Um Susto em Cena - A Censura ao Espetáculo Rede, Seca e Fome - 1969

June 29, 2017 | Autor: Luiz C. Checchia | Categoria: Estudos Culturais, Teatro e Política, Teatro de Resistência
Share Embed


Descrição do Produto

UM SUSTO EM CENA A Censura ao Espetáculo Rede, Seca e Fome - 1969 LUIZ CARLOS CHECCHIA1

Introdução A formação da classe trabalhadora também é a formação da cultura da classe trabalhadora; e por meio da contíua formação da consciência de classe constroem-se na lida cotidiana a identidade, as relações, os valores, as formas de ver e perceber o mundo de trabalhadoras e trabalhadores (DURHAN, 2012). Em Osasco, a conjuntura política e econômica, sobretudo entre os anos de 1950 e 60, levou à formação de uma identidade de classe que encontrou no teatro e na música realizadas e voltadas para a classe operária potentes vetores. Abordaremos aqui, neste texto, a experiência de censura imposta pelo regime militar ao espetáculo Rede, Seca e Fome, do Grupo Teatro Independente de Osasco (TIO), em 1969, que marcou a história do teatro político local e abriu caminhos para o seu desenvolvimento ulterior.

Destacamos que este ensaio faz parte da pesquisa iniciada já há mais de cinco anos sobre o teatro político realizado na cidade de Osasco durante a ditadura civil-militar. Foram utilizados para sua composição as entrevistas realizadas com Ruben Pignatari, Amália Laranjeira, Ricardo Dias e Inácio Gurgel, todos participantes do TIO e integrantes do espetáculo Rede, Seca e Fome, bem como de bibliografia que alude ao período abordado e da relação entre cultura e política e ainda jornais e outros impressos do mesmo período.

Osasco As cidades, de certa forma, possuem vocações, memórias coletivas, identidades. A despeito das mudanças históricas que inevitavelmente as afetam e as transformam, sobretudo, as provocadas pelo dinamismo do atual desenvolvimento do capital, que liquefaz relações e esmaece as cores da memória, ainda é possível encontrar nas dobras do cotidiano as marcas que caracterizam cada cidade, seja nas falas das pessoas mais velhas ou nas velhas construções, ainda que em estado de abandono. O fato é que o passado se mantem vivo na memória, fazendo-se presente pela voz, pelo 1

Mestrando no Programa de Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades, ministrado pelo Diversitas – FFLCH/USP

relato e pela práxis cotidiana; e se preserva pelo registro da pesquisa. Ainda que as elites da cidade de Osasco tenham por hábito a criação de uma história oficial baseada no culto às personalidades ditas empreendedoras, geniais e inventivas, como Dimitri Sensaud de Lavoud, promotor do voo da América Latina ou Antonio Agu, italiano que fundou a Vila de Osasco, ainda em 1891, graças ao seus interesses empresariais na região, ou que pesquisadores e pesquisadoras – sobretudo moradores da cidade – acabem reproduzindo “mitos fundares” locais (CORRÊA e SOUZA, 2013) em seus trabalhos, o fato é que a cidade se desenvolve por meio de diversos fatores, dentre tais, destacamos as relações políticas e econômicas específicas do desenvolvimento do capital industrial entre o final do século XIX e durante boa parte do século XX em uma cidade periférica porém muito próxima à capital paulista (de fato, a cidade foi, por muito tempo, um de seus distritos) e, por fim, as relações e referências culturais de uma cidade que se consolidou como cidade operária. Neste sentido, destacamos a intensa industrialização da cidade como possível gerador dessa cultura operária. A fundação da Vila de Osasco é, de fato, a repentina instalação de fábricas e comércios naquela região, ou seja, a instalação da relação trabalho x capital de forma abrupta na região, bastando-nos lembrar, para entender esse processo, que Antonio Agu comprou a primeira gleba de terra localizada na altura do km 16 da Ferrovia Sorocabana em 1887 e faleceu em 1909, neste espaço de tempo, apenas 22 anos, o italiano transformou uma pequena olaria que já existia no terreno adquirido por ele numa moderna fábrica de tijolos e telhas (em sociedade com o barão Evariste Sensaud de Lavaud)2, além disso, em 1892 fundou um fábrica de papelão (em sociedade com Narciso Sturlini)3, e em 1895 fundou uma sociedade de importação e exportação com uma indústria têxtil (em sociedade com Enrico Dell'Acqua), além de, no mesmo ano, construir e doar para a Estrada de Ferro Sorocabana uma estação de trem no km 16 de seus trilhos4, batizada por ele de Osasco5, 1900 é o ano em que monta uma fábrica a vapor6. Todavia, é claro que cada um desses empreendimentos precisou de um tanto de mão de obra assalariada para realizar-se: naquela época a fábrica de papelão empregava 80 operários, outros 130 trabalhavam na indústria textil e na fábrica a vapor era um grupo 50 operários7. Para cada novo empreendimentos de Agu e de outros capitalistas que se dirigiam para a região em buscas de oportunidades, muitos outros trabalhadores eram 2

3 4 5 6 7

COELHO, Maria Ines Zampolim; MORETI, Helio Marcos; MESSIAS, Maria do Carmo. Osasco. História e identidade. Osasco: Fundação Instituto Tecnológico de Osasco – FITO, 2004.pag 38 Idem . pag 40 Idem . pag 44 Idem . Idem LEAL, Laura. Cem anos sem Antônio Agú: 1887-2009. São Paulo: Novo Século, 2010. pag 70 Esses números são apontados por Laura Leal

empregados. O crescimento rápido da região demandava cada vez mais o aumento de mão de obra, que Antonio Agu costumava recrutar entre parentes e amigos incentivados por ele a virem ao Brasil, e que compravam de Agu terras para morar e empregos em suas empresas ou espaço para investirem em seus próprios empreendimentos. Levando-se em conta que cada novo empreendimento significa mais e mais trabalhadores, fica-se fácil imaginar como que velocidade a relação trabalho x capital se colocava presente na região. Se é apontado por parte da história da cidade que em Osasco dos fins do século XIX não se “percebia” as tensões dessa relação, é forçoso destacar que falamos de uma época do desenvolvimento industrial em que os trabalhadores eram submetidos a condições desumanas de trabalho8.

Ainda que a Vila de Osasco tenha sido formada nos anos finais do século XIX, foi apenas no início da segunda metade do século, em 1962, que logra alcançar sua emancipação: de distrito operário da capital paulista, Osasco surge como cidade periférica, pobre e industrial. Havia-se passado apenas dois anos da emancipação da cidade de Osasco quando, em 01 de abril de 1964, os militares mergulharam o Brasil no período mais sombrio de sua história recente. Trata-se de um período que marca de forma profunda e direta a cidade: fortemente industrializada, próxima à capital paulista e em diálogo direto com organizações nacionais de trabalhadores e jovens, mas também é a sede de quarteis importantes para o Exército Brasileiro, como o, na época, 4o Regimento de Infantaria (atual 4o Batalhão de Infantaria Leve). Além disso, Osasco experimentava um momento singular em suas organizações de trabalhadores: havia uma intensa organização de trabalhadores ‘pela base”, centradas, sobretudo, nas comissões de fábrica, principais responsáveis pela organização da histórica Greve de Osasco; por fim, tanto trabalhadores quanto estudantes ainda mantinham-se motivados e organizados desde o período de mobilização pela emancipação da cidade, que exigiu forte participação popular.

Um susto em cena... Já havia transcorrido algumas horas desde que o grupo de jovens chegara ao então 4o Regimento de 8

“As tensões sociais características das formações urbanas da época não foram sentidas no novo núcleo; as moradias dos operários, juntamente com o seu terreno, pertenciam a eles, o que não ocorria na maioria das vilas operárias da capital, onde as casas pertenciam à fabrica e o trabalhador pagava aluguel. Claro que isso não significa que não ocorreram aqui as contradições típicas do início a industrialização no Brasil, como exploração do trabalho infantil, baixos salários, jornadas longas m locais insalubres como já citado no depoimento acima.” COELHO, Maria Ines Zampolim; MORETI, Helio Marcos; MESSIAS, Maria do Carmo. Osasco. História e identidade. Osasco: Fundação Instituto Tecnológico de Osasco – FITO, 2004.pag 41

Infantaria do Exercito Brasileiro, instalado à beira da estrada de ferro Sorocabana, altura de seu Km 18, bairro de Quitaúna, em Osasco. Misturada à expectativa da espera estava uma dose de angústia, pois não sabiam o que viria pela frente, sabiam apenas que a apresentação do espetáculo Rede, Seca e Fome – escrita por Rubens Pignatari e com músicas de Ricardo Dias –, que realizaram na cidade mineira de Guaxupé havia desagradado uma senhora que estava na plateia, e que lá pelas tantas a referida senhora levantou-se furiosa e interrompendo a apresentação vociferou: “isso é uma mentira, não há fome no Brasil!”, ato contínuo abandonou sua cadeira e saiu apressada pela porta do teatro. Os jovens atores, passado o susto, continuaram a apresentação até o seu final, sendo muito aplaudidos pelo público que lotava o auditório. As preocupações do grupo se iniciaram quando, logo após a apresentação, souberam que aquela senhora que interrompeu a apresentação era esposa do coronel Lepiani, então comandante justamente do 4o Regimento de Infantaria. Coincidência ou não, o fato é que foi a partir daquele incidente com a referida senhora que as autoridades militares decidiram censurar o espetáculo.

Rede, Seca e Fome é um texto emblemático para o teatro de Osasco; de certa forma constitui a peça – um tanto mais pelas consequências provocadas e outro tanto pelo seu conteúdo dramatúrgico – um rompimento com uma certa ideia de teatro praticado na cidade até então, ou, melhor ainda, expôs para um grupo de jovens fazedores de teatro uma realidade política vivida por um Brasil sequestrado pelo regime militar e que se tornaria, de certa forma, o referencial de seus trabalhos futuros, seja para resistir a ela, se deixarem cooptar, ou simplesmente assumirem uma postura complacente tentando fazer de conta que “não era com eles”. Esse grupo de jovens formavam o TIO, Teatro Independente de Osasco, um coletivo de teatro armador cuja sede era a Igreja Imaculada Conceição, seus integrantes moravam das periferias de Osasco ou das cidades próximas, e quase todos eram operários e estudantes. Até a montagem de Rede, Seca e Fome, o grupo desenvolvia um teatro mais voltado para o entretenimento e doutrinação da comunidade católica frequentadora da Imaculada Conceição, de temas leves e regionais; a peça de Ruben foi um divisor de águas tanto pelo tema quanto pela ousadia.

Um susto criativo... Em 1965 foi inaugurado o Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com a temporada da montagem do poema Morte e Visa Severina, de João Cabral de Melo Neto e músicas de Chico Buarque de Holanda. Em uma das últimas apresentações estiveram presentes os jovens da

Imaculada Conceição. Dentre os jovens presentes estava Ruben Pignatari, que em entrevista afirmou que ficara impressionado e resoluto em fazer “esse tipo de teatro” que desnuda a realidade brasileira. Em suas palavras o espetáculo começou, terminou, e eu fiquei maravilhado com o que eu vi, não entendi nada, absolutamente... feito uma plástica, coisa excepcional, coisa maravilhosa, depois o bate-papo com o Chico, o Chico sentou no palco com as pernas pra fora lá pra plateia, e aquilo não saiu mais da minha cabeça, eu voltei com uma inspiração maluca e acabei depois de uma semana sentando e escrevendo um texto, com o mesmo modelo do “Morte e Vida”, um texto com literatura poética, pouquíssima rima, tratando da saga do nordestino também, só que a historia bem diferente, o roteiro bem diferente, a carpintaria, alguma coisa remetia ao “Morte e Vida”, mas com propostas um pouco diferentes e eu comecei a assumir a partir daí uma consciência que eu não tinha, que era a consciência política, tava adormecida e o espetáculo “Morte e Vida Severina” que nós vimos em São Paulo me acordou pra coisa.

É notório que uma certa ideia de nordeste brasileiro, primitivo e arcaico, constitui uma representação de “ancestralidade brasileira” construída ao longo do tempo e presente em parte do imaginário coletivo nacional até hoje. Talvez não tenha sido essa a formulação de Pignatari naquele momento, mas certamente parte dela estava presente naquele trabalho, mesmo que de forma intuitiva. Não devemos nos esquecer também que o projeto nacionalista e autoritário do regime militar estava atrelado a outro projeto muito maior, o desenvolvimento capitalista internacional, capitaneado pelos Estados Unidos da América – representado, em Rede, Seca e Fome por uma personagem estadunidense interpretada pelo próprio Pignatari; assim, escolher uma experiência local como “modelo” de Brasil, era, independentemente da cota de ingenuidade ou de intencionalidade presente nessa operação, uma forma de demarcar um território político e ideológico. É como se o que houvesse de mais brasileiro, mais genuinamente e legitimamente brasileiro estivesse num certo tipo de vida de contornos pré-capitalista, pobre, porém solidário e humano, de pessoas convivendo a partir de costumes e tradições atávicas e não subordinadas às leis impessoais e distantes das modernas, urbanas e “americanizadas” sociedades burguesas. É mergulhado nesse universo de representações que Ruben Pignatari escreve Rede, Seca e Fome, um

texto simples na forma, pouco original, com uma certa complexidade em sua tessitura, mas que carrega como principal qualidade grande força de diálogo com seu momento histórico.

Um susto e uma sentença. Após algumas horas sentados, aguardando pelo interrogatório, entrou pela porta da sala o militar identificado pelos entrevistados como coronel-major Albuquerque, com algumas pastas sob o braço: os dossiês dos jovens-atores-operários “pegos em flagrante” durante a apresentação de Rede, Seca e Fome. “Uma tortura psicológica”, foi assim como Ruben Pignatari chamou toda aquela espera e todos os acontecimentos que ocorreram durante aquela “visita” ao 4o Regimento de Infantaria. Em entrevista, Pignatari narrou a ocasião da seguinte forma fomos escoltados com sentinelas com armas no ombro até uma casa grande que tem lá no meio do quartel, subimos uma escada e tinha um salão que era o dobro desse tamanho aqui, vazio, uma mesa parecida com essa aqui, com as cadeiras, quatro ou cinco cadeiras para sentarmos. Ali nós ficamos uma hora e meia, sem aparecer viva alma, já era uma guerra psicológica, até que adentrou á sala o coronel-major Albuquerque, típico militar com uma camiseta branca, calça oliva, coturno, um chicotinho na mão, eles adoram um chicotinho, parece que eles se chicoteiam, se auto flagelam e uma pasta que tinha um palmo de altura aproximadamente. Ele entrou e ficou circulando em volta da mesa, umas 4 ou 5 vezes, olhando pro rosto de cada um, aí ele se aproximou numa cabeceira que não tinha ninguém sentado, nós sentamos aqui e lá, eu me lembro que ele perguntou o nome de um por um, começou por mim “Quem é Ruben Pignatari?”, eu digo “Sou eu Major”, chegou no ultimo, o ultimo respondeu ele pegou a pasta e bateu na mesa assim “PÁ”, e aí percebemos que ele era um pouco gago, “Seus co-comunistinhas de merda” e bateu o chicote na mesa “PÁ”. Após a saudação de “boas-vindas”, o militar passou uma severa repreenda ao grupo, recheada de exaltações patrióticas, explicações professorais sobre a segurança nacional, avisos sobre os perigos da subversão e outros temas caros ao regime militar. Embora possa parecer um corriqueiro caso de alguns garotos rebeldes precisando de um puxão de orelhas, a cidade de Osasco estava vivendo um momento extremamente delicado: no mesmo final de semana em que o TIO se

apresentava em Guaxupé, Carlos Lamarca, então capitão do Exército Brasileiro – e baseado no mesmo 4o RI em que os jovens atores-operários foram prestar depoimentos –, desertava do Exército Brasileiro fugindo com uma perua Kombi repleta de armas roubadas destinadas a abastecer a luta armada; tal ato provocou um estado de alerta na região. Todos eram suspeitos de subversão; soldados chegaram a interromper a missa de domingo na Imaculada Conceição, entrando montados a cavalos na igreja para deter algumas de suas lideranças acusadas de acobertarem elementos subversivos e incentivar suas ações.

Mas não foi apenas a deserção de Lamarca responsável pela ação hostil das autoridades militares para com os jovens do TIO. A peça lotava os espaços por onde passava, e após cada apresentação era realizado um debate com o público. Neste sentido, Rede, Seca e Fome constituiuse como parte de uma estratégia revolucionária: os debates realizados nas apresentações em Osasco eram mediados por José Campos Barreto, o Zequinha, que passaria a integrar o grupo de resistência armada Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) e seria morto, juntamente com Lamarca, na cidade baiana de Brotas de Macaúbas. Formado por atores-operários-estudantes, o TIO era um grupo de populares falando para a população, gente que se comunicava diretamente com os seus pares, em seus bairros, nos salões das igrejas que frequentavam, nas sedes dos sindicatos e das salas comunitárias. Isso certamente era um fator incendiário: levava para dentro da comunidade uma experiência estética e política marcante, que não se resumia à fruição mas provocava debates políticos profundo; faziam por meio do teatro o que não seria possível por muitos outros meios. Seja pela coragem militante ou pelo ímpeto inconsequente da juventude – ou mais provavelmente pela combinação de ambos – ousaram desafiar o poder vigente, um poder truculento, sectário, desumano. Não é de admirar, portanto, o susto que levou o editor do jornal A Região, que na edição do dia 18 de janeiro de 1969 tece os mais calorosos elogios a Rede, Seca e Fome, em matéria escrita pelo jornalista Francisco Morales e cujo título é: Brilhante Exibição do TIO em Guaxupé - Público de Pé Aplaudiu “Rede, Seca e Fome” no Teatro Decisão, para retratar-se, na edição seguinte, do dia 25 de janeiro, após os eventos desencadeados na apresentação de Guaxupé, publicando, em matéria não assinada e intitulada: Peça do Teatro Osasquense Suscitou Protesto (…) Entretanto, “como nem tudo que reluz é ouro”, desejamos deixar expressa a nossa reserva quanto à intenção ou objetivo dos representantes do Teatro Independente de Osasco. Assim, como certas algas marinhas são

lançadas pelo mar à praia e provocam um brilho exuberante aos olhos do observador, causando-lhes porém, danos se delas se aproximar, podem perfeitamente os atores interpretar tão bem seus papeis, deixando encantar toda uma plateia que, na sua maioria, os encara sob o prisma simplesmente artístico na acepção da palavra, enquanto as influências daninhas de certos conceitos emitidos somente encontram eco em reflexões posteriores no sossego dos lares. Após a publicação da reportagem sobre o “teatro”, em nosso número anterior, tivemos a informação de que uma pessoa possuidora de dotes intelectuais para realizar uma análise, de imediato, de todos os significados expressos capciosamente no contexto apresentado pelo TIO, estando presente no Teatro de Guaxupé por ocasião da encenação da peça, lançou de público seu veemente protesto, encarando as atividades do grupo como subversivas, e, a seguir retirou-se do recinto.

E para não deixar nenhuma dúvida de que a primeira matéria sobre o TIO, elogiosa, aconteceu apenas pelo engano provocado pelo “brilho nocivo” da alga envenenada lançada à praia pelo mar, termina o texto da seguinte forma A nossa meta tem sido a de promover todos os setores de atividades dos municípios epigrafados pelo nosso órgão de imprensa, naquilo que venha proporcionar o progresso, a harmonia, o bem-estar e a paz no seio da Pátria Brasileira. E, dessa meta, não arredaremos.

Após a seção de interrogatório e intimidação foram todos dispensados pelo militar, que não esqueceu de dizer que sumiria com todos, caso voltassem a fazer teatro em “sua cidade”. Na saída, ele ainda chamou Ruben Pignatari que se voltou e ouviu do militar: “se for escrever outra peça, tente uma com o título Liberdade, Patriotismo e Felicidade”. Para sorte do teatro e da cidade de Osasco, alguns daqueles jovens não pararam de fazer teatro. E nem há registros de uma peça chamada Liberdade, Patriotismo e Felicidade.

À guiza de encerramento Após o encerramento das atividades do TIO, seus integrantes não interromperam suas atividades

teatrais: Ruben Pignatari e Ricardo Dias foram responsáveis pela formação do Núcleo Expressão, no qual Amália Laranjeira atuou e cantou, grupo responsável por significativos momentos da história do teatro paulista, como a montagem de Um Homem Chamado Jesus, espetáculo de rua com mais de 16 horas de duração que, em 1971, trouxe à cena um Jesus negro numa politizada encenação da paixão de Cristo. Inácio Gurgel, além de ter se tornado o mais longevo professor de teatro da cidade de Osasco, foi um dos fundadores do Grupo Osasquense de Teatro Amador, o GOTA, formado por metalúrgicos da COBRASMA. Recuperar a memória e com ela escrever a História é um trabalho delicado que exige do historiador compromisso com os fatos analisados e o compromisso com o rigor científico; quando essa escrita ocorre nos marcos da Historia Oral acresce-se a isso o respeito a quem narra, ao que é por ele narrado e àqueles que, de alguma forma, tomarão contato com o resultado da pesquisa. Ao recuperar a experiência do processo de censura do espetáculo Rede, Seca e Fome tínhamos por objetivo trazer à luz parte de uma rica experiência cultural na cidade de Osasco, na qual um grupo de teatro formado por jovens de periferia ousaram seguir no contra-fluxo da ditadura civil-militar. Ainda que possa parecer algo menor frente a tudo o que foi e representou os chamados “anos de chumbo”, foram tais experiências de rebeldia e resistência que alimentaram e alimentam a luta por um outro mundo, mais justo e equilibrado. Ainda que curtas algumas, ainda que violentamente aniquiladas outras, formam um construto de experiências e memórias que apenas aguardam aqueles que queiram colaborar para sua recuperação e publicização; jogar luz sobre tais momentos significa alimentar movimentos atuais ou por virem, além de fazer justiça àqueles não deixaram de atender ao chamado da História em seus momentos de maiores adversidades.

BIBLIOGRAFIA

COELHO, Maria Ines Zampolim; MORETI, Helio Marcos; MESSIAS, Maria do Carmo. Osasco. História e identidade. Osasco. Fundação Instituto Tecnológico de Osasco – FITO, 2004. CORRÊA, Dora Shellard e SOUZA, Nulri Meneses de. Por uma historiografia do local. Disponível em COUTO, Ari Marcelo Macedo. Greve na COBRASMA: uma história de luta e resistência. São Paulo, Annablume, 2003. DURHAN, Eunice Ribeiro. A Dinâmica da Cultura. SP: Cosac Naify, 2012 D’ALESSIO. Márcia Mansor. Memória e historiografia: limites e possibilidades de uma aproximação. História Oral, no 4, 2001, p 55-71 EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. SP: ed UNESP. 2000. LEAL, Laura. Cem anos sem Antônio Agú: 1887-2009. São Paulo: Novo Século, 2010. MORALES, F. Brilhante exibição do TIO em Guaxupé. A Região. Ano IV. No 177. 18 de janeiro de 1969. NEVES, Lucilia de Almeida. Memória, história e sujeito: substratos da identidade. História Oral, no 3, 2000, pag 109-116. PEÇA de teatro osasquense suscitou protesto. A Região. Ano IV. No 178. 25 de janeiro de 1969. ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira. Aprendendo a ouvir: a história oral testemunhal contra a indiferença. História Oral, v. 16, no 2, pag 129-148, jul/dez 2013. WILLIAMS, Raymond. Base e superestrutura na teoria da cultura marxista. In Cultura e materialismo. SP: Editora Unesp, 2005. _________________Marxismo e literatura. RJ: Zahar Editores, 1979.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.