Um sentido juridico para o antigo regime ancien regime Jus Navigandi
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05/02/2016
Um sentido jurídico para o antigo regime (ancien régime) Jus Navigandi
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Um sentido jurídico para o antigo regime (ancien régime) Um sentido jurídico para o antigo regime (ancien régime)
Sandro Luís Tomás Ballande Romanelli|
Ivan Furmann
Publicado em 01/2016. Elaborado em 12/2015.
Em que medida a expressão “antigo regime”, originária da França, é adequada para se referir à realidade colonial brasileira? RESUMO: A expressão Antigo Regime é muito utilizada no vocabulário dos historiadores do Direito, em especial, aqueles que trabalham com a história nos séculos XVII, XVII e XIX. Apesar disso, poucos historiadores apresentam um conceito didático ou se preocupam em esclarecer a expressão para aqueles que não estão familiarizados com o mesmo. Alguns elementos são apresentados para facilitar a compreensão dos leitores iniciantes, não se trata, portanto, de um texto que pretende trazer novos enfoques sobre o tema, mas esclarecer a expressão e facilitar a compreensão daqueles que iniciam estudos na área histórica. Por fim, apresentase uma polêmica sobre o uso da expressão para a compreensão da realidade brasileira.
1. INTRODUÇÃO: POR QUE ANTIGO REGIME? Qual é o sentido do termo “Antigo Regime” nas abordagens feitas pelos historiadores do Direito? Tal esclarecimento é necessário para evitar os equívocos comuns, presentes na historiografia tradicional em relação à interpretação do Direito no Antigo Regime. Isso porque, “(...) transportando para a história uma certa unidimensionalidade do poder político no seu tempo, os historiadores tendiam a reduzir a vida política do Antigo Regime aos actos formais do poder — i.e., aos que decorriam sob o império e regulamento do direito estadual. Todo o resto — i.e, tudo o que decorria em contravenção com este ou à sua margem – não era relevante para a investigação.”. (HESPANHA, 1994, p.26). Seguindo essa linha de raciocínio, a primeira explicação a ser dada é a motivação do uso do conceito de “Antigo Regime”. Não se trata de uma expressão depreciativa do passado ou celebratória do presente. Os historiadores contemporâneos do Direito pretendem evitar que se observem apenas os regulamentos de Direito estatal (em especial legislação em sentido estrito), conseguindo avançar na compreensão das estruturas jurídicas e administrativas anteriores ao predomínio do direito positivo.
2. A INVENÇÃO DA EXPRESSÃO Não é comum encontrar entre os historiadores contemporâneos da História do Direito a delimitação de grandes conceitos, isso ocorre em grande parte para apresentar certa maleabilidade fundamental para estudos que se pretendem abertos às novas interpretações (inclusive motivado pelas variações de sentido das palavras em âmbitos locais e temporais). Mesmo assim, é possível visualizar alguns limites que são centrais a interpretação da expressão. Um primeiro limite é o temporal. Antonio Manuel Hespanha apresenta uma periodização da história das instituições portuguesas que propõe um olhar amplo do chamado sistema feudal entre os séculos III D.C. até o primeiro terço do século XIX (1982, p.42). Esse longo período feudal estaria dividido em três fases: a) sistema feudal inicial até metade do séc. XVI; b) Sistema corporativo até a segunda metade do século XVIII; c) Estado absoluto até o primeiro terço do séc. XIX. Não é possível delimitar com datas fechadas a existência do Antigo Regime, porém não é absurdo, como referência um pouco mais ampla, indicar que esse modelo que vai da metade do século XVII as primeiras décadas do século XIX.[i]
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O segundo limite está relacionado à sua caracterização. Mas afinal, o que caracteriza o Antigo Regime? Novamente Hespanha esclarece que seu conceito está relacionado a uma tentativa de organizar um conceito político para a História, enfocando aspectos além das interpretações economicistas.
(...) chegouse deste modo a uma definição em termos estruturais do Antigo Regime político — tal como já se dispunha duma definição, em termos estruturais, do Antigo Regime económico (sistema de relações feudais de produção) — nos termos da qual o Antigo Regime político será caracterizado pela não separação entre "Estado" e "sociedade civil" e pelo "carácter globalizante dos mecanismos do poder". (HESPANHA, 1984, p.42). Um terceiro limite é político. Se no sentido amplo “Antigo Regime” está relacionado a todo um período de transição entre o modelo medieval e o moderno, em sentido estrito Antigo Regime designa a parte administrativa desse período. Ressaltese que o conceito, atualmente explorado na Ciência Histórica, aparece inicialmente como contraposição do período pós revolução ao modelo administrativo e político anterior. Antigo Regime era uma expressão utilizada pelos contemporâneos da Revolução Francesa para designar o sistema político anterior à revolução, “(...) Mirabeau foi o primeiro a falar num Ancien Regime”. (LOPES, 2003, p.129). Nesse sentido Tocqueville explica:
Menos de um ano após o início da Revolução, Mirabeau escreveu secretamente ao rei, "Compare o presente estado de coisas com o Antigo Regime, consolese e mantenha a esperança. Em parte a maioria dos atos da assembléia nacional são favoráveis a um governo monárquico. De nada adianta livrarse do Parlamento, dos estados separados, do corpo clerical, das classes privilegiadas, e da nobreza? Richelieu teria gostado da idéia de formar uma só classe, de cidadãos, um só nível de superfície auxiliaria o exercício do poder. Uma série de reinados absolutos teria feito menos para a autoridade real do que este ano de Revolução". Ele entendeu a Revolução como um homem que era competente para liderála. (TOCQUEVILLE, 1856, p.21, trad. livre).[ii] [iii] Tocqueville percebe que a Revolução não poderia ser compreendida dentro de uma lógica de total ruptura,[iv] o Antigo regime, em certo sentido, foi reorganizado dentro da Revolução como uma unidade. “Em verdade, Ancien Regime designa bem mais a 'organização' da mais perfeita desordem que exprime o verdadeiro cipoal de particularismos que caracterizou a França nos séculos XVI, XVII e XVIII.”. (LOPES, 2003, p.129). Existem diversos estudos que demonstram que essa “desorganização” não é tão desorganizada assim, e que coube ao discurso revolucionário justificar as abruptas mudanças desvalorizando o regime anterior. Aqui é possível se deter um pouco mais, pois apesar da expressão, ao que tudo indica, ser cunhada pelos revolucionários, e adotada no debate político por Tocqueville, seu conteúdo já circulava antes da revolução, o que pode ser resgatado em Montesquieu. Em seu tempo, a estrutura da justiça era objeto de grande desconfiança e muitas críticas. De acordo com um estudo histórico realizado por um grupo de cooperação internacional (publicado pelo Ministério da Justiça do Canadá), dentre as instituições do Ancien Régime, a Justiça constava como aquela que suscitava as críticas mais vívidas.
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A justiça francesa sob o Ancien Régime era caracterizada pelo número elevado de jurisdições, o acavalamento de seus mecanismos, a lentidão e o custo dos processos, a severidade do processo criminal, a crueldade das punições e das penas para os menos abastados, severidade que contrastava com a extrema clemência que era concedida aos privilegiados. Juízes e procuradores eram, em geral, pouco amados, eis que defendiam um sistema favorável aos seus interesses, mas que a maioria da população rejeitava. Somente os advogados oriundos da média ou pequena burguesia admitiam a necessidade de uma reforma da justiça. (CANADA, 2011, p. 12).[v] Neste sentido, alguns aspectos do Poder Judiciário francês da época de Montesquieu podem ser debatidos. Com relação ao alto custo da justiça na França do século XVIII, grande parte deste custo estava relacionada à remuneração dos juízes. Como afirmam Guy Cabourdin e Georges Viard em seu “Léxico histórico da França no Ancien Régime”, os juízes eram funcionários que haviam comprado o cargo, tornando hereditário. Essa forma de delegação do serviço público, por meio da compra da “charge” (cargo ou encargo) se assemelha ao sistema de cartórios e registros públicos brasileiro anterior à Constituição de 1988 (e provenientes da tradição colonial portuguesa), na qual o particular que desejasse prestar o serviço obteria do poder público a outorga, em exclusividade, das atribuições e o encargo de fazêlo às suas expensas, empregando funcionários e recursos dos quais buscaria reembolso pela cobrança de taxas pelo serviço. Ainda de acordo com Cabourdin e Viard (1978), os juízes do tempo de Montesquieu eram mal retribuídos pelas taxas ordinárias e buscavam se reembolsar sobre as partes, exigindo propinas[vi] e fazendo durar indefinidamente o processo, com o objetivo de multiplicar os atos sujeitos a pagamento de taxas e emolumentos e maximizar seus rendimentos.[vii] Além destes obstáculos ao acesso à justiça, havia grande desigualdade de tratamento no sistema de acordo com a classe dos litigantes. A nobreza não era obrigada a percorrer todas as etapas da justiça real, podendo recorrer diretamente ao rei, fonte de toda a justiça, que podia conceder a justiça em pessoa no conselho de partes. Guinchard afirma que em meados do século XVIII, houve uma crescente percepção popular de que os juízes estavam governando no lugar do Rei,[viii] que passam a contestar não somente as leis, mas também as ordens de prisão civil emanadas pelo Monarca (lettres de cachet). Guinchard destaca que “em termos de separação de poderes, eles [os magistrados] exercem portanto a função legislativa, discutindo a conveniência e adequação da política real”.[ix] Assim, é o medo do juiz – de que venha a impedir as transformações sociais operadas pelos revolucionários – que levou à necessidade de amordaçar o corpo de magistrados ao texto da Lei, operando como meros aplicadores da vontade legislativa, nas palavras de Guinchard:
[O juiz boca da lei] é a expressão de um programa político ligado a um elemento subjetivo, o medo do juiz, e não um símbolo de uma reflexão abstrata sobre a função jurisdicional. É sintomático que o argumento do juiz “boca da lei” seja proferido toda vez que se trata de limitar o poder judiciário com relação a um passado, isto é, cada vez que se trata de proibir ao juiz qualquer ambição política. Embora façam de forma unânime o elogio de um poder judiciário com considerável influência, os constituintes deduzem sempre a importância de controlar, constranger “este poder terrível afim de que ele não prejudique nem a liberdade política, nem a liberdade civil”. Seguese então a enumeração de todas as questões a abordar afim de bem organizar o poder judiciário, isto é, com o objetivo de constranger o juiz (GUINCHARD, 2011, p. 7, grifo nosso).[x] https://jus.com.br/imprimir/45821/umsentidojuridicoparaoantigoregimeancienregime
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Desta forma, menos que uma reflexão abstrata sobre a função jurisdicional, a separação de funções proposta por Montesquieu é resultado deste contexto de desconfiança com relação aos magistrados. E quando os revolucionários cunham a expressão “Antigo Regime”, dão destaque a idéia de ultrapassado, de tempos de opressão e medo que foram finalmente superados. Em última análise os revolucionários não elaboraram a expressão pensando no passado e seu conteúdo, mas na contraposição ao presente de liberdade que pretendiam estabelecer. Atualmente, porém, os historiadores do Direito se apropriaram da expressão para lhe dar conteúdo, e relacionar uma série de conteúdos a expressão.
3. O CONTEÚDO DA EXPRESSÃO Como herdeiro da sociedade corporativa que se desenvolve a partir da baixa idade média, o Antigo Regime também sofre influxos das transformações sociais que eclodirão no período das revoluções.[xi] Por isso, importante avaliar as permanências e descontinuidades do período. Segundo a historiografia contemporânea, a concepção corporativa de sociedade é fundamentada na percepção teológica de mundo, originase e se legitima dentro de um contexto teológico.
O pensamento social e político medieval é dominado pela idéia da existência de uma ordem universal (cosmos), abrangendo os homens e as coisas, que orientava todas as criaturas para um objectivo último que o pensamento cristão identificava com o próprio Criador. Assim, tanto o mundo físico como o mundo humano, não eram explicáveis sem a referência a esse fim que os transcendia, a esse telos, a essa causa final (para utilizar uma impressiva formulação da filosofia aristotélica; o que transformava o mundo na mera face visível de uma realidade mais global, natural e sobrenatural, cujo (re)conhecimento era indispensável como fundamento de qualquer proposta política. (HESPANHA, 2005A,p.101) Portanto, a referência central é a perspectiva de sociedade fundamentada em Deus. Sua invenção se dá dentro da lógica medieval. A longa permanência da visão medieval de sociedade pode ser percebida em nuances no final do Antigo Regime português. Por isso vale aprofundar algumas nuances da Ordem jurídica medieval. Salutar nesse sentido a obra de Paolo Grossi, que explicita o motivo pelo qual considera descrever a cultura jurídica medieval como Ordem Jurídica[xii]:
(...) a inserção da palavra “ordem”, obstinadamente intencional. De fato, parecenos que jamais como na Idade Média o direito representou ou constituiu a dimensão profunda e essencial da sociedade, uma base estável que se destaca do caráter caótico e mutável do cotidiano, isto é, dos eventos políticos e sociais do diaa dia. A sociedade medieval é jurídica, porque se realiza e se salvaguarda no direito; jurídica é sua constituição mais profunda e nela está seu caráter essencial, seu elemento último. Às desordens da superfície extremamente caótica se contrapõe a ordem da secreta, mas presente, constituição jurídica. (GROSSI, 2002, p.14). [xiii] A experiência jurídica medieval é descrita como estritamente relacionada à natureza das coisas, ordem presente no mundo. É um modelo que não se fundamenta na individualidade ou liberdade dos sujeitos, mas na ordenação social.
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Ordinatio é a palavra que desloca o eixo da definição do sujeito ao objeto, porque insiste não sobre a sua liberdade, mas sobre limites à sua liberdade; ordenar é, efetivamente, uma atividade vinculada, já que significa tomar consciência de uma ordem objetiva preexistente e não eludível dentro do qual deve ser inserido o conteúdo da lex. (GROSSI, 2004, p.35) A expressão jurídica mais reconhecida dessa Ordem das coisas aparecia no Direito Europeu como “Direito comum” (ius commune)[xiv]. “O direito romano medieval, ou direito "civil", junto com o direito canónico (que por sua vez era fortemente influenciado pelo direito romano), criou o direito erudito comum para todo o Ocidente: daí um dos motivos de seu nome ius commune.”. (CAENEGEM, 1999, p.65).[xv] Em coexistência com o Direito comum apresentavase o Direito próprio (local) e limitado, “(...) ius proprium, o direito "particular" que estava em vigor, em suas inúmeras variações, em diversos países, regiões e cidades da Europa, sob a forma de costumes, ordenações e cartas”. (CAENEGEM, 1999, p.65). Na lógica medieval o direito comum (ius commune) não demandava a exclusão de outras formas de Direito, ao contrário, pretendia harmonizar as diversas manifestações locais ao direito geral, não reduzindo a pluralidade à unidade.[xvi] Nesse aspecto, o direito dos rústicos (local e fundamentado no senso de justiça) deveria ser harmonizado com as regras mais amplas do Direito Comum, coexistindo pluralidade de lógicas jurídicas. A grande oposição entre o Antigo Regime e a Modernidade estaria no esforço artificial do jurista moderno em controlar o mundo a partir da vontade e criando uma unidade jurídica a partir de suas fontes, excluindo a pluralidade.[xvii] “Um fator que explica o papel secundário da legislação como fonte do direito sob o ancien regime é a competição com o ius commune, que tornou possível transformar o antigo direito europeu sem intervenção legislativa.”. (CAENEGEM, 1999, p.122). Na modernidade “O direito se vê reduzido ao grau de instrumento de controle social, se tornando um artifício, uma criação do titular da soberania.” (GROSSI, 2010, p.100).
4. DISTINGUINDO DIREITO MEDIEVAL DO DIREITO DO ANTIGO REGIME Tendo em vista a centralidade do discurso teológico e a pluralidade de produções jurídicas, a fim de facilitar a compreensão das mudanças do modelo medieval para o modelo do Antigo Regime, vale destacar as características do Direito medieval. Segundo Hespanha o Direito medieval:
(a) valoriza os fenômenos grupais ou colectivos; (b) que considera o poder como algo originariamente repartido (e não apenas delegado ou dividido pelos poderes do Estado) por múltiplos corpos sociais, cada qual dotado da autonomia política e jurídica exigida pelo desempenho da sua função social; (c) que reserva ao poder político global apenas a função de garantir esta autonomia e especificidade do estatuto social de cada corpo (fazendo justiça, i.e, suum cuique tribuens) e assegurando, desta forma, a paz (harmonia, coharentia); (d) que apenas vê o indivíduo como parte de grupos e os seus direitos e deveres com reflexos do estatuto ("foro”) dos grupos em que se integra; (e) e que recusa a distinção, própria do pensamento moderno, entre "sociedade civil" e Estado (ou "sociedade política"). (HESPANHA, 1982, p. 211)[xviii] Tendo em vista tais características, vale a pena debater sua incidência no Antigo Regime.
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a) A valorização dos fenômenos grupais ou coletivos, em detrimento da idéia de direito individual, ainda é percebida no Antigo Regime. A noção de individualismo moderno será juridicamente concretizada com o liberalismo e as revoluções burguesas na Europa. Por isso, o modelo jurídico ainda é pautado na perspectiva de Direito coletivo. Voltandose a tradição da idade média:
O direito é um fenômeno primordial e radical da sociedade (...) é terreno necessário e suficiente as flexíveis organizações comunitárias em que o social se ordena e que ainda não se fundamentam na polis, mas sim no sangue, na fé religiosa, na profissão, na solidariedade cooperativa, na colaboração econômica. (GROSSI, 2004, p.301). b) O poder ainda é repartido no Antigo Regime. Em Portugal o poder local dos Concelhos (Câmaras) das vilas tem especial importância. Essa característica ressaltava o Direito como importante elo comunitário.
(...) a centralidade do direito se traduzia, de facto, na centralidade dos poderes normativos locais, formais ou informais, dos usos das terras, das situações "enraizadas" (“lura radicata"), na atenção às particularidades de caso; e, em resumo, na decisão das questões segundo as sensibilidades jurídicas locais, por muito longe que andassem daquilo que estava estabelecido nas leis formais do reino. (HESPANHA, 2007, p.57). As autonomias política e jurídica dos concelhos marcam esse período,[xix] guardando permanência significativa até o período pósIndependência no Brasil (sofrendo retrocesso apenas com regulamentações do juízo de paz em 1828, quando retirado das câmaras poder jurisdicional). Também há de se notar que até mesmo na França, “(...) os magistrados do Antigo Regime se beneficiam de uma grande independência face aos poderes. Salvo em casos excepcionais, confiados a jurisdições extraordinárias, essa independência é real e o poder não se imiscui em seus assuntos.” (GARNOT, 2003, p.25). c) A centralização do poder real é provavelmente a maior diferença entre o período medieval e a fase final do Antigo Regime. Mesmo não podendo se falar num absolutismo monárquico português em toda sua plenitude, é inegável que em Portugal o papel central da monarquia despontará no cenário político dos séculos XVIII e início do XIX.
Seja como for, os finais do Antigo Regime constituem uma época em que, claramente, a imagem do príncipe como caput reipublicae, como pessoa pública, se sobrepõe às restantes. E em que o governo assume as características de uma actividade dirigida por razões específicas (as razões do Estado), tendente a organizar a sociedade, impondolhe uma ordem e defendendoa do caos originário. Inaugurase, por outras palavras, uma era de "administração activa", com quadros legitimadores, métodos e agentes muito distintos dos da passiva administração jurisdicionalista. (HESPANHA, 2006, p.357) Por isso, é possível afirmar que durante o Antigo Regime iniciase o movimento para que “(...) a pessoa do monarca [torne se] a única fonte instituidora do Direito” (WOLKMER, 2006, p.160). d) A noção de sujeito de direitos, dotado de direitos universais e naturais, ainda não se concretiza no período final do Antigo Regime. Apesar do que, é possível perceber que diversos autores jusnaturalistas já defendiam tais idéias no período. Assim, a ordem medieval atribuía a cada parte do corpo a possibilidade de criar Direito, bem como a cada pessoa aplicavase o Direito proveniente de seu status. Cada direito ainda depende do estado ao qual o indivíduo pertencia[xx], preferindo a
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particularidade da condição do sujeito à regra geral.[xxi] Assim, uma das mais importantes funções do juiz medieval, a qual pode ser percebida na noção de Iurisdictio[xxii], era identificar o status do indivíduo a se aplicado no caso concreto. Função ainda essencial no Antigo Regime.
(...) o arbítrio do juiz na apreciação dos casos concretos ("arbitrium iudex relinquitur quod in iure definitum non est", fica ao arbítrio do juiz aquilo que não está definido pelo direito). É ele que, caso a caso, ponderando as consequências respectivas, decidirá do equilíbrio entre as várias normas disponíveis. (HESPANHA, 2005c, p.11) Por isso, ainda no Antigo Regime os sujeitos terão direitos diferentes, inclusive em termos processuais. É o caso do estado “rústico”. Como eram considerados ignorantes, para os rústicos as formalidades exigidas pelo direito erudito eram relativizadas. O que demonstra a multiplicidade de estatutos conforme a multiplicidades de condições (estados). e) Apesar de não bem demarcadas, as fronteiras do Estado e da Sociedade civil já aparecem de forma incipiente no período do Antigo Regime. O problema era superar as amarras e limites das ordens.
A capacidade de intervenção do poder central ficava drasticamente reduzida pela teia emaranhada de limites postos pelas ordens jurídicojurisdicionais inferiores e pelos direitos adquiridos (iura quaesita) de indivíduos e corpos. Desta teia, nem a lei do soberano se libertava facilmente. (HESPANHA; XAVIER, 1993, p.195) Apesar de ainda ser fraco para desemaranhar as teias sociais, durante o século XVIII e início do XIX diversas demandas de modernização já estavam presentes na sociedade. Talvez a continuação da famosa imagem de um “Estado Crisálida” (Stato crisálide) de Grossi (2002, p.43) possa ser uma interessante metáfora para compreender o momento. No Antigo Regime o Estado tenta aos poucos sair do cásulo, que acontecerá apenas, e ainda vacilante, após as revoluções. Assim, apesar da relativização dos valores medievais, na verdade as estruturas préexistentes continuavam reforçadas.[xxiii] As diferenças não eram tão relevantes a ponto de anular o cerne do sistema jurídico. Na monarquia portuguesa, portanto, mantendose uma perspectiva de monarquia corporativa, reforçavamse certos valores medievais. Hespanha aponta que a monarquia corporativa portuguesa até meados do século XVIII era demarcada por:
(A) o poder real partilhava o espaço político com poderes de maior ou menor hierarquia; (B) o direito legislativo da Coroa era limitado e enquadrado pela doutrina jurídica (ius commune) e pelos usos e práticas jurídicos locais; (C) deveres políticos cediam perante os deveres morais (graça, piedade, misericórdia, gratidão) ou afetivos, decorrentes de laços de amizade, institucionalizados em redes de amigos e de clientes; (D) os oficiais régios gozavam de uma proteção muito alargada dos seus direitos e atribuições, podendo fazêlos valer mesmo em confronto com o rei e tendendo, por isso, a minar e expropriar o poder real (HESPANHA, 2001, p.1667). Além disso, no Antigo Regime ressaltavamse os valores jurídicos tradicionais e antigos,[xxiv] em especial voltados ao modelo do Ius Commune. Nesse sentido, (...) a situação do direito realmente praticado nos sistemas jurídicos europeus durante o regime de direito comum tardomedieval (Ancien Régime) foi refletido principalmente em seu desenvolvimento jurisprudencial, forense e consultivo. (CAVANNA, 1982, p.227).[xxv] Nas práticas jurisprudencial, forense e consultiva a tradição detinha grande respeitabilidade, era considerada fonte segura para garantia de direitos. O Ius Commune prevalece
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como fonte do Direito durante o Antigo Regime. Por outro lado, a transformação a se suceder apontaria em sentido contrário, nesse caso o direito pátrio ganhava reforço progressivo sobre o direito antigo, em Portugal tal fato se deve em especial a “Lei da Boa razão” de 1769, na qual o Ius Commune tornavase subsidiário (HESPANHA, 2004, p. 32) Outra importante característica do direito no Antigo Regime era a atribuição da organização do poder jurisdicional ao rei. Nesse sentido ao rei pertencia a capacidade de organizar e executar a justiça. Tratase de uma especificação do chamado do poder de império[xxvi] (merum imperium) majestático, relido a partir de uma nova visão de sociedade. Nesse sentido, os autores do período do Antigo Regime ressaltavam que ao rei pertencia a função de organizar a justiça porque estava no mais alto grau de exercício do merum imperium.[xxvii]
O rey he cabeça dos magistrados, e elles se reputão por membros do mesmo corpo; porque como ao tal Príncipe incumbe ter aos ditos Magistrados para os officios de julgar, assim nas suas cortes, como fora delas: com razão se devem, e podem chamar seus substitutos, e que estão representando sua pessoa, como trás Bald. In Cap.I (...) (FERREIRA, 1767, p.3) Ao mesmo tempo que, ao rei cabia a função principal de organizar a justiça, cabia aos juízes reais o papel de substituírem ao rei.[xxviii] Disso resultava que não era possível visualizar uma separação de poderes no Antigo Regime português. “Os juízes de então desempenhavam tanto funções judiciais quanto administrativas, contexto emblemático das sociedades de Antigo Regime”. (GOUVEA, 1998). Ou de forma mais precisa, os poderes se exerciam de forma cumulativa nas autoridades vinculadas ao rei. [xxix] Essa ausência de separação de poderes vai se refletir no período colonial brasileiro. Mesmo sem refletir a enorme variedade de exceções de foro portuguesa devido à própria dificuldade de organização de tribunais de jurisdição especial, ainda assim, teria o efeito muito evidenciado nas delongas evidenciadas por debates de competência. [xxx] A própria lógica do período demarcava a falta de uma delimitação precisa e assim se estruturava. Outro elemento interessante de ser destacado é que, sendo a justiça pertencente ao soberano, este poderia utilizála inclusive como forma de estabelecimento de relações sociais (economia moral do dom). Nesse caso, as mercês e graça faziam parte de certa naturalidade do exercício da justiça pelo rei. Tal atribuição foi freqüentemente utilizada como forma de manter laços entre a colônia e a metrópole.
Através da distribuição de mercês e privilégios o monarca não só retribuía o serviço dos vassalos ultramarinos na defesa dos interesses da coroa e, portanto, do bem comum. (...) reforçava os laços de sujeição e o sentimento de pertença dos mesmos vassalos à estrutura política do Império, garantindo a sua governabilidade. Materializavase, assim, forjando a própria dinâmica da relação imperial, uma dada noção de pacto e de soberania, caracterizada por valores e práticas tipicamente do Antigo Regime, ou, dito de outra forma, por uma economia política de privilégios. (BICALHO; FRAGOSO; GOUVÊA, 2000, p.75).[xxxi] Essa forma de reforçar os laços a partir de distribuição de cargos (política dos privilégios)[xxxii] criava uma estrutura de poder interligada a própria participação na esfera pública.
5. BREVE ANÁLISE DA POLÊMICA ENTRE LAURA DE MELLO E SOUZA E ANTONIO MANUEL HESPANHA Cabe ressaltar que o termo não é utilizado de forma pacífica na recente história administrativa do Brasil nos séculos XVIII e XIX. Uma polêmica recente entre Laura de Mello e Souza e António Manuel Hespanha pode ser destacada como um modelo de debate acadêmico de nível elevadíssimo, que não só enobreceu a área da História do Direito como serve de exemplo de como dois pares acadêmicos podem contribuir para aprimorar conceitos desenvolver um conhecimento científico.
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A dúvida sobre a correção da expressão para compreender a realidade colonial brasileira foi levantada por Laura de Mello e Souza em seu texto O sol e a sombra (2006, p.58 e Ss.). Para a autora a expressão “Antigo Regime” não seria a melhor expressão para compreender a realidade colonial brasileira. Aponta para tanto 3 motivos: a) a realidade colonial luso americana não conheceu o feudalismo, não podendo ser equiparada a tal condição; b) o uso da expressão também privilegiaria a visão européia, retirando o peso do colonialismo e da exploração econômica voltada a tal condição; c) por fim, a falta da inclusão essencial da escravidão no contexto colonial macularia tal olhar. O cerne do debate está relacionado a possibilidade da existência de um Estado no período colonial ou não.
Se, como ensinou, a anatomia do poder era, então, distinta da de hoje, nem por isso havia "ausência do Estado", mas um Estado em que as racionalidades eram outras. O Estado esteve indiscutivelmente presente na colonização e na administração das possessões ultramarinas: o que se deve perscrutar é a expressão e a lógica dessa presença, pois podem, constantemente, nos iludir. Se aquela era, como afirma o autor, uma sociedade de Antigo Regime, sua própria essência, assentada na hierarquia e no privilégio, impediriam que fosse diferente. (SOUZA, L. , 2006, p.51). Apesar de não existir uma resposta evidente sobre qual posição é a mais interessante para compreensão do período colonial brasileiro (assim como, por exemplo, existem vários conceitos e limitações para a palavra “Estado” que não podem ser simplesmente descritos em tom de “síntese”), ressalto apenas (e tratase aqui de um posicionamento pessoal, provavelmente influenciado pelas pesquisas em documentos de época ou/e por formação acadêmica) que não existia poder centralizado na Colônia e que tal acaba sendo apenas moldado como uma imagem posterior dada pela historiografia brasileira ao Estado colonial a fim de justificar a Independência como uma reação a certa postura colonialista portuguesa.[xxxiii] Portanto, a existência ou não de um Estado parece um problema sem resposta absoluta e tratase aqui em certa medida de escolhas entre historiadores e suas ênfases conceituais.[xxxiv] Voltando as restrições, levantadas por Laura de Mello e Sousa, tais iluminam partes por certo não evidentes do debate. Devem ser levadas em consideração ao se trabalhar com o conceito de Antigo Regime na colônia, porém podem ser superadas em alguns pontos se consideradas com cuidado. Em relação à idéia de que “não existiu feudalismo na colônia”, podese responder que o Antigo Regime não se caracteriza de forma estrita pela Economia, mas como Sistema político. O feudalismo é um modo de produção econômico. Lembrando o debate de Michel Foucault em seu curso “A verdade e as formas jurídicas”, as formas jurídicas não estão vinculadas aos modelos econômicos de sociedade. Tratase de algo diverso, e talvez um pouco mais profundo, relacionado a própria forma de imaginar a realidade.[xxxv] Em relação à segunda objeção voltada ao “olhar eurocêntrico da análise”, parece tender exatamente ao contrário, demonstrando a maior complexidade da dominação da metrópole. Parece correto, afirmar como Hespanha que sempre esteve ausente da empreitada colonial portuguesa um projeto totalizador (HESPANHA, 2001, p.169).[xxxvi] Isso porque era característica do Antigo Regime manterse a partir da lógica de pluralidade de fontes de poder. Assim, para ressaltar o papel da Colônia, ao invés de destacar a “dominação” podese tentar compreender como no Brasil se utilizaram das brechas e espaços vazios do sistema do Antigo Regime:
Para se falar de um direito colonial brasileiro com a importância política e institucional que e isto tem , é preciso entender que, no sistema jurídico de Antigo Regime, a autonomia de um direito não decorria principalmente da existência de leis próprias, mas, muito mais, da capacidade local de preencher os espaços jurídicos de abertura ou indeterminação existentes na própria estrutura do direito comum. (HESPANHA, 2005c, p.1) Por fim, em relação à crítica da falta de consideração da especificidade do “estatuto da escravidão”, parece que este deve sim ser elemento chave de compreensão da realidade colonial brasileira. Ao defenderse das críticas de Laura de Mello e Sousa, Hespanha utilizase de uma interessante posição. Assinala:
https://jus.com.br/imprimir/45821/umsentidojuridicoparaoantigoregimeancienregime
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05/02/2016
Um sentido jurídico para o antigo regime (ancien régime) Jus Navigandi
No fundo, os escravos estavam, para as sociedades coloniais, como criados, aprendizes, moços e moças de lavoura, rústicos ou camponeses, para as sociedades européias. Milhões de pessoas, praticamente desprovidas de direitos, à mercê dos pais de família. (HESPANHA, 2007, p.66) O argumento de que as justificativas da escravidão tinham referências européias[xxxvii] não é de todo um equívoco, mas as especificidades da escravidão brasileira tornam o discurso descontextualizado. É farta a literatura que demonstra que a escravidão “leve” (para lembrar estudos com inspiração em Gilberto Freyre) não retrata a escravidão em todas as suas nuances.[xxxviii] Por outro lado, a abertura de olhar para a multiplicidade de poderes e controles sociais pode iluminar formas complexas (e às vezes complementares) de violência. De qualquer forma a crítica de Laura de Mello e Sousa não atinge o cerne da utilização do termo “Antigo Regime”, pois a sua crítica baseada na existência da escravidão no fundo repete o argumento econômico da existência do capitalismo como padrão nascente. E dessa forma reitera o problema da não dependência do sistema político em relação ao econômico.[xxxix] Recentemente Laura de Mello e Sousa, ao que tudo indica, teria aceitado o uso da expressão, mesmo que com limites.
(...) não se deve falar num “Antigo Regime tropicalizado”. Se a sociedade colonial for vista como de Antigo Regime no senso estrito, suas particularidades explodem e corroem os princípios básicos, já que era organizada e costurada pelo escravismo, algo que inexistia no ambiente europeu”, lembra Laura. (...) A especificidade da América portuguesa não residia na assimilação pura e simples do mundo do Antigo Regime, mas na sua recriação perversa, alimentada pelo tráfico, pelo trabalho de negros escravos, pela introdução, na velha sociedade, de um novo elemento, estrutural mais do que institucional: o escravismo.” (HAAG, 2012)[xl] O debate por certo ainda não se encerrou. Talvez novos estudos possam ressaltar as especificidades da utilização da expressão Antigo Regime em contexto brasileiro e auxiliar sua compreensão densa.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para finalizar, vale ressaltar que o ideário do Antigo Regime não desaparece de súbito da cultura portuguesa e brasileira no início do século XIX. Mesmo os revolucionários franceses, que tanto criticavam o Antigo Regime, muitas vezes se utilizavam de seus elementos para se justificar, (...) “como quando Portalis apela para a eqüidade, ou seja, a um dos valores que caracterizavam o Antigo Regime” (GROSSI, 2004, p.119). Isso demonstra que, apesar das transformações, ainda existe muito de Antigo Regime circulando na sociedade. Entretanto, aos saudosistas, também vale o alerta de que a cultura não é estática. E que tentar encontrar semelhanças entre nosso tempo e o passado não torna o presente um continuum do que aconteceu. As coisas mudam. Às vezes abruptamente. Com a aceleração do processo de modernização, certos conceitos e valores sofreram abalo em todo o Ocidente. No Brasil não poderia ser diferente. Ao utilizar o conceito de Antigo Regime, sempre devese lembrar de situálo em sua historicidade.
REFERÊNCIAS BICALHO, M. F. B. ; FRAGOSO, J. ; GOUVÊA, M. F. S. . Uma leitura do Brasil colonial: bases da materialidade e da governabilidade no Império. Penelope: fazer e desfazer a historia, Lisboa, v. 23, p. 6788, 2000. BICALHO, M. F. B. As Câmaras ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. (orgs). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVIXVIII) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. CABOURDIN, Guy; VIARD, Georges. Lexique historique de la France d'Ancien Régime. Armand Colin : Paris, 1978. Disponível em:
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