de peregrinos, uma vasta propaganda na imprensa católica nacional e internacional (com destaque para o órgão da Santa Sé17), a avalização pelas próprias autoridades civis (visitas ao santuário em construção pelos chefes da Ditadura Militar em 1928 e 1929) e,

16 Visconde de Montelo, Os Acontecimentos de Fátima, Guarda: Empresa Veritas, 1923; As Grandes Maravilhas de Fátima, Lisboa: União Gráfica, 1927. A coberto do pseudónimo, o autor destas obras era o cónego Manuel Formigão, que em 1930 redigirá o relatório do inquérito diocesano às aparições. 17 A 3 de Junho de 1928, dois anos antes de a comissão canónica declarar as aparições dignas de crédito, L’Osservatore Romano noticiou a afluência de 300.000 peregrinos a Fátima em 13 de Maio desse ano, afirmando: “Fátima é hoje o maior centro de peregrinação de toda a Península Ibérica, a Lourdes Portuguesa. Mais de três milhões de pessoas já a visitaram em piedosa peregrinação” (DCF-SD, p. 346).

não em último lugar, a chamada “aprovação implícita” de Fátima por Pio XI, manifestada por duas vezes em 192918. Com o desaparecimento em 1919 e 1920 de duas das três crianças videntes, Lúcia permaneceu a única testemunha das aparições até à sua morte em 2005. Internada aos 14 anos num asilo das doroteias na cidade do Porto (1921), seria depois enviada, com 18, para um convento dessa congregação em Espanha (1925)19. O exílio da vidente, decidido pelo bispo de Leiria, pretendia resguardá-la das numerosas pessoas que a solicitavam. Lúcia passaria os 21 anos seguintes em conventos de Tuy e Pontevedra, na Galiza, onde fez o seu noviciado e os seus votos, ali residindo, inclusive, durante a guerra civil espanhola e a segunda guerra mundial. Desde o início da sua longa residência em Espanha, Lúcia deu notícia, em cartas aos seus confessores e ao bispo de Leiria, de sucessivas visões e locuções interiores com mensagens de várias entidades celestes. Dado o seu isolamento e a sua disposição de total obediência, esses relatos e outros escritos da vidente foram filtrados, seleccionados e orientados por um reduzido número de clérigos autorizados a contactá-la. Na primeira visão da Galiza, ocorrida em 1925, as entidades celestes pediram a Lúcia que propagasse uma devoção reparadora dos pecados, a “comunhão dos cinco primeiros sábados”. Em fins de Maio de 1930, a vidente recebeu do céu novas instruções. Por um lado, Deus instava que fosse solicitada ao papa a aprovação e a difusão da devoção dos primeiros sábados. Por outro (e aqui a vidente escreveu: “se me não engano”), Deus prometia “terminar a perseguição na Rússia, se o Santo Padre se dignar fazer, e mandar que o façam igualmente os bispos do mundo católico, um solene e público acto de reparação e consagração da Rússia aos Santíssimos Corações de Jesus e Maria”20. Não há registo de que a vidente tivesse jamais feito até esse momento, pública ou privadamente, qualquer alusão à Rússia ou ao comunismo. O motivo expresso desta primeira menção em Maio de 1930 era a perseguição religiosa em curso na Rússia. A inspiração divina da vidente tinha, porém, antecedentes terrenos próximos, em cujos desígnios claramente se inscrevia. Em Fevereiro de 1930, perante o agravamento da situação dos católicos na Rússia e o definitivo impasse das negociações secretas que a Santa Sé tinha mantido com os soviéticos, Pio XI decidira finalmente dirigir-se de forma pública a todo o mundo cristão, apelando a uma mobilização internacional contras as perseguições e ordenando uma “cruzada de oração pela Rússia”, iniciada com uma solenidade realizada na basílica de S. Pedro em 19 de Março21. Em Junho, o papa ordenou a todo o clero católico que no fim das missas fossem rezadas orações pela liberdade de culto na Rússia22. Até 1930, as perseguições religiosas na Rússia soviética, tomando como alvo a Igreja ortodoxa e, 18

Pio XI benzeu em 1929 uma estátua da Virgem de Fátima vinda de Portugal, destinada ao Pontifício Colégio Português em Roma (DCF-SD, pp. 363-364 e 401). 19 As doroteias portuguesas foram obrigadas a exilar-se em vários países em fins de 1910. O asilo infantil do Porto foi a única casa que não foi encerrada. Nos anos 20 as doroteias regressaram a Portugal. 20 A. M. Martins, Cartas da Irmã Lúcia, op. cit., pp. 41-44 (cartas ao confessor José Bernardo Gonçalves S.J., por este datadas de 29 de Maio e 12 de Junho de 1930). Numa carta de 1941, Lúcia situa o “pedido da Rússia” em 12 de Junho de 1930 (idem, p. 62). 21 Laura Pettinaroli, La politique russe du Saint-Siège (1905-1939), Publications de l’École française de Rome, Roma, 2015, pp. 528-530. 22 Pio XI, “In solemni canonizatione” (22 Junho 1930), Acta Apostolicae Sedis, 22 (1930), p. 301.

depois, também a minoria católica, não tinham merecido de Roma uma condenação pública formal. Sob o pontificado de Pio X, após a revolução russa de 1905, a Santa Sé tinha voltado a alimentar um ancestral propósito de “conversão da Rússia”23. Bento XV retomou plenamente esse projecto, nas novas circunstâncias, criadas pela revolução bolchevista, da derrocada da Igreja ortodoxa russa. Esta era há séculos percepcionada por Roma como o maior obstáculo à penetração do catolicismo naquele país e à desejada reunificação das igrejas cristãs. O socorro humanitário à Rússia a partir de 1921, as negociações diplomáticas oficiosas ou secretas, a tentativa de penetração da acção missionária em território soviético, a nomeação de bispos, etc., tinham sido os fins preferenciais da política da Santa Sé até 1928, quando o novo curso estaliniano pôs termo às esperanças católicas24. As instruções celestiais recebidas pela vidente portuguesa em 1930 não lograram um acolhimento favorável junto do bispo de Leiria até 1936, quando a Frente Popular conquistou o poder na vizinha Espanha. A uma sugestão do confessor para que se insistisse junto do bispo e de Roma no assunto “consagração da Rússia”, Lúcia deu o seu acordo, mas exprimindo mais uma vez o seu receio de a esse respeito se ter “deixado iludir pela imaginação” ou de se dar “o caso de que fale comigo mesma, quando interiormente julgo falar com Deus”, temendo mesmo alguma “ilusão diabólica”.25 Em 1937, já em plena guerra civil espanhola, o bispo de Leiria escreveu a Pio XI, dando-lhe pela primeira vez a conhecer o pedido da “consagração da Rússia aos Santíssimos Corações de Jesus e Maria”, a ser feita juntamente com “todos os bispos do mundo católico”, e da aprovação da devoção reparadora dos primeiros sábados, requisitos indicados pela vidente de Fátima como condição para Deus “terminar a perseguição” (da religião) na Rússia. O bispo opinava ainda na carta ao papa que, pelas recomendações da Virgem de Fátima feitas em 1917, “vê-se que Nossa Senhora preparava a luta contra o comunismo, de que Portugal tem sido até agora preservado, apesar da proximidade da Espanha”.26 Note-se que em 1938, por solicitação de outra vidente portuguesa em comunicação com o céu, Alexandrina de Balasar, os bispos portugueses dirigiram-se colectivamente a Pio XI, rogando-lhe a consagração do “mundo inteiro” (e não da Rússia) ao Imaculado Coração de Maria, como meio de o livrar dos perigos que o ameaçavam.27 Pio XI não satisfez nenhum dos pedidos. Durante a década de 1930, o santuário de Fátima, mantendo-se fiel à sua origem como lugar de religiosidade popular voltado para práticas e fins espirituais tradicionais 23

Laura Pettinaroli, op. cit., pp. 36 e segs. Idem, pp. 401 e segs. Ver também: Hans-Jakob Stehle, Eastern Politics of the Vatican 1917-1979, Athens, Ohio: Ohio University Press, 1981. 25 A. M. Martins, Cartas da Irmã Lúcia, op. cit., pp. 45-48 (cartas de 18 de Maio e 5 de Junho de 1936). 26 António Maria Martins S.J., Novos Documentos de Fátima, Porto: Apostolado da Imprensa, 1984, p. 176. 27 Idem, p. 230. De modo independente de Lúcia, a vidente Alexandrina da Costa (1904-1955), da povoação de Balasar, instava desde Julho de 1935 para esse fim junto do seu director espiritual, o Pe. Mariano Pinho S.J., que transmitiu esse pedido ao episcopado. Em 1944, uma comissão nomeada pelo arcebispo de Braga desacreditou as visões de Alexandrina e ordenou o silêncio em torno do caso. A vidente seria, porém, beatificada por João Paulo II em 2004. 24

(peregrinações, penitência, busca de respostas e de milagres, realização de promessas), tornou-se também, muito por acção da hierarquia católica, no centro simbólico nacional não só da “restauração cristã” de Portugal, como também do combate da Igreja contra a alegada ameaça comunista, suscitada pela proximidade geográfica da Espanha e das suas convulsões políticas, permeadas de conflitos com a Igreja. Em Maio de 1931, pouco depois da proclamação da república espanhola, o episcopado português reuniu-se em Fátima para consagrar solenemente a nação portuguesa a Nossa Senhora de Fátima e pedir a sua intercessão contra “os ventos furiosos que sopram do Oriente”. Em Maio de 1936, após a vitória eleitoral da Frente Popular em Espanha, os bispos portugueses reunidos em Fátima, pediram à Virgem que livrasse Portugal dos perigos que o ameaçavam, fazendo a solene promessa de uma grande peregrinação de agradecimento. Na Páscoa de 1938 o episcopado publicou uma pastoral colectiva em que se congratulava por a providência divina ter frustrado um atentado à vida do ditador Salazar (1937) e mantido Portugal afastado da guerra espanhola e da “lepra do comunismo ateu”, afirmando ainda: “Desde que Nossa Senhora de Fátima apareceu em 1917 no céu de Portugal, uma especial bênção desceu sobre a terra portuguesa”. Em 13 de Maio de 1938, os bispos, reunidos em Fátima à frente de uma grande peregrinação nacional com perto de meio milhão de participantes, realizaram uma solene acção de graças pela “protecção dada à nossa pátria”.28 Em fins de Novembro de 1939, meses após o início da guerra e da anexação da Polónia pela Alemanha e pela União Soviética, o bispo de Leiria pediu à vidente Lúcia uma “declaração de tudo o que diz respeito ao Santo Padre, à Rússia e à guerra.” 29 Numa carta de Janeiro de 1940, a vidente Lúcia, sempre em comunicação com o céu, citou pela primeira vez a Rússia como causadora da guerra civil espanhola e do próprio conflito mundial em curso, sem nomear a Alemanha como agressora. A vidente lamentava que a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria, pedida pelo céu em 1930, se não tivesse ainda realizado, pois nesse caso Deus “teria perdoado ao mundo o flagelo da guerra que, desde a Espanha, a Rússia vai promovendo pelas nações”.30 Em Março de 1940, em “união íntima” com Nosso Senhor, este ter-lhe-ia assegurado que a Alemanha “voltará ao Meu redil”, ainda que “lentamente”31. Em Outubro de 1940, obedecendo a instruções dos bispos de Gurza32 e de Leiria, Lúcia escreveu uma carta a Pio XII, em que pela primeira vez situava cronologicamente o pedido divino de consagração da Rússia em 1917, como fazendo parte do segredo alegadamente guardado pela vidente desde a aparição de 13 de Julho desse ano. De acordo com Lúcia, em 1917 a Virgem teria não só anunciado o fim da guerra em curso, como teria predito uma guerra futura, dizendo que “para a impedir viria pedir a consagração da Rússia a seu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros 28

D. Manuel Gonçalves Cerejeira, Obras Pastorais, vols. I e II, Lisboa: União Gráfica, 1936 e 1943. A. M. Martins, Cartas da Irmã Lúcia, op. cit., p. 90 (carta de Lúcia ao Pe. José Aparício da Silva S.J. de 3 de Dezembro de 1939). 30 Idem, pp. 48-49 (carta de Lúcia ao Pe. José Bernardo Goncalves S.J. de 21 de Janeiro de 1940). 31 Idem, p. 78. 32 D. Manuel Maria Ferreira da Silva, superior dos Missionários da Boa Nova. 29

sábados”, e prometendo, “se atendessem a Seus pedidos, a conversão dessa nação e a paz”. De contrário, a Virgem anunciava “a propagação dos erros [da Rússia] pelo mundo, guerras e perseguições à Santa Igreja, o martírio de muitos cristãos, várias perseguições e sofrimentos reservados a Vossa Santidade e o aniquilamento de várias nações.”33 Esta revelação feita ao papa34 interpolava retrospectivamente dados novos, versando temas de actualidade, na antiga narrativa das aparições. Numa “memória” escrita em 1937, Lúcia começara já a enriquecer essa narrativa, relatando a aparição do “Anjo de Portugal” aos três pastorinhos em 1916. No verão de 1941 – com a invasão da URSS pela Alemanha já iniciada e a “Divisão Azul” espanhola, incluindo nas suas fileiras voluntários portugueses, a caminho da frente de Leninegrado – o bispo de Leiria ordenou a Lúcia a redacção de uma nova memória35 abordando os temas da guerra e da Rússia, que a vidente completou em Outubro. Nesse relato a vidente registou a versão definitiva das duas primeiras partes do “segredo” (a terceira parte, redigida em Janeiro de 1944 e enviada para Roma em 1957, seria revelada por João Paulo II em 2000). Essas duas partes constavam de uma visão do inferno e da mensagem da Virgem relativa à consagração da Rússia e à guerra, numa versão basicamente idêntica à da carta de Lúcia a Pio XII36. Os trechos do segredo extraídos da memória da vidente foram comunicados a Roma e, por fim, trazidos a público em 1942 – ano, portanto, em que a mensagem da Virgem de Fátima apareceu pela primeira vez publicamente associada ao tema da Rússia e do comunismo. A difusão da nova mensagem de Fátima foi feita em etapas sucessivas. Primeiramente, o cardeal Schuster, arcebispo de Milão, revelou resumidamente o conteúdo do “segredo” numa pastoral datada de 18 de Abril de 1942.37 Em Maio de 1942, o texto do segredo foi reproduzido em dois livros publicados sob os auspícios do Vaticano: La Madonna di Fatima e Le Meraviglie di Fatima38. Seguidamente, o texto foi publicado em Portugal, inserto numa biografia devota da vidente Jacinta39. Todavia, tanto na 33

A. M. Martins, Cartas da Irmã Lúcia, op. cit., pp. 54-59. Lúcia escreveu duas versões desta carta. A primeira, datada de 24 de Outubro de 1940, não foi enviada. A segunda, datada de 2 de Dezembro de 1940, com alterações feitas pelo bispo de Leiria, foi enviada. 34 A carta de Lúcia a Pio XII só foi revelada publicamente na década de 70. Em 1940, apenas alguns bispos portugueses e o confessor de Lúcia terão tido conhecimento dela. 35 A redacção das chamadas “memórias” da Irmã Lúcia, só publicadas na década de 70, tinha sido, segundo a autora, “ordenada” pelo bispo, que lhe dera instruções sobre os temas a abordar. Segundo afirmou o cardeal Bertone em 2007, “Lúcia nunca escreveu nada por sua própria iniciativa, da sua própria vontade. Escrevia porque lhe era ordenado.” (Card. Tarcisio Bertone, Giuseppe De Carli, A Última Vidente de Fátima, Lisboa: A Esfera dos Livros, 2007, p. 74). 36 Como diferença notável, na “memória” de Lúcia diz-se que a Virgem anunciara em 1917 uma nova guerra que começaria no “reinado de Pio XI”. Este erro cronológico (a guerra começou no pontificado de Pio XII) fora cortado pelo bispo de Leiria na carta de Lúcia ao papa, mas manteve-se na “memória”. Assinale-se também o conhecimento, em 1917, do nome do papa eleito em 1922. 37 Robert Graham S.J., “Profezie di guerra. Fatima e la Russia nella propaganda dei belligeranti dopo il 1942”, La Civiltà Cattolica, vol. 4 (132), 1981, p. 16. 38 Luigi Moresco, La Madonna di Fatima, Roma: Poliglotta Vaticana, 1942, com prefácios do cardeal Schuster e do embaixador de Portugal no Vaticano; Luís Gonzaga da Fonseca, Meraviglie di Fatima, 4ª edição, Casale Monferrato: Propaganda Mariana, 1942. Os dois livros foram publicados em dezenas de milhares de exemplares e, a partir de 1943, traduzidos em várias línguas. 39 Pe. José Galamba de Oliveira, Jacinta – Episódios Inéditos das Aparições de Fátima, 3.ª ed., Santuário de Fátima, 1942, pp. 105, 113-114.

pastoral de Schuster como nos dois livros italianos, as referências à Rússia foram cortadas ou alteradas, mantendo-se a alusão à conversão da Rússia, mas eliminando-se o papel desta na propagação de erros e na promoção de guerras e perseguições religiosas. Trocou-se também a “consagração da Rússia” por “consagração do mundo”. Só a publicação em português transcreveu fielmente o texto integral de Lúcia, que não teve eco na Europa. A censura das edições italianas, com conhecimento de Pio XII, terá obedecido ao duplo propósito de não hostilizar as potências aliadas e de não fornecer à propaganda de guerra alemã uma fundamentação religiosa para a sua alegada “cruzada antibolchevista” na URSS. De facto, o texto original do “segredo” de Lúcia ter-se-ia prestado a ser explorado pelos nazis, ao passo que a versão manipulada, mais despolitizada, não desagradou ao campo dos Aliados40. Por fim, a 31 de Outubro de 1942, Pio XII, numa radiomensagem por ocasião das comemorações dos 25 anos de Fátima, divulgada pela Rádio Vaticano e por L’Osservatore Romano, recitou uma oração de consagração do “género humano” ao Imaculado Coração de Maria, repetida a 8 de Dezembro na basílica de S. Pedro. Nesta oração o papa afastava-se do pedido textual da Virgem, então só conhecido em português, mas fazia alusões à devoção mariana dos russos, “os povos separados pelo erro e pela discórdia”, e à sua desejada recondução ao “único redil de Cristo, sob o único e verdadeiro pastor41. A omissão da agressão alemã no segredo de Lúcia era compensada pelo papa com uma condenação do “dilúvio do neopaganismo”, uma alusão ao nazismo que enfureceu os seus dirigentes42. Na mesma mensagem, Pio XII referiu-se ainda à intervenção do céu graças à qual “a nau do Estado português”, depois de “perdida na tormenta anticristã e antinacional”, reatara “o fio perdido das suas mais belas tradições de nação fidelíssima”, prestando também homenagem aos dirigentes responsáveis por tal mudança, instrumentos da Providência.43 Era a consagração pelo papa do duplo “ressurgimento”, cristão e nacional, de Portugal44, que meses antes havia sido incensado colectivamente pelos bispos portugueses como um milagre – “digitus Dei est hic”, segundo declararam45. O episcopado português lembrara também que a sagração episcopal de Eugenio Pacelli se dera no dia da primeira aparição de Fátima (13 de Maio de 1917) 46, associando assim Pio XII e o seu pontificado aos desígnios da mensagem da Virgem, o que visivelmente encantou aquele a quem primeiro se chamou “o papa de Fátima”. Diversas obras doutrinárias católicas dos anos 30 e 40, portuguesas e estrangeiras, glorificaram a restauração cristã e a “redenção” de Portugal como dádivas da Virgem de 40

R. Graham, op. cit., pp. 15-25. “Radiomessaggio di Sua Santità Pio XII - Preghiera per la Consacrazione della Chiesa e del Genere Umano al Cuore Immacolato di Maria”, Discorsi e Radiomessaggi di Sua Santità Pio XII, vol. IV, pp. 253-262. 42 R. Graham, op. cit., p. 18. 43 “Radiomessaggio di Sua Santità Pio XII...”, op. cit. 44 Pio XII tinha outros motivos de satisfação com Portugal, com o qual o Vaticano manteve durante a guerra importantes relações financeiras e comerciais (Michael Phayer, Pius XII, the Holocaust and the Cold War, Bloomington: Indiana University Press, 2008, pp. 126-131). 45 Pastoral Colectiva do Episcopado Português. Bodas de prata das Aparições de Fátima e da sagração episcopal do Santo Padre Pio XX, Gráfica de Coimbra, 1942. 46 Idem. 41

Fátima47. A internacionalização de Fátima, primeiramente como fenómeno devocional, esboçara-se desde a década de 20 através da imprensa católica europeia, da edição de livros em várias línguas e da afluência de peregrinos estrangeiros. A partir de 1942, porém, o interesse por Fátima da parte do público católico e não católico ganhou forte impulso na Europa e na América, o que em boa medida se deveu à alusão à conversão da Rússia e, a partir do fim da guerra, à forte ressonância anticomunista da mensagem da Virgem. A versão do “segredo” despolitizada pelo Vaticano tinha sido objecto de interpretações diversas. Ao contrário dos bispos dos países do Eixo48, o cardeal Hinsley, arcebispo de Westminster, sustentou uma interpretação aliadófila e pró-russa do texto de Lúcia e das palavras de Pio XII com ele relacionadas. Hinsley apelou à oração pela Rússia, para que fosse concedida “especial protecção” ao seu povo, que lutava heroicamente pela defesa da pátria, o que levou responsáveis nazis a acusarem Hinsley de pedir “orações pelo bolchevismo” e a associarem a mensagem de Pio XII à ofensiva militar e propagandística dos Aliados49. Perto do final da guerra, o teólogo jesuíta belga Edouard Dhanis50 inaugurou um debate católico sobre Fátima, chamando a atenção para a dicotomia fatimológica traduzida na existência de uma “história antiga” e de uma “história nova” das aparições, sendo a primeira a história assente nos relatos de 1917 e, a segunda, a história ampliada com os dados novos das “memórias” escritas por Lúcia em Espanha. Dhanis tivera acesso ao texto original português do “segredo”, não censurado. No seu longo artigo51 publicado na Bélgica em 1944, afirmava: “Somos levados a acreditar que, no decurso dos anos, certos acontecimentos exteriores e certas experiências espirituais de Lúcia foram enriquecendo o conteúdo original do segredo”. Sem pôr em causa a sinceridade da vidente, Dhanis, cujo país estava nesse momento a ser libertado da ocupação alemã, observava que “o modo pouco objectivo como a provocação da guerra [mundial] é descrita no segredo só pode explicar-se pela influência que a guerra civil espanhola exerceu sobre a maneira de pensar de Lúcia”52. De facto, o segredo assacava por inteiro à Rússia a responsabilidade de guerras e perseguições à Igreja, ainda que dentro de uma concepção a-histórica e apocalíptica desses flagelos como castigo divino pelos pecados do mundo. As análises de Dhanis seriam duramente rebatidas por círculos fatimistas portugueses e de outros países, obrigando-o a adoptar um tom mais conciliatório. 47 Entre outras: Casimir Barthas, Fatima, merveille inouïe, Desclée de Brouwer, 1935, e Fatima merveille du XXe siècle, Éd. Saint-Paul, 1943, e José Maria Félix, Fátima e a Redenção de Portugal, Vila Nova de Famalicão, 1939 e Santa Maria e Portugal, União Gráfica, Lisboa, 1940. 48 Numa pastoral de 13 de Outubro de 1942, o arcebispo de Milão entendia que a perspectiva da conversão da Rússia se conjugava com a missão dos soldados italianos na frente oriental: “Quando la promessa della Santa Vergine si avverasse, sarebbe quella la più bella e completa vittoria del Cattolicesimo Romano sul Bolscevismo. In quel giorno, il voto dei nostri buoni soldati sarebbe soddisfatto” (Robert Graham, op. cit., p. 17). 49 Robert Graham, op. cit., pp. 17-19 e 21. 50 Edouard Dhanis (1902-1978), professor da Universidade de Lovaina e professor e reitor da Universidade Gregoriana, foi membro, até à sua morte, da Comissão Teológica Internacional da Cúria romana. 51 Edouard Dhanis, “Bij de verschijningen en de voorzeggingen van Fatima” [Sobre as aparições e profecias de Fátima], Streven, XI, 1944, pp. 129-149 e 193-215. 52 Idem, p. 203.

Outros teólogos críticos surgiriam na peugada de Dhanis, mas, no ambiente internacional da guerra fria, a crítica católica de Fátima, apodada de progressista e neomodernista, defrontou-se com fortes constrangimentos53. O teólogo belga, que não era um outsider para Roma, seria acusado nas décadas seguintes pelos tradicionalistas de “inimigo de Fátima”54.

3. Da guerra fria ao Concílio do Vaticano II Com o fim guerra, a versão literal do “segredo” de Lúcia deixou de constituir um óbice, pelo que a censura do texto foi levantada pelo Vaticano logo em 1945. No início da guerra fria, os “erros, guerras e perseguições” promovidos pela Rússia recuperavam toda a actualidade não só para Pio XII, “the first cold warrior”55, como para as potências ocidentais, em face do expansionismo soviético e comunista na Europa e no mundo do pós-guerra, ameaça acrescida em 1949 pelo primeiro ensaio nuclear da URSS. A vidente Lúcia deixou aparentemente de abordar a conversão da Rússia nas suas já raras comunicações com o céu56. Na sua opinião, a consagração (do mundo) feita por Pio XII em Outubro de 1942 fora “incompleta” e não executada “nos termos pedidos por Nossa Senhora”, o que, segundo ela, explicaria a adiada conversão da Rússia57. A falta de menção explícita da Rússia e do requisito de a consagração ser feita pelo papa “em união com todos os bispos” alimentaria uma interminável polémica promovida pelos meios católicos tradicionalistas. Entre outras questões, o significado da conversão da Rússia – simples revitalização da fé ortodoxa tradicional ou, como queria Pio XII em 1942, recondução dos cristãos russos “ao único redil de Cristo, sob o único e verdadeiro Pastor”? – tornar-se-ia um pomo de discórdia entre as correntes conservadoras e o main stream católico da era pós-conciliar. No quadro da guerra fria, porém, o lema da conversão católica da Rússia, obviamente não partilhado pelas outras confissões cristãs, especialmente a ortodoxa, não beneficiava a causa comum da luta contra o comunismo. Não obstante, a nova mensagem de Fátima revelava potencialidades para a Igreja católica e para as hostes anticomunistas em geral, não só pelo facto de várias nações de maioria católica, como a Polónia, terem caído sob domínio soviético, como pelo aparecimento de fortes partidos comunistas na Itália e na França do pós-guerra, ameaçando os dois maiores bastiões do catolicismo, o que colocou Pio XII e a América de Truman em alerta contra uma iminente catástrofe política. Em Portugal e, sobretudo, em Espanha, onde a ameaça comunista fora esmagada na guerra civil, a mensagem anti53

Caso do jesuíta espanhol Carlos María Staehlin, cujo livro Apariciones: Ensayo Crítico (Madrid: Razón y Fé, 1954), foi silenciado por ter ido longe de mais no seu criticismo de Fátima. Ver: William A. Christian, “Religious apparitions and the Cold War in Southern Europe”, Zainak, 18 (1999), p. 78. 54 José Barreto, “Edouard Dhanis, Fátima e a II Guerra Mundial”, Brotéria, 1 (156), 2003, pp. 13-22. 55 Expressão cunhada por István Deák (Essays on Hitler’s Europe, Lincoln: University of Nebraska Press, 2001, p. 183) e retomada por Michael Phayer (op. cit., 2008, cap. “The First Cold Warrior”). 56 Em 1946, Lúcia regressou a Portugal e, em 1948, trocou o hábito de doroteia pelo de carmelita. 57 Cartas da Irmã Lúcia, op. cit., pp. 64 e 94 (cartas de 4 de Maio de 1943 e 2 de Março de 1945). Ver também declarações de Lúcia de 1946, em William Thomas Walsh, Our Lady of Fatima, Garden City, New York: Doubleday, 1947, p. 226.

Rússia de Fátima adequava-se à estratégia de sobrevivência dos dois últimos regimes autoritários da Europa Ocidental, aos quais a guerra fria possibilitava aparecerem não como regimes comprometidos com o fascismo, mas como baluartes católicos da luta contra o comunismo, logo politicamente cooptáveis pelas potências vitoriosas. Em 1945, ano de incerteza sobre o futuro do regime português, a vidente Lúcia recebeu uma mensagem do céu, que o patriarca de Lisboa transmitiu ao ditador Salazar, garantindo que este fora escolhido por Deus “para continuar a governar a nossa Pátria”.58 Durante a guerra fria, que a Igreja figurava como uma luta essencialmente espiritual, foi multiforme a utilização da simbologia de Fátima, tanto para fins de conversão e recristianização como para uma eficaz propaganda política. Em 1946, depois de o cardeal Masella59, legado de Pio XII, ter presidido em Fátima à coroação da estátua da Virgem perante meio milhão de fiéis, foi ordenada a construção de uma primeira réplica da estátua, cujas viagens pela Europa e pelo mundo se iniciaram em 1947.60 Nesse ano e no seguinte, a “imagem peregrina internacional” viajaria nomeadamente pelos Estados Unidos, por Espanha, onde foi homenageada pelo ditador Franco, e por Itália, onde as manifestações de devoção popular à Virgem se conjugaram com a decisiva campanha eleitoral de 1948.61 Coevo destas peregrinações missionárias da imagem de Fátima, e prolongando-se nos anos 50, foi o fenómeno da multiplicação de “aparições imitativas” em Espanha, França, Alemanha e Itália, com réplicas do “milagre do sol”, mensagens sobre a ameaça russa, segredos e outras peculiaridades fatímicas62. Em 1950, o próprio Pio XII revelou ter presenciado, passeando nos jardins do Vaticano, quatro réplicas do “milagre do sol” de Fátima63. Contudo, as proporções assumidas pelo “recrudescimento da paixão popular pelo maravilhoso” levariam Mons. Ottaviani, assessor do Santo Ofício, a alertar os fiéis em 1951 contra essa busca infrene de sobrenatural, citando casos de falsas aparições na Europa e também já nos Estados Unidos (Necedah, Wisconsin, 1949)64. O que preocupava o Santo Ofício era o “descontrolo” dessa religiosidade “natural”, fazendo perigar a autoridade da Igreja e a sua ortodoxia doutrinária. Nos Estados Unidos, o bispo Fulton Sheen (1895-1979), doutrinário anticomunista, apóstolo de Fátima e popular orador da rádio e da televisão, difundiu em 1952 com grande impacto as profecias da vidente Lúcia através do seu popular programa

José Barreto, “A Revolução, o Estado e s Igrejas”, in Fernando Rosas (ed.), Portugal e a Transição para a Democracia (1974-1976), Lisboa: Edições Colibri, 1999, pp. 262-263. 59 Benedetto Aloisi Masella (1879-1970) assistira em 1910 em Portugal à instauração da república e fora o encarregado de negócios da nunciatura em Lisboa durante o período republicano “jacobino”. 60 Segundo a história oficial do santuário, um pároco de Berlim propusera em 1945 que a estátua da Virgem de Fátima percorresse todas as sedes episcopais da Europa até à fronteira da Rússia. Actualmente existem 13 réplicas oficiais da imagem de Fátima circulando regularmente pelo mundo. 61 W. A. Christian, “Religious apparitions...”, op. cit, p. 72. 62 Idem, pp. 73-75. 63 O caso, revelado então pelo cardeal Tedeschini, foi confirmado em 2008 pelo relato manuscrito do próprio papa, numa exposição realizada no Vaticano pelo 50.º aniversário da morte de Pio XII. 64 Mons. Alfredo Ottaviani, “Siati, cristiani, a muovervi più gravi!”, L’Osservatore Romano, 4 de Fevereiro de 1951. 58

televisivo65. Ainda em plena guerra mundial, Sheen dera voz a preocupações que angustiavam Roma, mas que Pio XII não expressava publicamente. Na fase da viragem da guerra, no início de 1943, Sheen tornou-se um veemente opositor da aliança entre os Estados Unidos e a URSS, o que o lançou depois como uma figura do período da guerra fria, vindo a ser nomeado bispo auxiliar de Nova Iorque em 1951. Num livro de 1948, em vésperas do primeiro ensaio nuclear soviético, Sheen especulou sobre o significado da miraculosa “dança do sol” de 1917 em Fátima, sugerindo tratar-se da premonição de um cataclismo nuclear66 – o que se conjugava com o sentido apocalíptico do trecho já conhecido do segredo de Lúcia (“várias nações serão aniquiladas”) e aumentava a expectativa e os receios relativamente à parte ainda não revelada. Em Outubro de 1951, discursando em Fátima perante 100.000 peregrinos, o bispo Sheen profetizou que, em resultado das orações dos milhões de fiéis que afluíam à “Praça Branca” (o recinto do santuário de Fátima, por oposição à Praça Vermelha de Moscovo), o martelo da bandeira soviética daria lugar a uma cruz e a foice a uma lua sob os pés da Imaculada67. Fátima tornara-se o centro espiritual internacional do anticomunismo: em 1953, na cerimónia da sagração da basílica, o patriarca de Lisboa, cardeal Cerejeira, chamar-lheia “altar do mundo” e “miraculosa Anti-Rússia”.68 Na peugada do êxito do filme Song of Bernadette (1948), sobre as aparições de Lourdes, e capitalizando a crescente atenção em torno de Fátima, Hollywood produziu The Miracle of Our Lady of Fatima (1952). Mergulhado em ideologia da guerra fria, o filme continha convenientes erros de história, como o de retratar o governo português de 1917 como socialista69. Em 1947, um pároco de New Jersey, Harold Colgan, e o jornalista John Haffert, que entrevistara Lúcia em 1946, tinham fundado o Exército Azul de Nossa Senhora de Fátima, pensado como “força espiritual” para fazer frente à política ateia da URSS e do seu Exército Vermelho, contando com o apoio do bispo de Leiria e de Pio XII, que fez de Colgan monsenhor em 1954. Sob o lema da “conversão da Rússia”, o Exército Azul recrutou em poucos anos milhões de apoiantes, ramificando-se também na Europa e na América Latina. Em 1950, os dirigentes do Exército Azul foram recebidos por Pio XII, que lhes declarou: “O tempo para duvidar de Fátima já passou. Agora é tempo de agir” – o que era também uma resposta à crítica católica de Fátima. Os media e as operações de publicidade seriam intensivamente usados pelo Exército Azul, que produziu séries de televisão, filmes e lançou o Soul Magazine. Em 1955, Haffert divulgou a mensagem de Fátima através de mais de uma centena de estações de televisão. Um dos temas fortes do Exército Azul foi a ameaça 65

O programa Life is worth living (1951-1957), emitido em prime time, tinha uma audiência semanal de 20 a 30 milhões de telespectadores, o que valeu a Sheen um Emmy em 1952. 66 Fulton J. Sheen, Communism and the Conscience of the West, Dublin, Indianapolis, New York, 1948, cap. “Our Lady of Fatima and Russia”, p. 237. 67 Sandra Zimdars Swartz, Encountering Mary: From La Salette to Medjugorje, Princeton, University Press, 1991, p. 207. 68 M. Gonçalves Cerejeira, “Fátima – Altar do Mundo”, in Obras Pastorais, t. IV, Lisboa: União Gráfica, 1954, p. 281. 69 Foi ainda mais longe John Cornwell, em The Pope in Winter: The Dark Face of John Paul II’s Papacy, London: Penguin Books, 2005, pp. 159-160, ao afirmar que as aparições de Fátima ocorreram após uma “revolução comunista” em Portugal.

nuclear (soviética), que os dirigentes da organização tentaram enquadrar na mensagem de Fátima, alegando que a “guerra nuclear” poderia fazer parte do “terceiro segredo”.70 Em 1955, o Exército Azul concedeu o seu “prémio da Paz” ao ditador Salazar, numa altura em que a organização adquiriu uma propriedade em Fátima para ali construir a sua sede mundial e um complexo turístico-religioso com uma capela de rito católico bizantino, na qual viria a ser mais tarde colocado o ícone russo da Virgem de Kazan. Em Espanha, o Exército Azul instalaria um “santuário das aparições” no antigo convento das doroteias de Pontevedra, onde Lúcia tivera visões relacionadas com a Rússia. Por encomenda do Exército Azul em 1959, Salvador Dali pintou uma “Visão do Inferno” alegadamente inspirada na mensagem de Fátima71. Haffert, que também desejava promover aparições não reconhecidas pela Igreja, como as de Garabandal (Espanha, 1961-1966), seria afastado da liderança do Exército Azul, que a partir de 1967 passou a ser presidido internacionalmente por um bispo. Após a queda do comunismo, o nome belicista da organização será alterado, por pressão de Roma, para Apostolado Mundial de Fátima. Em 1952, Pio XII fizera uma explícita consagração dos “povos da Rússia” ao Imaculado Coração de Maria, aparentemente cumprindo o voto de Lúcia e o desejo de muitos fiéis72. Porém, como ela não fora feita em união com todos os bispos, seria considerada insuficiente pela vidente Lúcia – que subestimava o problema de o papa obter de mais de dois mil bispos tão contingente conformidade em torno do tema de Fátima, sobre o qual existiam diferentes opiniões no seio da Igreja. Esta questão será reavivada a partir da década de 60 por correntes católicas tradicionalistas73, que tentarão ao mesmo tempo impor uma interpretação da mensagem de Fátima de conteúdo político ultraconservador e com um sentido religioso anti-ecumenista e oposto às reformas conciliares. O Concílio do Vaticano II, abandonando a condenação da religião ortodoxa como erro ou heresia para passar a considerá-la sob o ângulo da complementaridade e da fraternidade cristãs, e os pontificados de João XXIII e Paulo VI, com uma nova política nas relações com o Leste, representaram um golpe nas crenças e expectativas das hostes fatimistas e dos meios católicos sintonizados com o espírito da guerra fria. A crise do catolicismo na Europa Ocidental e América do Norte das décadas de 60 e 70 – mergulhando as suas raízes nas mudanças societais do pós-guerra e numa contestação da hegemonia social e cultural da Igreja – seria associada por círculos católicos conservadores de diversos países a uma alegada ruptura do Concílio com o passado da Igreja, às reformas do culto, ao “neomodernismo”, ao relaxe da disciplina e da hierarquia, ao diálogo interconfessional, à proclamação conciliar da liberdade de consciência, etc. Para essas correntes minoritárias conservadoras, a “verdadeira” Igreja 70 John M. Haffert, “Historic Turning Point for U.S. Blue Army”, Soul Magazine, Janeiro-Fevereiro 1981, pp. 18-19. 71 A pintura foi mostrada em 2014 no Santuário de Fátima, na exposição “Segredo e Revelação”. 72 Carta Apostólica Sacro Vergente Anno (7 de Julho de 1952), Discorsi e Radiomessaggi di Sua Santità Pio XII, XIV, pp. 495-502. 73 Entre várias outras organizações, a Fraternidade Sacerdotal de Santo Pio X, do arcebispo Marcel Lefebvre, a Cruzada Internacional do Rosário de Fátima (ou Fatima Center), do padre canadiano Nicholas Gruner e o movimento francês Liga da Contra-Reforma Católica, do Pe. Georges de Nantes.

tinha ainda em Fátima um reduto, em defesa do qual iriam travar um combate que se estenderia pelas décadas seguintes. A partir da década de 60, uma série de obras especulativas e de sentido apocalíptico sustentarão que o “terceiro segredo” de Fátima se referiria a uma grave crise interna da Igreja causada pelo Concílio74. Em 1959 e 1965, os papas João XXIII e Paulo VI leram o segredo e decidiram não o divulgar75, o que acabaria por permitir a continuação e o recrudescimento dessas especulações. Também o episcopado português via em Fátima, invariável pólo de fé popular e de atracção de peregrinos, a fonte de vitalidade do catolicismo nacional, contrastando com o declínio da prática religiosa, a crise de vocações e a contestação no seio do clero e da militância católica. A década de 60 viu aprofundar-se uma clivagem entre o regime de Salazar e o Vaticano em torno da questão colonial portuguesa. A visita de Paulo VI a Fátima em 1967, a primeira de um papa a Portugal, fora antecedida em 1965 pela concessão da Rosa de Ouro ao santuário, correspondendo esses gestos sobretudo a um desejo de conciliação de Roma com o governo português, mas o conflito reavivar-seia76. Surgira entretanto em Portugal uma oposição católica à ditadura, intensificada após o exílio do bispo do Porto (1959) e com o alongar das guerras coloniais em África (1961-1974). Entre os opositores católicos, rotulados de “progressistas” pelos bispos, não tardariam também as críticas a Fátima, nos seus aspectos religioso e político. Em 1970, recém-regressado do seu exílio em França, o bispo do Porto, Mons. Ferreira Gomes, seria o primeiro prelado português a formular abertamente críticas a Fátima, visando os seus aspectos de “culto mágico” e “religião utilitária”. Já em 1968 o mesmo bispo havia denunciado, em carta privada ao presidente da conferência episcopal portuguesa, a cumplicidade de Fátima com o regime, chamando-lhe “Lourdes reaccionária”.77 Para os católicos que nessa época lutavam pela liberdade em Portugal, Fátima tinha um significado muito diferente, se não mesmo oposto ao que ela terá para os polacos que nos anos 80 lutarão pela sua liberdade. O episcopado português, entre a crescente contestação no seio da Igreja e as críticas dos meios católicos internacionais, procurou, embora tardiamente, demarcar-se do regime na crise final deste, que desembocou na revolução portuguesa de Abril de 1974. Esta concedeu a independência às colónias e instaurou um regime democrático, após um período de radicalismo político em que sucessivos governos com participação de elementos comunistas tentaram sempre evitar o surgimento de uma questão religiosa. Aparentemente alheado das convulsões políticas, o santuário de Fátima continuou a receber periodicamente as suas multidões de devotos e a cumprir a sua função espiritual, numa exibição da fé popular que resguardava e fortalecia a Igreja perante o poder revolucionário de 1974-1976. Certos fatimólogos tentaram, ainda assim, associar a nova 74 Um pioneiro desta vaga foi Yves Dupont, um leigo crítico do Concílio. Na sua obra Catholic Prophecy: The Coming Chastisement (Rockford, Illinois: TAN Books, 1970), profetizava que um “grande castigo” se seguiria à crise aberta pelo Concílio e também como consequência da Ostpolitik do Vaticano. 75 Congregação para a Doutrina da Fé, A Mensagem de Fátima, Lisboa: Paulinas, 2000, pp. 6-7. 76 Em 1 de Julho de 1970, Paulo VI recebeu em Roma os dirigentes dos movimentos de libertação da Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, um duro golpe para o governo de Lisboa. 77 J. Barreto, “Aparições”, op. cit., p. 70, e D. António Ferreira Gomes, Carta ao Cardeal Cerejeira (16 de Julho de 1968), D. Quixote, 1996, Lisboa, p. 78.

ameaça comunista e as dramáticas consequências da descolonização à mensagem de Fátima, especulando, nomeadamente, que a parte ainda desconhecida do segredo conteria uma previsão das “desgraças” que caíram sobre Portugal com a revolução78.

4. João Paulo II, o segundo “papa de Fátima” A eleição em 1978 de João Paulo II, um papa “mariano”, formado no ambiente tradicionalista e combatente de uma “Igreja do silêncio”, iria contribuir para recolocar Fátima e a sua mensagem na cena religiosa e política internacional, como no início da guerra fria. Todavia, isso aconteceria somente após o atentado à sua vida ocorrido na Praça de S. Pedro em Maio de 1981, quando foram ventiladas suspeitas de envolvimento de serviços secretos comunistas. João Paulo II, cuja devoção por Fátima era antiga, tinha sido instado desde 1978 por meios católicos conservadores a cumprir as instruções da mensagem da Virgem relativas à consagração da Rússia e a revelar o “terceiro segredo”.79 Nos primeiros anos do seu pontificado, porém, o papa manifestou repetidas reticências em satisfazer tais pedidos, alegando que os seus predecessores também o não tinham feito. Ao bispo eslovaco Pavol Hnilica o papa teria dito, a propósito da consagração da Rússia: “Se você me ajudar a persuadir os bispos, fá-la-ei amanhã”80 – o que aponta uma das razões pelas quais esse pedido não fora satisfeito no passado. João Paulo II teria também dito a Hnilica em 1980 que a consagração da Rússia poderia ser entendida pela URSS como uma interferência nos seus assuntos internos e ter consequências indesejáveis81. Já depois do atentado de 1981, insistindo o bispo Hnilica para que o papa fizesse a consagração da Rússia, João Paulo II ter-lhe-ia respondido que “muitos teólogos” se opunham a esse acto82. Durante os primeiros anos do seu pontificado, o papa, que logo em 1979 fez uma histórica visita à Polónia, deu sinais de que a anterior diplomacia de abertura e apaziguamento com o Leste prosseguiria83, o que foi mais tarde visto como fazendo parte de uma “estratégia dual” de João Paulo II, decidido a enveredar simultaneamente pelo apelo directo aos povos e a formas “morais”, não violentas, de resistência84. Aparentemente fiel às orientações conciliares, o papa abstinha-se também de gestos que pudessem ser julgados hostis pela Igreja ortodoxa russa, com a qual buscava uma 78 Pe. José Geraldes Freire, O Segredo de Fátima. A Terceira Parte é sobre Portugal?, ed. Santuário de Fátima, 1977. 79 Além das organizações tradicionalistas e sedevacantistas, também o Soul Magazine, órgão do Exército Azul de Nossa Senhora de Fátima, fez em 1980 uma campanha para que o papa consagrasse a Rússia em união com todos os bispos (Frère François de Marie des Anges, Jean-Paul Ier, le pape du secret, Saint-Parres-lès-Vaudes : CRC, 2003, cap. X). 80 Entrevista do bispo Pavel Hnilica a PUR - Magazin für Politik und Religion, Dezembro de 2004. Texto original integral em http://www.kath.net/news/9300. 81 Frère François de Marie des Anges, op. cit., cap. X. 82 Entrevista do bispo Pavel Hnilica a Il Giornale, 18 de Maio de 2000. Tanto esta entrevista de Hnilica como a de 2004, atrás citada, foram publicadas em vida de João Paulo II. 83 Agostino Casaroli, principal agente diplomático da Ostpolitik de Paulo VI, foi nomeado secretário de Estado do Vaticano em 1979. 84 George Weigel, “Papacy and Power”, First Things, 110 (Fevereiro de 2001), pp. 18-25.

progressiva aproximação, algo em que o seu pontificado se empenharia até ao fim, mas sem êxito, o que foi considerado um dos seus maiores falhanços85. Dias depois do atentado de 1981, ocorrido na data fatímica de 13 de Maio, João Paulo II quis consultar a documentação publicada sobre Fátima, que lhe foi disponibilizada pelo bispo Hnilica. O papa de imediato compôs um “Acto de Entrega” do mundo à Virgem, contendo uma alusão implícita aos países comunistas, que seria lido em Junho na basílica romana de Santa Maria Maggiore. A oração foi repetida em Fátima em 13 de Maio de 1982, quando da primeira visita de João Paulo II ao santuário. No primeiro aniversário do atentado que sofrera, o papa foi a Fátima para agradecer à Virgem ter-lhe poupado a vida: uma “mão materna” teria desviado a trajectória das balas, segundo afirmou86. Em 1981, ainda convalescente, João Paulo II tomara conhecimento do texto do “terceiro segredo”, mas não divulgara o seu conteúdo87. Em Fátima, a 13 de Maio de 1982, a vidente Lúcia entregar-lhe-ia pessoalmente uma carta, datada da véspera, fornecendo elementos para a interpretação do segredo88: a terceira parte seria a sequência da segunda, que falava dos erros, guerras e perseguições promovidos pela Rússia e, nesse contexto, afirmava que “o Santo Padre terá muito que sofrer”. Isto vinha corroborar a convicção íntima que João Paulo II tinha de que o “terceiro segredo” se referia a ele próprio e ao atentado que sofreu. Lúcia insistia nessa carta na necessidade de cumprir integralmente os pedidos da Virgem: “Porque não temos atendido a este apelo da Mensagem, verificamos que ela se tem cumprido, a Rússia foi invadindo o mundo com os seus erros. E se não vemos ainda, como facto consumado, o final desta profecia, para aí caminhamos a passos largos.”89 Paradoxalmente, na noite de 12 de Maio de 1982, em pleno santuário de Fátima, João Paulo II foi alvo de um atentado, frustrado in extremis pela polícia. O seu autor foi um padre tradicionalista espanhol90 armado de uma baioneta e gritando “Morte ao comunismo e ao Concílio Vaticano II”.91 O caso, minimizado pelo Vaticano, nunca foi comentado pelo papa. Crescentemente empenhado, a partir de 1981, no apoio ao movimento polaco Solidariedade, a cuja formação ele abrira caminho com a sua visita de 1979, João Paulo II visitou triunfalmente a Polónia pela segunda vez em 1983. No ano seguinte, em 25 de Março de 1984, o papa fez em Roma nova consagração do mundo ao Imaculado 85 Michael Walsh, “From Karol Wojtyla to John Paul II: Life and Times”, in Gerard Mannion (ed.), The Vision of John Paul II: Assessing his Thought and Influence, Collegeville: Liturgical Press, 2008, p. 24. 86 Citado em Joseph Ratzinger, Vittorio Messori, The Ratzinger Report. An Exclusive Interview on the State of the Church, San Francisco: Ignatius Press, 1985, pp 109-112. Em 13 de Maio de 1994, João Paulo II repetiria essa afirmação, numa mensagem enviada da clínica onde foi submetido a uma cirurgia (“Messaggio di Giovanni Paolo II all'episcopato italiano raccolto nella Basilica di Santa Maria Maggiore per la recita del rosario”, Libreria Editrice Vaticana). 87 Congregação para a Doutrina da Fé, A Mensagem de Fátima, op. cit., pp. 7-8. 88 Idem, pp. 11-12 (carta de Lúcia datada de 12 de Maio de 1982). 89 Idem. 90 Juan Fernández Krohn fora ordenado em 1978 pelo arcebispo Marcel Lefebvre, da Fraternidade Sacerdotal de Santo Pio X. Esta demarcou-se do atentado alegando que Krohn já não era seu membro. 91 José Manuel Vidal, “No llegué a herir al Papa” (entrevista com Juan Fernández Krohn), El Mundo, 19 de Outubro de 2008. Krohn, condenado a uma pena de seis anos, escreveu na prisão o livro Acuso o Papa, tendo como subtítulo Em Defesa do Terceiro Segredo (Cacém: Gris Impressores, 1982).

Coração de Maria, de conteúdo similar ao do acto de consagração de 1982 e com uma idêntica alusão velada aos países comunistas (“os povos dos quais Vós esperais a nossa consagração”). Na cerimónia, realizada em S. Pedro, esteve presente a estátua da Virgem de Fátima, requisitada por João Paulo II. Uma das balas do atentado de 1981 foi nesse dia oferecida pelo papa ao bispo de Leiria-Fátima, que mais tarde a mandou encastoar na coroa da estátua da Virgem. O papa enviara previamente uma carta aos bispos de todo o mundo, pedindo-lhes que se associassem ao acto de 25 de Março, para que ficassem reunidas as condições ditadas pela Virgem de Fátima. Nunca se soube em que medida os bispos convocados corresponderam ao apelo do papa, que também não o terá sabido92. Lúcia demoraria cinco anos a expressar por escrito a sua concordância com este modus faciendi, pressionada a fazê-lo perante a campanha movida pelos meios tradicionalistas europeus e americanos, que continuavam a exigir a menção explícita da Rússia e a participação activa de todos os bispos do mundo. O Vaticano considerou então o caso encerrado, apoiando-se também na declaração da vidente de que a consagração estava feita “tal como Nossa Senhora a pediu”.93 Os movimentos tradicionalistas não aceitaram tal testemunho, lançando suspeitas de o Vaticano ter compelido a vidente. Um dos movimentos mais activos, a Cruzada Internacional do Rosário de Fátima, do padre canadiano Nicholas Gruner, que contara no passado com o encorajamento de João Paulo II, subiu o tom da sua contestação durante a década de 90, fazendo com que o seu líder fosse finalmente suspenso a divinis. Entretanto, prosseguiam também as especulações apocalípticas sobre o “terceiro segredo”, mesmo depois da entrada da URSS na era Gorbatchov, seguida da crise final do regime comunista na Polónia e, por fim, da derrocada do próprio regime soviético. As correntes católicas conservadoras continuavam a depositar esperança na revelação do segredo de Fátima, convictas de que ele traria uma caução celestial às suas posições anticonciliares, anti-ecumenistas e contrárias ao diálogo inter-religioso. Foi um João Paulo II triunfante do comunismo que visitou pela segunda vez Fátima, em 1991, novamente num 13 de Maio e, simultaneamente, décimo aniversário do atentado da Praça de S. Pedro, confirmando plenamente o seu “fraco por sincronicidades, predições, aniversários e datas festivas”94. Ali, depois de aludir à consagração de 25 de Março de 1984, o papa proferiu um agradecimento solene: “Obrigado, Mãe Celeste, por terdes guiado com carinho maternal os povos para a liberdade!”95 A partir de 1994 passaria a estar exposto permanentemente no santuário de Fátima um módulo de betão do Muro de Berlim, como despojo da vitória sobre o comunismo, tendo como legenda o citado agradecimento do papa à Virgem. Com ou sem a “conversão da Rússia” indicada pela Virgem, o comunismo soviético caíra, o que para muitos significava a realização da mensagem de Fátima e demonstrava a eficácia da consagração feita por João Paulo II 92 Na citada entrevista de 2004, o bispo Hnilica relatou que o papa lhe perguntara, após a consagração de 1984, quantos bispos tinham participado nela, tendo o bispo eslovaco respondido que não sabia. 93 Carta de Lúcia de 8 de Novembro de 1989 (Congregação para a Doutrina da Fé, A Mensagem de Fátima, op. cit., p. 11). 94 John Cornwell, The Pope in Winter..., op. cit., p. 231. 95 Viagem Apostólica a Portugal. Discurso do Papa João Paulo II durante a vigília de oração no Santuário de Nossa Senhora de Fátima (12 de Maio de 1991).

em 1984. Em Outubro de 1992, meios ligados ao Exército Azul de Nossa Senhora de Fátima organizaram a ida de um milhar de peregrinos americanos a Moscovo, acompanhados por cinco bispos, entre os quais o bispo eslovaco Hnilica e o bispo de Leiria-Fátima, para em plena Praça Vermelha, diante do túmulo de Lenine e na presença do arcebispo católico de Moscovo, coroarem a imagem da Virgem peregrina de Fátima. A caminho do fim do milénio, o octogenário João Paulo II voltaria uma terceira vez a Fátima, em 13 de Maio de 2000, ano previamente declarado de “Grande Jubileu”96. O fim declarado da visita era a beatificação dos videntes Francisco e Jacinta, mas o papa escolhera essa ocasião para, sem pré-anúncio, fazer uma revelação há muito ansiada. Diante da multidão de peregrinos, o cardeal Angelo Sodano, secretário de Estado do Vaticano, expôs uma súmula do conteúdo do “terceiro segredo”, definindo-o como uma “visão profética comparável às da Sagrada Escritura, que não descrevem de forma fotográfica os detalhes dos acontecimentos futuros”.97 Tratava-se de explicar o “carácter simbólico”, não literal, do segredo, mas não deixava de ser insólito ouvir um alto dirigente da Igreja de Roma, diante do papa e por sua incumbência, a comparar o relato da vidente de Fátima a uma profecia da Bíblia. A terceira parte do segredo, prolongando a profecia das perseguições movidas pela Rússia à Igreja, exposta na segunda parte, relatava a visão do martírio e morte de bispos, sacerdotes, religiosos, religiosas e, por fim, do próprio papa98. Interpretando esta visão como uma referência à “luta dos sistemas ateus contra a Igreja e os cristãos” durante o século XX, o cardeal Sodano evocava de seguida o atentado de 1981, para dizer que “pareceu claramente a Sua Santidade que foi uma mão materna a guiar a trajectória da bala”, permitindo que o papa agonizante não tivesse morrido. Sugerindo assim que, graças à intervenção da Virgem, a visão do martírio não se tinha consumado nesse ponto, o cardeal Sodano deixava implícita a ideia de que João Paulo II e o atentado de 1981 estariam inscritos na profecia do “terceiro segredo”. Esta interpretação assentava na premissa, também ela apenas implícita, de que o atentado teria sido obra da Rússia ou do comunismo – o que, como matéria de facto, não estava provado, não ficou provado depois, nem jamais o papa ou o Vaticano o sustentaram expressamente. A revelação do “terceiro segredo” surgia, pois, enquadrada numa interpretação baseada em presunções, quer de ordem espiritual, impossíveis de provar ou desmentir, quer de ordem factual, sujeitas ao escrutínio da razão. A decisão da revelação do segredo em ambiente festivo, com forte mediatização, fora em boa parte motivada pela necessidade de aplacar os temores apocalípticos de fim de milénio e de acabar com as especulações, nomeadamente por parte dos movimentos católicos tradicionalistas, que apostavam numa profecia da crise interna da Igreja – uma “lenda negra” que, para teólogos católicos, era necessário desmontar99. Contudo, a 96

Carta apostólica Tertio Millennio Adveniente (10 de Novembro de 1994). Congregação para a Doutrina da Fé, A Mensagem de Fátima, op. cit., pp. 36-38. 98 Idem, pp. 36-37. O texto de Lúcia, depois divulgado integralmente, dizia que o Santo Padre “foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam vários tiros e setas”. 99 Stefano De Fiores, “La crisi della Chiesa? Una leggenda nera”, Corriere della Sera, 27 de Junho de 2000. 97

presidência do acto por João Paulo II, o envolvimento pessoal e directo na sua preparação e execução de três das mais altas figuras da Cúria romana (Angelo Sodano, Joseph Ratzinger e Tarcisio Bertone) e a presença de certo modo avalizadora da própria vidente na cerimónia, tudo contribuiu para conferir à revelação e interpretação do segredo um carácter extraordinário e sem precedentes na história da Igreja católica. Nunca uma “revelação privada” fora alvo de semelhante acto público de acreditação. Algumas semanas depois, a 26 de Junho de 2000, em Roma, o cardeal Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, divulgou finalmente o texto integral do segredo juntamente com um longo comentário teológico da sua autoria, desde então apenso às edições oficiais da mensagem de Fátima100. Este importante texto do futuro Bento XVI foi apresentado como uma posição não oficial da Igreja sobre o segredo, embora tenha obviamente tido o consentimento de João Paulo II. Antes da revelação do segredo, que fora decidida pelo papa, “o cardeal-prefeito reservou-se o direito de dar uma interpretação teológica”, segundo desvendou em 2007 o cardeal Bertone, esclarecendo assim que não se tratou de uma missão de que Ratzinger tivesse sido previamente incumbido por João Paulo II101. Não foi por acaso que o comentário de Ratzinger foi divulgado longe da multidão de Fátima: ele lançava uma luz doutrinária fria, ainda que teologicamente rigorosa, sobre “fenómenos como o de Fátima”, descritos como “revelações privadas”, às quais, ao invés da revelação das Escrituras, “não é devido um assentimento de fé católica”, requerendo-se antes um assentimento de “fé humana conforme às regras de prudência”.102 Não era isto novidade na teologia católica desde pelo menos o século XVIII, quando o cardeal Lambertini, depois papa Bento XIV, o afirmara num tratado clássico103, mas lembrá-lo agora assumia particular significado. Ratzinger citava como “eminente conhecedor desta matéria” o aqui já citado teólogo belga Edouard Dhanis, que os católicos tradicionalistas tinham por inimigo de Fátima. Esta surpreendente alusão parecia uma homenagem póstuma ao primeiro teólogo católico crítico da mensagem de Fátima, e assim foi entendida pelos referidos meios conservadores. Dissertando sobre a “estrutura antropológica” das visões, Ratzinger qualificava as aparições de Fátima como “percepções interiores”, nas quais o sujeito (o vidente), com as suas capacidades e limitações, “desempenha uma parte essencial na formação da imagem daquilo que aparece”. Na sua análise do texto do segredo, Ratzinger observava ainda que ele lembrava “imagens que Lúcia pode ter visto em livros de piedade e cujo conteúdo deriva de antigas intuições de fé”.104 Para dar por encerrado o tempo das especulações, sustentava ainda que os acontecimentos representados no segredo pertenciam já ao passado, não mencionando porém de que Card. Joseph Ratzinger, “Comentário teológico”, in Congregação para a Doutrina da Fé, A Mensagem de Fátima, op. cit., pp. 39-55. A publicação tem uma introdução do arcebispo Tarcisio Bertone, ao tempo secretário do mesmo dicastério. 101 Card. Tarcisio Bertone, Giuseppe De Carli, A Última Vidente de Fátima, op. cit., p. 65. 102 Card. Joseph Ratzinger, “Comentário teológico”, op. cit., p. 43. 103 Veja-se a este respeito Jean Galot S.J., “Le apparizioni private nella vita della Chiesa”, La Civiltà Cattolica, vol. 2 (136), 1985, p. 32. 104 Pela sua parte, Umberto Eco assinalou no texto de Lúcia múltiplas “citações” do Apocalipse de S. João (“Credere nel Terzo Segreto”, Julho de 2000, in U. Eco, A passo di gambero: guerre calde e populismo mediatico, Milano: Bompiani, 2006, pp. 277-278). 100

passado se trataria – ainda que noutro ponto do seu comentário declarasse “razoável” que João Paulo II, após o atentado de 1981, tivesse identificado “o seu próprio destino” na visão de Lúcia. Aquilo que para Ratzinger era mais válido no segredo de Fátima, “o que permanece”, era a exortação à oração, à penitência e à conversão, como meios para a salvação das almas. Esta tentativa de regresso à pureza inicial da mensagem de Fátima poderá parecer ilusória, na medida em que Ratzinger contornou o tema fulcral da conversão da Rússia e, após ter elogiado Dhanis como autoridade teológica, omitiu a questão dos acréscimos de que a mensagem foi objecto ao longo do tempo, tema que o mesmo Dhanis fora o primeiro teólogo a abordar em 1944. De qualquer modo, houve quem lesse o comentário teológico de Ratzinger como um desmascaramento gentil do relato de Lúcia105. Pela sua parte, os meios católicos tradicionalistas reagiriam declarando que o segredo revelado era falso ou, ainda, que Roma teria ocultado uma alegada quarta parte106. Consentindo que Ratzinger dissesse o que ele próprio nunca disse sobre Fátima, João Paulo II desobrigou-se de uma missão doutrinária que em última instância lhe caberia, mas de cujo cumprimento era aparentemente inibido pela sua grande receptividade pública – tácita no caso de Medjugorje – para com as manifestações de sobrenaturalidade da religiosidade popular. Nas décadas de 80 e 90, a frequência de alegadas aparições marianas a nível mundial quase quadruplicou relativamente aos anos 60, década em que se tinha verificado o número mais baixo do pós-guerra107. A Igreja de João Paulo II não caucionou oficialmente essa vaga de aparições que o seu próprio pontificado parcialmente terá inspirado e fomentado. Todavia, mesmo quando a autoridade eclesiástica competente desacreditou esses fenómenos ou lhes questionou os “frutos espirituais”, como em Medjugorje, o papa não deixava intimamente de reconhecer o seu poder de conversão e evangelização108. João Paulo II terá também expressado ao bispo Hnilica a sua convicção íntima de que Medjugorje era “uma continuação, uma verdadeira extensão de Fátima”, apesar de os bispos da diocese de Mostar terem repetidamente declarado que as aparições eram uma fraude109. O papa polaco foi até certo ponto um revivalista do marianismo combatente dos anos da guerra fria, mas num quadro político muito diferente, de declínio e, por fim, derrocada do comunismo soviético. Fátima e o seu “segredo”, oportunamente recolocados na ribalta na sequência do atentado de 1981, revelar-se-iam uma referência permanente e uma eficaz arma propagandística no combate vitorioso de João Paulo II contra o comunismo, que o próprio descreveria mais tarde como um abanão numa árvore

Richard Boudreaux, “Catholic Church Unveils ‘Third Secret of Fatima’ - The Vatican's top theologian gently debunks a nun's account of her 1917 vision that fueled decades of speculation”, Los Angeles Times, 27 de Junho de 2000. 106 Antonio Socci, autor de Il Quarto Segreto di Fatima (2006), e Christopher A. Ferrara, com o livro The Still Hidden Secret (2008), são defensores desta tese. 107 Paolo Apolito, Internet e la Madonna: sul visionarismo religioso in rete, Milano: Feltrinelli, 2002, p. 31. 108 Entrevista citada do bispo Hnilica (Dezembro de 2004). 109 Idem. 105

podre110. O milagre da conversão da Rússia, segundo o molde da mensagem de Fátima interpretada e validada por Pio XII, porém, obviamente não se operou. Esse lema préconciliar, de origem ancestral, há muito desadequado e depois conotado com a guerra fria, entretanto encerrada, constituía um escolho maior nas relações entre o catolicismo romano e a Igreja ortodoxa. No período pós-comunista, novamente parecera a alguns que se abria a Roma uma oportunidade histórica, como em 1917, de “reunificação cristã”, causa que João Paulo II abraçou, na senda de Bento XV e Pio XI. Contudo, a Igreja ortodoxa, símbolo renascido da identidade nacional russa, mas ainda debilmente implantada na sociedade póssoviética, opor-se-ia por todos os meios à missionação de confissões minoritárias e estrangeiras, nomeadamente a católica, no seu “território canónico” – conceito que opôs à noção universal de liberdade religiosa. Acusado de “proselitismo” em solo ortodoxo, o episcopado católico russo do pós-comunismo a breve trecho admitiu que a mensagem fatímica de “conversão da Rússia” não deveria consistir em tornar a Rússia um país católico. O primeiro arcebispo católico de Moscovo da era pós-comunista, Tadeusz Kondrusiewicz, da minoria étnica polaca, reconheceu que o catolicismo romano sempre fora e continuaria a ser na Rússia “a Igreja de uma minoria”111. Apesar destas garantias e de uma atitude igualmente conciliatória de Roma, a intransigência da Igreja ortodoxa russa manteve-se, exigindo da Igreja católica uma prática coerente com o princípio das “Igrejas irmãs” estipulado na chamada Declaração de Balamand em 1993. Este documento, um conjunto de sugestões da comissão mista internacional para o diálogo teológico entre católicos e ortodoxos, preconizava que a Igreja católica, tanto latina como oriental, deixasse de fazer proselitismo entre os ortodoxos e falava da necessidade de ultrapassar a “eclesiologia caduca do regresso à Igreja católica”.112 A decisão de João Paulo II, em 2004, de devolução do ícone da Virgem de Kazan – em tempos conservado na capela bizantina do Exército Azul em Fátima – ao patriarca russo Aleixo II, que sempre se opôs firmemente a uma visita de João Paulo II a Moscovo, pretendeu simbolizar o empenhamento de Roma numa nova era de relacionamento entre cristãos latinos e orientais. As relações tensas do primeiro quarto de século de póscomunismo não confirmaram essa esperança. Finalmente, em Fevereiro de 2016, o papa Francisco e o patriarca russo Cirilo encontraram-se e emitiram uma declaração conjunta113, actos sem precedentes num milénio de separação. Que o histórico abraço dos dois “irmãos cristãos” tenha sido dado em Cuba, como convidados dos dirigentes de um regime comunista, é algo que não parece fácil de conciliar com o lema da conversão da Rússia e com o espírito profético da mensagem de Fátima, tal como Pio XII a entendeu em 1942 e o catolicismo tradicionalista continua hoje a entendê-la. 110 Carl Bernstein, Marco Politi, His Holiness: John Paul II and the Hidden History of Our Time, New York, Doubleday, 1996, p. 356. 111 John L. Allen Jr., “Interview with Archbishop Tadeusz Kondrusiewicz”, National Catholic Reporter, 31 de Agosto de 2004. 112 L’uniatisme, méthode d’union du passé, et la recherche actuelle de la pleine communion, Balamand, 23 de Junho de 1993, pontos 22 e 30. 113 “Incontro del Santo Padre Francesco con S.S. Kirill, Patriarca di Mosca e di tutta la Russia. Firma della dichiarazione congiunta” (12 de Fevereiro de 2016), Libreria Editrice Vaticana.

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