Um sentido juridico para o antigo regime ancien regime Jus Navigandi

June 9, 2017 | Autor: Ivan Furmann | Categoria: História do Brasil, História Do Direito, História do Direito do Brasil
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05/02/2016

Um sentido jurídico para o antigo regime (ancien régime) ­ Jus Navigandi

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Um sentido jurídico para o antigo regime (ancien régime) Um sentido jurídico para o antigo regime (ancien régime)

Sandro Luís Tomás Ballande Romanelli|

Ivan Furmann

Publicado em 01/2016. Elaborado em 12/2015.

Em que medida a expressão “antigo regime”, originária da França, é adequada para se referir à realidade colonial brasileira? RESUMO: A expressão Antigo Regime é muito utilizada no vocabulário dos historiadores do Direito, em especial, aqueles que trabalham com a história nos séculos XVII, XVII e XIX. Apesar disso, poucos historiadores apresentam um conceito didático  ou  se  preocupam  em  esclarecer  a  expressão  para  aqueles  que  não  estão  familiarizados  com  o  mesmo.  Alguns elementos  são  apresentados  para  facilitar  a  compreensão  dos  leitores  iniciantes,  não  se  trata,  portanto,  de  um  texto  que pretende trazer novos enfoques sobre o tema, mas esclarecer a expressão e facilitar a compreensão daqueles que iniciam estudos na área histórica. Por fim, apresenta­se uma polêmica sobre o uso da expressão para a compreensão da realidade brasileira.

1. INTRODUÇÃO: POR QUE ANTIGO REGIME? Qual  é  o  sentido  do  termo  “Antigo  Regime”  nas  abordagens  feitas  pelos  historiadores  do  Direito?  Tal  esclarecimento  é necessário para evitar os equívocos comuns, presentes na historiografia tradicional em relação à interpretação do Direito no Antigo Regime. Isso porque, “(...) transportando para a história uma certa unidimensionalidade do poder político no seu tempo,  os  historiadores  tendiam  a  reduzir  a  vida  política  do  Antigo  Regime  aos  actos  formais  do  poder  —  i.e.,  aos  que decorriam sob o império e regulamento do direito estadual. Todo o resto — i.e, tudo o que decorria em contravenção com este ou à sua margem – não era relevante para a investigação.”. (HESPANHA, 1994, p.26). Seguindo essa linha de raciocínio, a primeira  explicação  a  ser  dada  é  a  motivação  do  uso  do  conceito  de  “Antigo  Regime”.  Não  se  trata  de  uma  expressão depreciativa do passado ou celebratória do presente. Os historiadores contemporâneos do Direito pretendem evitar que se observem  apenas  os  regulamentos  de  Direito  estatal  (em  especial  legislação  em  sentido  estrito),  conseguindo  avançar  na compreensão das estruturas jurídicas e administrativas anteriores ao predomínio do direito positivo.  

2. A INVENÇÃO DA EXPRESSÃO Não é comum encontrar entre os historiadores contemporâneos da História do Direito a delimitação de grandes conceitos, isso ocorre em grande parte para apresentar certa maleabilidade fundamental para estudos que se pretendem abertos às novas interpretações (inclusive motivado pelas variações de sentido das palavras em âmbitos locais e temporais). Mesmo assim, é possível visualizar alguns limites que são centrais a interpretação da expressão. Um  primeiro  limite  é  o  temporal.  Antonio  Manuel  Hespanha  apresenta  uma  periodização  da  história  das  instituições portuguesas que propõe um olhar amplo do chamado sistema feudal entre os séculos III D.C. até o primeiro terço do século XIX (1982, p.42). Esse longo período feudal estaria dividido em três fases: a) sistema feudal inicial até metade do séc. XVI; b) Sistema corporativo até a segunda metade do século XVIII; c) Estado absoluto até o primeiro terço do séc. XIX. Não é possível delimitar com datas fechadas a existência do Antigo Regime, porém não é absurdo, como referência um pouco mais ampla, indicar que esse modelo que vai da metade do século XVII as primeiras décadas do século XIX.[i]

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O segundo limite está relacionado à sua caracterização. Mas afinal, o que caracteriza o Antigo Regime? Novamente Hespanha esclarece que seu conceito está relacionado a uma tentativa de organizar um conceito político para a História, enfocando aspectos além das interpretações economicistas.

(...) chegou­se deste modo a uma definição em termos estruturais do Antigo  Regime  político  —  tal  como  já  se  dispunha  duma  definição, em  termos  estruturais,  do  Antigo  Regime  económico  (sistema  de relações  feudais  de  produção)  —  nos  termos  da  qual  o  Antigo Regime  político  será  caracterizado  pela  não  separação  entre "Estado"  e  "sociedade  civil"  e  pelo  "carácter  globalizante  dos mecanismos do poder". (HESPANHA, 1984, p.42). Um terceiro limite é político. Se no sentido amplo “Antigo Regime” está relacionado a todo um período de transição entre o modelo medieval e o moderno, em sentido estrito Antigo Regime designa a parte administrativa desse período. Ressalte­se que  o  conceito,  atualmente  explorado  na  Ciência  Histórica,  aparece  inicialmente  como  contraposição  do  período  pós­ revolução ao modelo administrativo e político anterior. Antigo Regime era uma expressão utilizada pelos contemporâneos da Revolução Francesa para designar o sistema político anterior à revolução, “(...) Mirabeau foi o primeiro a falar num Ancien Regime”. (LOPES, 2003, p.129). Nesse sentido Tocqueville explica:

Menos  de  um  ano  após  o  início  da  Revolução,  Mirabeau  escreveu secretamente  ao  rei,  "Compare  o  presente  estado  de  coisas  com  o Antigo  Regime,  console­se  e  mantenha  a  esperança.  Em  parte  ­  a maioria  dos  atos  da  assembléia  nacional  são  favoráveis  a  um governo monárquico. De nada adianta livrar­se do Parlamento, dos estados separados, do corpo clerical, das classes privilegiadas, e da nobreza? Richelieu teria gostado da idéia de formar uma só classe,  de  cidadãos,  um  só  nível  de  superfície  auxiliaria  o  exercício  do poder.  Uma  série  de  reinados  absolutos  teria  feito  menos  para  a autoridade  real  do  que  este  ano  de  Revolução".  Ele  entendeu  a Revolução  como  um  homem  que  era  competente  para  liderá­la. (TOCQUEVILLE, 1856, p.21, trad. livre).[ii] [iii] Tocqueville percebe que a Revolução não poderia ser compreendida dentro de uma lógica de total ruptura,[iv] o Antigo regime, em certo sentido, foi reorganizado dentro da Revolução como uma unidade. “Em verdade, Ancien Regime designa bem mais a 'organização' da mais perfeita desordem que exprime o verdadeiro cipoal de particularismos que caracterizou a França  nos  séculos  XVI,  XVII  e  XVIII.”.  (LOPES,  2003,  p.129).  Existem  diversos  estudos  que  demonstram  que  essa “desorganização” não é tão desorganizada assim, e que coube ao discurso revolucionário justificar as abruptas mudanças desvalorizando o regime anterior. Aqui é possível se deter um pouco mais, pois apesar da expressão, ao que tudo indica, ser cunhada pelos revolucionários, e adotada  no  debate  político  por  Tocqueville,  seu  conteúdo  já  circulava  antes  da  revolução,  o  que  pode  ser  resgatado  em Montesquieu. Em seu tempo, a estrutura da justiça era objeto de grande desconfiança e muitas críticas. De acordo com um estudo  histórico  realizado  por  um  grupo  de  cooperação  internacional  (publicado  pelo  Ministério  da  Justiça  do  Canadá), dentre as instituições do Ancien Régime, a Justiça constava como aquela que suscitava as críticas mais vívidas.

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A  justiça  francesa  sob  o  Ancien  Régime  era  caracterizada  pelo número  elevado  de  jurisdições,  o  acavalamento  de  seus mecanismos,  a  lentidão  e  o  custo  dos  processos,  a  severidade  do processo  criminal,  a  crueldade  das  punições  e  das  penas  para  os menos  abastados,  severidade  que  contrastava  com  a  extrema clemência que era concedida aos privilegiados. Juízes  e  procuradores  eram,  em  geral,  pouco  amados,  eis  que defendiam  um  sistema  favorável  aos  seus  interesses,  mas  que  a maioria da população rejeitava. Somente os advogados oriundos da média  ou  pequena  burguesia  admitiam  a  necessidade  de  uma reforma da justiça. (CANADA, 2011, p. 12).[v] Neste sentido, alguns aspectos do Poder Judiciário francês da época de Montesquieu podem ser debatidos. Com relação ao alto custo da justiça na França do século XVIII, grande parte deste custo estava relacionada à remuneração dos juízes. Como afirmam Guy Cabourdin e Georges Viard em seu “Léxico histórico da França no Ancien Régime”, os juízes eram funcionários que haviam comprado o cargo, tornando hereditário. Essa forma de delegação do serviço público, por meio da compra da “charge” (cargo ou encargo) se assemelha ao sistema de cartórios e registros públicos brasileiro anterior à Constituição de 1988 (e provenientes da tradição colonial portuguesa), na qual o particular que desejasse prestar o serviço obteria do poder público a outorga, em exclusividade, das atribuições e o encargo de fazê­lo às suas expensas, empregando funcionários e recursos dos quais buscaria reembolso pela cobrança de taxas pelo serviço. Ainda  de  acordo  com  Cabourdin  e  Viard  (1978),  os  juízes  do  tempo  de  Montesquieu  eram  mal  retribuídos  pelas  taxas ordinárias e buscavam se reembolsar sobre as partes, exigindo propinas[vi] e fazendo durar indefinidamente o processo, com o objetivo de multiplicar os atos sujeitos a pagamento de taxas e emolumentos e maximizar seus rendimentos.[vii] Além destes obstáculos ao acesso à justiça, havia grande desigualdade de tratamento no sistema de acordo com a classe dos litigantes. A nobreza não era obrigada a percorrer todas as etapas da justiça real, podendo recorrer diretamente ao rei, fonte de toda a justiça, que podia conceder a justiça em pessoa no conselho de partes. Guinchard  afirma  que  em  meados  do  século  XVIII,  houve  uma  crescente  percepção  popular  de  que  os  juízes  estavam governando  no  lugar  do  Rei,[viii]  que  passam  a  contestar  não  somente  as  leis,  mas  também  as  ordens  de  prisão  civil emanadas  pelo  Monarca  (lettres  de  cachet).  Guinchard  destaca  que  “em  termos  de  separação  de  poderes,  eles  [os magistrados] exercem portanto a função legislativa, discutindo a conveniência e adequação da política real”.[ix] Assim, é o medo do juiz – de que venha a impedir as transformações sociais operadas pelos revolucionários – que levou à necessidade de amordaçar o corpo de magistrados ao texto da Lei, operando como meros aplicadores da vontade legislativa, nas palavras de Guinchard:

[O juiz boca da lei] é a expressão de um programa político ligado a um elemento subjetivo, o medo do juiz, e não um símbolo de uma reflexão  abstrata  sobre  a  função  jurisdicional.  É  sintomático  que  o argumento do juiz “boca da lei” seja proferido toda vez que se trata de limitar o poder judiciário com relação a um passado, isto é, cada vez  que  se  trata  de  proibir  ao  juiz  qualquer  ambição  política. Embora  façam  de  forma  unânime  o  elogio  de  um  poder  judiciário com  considerável  influência,  os  constituintes  deduzem  sempre  a importância  de  controlar,  constranger  “este  poder  terrível  afim  de que  ele  não  prejudique  nem  a  liberdade  política,  nem  a  liberdade civil”. Segue­se então a enumeração de todas as questões a abordar afim  de  bem  organizar  o  poder  judiciário,  isto  é,  com  o  objetivo de constranger o juiz (GUINCHARD, 2011, p. 7, grifo nosso).[x] https://jus.com.br/imprimir/45821/um­sentido­juridico­para­o­antigo­regime­ancien­regime

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Desta  forma,  menos  que  uma  reflexão  abstrata  sobre  a  função  jurisdicional,  a  separação  de  funções  proposta  por Montesquieu é resultado deste contexto de desconfiança com relação aos magistrados. E quando os revolucionários cunham a expressão “Antigo Regime”, dão destaque a idéia de ultrapassado, de tempos de opressão e medo que foram finalmente superados. Em última análise os revolucionários não elaboraram a expressão pensando no passado e seu conteúdo, mas na contraposição  ao  presente  de  liberdade  que  pretendiam  estabelecer.  Atualmente,  porém,  os  historiadores  do  Direito  se apropriaram da expressão para lhe dar conteúdo, e relacionar uma série de conteúdos a expressão.

3. O CONTEÚDO DA EXPRESSÃO Como herdeiro da sociedade corporativa que se desenvolve a partir da baixa idade média, o Antigo Regime também sofre influxos  das  transformações  sociais  que  eclodirão  no  período  das  revoluções.[xi]  Por  isso,  importante  avaliar  as permanências e descontinuidades do período. Segundo a historiografia contemporânea, a concepção corporativa de sociedade é fundamentada na percepção teológica de mundo, origina­se e se legitima dentro de um contexto teológico.

O  pensamento  social  e  político  medieval  é  dominado  pela  idéia  da existência  de  uma  ordem  universal  (cosmos),  abrangendo  os homens  e  as  coisas,  que  orientava  todas  as  criaturas  para  um objectivo  último  que  o  pensamento  cristão  identificava  com  o próprio  Criador.  Assim,  tanto  o  mundo  físico  como  o  mundo humano,  não  eram  explicáveis  sem  a  referência  a  esse  fim  que  os transcendia,  a  esse  telos,  a  essa  causa  final  (para  utilizar  uma impressiva  formulação  da  filosofia  aristotélica;  o  que  transformava o mundo na mera face visível de uma realidade mais global, natural e  sobrenatural,  cujo  (re)conhecimento  era  indispensável  como fundamento  de  qualquer  proposta  política.  (HESPANHA, 2005A,p.101) Portanto, a referência central é a perspectiva de sociedade fundamentada em Deus. Sua invenção se dá dentro da lógica medieval. A longa permanência da visão medieval de sociedade pode ser percebida em nuances no final do Antigo Regime português. Por isso vale aprofundar algumas nuances da Ordem jurídica medieval. Salutar nesse sentido a obra de Paolo Grossi, que explicita o motivo pelo qual considera descrever a cultura jurídica medieval como Ordem Jurídica[xii]:

(...) a inserção da palavra “ordem”, obstinadamente intencional. De fato,  parece­nos  que  jamais  como  na  Idade  Média  o  direito representou  ou  constituiu  a  dimensão  profunda  e  essencial  da sociedade,  uma  base  estável  que  se  destaca  do  caráter  caótico  e mutável do cotidiano, isto é, dos eventos políticos e sociais do dia­a­ dia.  A  sociedade  medieval  é  jurídica,  porque  se  realiza  e  se salvaguarda no direito; jurídica é sua constituição mais profunda e nela  está  seu  caráter  essencial,  seu  elemento  último.  Às  desordens da  superfície  extremamente  caótica  se  contrapõe  a  ordem  da secreta,  mas  presente,  constituição  jurídica.  (GROSSI,  2002,  p.14). [xiii] A experiência jurídica medieval é descrita como estritamente relacionada à natureza das coisas, ordem presente no mundo. É um modelo que não se fundamenta na individualidade ou liberdade dos sujeitos, mas na ordenação social.

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Ordinatio  é  a  palavra  que  desloca  o  eixo  da  definição  do  sujeito  ao objeto, porque insiste não sobre a sua liberdade, mas sobre limites à sua liberdade; ordenar é, efetivamente, uma atividade vinculada, já que significa tomar consciência de uma ordem objetiva preexistente e  não  eludível  dentro  do  qual  deve  ser  inserido  o  conteúdo  da  lex. (GROSSI, 2004, p.35) A  expressão  jurídica  mais  reconhecida  dessa  Ordem  das  coisas  aparecia  no  Direito  Europeu  como  “Direito  comum”  (ius commune)[xiv]. “O direito romano medieval, ou direito "civil", junto com o direito canónico (que por sua vez era fortemente influenciado pelo direito romano), criou o direito erudito comum para todo o Ocidente: daí um dos motivos de seu nome ius commune.”. (CAENEGEM, 1999, p.65).[xv] Em coexistência com o Direito comum apresentava­se o Direito próprio (local) e limitado, “(...) ius proprium, o direito "particular" que estava em vigor, em suas inúmeras variações, em diversos países, regiões e cidades da Europa, sob a forma de costumes, ordenações e cartas”. (CAENEGEM, 1999, p.65). Na lógica medieval o direito comum (ius commune) não demandava a exclusão de outras formas de Direito, ao contrário, pretendia harmonizar as diversas manifestações locais ao direito geral, não reduzindo a pluralidade à unidade.[xvi] Nesse aspecto, o direito dos rústicos (local e fundamentado no senso de justiça) deveria ser harmonizado com as regras mais amplas do Direito Comum, coexistindo pluralidade de lógicas jurídicas.  A grande oposição entre o Antigo Regime e a Modernidade estaria no esforço artificial do jurista moderno em controlar o mundo a partir da vontade e criando uma unidade jurídica a partir de suas fontes, excluindo a pluralidade.[xvii] “Um fator que explica o papel secundário da legislação como fonte do direito sob o ancien regime é a competição com o ius commune, que  tornou  possível  transformar  o  antigo  direito  europeu  sem  intervenção  legislativa.”.  (CAENEGEM,  1999,  p.122).  Na modernidade “O direito se vê reduzido ao grau de instrumento de controle social, se tornando um artifício, uma criação do titular da soberania.” (GROSSI, 2010, p.100).

4. DISTINGUINDO DIREITO MEDIEVAL DO DIREITO DO ANTIGO REGIME Tendo em vista a centralidade do discurso teológico e a pluralidade de produções jurídicas, a fim de facilitar a compreensão das mudanças do modelo medieval para o modelo do Antigo Regime, vale destacar as características do Direito medieval. Segundo Hespanha o Direito medieval:

(a) valoriza os fenômenos grupais ou colectivos; (b)  que  considera  o  poder  como  algo  originariamente  repartido  (e não  apenas  delegado  ou  dividido  pelos  poderes  do  Estado)  por múltiplos  corpos  sociais,  cada  qual  dotado  da  autonomia  política  e jurídica exigida pelo desempenho da sua função social; (c) que reserva ao poder político global apenas a função de garantir esta  autonomia  e  especificidade  do  estatuto  social  de  cada  corpo (fazendo  justiça,  i.e,  suum  cuique  tribuens)  e  assegurando,  desta forma, a paz (harmonia, coharentia); (d)  que  apenas  vê  o  indivíduo  como  parte  de  grupos  e  os  seus direitos  e  deveres  com  reflexos  do  estatuto  ("foro”)  dos  grupos  em que se integra; (e) e que recusa a distinção, própria do pensamento moderno, entre "sociedade  civil"  e  Estado  (ou  "sociedade  política").  (HESPANHA, 1982, p. 211)[xviii] Tendo em vista tais características, vale a pena debater sua incidência no Antigo Regime.

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a) A valorização dos fenômenos grupais ou coletivos, em detrimento da idéia de direito individual, ainda é percebida no Antigo  Regime.  A  noção  de  individualismo  moderno  será  juridicamente  concretizada  com  o  liberalismo  e  as  revoluções burguesas na Europa. Por isso, o modelo jurídico ainda é pautado na perspectiva de Direito coletivo. Voltando­se a tradição da idade média:

O  direito  é  um  fenômeno  primordial  e  radical  da  sociedade  (...)  é terreno  necessário  e  suficiente  as  flexíveis  organizações comunitárias  em  que  o  social  se  ordena  e  que  ainda  não  se fundamentam  na  polis,  mas  sim  no  sangue,  na  fé  religiosa,  na profissão, na solidariedade cooperativa, na colaboração econômica. (GROSSI, 2004, p.30­1). b) O poder ainda é repartido no Antigo Regime. Em Portugal o poder local dos Concelhos (Câmaras) das vilas tem especial importância. Essa característica ressaltava o Direito como importante elo comunitário.

(...)  a  centralidade  do  direito  se  traduzia,  de  facto,  na  centralidade dos  poderes  normativos  locais,  formais  ou  informais,  dos  usos  das terras,  das  situações  "enraizadas"  (“lura  radicata"),  na  atenção  às particularidades  de  caso;  e,  em  resumo,  na  decisão  das  questões segundo  as  sensibilidades  jurídicas  locais,  por  muito  longe  que andassem daquilo que estava estabelecido nas leis formais do reino. (HESPANHA, 2007, p.57). As  autonomias  política  e  jurídica  dos  concelhos  marcam  esse  período,[xix]  guardando  permanência  significativa  até  o período pós­Independência no Brasil (sofrendo retrocesso apenas com regulamentações do juízo de paz em 1828, quando retirado das câmaras poder jurisdicional). Também há de se notar que até mesmo na França, “(...) os magistrados do Antigo Regime se beneficiam de uma grande independência face aos poderes. Salvo em casos excepcionais, confiados a jurisdições extraordinárias, essa independência é real e o poder não se imiscui em seus assuntos.” (GARNOT, 2003, p.25). c) A centralização do poder real é provavelmente a maior diferença entre o período medieval e a fase final do Antigo Regime. Mesmo não podendo se falar num absolutismo monárquico português em toda sua plenitude, é inegável que em Portugal o papel central da monarquia despontará no cenário político dos séculos XVIII e início do XIX.

Seja como for, os finais do Antigo Regime constituem uma época em que,  claramente,  a  imagem  do  príncipe  como  caput  reipublicae, como pessoa pública, se sobrepõe às restantes. E em que o governo assume  as  características  de  uma  actividade  dirigida  por  razões específicas (as razões do Estado), tendente a organizar a sociedade, impondo­lhe  uma  ordem  e  defendendo­a  do  caos  originário. Inaugura­se,  por  outras  palavras,  uma  era  de  "administração activa",  com  quadros  legitimadores,  métodos  e  agentes  muito distintos  dos  da  passiva  administração  jurisdicionalista. (HESPANHA, 2006, p.357) Por isso, é possível afirmar que durante o Antigo Regime inicia­se o movimento para que “(...) a pessoa do monarca [torne­ se] a única fonte instituidora do Direito” (WOLKMER, 2006, p.160). d) A noção de sujeito de direitos, dotado de direitos universais e naturais, ainda não se concretiza no período final do Antigo Regime. Apesar do que, é possível perceber que diversos autores jusnaturalistas já defendiam tais idéias no período. Assim, a ordem medieval atribuía a cada parte do corpo a possibilidade de criar Direito, bem como a cada pessoa aplicava­se o Direito proveniente  de  seu  status.  Cada  direito  ainda  depende  do  estado  ao  qual  o  indivíduo  pertencia[xx],  preferindo  a

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particularidade da condição do sujeito à regra geral.[xxi] Assim, uma das mais importantes funções do juiz medieval, a qual pode ser percebida na noção de Iurisdictio[xxii], era identificar o status do indivíduo a se aplicado no caso concreto. Função ainda essencial no Antigo Regime.

(...) o arbítrio do juiz na apreciação dos casos concretos ("arbitrium iudex relinquitur quod in iure definitum non est", fica ao arbítrio do juiz aquilo que não está definido pelo direito). É ele que, caso a caso, ponderando  as  consequências  respectivas,  decidirá  do  equilíbrio entre as várias normas disponíveis. (HESPANHA, 2005c, p.11) Por isso, ainda no Antigo Regime os sujeitos terão direitos diferentes, inclusive em termos processuais. É o caso do estado “rústico”.  Como  eram  considerados  ignorantes,  para  os  rústicos  as  formalidades  exigidas  pelo  direito  erudito  eram relativizadas. O que demonstra a multiplicidade de estatutos conforme a multiplicidades de condições (estados). e) Apesar de não bem demarcadas, as fronteiras do Estado e da Sociedade civil já aparecem de forma incipiente no período do Antigo Regime. O problema era superar as amarras e limites das ordens.

A capacidade de intervenção do poder central ficava drasticamente reduzida  pela  teia  emaranhada  de  limites  postos  pelas  ordens jurídico­jurisdicionais  inferiores  e  pelos  direitos  adquiridos  (iura quaesita) de indivíduos e corpos. Desta teia, nem a lei do soberano se libertava facilmente. (HESPANHA; XAVIER, 1993, p.195) Apesar de ainda ser fraco para desemaranhar as teias sociais, durante o século XVIII e início do XIX diversas demandas de modernização já estavam presentes na sociedade. Talvez a continuação da famosa imagem de um “Estado Crisálida” (Stato crisálide) de Grossi (2002, p.43) possa ser uma interessante metáfora para compreender o momento. No Antigo Regime o Estado tenta aos poucos sair do cásulo, que acontecerá apenas, e ainda vacilante, após as revoluções. Assim, apesar da relativização dos valores medievais, na verdade as estruturas pré­existentes continuavam reforçadas.[xxiii] As diferenças não eram tão relevantes a ponto de anular o cerne do sistema jurídico. Na monarquia portuguesa, portanto, mantendo­se uma perspectiva de monarquia corporativa, reforçavam­se certos valores medievais. Hespanha aponta que a monarquia corporativa portuguesa até meados do século XVIII era demarcada por:

(A) o poder real partilhava o espaço político com poderes de maior ou menor hierarquia; (B)  o  direito  legislativo  da  Coroa  era  limitado  e  enquadrado  pela doutrina  jurídica    (ius  commune)  e  pelos  usos  e  práticas  jurídicos locais; (C)  deveres  políticos  cediam  perante  os  deveres  morais  (graça, piedade, misericórdia, gratidão) ou afetivos, decorrentes de laços de amizade, institucionalizados em redes de amigos e de clientes; (D) os oficiais régios gozavam de uma proteção muito alargada dos seus  direitos  e  atribuições,  podendo  fazê­los  valer  mesmo  em confronto  com  o  rei  e  tendendo,  por  isso,  a  minar  e  expropriar  o poder real (HESPANHA, 2001, p.166­7). Além  disso,  no  Antigo  Regime  ressaltavam­se  os  valores  jurídicos  tradicionais  e  antigos,[xxiv]  em  especial  voltados  ao modelo  do  Ius  Commune.  Nesse  sentido,  (...)  a  situação  do  direito  realmente  praticado  nos  sistemas  jurídicos  europeus durante o regime de direito comum tardo­medieval (Ancien Régime) foi refletido principalmente em seu desenvolvimento jurisprudencial, forense e consultivo. (CAVANNA, 1982, p.227).[xxv] Nas práticas jurisprudencial, forense e consultiva a tradição detinha grande respeitabilidade, era considerada fonte segura para garantia de direitos. O Ius Commune prevalece

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como fonte do Direito durante o Antigo Regime. Por outro lado, a transformação a se suceder apontaria em sentido contrário, nesse caso o direito pátrio ganhava reforço progressivo sobre o direito antigo, em Portugal tal fato se deve em especial a “Lei da Boa razão” de 1769, na qual o Ius Commune tornava­se subsidiário (HESPANHA, 2004, p. 32) Outra importante característica do direito no Antigo Regime era a atribuição da organização do poder jurisdicional ao rei. Nesse sentido ao rei pertencia a capacidade de organizar e executar a justiça. Trata­se de uma especificação do chamado do poder de império[xxvi] (merum imperium) majestático, relido a partir de uma nova visão de sociedade. Nesse sentido, os autores do período do Antigo Regime ressaltavam que ao rei pertencia a função de organizar a justiça porque estava no mais alto grau de exercício do merum imperium.[xxvii]

O rey he cabeça dos magistrados, e elles se reputão por membros do mesmo  corpo;  porque  como  ao  tal  Príncipe  incumbe  ter  aos  ditos Magistrados para os officios de julgar, assim nas suas cortes, como fora delas: com razão se devem, e podem chamar seus substitutos, e que  estão  representando  sua  pessoa,  como  trás  Bald.  In  Cap.I  (...) (FERREIRA, 1767, p.3) Ao mesmo tempo que, ao rei cabia a função principal de organizar a justiça, cabia aos juízes reais o papel de substituírem ao rei.[xxviii] Disso resultava que não era possível visualizar uma separação de poderes no Antigo Regime português. “Os juízes de então desempenhavam tanto funções judiciais quanto administrativas, contexto emblemático das sociedades de Antigo Regime”.  (GOUVEA,  1998).    Ou  de  forma  mais  precisa,  os  poderes  se  exerciam  de  forma  cumulativa  nas  autoridades vinculadas ao rei. [xxix] Essa ausência de separação de poderes vai se refletir no período colonial brasileiro. Mesmo sem refletir a enorme variedade de exceções de foro portuguesa devido à própria dificuldade de organização de tribunais de jurisdição especial, ainda assim, teria o efeito muito evidenciado nas delongas evidenciadas por debates de competência. [xxx] A própria lógica do período demarcava a falta de uma delimitação precisa e assim se estruturava. Outro elemento interessante de ser destacado é que, sendo a justiça pertencente ao soberano, este poderia utilizá­la inclusive como forma de estabelecimento de relações sociais (economia moral do dom). Nesse caso, as mercês e graça faziam parte de certa naturalidade do exercício da justiça pelo rei. Tal atribuição foi freqüentemente utilizada como forma de manter laços entre a colônia e a metrópole.

Através  da  distribuição  de  mercês  e  privilégios  o  monarca  não  só retribuía  o  serviço  dos  vassalos  ultramarinos  na  defesa  dos interesses  da  coroa  e,  portanto,  do  bem  comum.  (...)  reforçava  os laços de sujeição e o sentimento de pertença dos mesmos vassalos à estrutura  política  do  Império,  garantindo  a  sua  governabilidade. Materializava­se,  assim,  forjando  a  própria  dinâmica  da  relação imperial, uma dada noção de pacto e de soberania, caracterizada por valores  e  práticas  tipicamente  do  Antigo  Regime,  ou,  dito  de  outra forma,  por  uma  economia  política  de  privilégios.  (BICALHO; FRAGOSO; GOUVÊA, 2000, p.75).[xxxi] Essa forma de reforçar os laços a partir de distribuição de cargos (política dos privilégios)[xxxii] criava uma estrutura de poder interligada a própria participação na esfera pública. 

5. BREVE ANÁLISE DA POLÊMICA ENTRE LAURA DE MELLO E SOUZA E ANTONIO MANUEL HESPANHA Cabe ressaltar que o termo não é utilizado de forma pacífica na recente história administrativa do Brasil nos séculos XVIII e XIX. Uma polêmica recente entre Laura de Mello e Souza e António Manuel Hespanha pode ser destacada como um modelo de debate acadêmico de nível elevadíssimo, que não só enobreceu a área da História do Direito como serve de exemplo de como dois pares acadêmicos podem contribuir para aprimorar conceitos desenvolver um conhecimento científico.

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A dúvida sobre a correção da expressão para compreender a realidade colonial brasileira foi levantada por Laura de Mello e Souza  em  seu  texto  O  sol  e  a  sombra  (2006,  p.58  e  Ss.).  Para  a  autora  a  expressão  “Antigo  Regime”  não  seria  a  melhor expressão  para  compreender  a  realidade  colonial  brasileira.  Aponta  para  tanto  3  motivos:  a)  a  realidade  colonial  luso­ americana  não  conheceu  o  feudalismo,  não  podendo  ser  equiparada  a  tal  condição;  b)  o  uso  da  expressão  também privilegiaria a visão européia, retirando o peso do colonialismo e da exploração econômica voltada a tal condição; c) por fim, a falta da inclusão essencial da escravidão no contexto colonial macularia tal olhar. O cerne do debate está relacionado a possibilidade da existência de um Estado no período colonial ou não.

Se,  como  ensinou,  a  anatomia  do  poder  era,  então,  distinta  da  de hoje, nem por isso havia "ausência do Estado", mas um Estado em que  as  racionalidades  eram  outras.  O  Estado  esteve indiscutivelmente  presente  na  colonização  e  na  administração  das possessões ultramarinas: o que se deve perscrutar é a expressão e a lógica  dessa  presença,  pois  podem,  constantemente,  nos  iludir.  Se aquela era, como afirma o autor, uma sociedade de Antigo Regime, sua  própria  essência,  assentada  na  hierarquia  e  no  privilégio, impediriam que fosse diferente. (SOUZA, L. , 2006, p.51). Apesar de não existir uma resposta evidente sobre qual posição é a mais interessante para compreensão do período colonial brasileiro  (assim  como,  por  exemplo,  existem  vários  conceitos  e  limitações  para  a  palavra  “Estado”  que  não  podem  ser simplesmente descritos em tom de “síntese”), ressalto apenas (e trata­se aqui de um posicionamento pessoal, provavelmente influenciado pelas pesquisas em documentos de época ou/e por formação acadêmica) que não existia poder centralizado na Colônia e que tal acaba sendo apenas moldado como uma imagem posterior dada pela historiografia brasileira ao Estado colonial a fim de justificar a Independência como uma reação a certa postura colonialista portuguesa.[xxxiii] Portanto, a existência ou não de um Estado parece um problema sem resposta absoluta e trata­se aqui em certa medida de escolhas entre historiadores e suas ênfases conceituais.[xxxiv] Voltando  as  restrições,  levantadas  por  Laura  de  Mello  e  Sousa,  tais  iluminam  partes  por  certo  não  evidentes  do  debate. Devem  ser  levadas  em  consideração  ao  se  trabalhar  com  o  conceito  de  Antigo  Regime  na  colônia,  porém  podem  ser superadas em alguns pontos se consideradas com cuidado. Em relação à idéia de que “não existiu feudalismo na colônia”, pode­se responder que o Antigo Regime não se caracteriza de forma estrita pela Economia, mas como Sistema político. O feudalismo é um modo de produção econômico. Lembrando o debate  de  Michel  Foucault  em  seu  curso  “A  verdade  e  as  formas  jurídicas”,  as  formas  jurídicas  não  estão  vinculadas  aos modelos econômicos de sociedade. Trata­se de algo diverso, e talvez um pouco mais profundo, relacionado a própria forma de imaginar a realidade.[xxxv] Em  relação  à  segunda  objeção  voltada  ao  “olhar  eurocêntrico  da  análise”,  parece  tender  exatamente  ao  contrário, demonstrando  a  maior  complexidade  da  dominação  da  metrópole.  Parece  correto,  afirmar  como  Hespanha  que  sempre esteve ausente da empreitada colonial portuguesa um projeto totalizador (HESPANHA, 2001, p.169).[xxxvi] Isso porque era característica do Antigo Regime manter­se a partir da lógica de pluralidade de fontes de poder. Assim, para ressaltar o papel da  Colônia,  ao  invés  de  destacar  a  “dominação”  pode­se  tentar  compreender  como  no  Brasil  se  utilizaram  das  brechas  e espaços vazios do sistema do Antigo Regime:

Para  se  falar  de  um  direito  colonial  brasileiro  ­  com  a  importância política  e  institucional  que  e  isto  tem  ­,  é  preciso  entender  que,  no sistema jurídico de Antigo Regime, a autonomia de um direito não decorria  principalmente  da  existência  de  leis  próprias,  mas,  muito mais,  da  capacidade  local  de  preencher  os  espaços  jurídicos  de abertura  ou  indeterminação  existentes  na  própria  estrutura  do direito comum. (HESPANHA, 2005c, p.1) Por fim, em relação à crítica da falta de consideração da especificidade do “estatuto da escravidão”, parece que este deve sim ser elemento chave de compreensão da realidade colonial brasileira. Ao defender­se das críticas de Laura de Mello e Sousa, Hespanha utiliza­se de uma interessante posição. Assinala:

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No fundo, os escravos estavam, para as sociedades coloniais, como criados,  aprendizes,  moços  e  moças  de  lavoura,  rústicos  ou camponeses,  para  as  sociedades  européias.  Milhões  de  pessoas, praticamente  desprovidas  de  direitos,  à  mercê  dos  pais  de  família. (HESPANHA, 2007, p.66) O argumento de que as justificativas da escravidão tinham referências européias[xxxvii] não é de todo um equívoco, mas as especificidades  da  escravidão  brasileira  tornam  o  discurso  descontextualizado.  É  farta  a  literatura  que  demonstra  que  a escravidão  “leve”  (para  lembrar  estudos  com  inspiração  em  Gilberto  Freyre)  não  retrata  a  escravidão  em  todas  as  suas nuances.[xxxviii] Por outro lado, a abertura de olhar para a multiplicidade de poderes e controles sociais pode iluminar formas complexas (e às vezes complementares) de violência. De qualquer forma a crítica de Laura de Mello e Sousa não atinge o cerne da utilização do termo “Antigo Regime”, pois a sua crítica  baseada  na  existência  da  escravidão  no  fundo  repete  o  argumento  econômico  da  existência  do  capitalismo  como padrão nascente. E dessa forma reitera o problema da não dependência do sistema político em relação ao econômico.[xxxix] Recentemente Laura de Mello e Sousa, ao que tudo indica, teria aceitado o uso da expressão, mesmo que com limites.

(...)  não  se  deve  falar  num  “Antigo  Regime  tropicalizado”.  Se  a sociedade colonial for vista como de Antigo Regime no senso estrito, suas  particularidades  explodem  e  corroem  os  princípios  básicos,  já que  era  organizada  e  costurada  pelo  escravismo,  algo  que  inexistia no  ambiente  europeu”,  lembra  Laura.  (...)  A  especificidade  da América  portuguesa  não  residia  na  assimilação  pura  e  simples  do mundo  do  Antigo  Regime,  mas  na  sua  recriação  perversa, alimentada  pelo  tráfico,  pelo  trabalho  de  negros  escravos,  pela introdução,  na  velha  sociedade,  de  um  novo  elemento,  estrutural mais do que institucional: o escravismo.” (HAAG, 2012)[xl] O debate por certo ainda não se encerrou. Talvez novos estudos possam ressaltar as especificidades da utilização da expressão Antigo Regime em contexto brasileiro e auxiliar sua compreensão densa.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para finalizar, vale ressaltar que o ideário do Antigo Regime não desaparece de súbito da cultura portuguesa e brasileira no início do século XIX. Mesmo os revolucionários franceses, que tanto criticavam o Antigo Regime, muitas vezes se utilizavam de  seus  elementos  para  se  justificar,  (...)  “como  quando  Portalis  apela  para  a  eqüidade,  ou  seja,  a  um  dos  valores  que caracterizavam o Antigo Regime” (GROSSI, 2004, p.119). Isso demonstra que, apesar das transformações, ainda existe muito de Antigo Regime circulando na sociedade. Entretanto, aos saudosistas, também vale o alerta de que a cultura não é estática. E que tentar encontrar semelhanças entre nosso tempo e o passado não torna o presente um continuum do que aconteceu. As coisas mudam. Às vezes abruptamente. Com a aceleração do processo de modernização, certos conceitos e valores sofreram abalo em todo o Ocidente. No Brasil não poderia ser diferente. Ao utilizar o conceito de Antigo Regime, sempre deve­se lembrar de situá­lo em sua historicidade.

REFERÊNCIAS BICALHO,  M.  F.  B.  ;  FRAGOSO,  J.  ;  GOUVÊA,  M.  F.  S.  .  Uma  leitura  do  Brasil  colonial:  bases  da  materialidade  e  da governabilidade no Império. Penelope: fazer e desfazer a historia, Lisboa, v. 23, p. 67­88, 2000. BICALHO, M. F. B. As Câmaras ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. (orgs). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI­XVIII) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. CABOURDIN,  Guy;  VIARD,  Georges.  Lexique  historique  de  la  France  d'Ancien  Régime.  Armand  Colin  :  Paris,  1978. Disponível  em: 
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