Um verso e dois dedos de prosa: sobre poesia e letra de música

November 13, 2017 | Autor: Clarisse Fukelman | Categoria: Literatura, Poesía, Abel Silva
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ABEL SILVA Só uma palavra me devora. Record 2001 Por: Clarisse Fukelman Um verso e dois dedos de prosa Não tem escapatória: quando se tenta ler no papel, como poema, alguma letra de música já conhecida, a melodia se impõe de imediato e os versos se fazem acompanhar dos acordes, das vozes do intérprete, do arranjo e outros elementos afetivo-musicais. A leitura do verso vem colada à leitura da música. O pior (ou melhor) é que o casamento às vezes é tão bem feito, tão sólido, tão íntimo, que acontece o que quase não acontece mais na vida real: parceria eterna. Por isso, quando Abel Silva reúne em "Só uma palavra me devora" uma produção de 30 anos em que se misturam prosa e textos poéticos de diferentes naturezas (poesia e letra), alguns inéditos, outros não, temos de nos preparar, enquanto leitores, para um permanente exercício de mudança de perspectiva. Não por que sejam três décadas de escrita, mas porque são tipos de textos que pedem estratégias de leitura diferentes. Em termos gerais pode-se dizer que estamos diante de um letrista e poeta carioca da zona sul. Se as orelhas do livro anunciam um autor de "poesia solar", nas epígrafes de Fernando Pessoa, Virginia Woolf e Murilo Mendes achamos as melhores pistas para seus temas prediletos e certos princípios de construção poética. Através do Pessoa - "Já não vivi em vão/ já escrevi bem/ uma canção" fala o poeta obcecado com o tempo; atraído pelo verso melódico, em redondilha, de raiz popular; e remanescente dos que ainda acreditam na arte como redenção. Com Woolf - "Havia um novo eu/ em cada esquina" - revela-se o ser dividido e a paisagem das ruas da cidade (da primeira à última página abrem-se imagens de esquinas e encruzilhadas). Do Murilo - "Ninguém ampara o cavaleiro/ do mundo delirante" - é o indivíduo que conserva um quê de romântico e que "senta praça" no cotidiano, tanto pra delatar perdas e danos, quanto para exprimir o exílio e a fuga. No detalhe, os diferentes textos incluídos no livro revelam o poetacronista, o poeta de circunstância, dos pequenos fatos do dia-a-dia, que boa parte do tempo conversa com Manuel Bandeira, Adélia Prado, Vinícius de Moraes; que aqui e ali abre a porta da própria casa e registra emoções domésticas: filho, sogro, mulher. (como no drummondiano "Os filhos que não tive/ cobram seu preço:/ doem dentro de mim/partos ao avesso.". Ou: "Noite de sábado/ a arma solitária do poeta/ persegue/ a triste luzinha azul/ das palavras" ). No detalhe, também, confirma-se a tese de que a poesia está para a letra como o amor está para a amizade. Poesia e letra são primas, meio-irmãs, mas não iguais. Antes de o termo "letra" se firmar, chamava-se de "cantigas" as composições ao gosto popular para serem cantadas. Mas se a troca de nome era um modo de a poesia ganhar alforria, marcando sua independência da música, a

tática não deu certo. Ou melhor: se mostrou impertinente. Os propósitos da poesia e da letra são diversos, mesmo considerando que já tenham sido musicados vários poemas, com resultado pra ninguém botar defeito. Até mesmo João Cabral, que insistia no fato de "não ter ouvidos" e de não suportar o melódico, ao comentar o Morte e vida severina bateu palmas para o trabalho de Chico Buarque por seu "respeito integral pelo verso em si. A música segue cada ritmo, crescente ou não de cada parte do poema." Entre ser poeta e ser letrista há diferenças, não escala de valor - e o Brasil tem um elenco de primeira que inclui, além do Chico citado acima, nomes de várias gerações como Aldir Blanc, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Fausto Nilo, Cartola, Dolores Duran, Orestes Barbosa, Noel Rosa etc. (coloque aí o leitor os tantos outros bons que lhe vierem à memória). O que se nota muitas vezes na leitura de alguns "textos poéticos" é que eles parecem nascer pedindo a cumplicidade de uma música, como vocação. O saudoso Leminski diria: um verso é "uma entidade artística", "uma unidade musical imagética". Som e sentido têm na poesia uma relação de necessidade muito própria e é "impossível fazer uma letra absolutamente irregular e sem rimas". A medida para um bom leitor de cada uma dessas modalidades do poético, um leitor-ouvinte capaz de perceber que está diante de uma letra e não de um poema ou de um mero improviso ("O bonde" do Abel, por exemplo, tem espírito de funk) é similar à de um compositor que, diante de uma partitura e sem nenhum instrumento à mão, percebe o potencial da música ali contida. Ou o diretor que, pela leitura silenciosa de uma peça de teatro, visualiza sua força dramática em cena. Do mesmo modo, certos versos já terão a orientação para a música. Alguns trarão dicção mais romântica, como em algumas letras de Angela Ro-Rô ou do próprio Abel Silva (este mostra em citações, imagens e mesmo em memórias de infância a admiração pelo cancioneiro popular.) Outros, numa feição mais rascante, como em Antonio Cícero e Arnaldo Antunes. O que não pode acontecer em nenhum dos casos é a rima e a métrica tornarem-se algozes, virarem elementos de fora conduzindo os versos, camisasde-força. Neste caso, a melhor saída é o humor: "São estranhas regras:/políticos usam/meias negras/transparentes/uma outra pele,/bem junto:/justo como se veste/defunto". .

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