Um Villa-Lobos perturbador abre a temporada da OFMG

June 8, 2017 | Autor: Carlos Palombini | Categoria: Musica Brasileira, Crítica musical, Heitor Villa-Lobos (1887-1959), Música Brasileira
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Um Villa-Lobos perturbador abre a temporada da OFMG Carlos Palombini No dia primeiro de janeiro de 1928 uma das personalidades então mais influentes da música francesa, o compositor Florent Schmitt, aos 57 anos de idade, publicou na Revue de France uma resenha de quatro páginas sobre dois concertos realizados em 24 de outubro e 5 de dezembro de 1927 na Sala Gaveau. Dezessete anos mais jovem, mas desde 1921 considerado pela imprensa francesa “o maior músico moderno brasileiro”,1 Heitor Villa-Lobos apresentara ali uma seleção de obras recentes. Integravam a primeira récita três Choros de câmara, o Quarto (1926–1927), o Segundo (1924–1925) e o Sétimo (1924–1925); cinco das dez Serestas para voz e orquestra (1925–1926), com a soprano Elsie Houston; o Rudepoema (1921–1926), com Arthur Rubinstein; e aquela que, décadas mais tarde, o musicólogo finlandês Eero Tarasti consideraria “a composição mais fauvista e ‘moderna’”2 do período modernista de Heitor Villa-Lobos: Choros 8, para orquestra e dois pianos. Schmitt dedicou-lhe todo um parágrafo: E porque é necessário que o interesse siga sempre em crescendo, chegamos ao gigantesco Choros VIII, ponto culminante dessa noite memorável de 24 de outubro. Aqui, paralelamente à orquestra, de volta ao normal, suas oitenta engrenagens enfim agrupadas e prontas para entrar em luta, vemos desencadearem-se, já sem nenhuma hipocrisia, os piores instintos deste sobrevivente da idade da pedra. A fantasia acotovela-se com o sadismo, mas um sadismo estilizado de homem bom, de alma elevada, que não está ao alcance de um festeiro ou desocupado qualquer e mantém-se ciosamente no interior do círculo da beleza. A orquestra uiva e delira numa crise de jazzium tremens, e quando se acreditaria ter atingido os limites de um dinamismo quase sobre-humano, eis que, de golpe, desabam quatro braços de titãs, os de Aline van Barentzen e Tomás Teran, vinte dedos de aço, que na espécie valem por cem, a brandir dois formidáveis tanques Gaveau de quinze oitavas, os quais, sobre esse fundo tumultuoso, explodem com o estrondo de um abalo sísmico no inferno. É o golpe de misericórdia. A coisa torna-se demoníaca ou divina, conforme o entendimento. Pois adoramos ou execramos, mas não permanecemos indiferentes. Inevitavelmente, sentiremos que o verdadeiro grande espírito bafejou.3

                                                                                                                L. de Crémone, “Courrier musical”, Le Figaro, 67º ano, 3ª série, n. 139, p. 5, 19 maio 1921. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k292853f. Nicolet, “La musique”, Le Gaulois: journal de la défense sociale et de la réconciliation nationale, n. 15.933, p. 4, 19 maio 1921. Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5386965. Acessos em 21 fev. 2016. 1

Eero Tarasti, Heitor Villa-Lobos: the Life and Works, 1887–1959, Jefferson e Londres, McFarland, 1995, 118. 2

Publicada nas páginas 138–141 da Revue de France, a crítica de Schmitt foi reproduzida por Lisa Peppercorn no artigo “A Villa-Lobos Autograph Letter at the Bibliothèque Nationale (Paris)”, Latin American Music Review, vol. 1, n. 2, 253–264, 1980, 255. 3

A Sala Gaveau em 1913 por ocasião de um concerto de Camille Saint-Saëns (ao piano); Biblioteca Nacional de França, departamento de Estampas e Fotografia.

Oitenta e oito anos depois, o maestro Fabio Mechetti, diretor artístico e regente titular da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, escolheu essa obra, cognominada “Choros da Dança”, “A sagração da primavera do Amazonas” e “O Oitavo Louco”, para abrir a temporada da Sala Minas Gerais, residência da OFMG, nos dias 18 e 19 de fevereiro de 2016. Celina Szrvinsk e Miguel Rosselini desincumbiram-se dos pianos. A “batalha de ritmos”4 que o compositor desencadeia no Choros 8 confronta os intérpretes com um catálogo de dificuldades: binários, ternários e quaternários simples alternam-se com compassos incomuns — 5/4, 6/4, 7/8, 9/8, 11/8, 11/16 — repletos de quiálteras de três, quatro, cinco, seis, sete, nove, dez, onze e doze notas; há sucessões contínuas de figuras acéfalas sincopadas e sincronização entre células realizadas por instrumentos distantes no espaço, sujeitos a defasagens entre emissão e recepção. Fabio Mechetti incorporou a personalidade naval de seu antigo mestre, Eleazar de Carvalho, para atingir o equilíbrio necessário entre disciplina de Forças Armadas e elasticidade                                                                                                                 Conforme a expressão utilizada por Villa-Lobos para descrever uma das seções da obra a Louis Biancolli nas notas de programa para sua execução pela Filarmônica de Nova York no Carnegie Hall em 1945. Disponível em http://goo.gl/Klsofn. Acesso em 22 fev. 2016. 4

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afrodescendente com o qual colocou em relevo sopros e percussões. Com uma carreira conjunta que ultrapassa três decênios, o duo Celina Szrvinsk e Miguel Rosselini, estudou a escrita pianística de Villa-Lobos meses a fio de modo a valorizá-la no duplo papel de interlocutora e apoiadora de percussões e metais. Por todas as dificuldades, Choros 8 é uma das criações menos executadas de Heitor Villa-Lobos. Depois de estrear em Paris, na Sala Gaveau, com a Orquestra Colonne sob a regência do compositor, em 24 de outubro de 1927, ela foi ouvida novamente ali em 7 de maio de 1930;5 em Nova York, na Sala de Concertos da Feira Mundial, com a Filarmônica de Nova York sob a regência de Burle Marx, em 4 de maio de 1939; de novo em Nova York, no Carnegie Hall com a Filarmônica de Nova York sob a regência do compositor, em 8 e 9 de fevereiro de 1945;6 no mesmo local, com a Orquestra dos Compositores Americanos sob a regência de Dennis Russell Davies, em 14 de abril de 1996; em Londres, no Barbican Hall com a Orquestra Sinfônica da BBC sob a regência de Sakari Oramo, em 8 de março de 2014. Do mesmo modo que Ionisation (1929–1931), de Edgard Varèse, Choros 8 depende de efeitos resultantes da distribuição espacial das fontes sonoras. Esse fato impõe outros tantos desafios à fonografia, razão pela qual as gravações são ainda mais raras. Conhecemos a de 1985, com Kenneth Schermerhorn à frente da Filarmônica de Hong Kong; a de 1988, com Eleazar de Carvalho à frente da Sinfônica da Paraíba; e a de 2005 com John Neschling à frente da Sinfônica do Estado de São Paulo. Os ingressos esgotaram-se rapidamente e tive de contentar-me com um lugar atrás da orquestra, à esquerda — para uma partitura frequentemente recriminada por encobrir as partes do piano, a pior localização possível. Eu estaria exatamente atrás da tampa do segundo piano, junto à parte pesada das percussões. Seja porque a acústica da Sala Minas Gerais é tão boa quanto viva, e faz variar de modo imprevisível as perspectivas de escuta conforme a localização, seja porque o trabalho do duo SzrvinskRosselini surtiu efeito, minhas expectativas contrariaram-se. Os pianos ganharam justo                                                                                                                 Cf. Bruno Kiefer, Villa-Lobos e o modernismo na música brasileira, Porto Alegre, Movimento, 1986, 138– 139. Kiefer reproduz crítica da revista Le monde musical de 31 de maio de 1930, mas o fac-símile é ilegível. 5

Para esses concertos, Louis Biancolli preparou extensa nota de programa a partir de informações prestadas pelo compositor. Disponível em http://goo.gl/Klsofn. Em Roteiro de Villa-Lobos (Brasília, Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, p. 114), Donatello Grieco afirma: “Em 13 de março, Serge Koussewitsky rege no Carnegie Hall, em Nova York, com a Orquestra Sinfônica de Boston, os Choros 8 e 9”. Não há registro dessa performance nos arquivos da Sinfônica de Boston, tampouco nos do Carnegie Hall, que todavia indica a estreia nova-iorquina de Rudepoema pela BSO sob a regência de Serge Koussewitzky em 14 de março de 1945. Disponível em: http://goo.gl/HKny1K. Acesso em 23 fev. 2016. 6

 

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relevo e a proximidade das percussões clarificou sensivelmente a complexidade rítmica. A peça emergiu em dançante fulgor, na delicadeza dos jogos entre as sonoridades da harpa, da celesta e do piano. Eero Tarasti compara o tratamento que Darius Milhaud dá ao maxixe com a maneira expressionista pela qual o “Turuna” de Ernesto Nazareth se manifesta no Choros 8.7 Se, para Mário de Andrade, o Choros 8 é o “Choro do maxixe”,8 trata-se de um maxixe transfigurado. O diálogo entre civilização e barbárie que se faz ouvir ali torna o Choros 8 a mais atual das obras de Villa-Lobos, aquela que mais diretamente fala ao século XXI no que este possui de orgiástico e brutal. Resta esperar que a Sala Minas Gerais assista à gravação definitiva desse Villa-Lobos tão perturbador quão deslembrado, com Fabio Mechetti à frente da OFMG e o duo Celina Szrvinsk e Miguel Rosselini aos pianos.

Da esquerda para a direita, Fabio Mechetti, Celina Szrvinsk e Miguel Rosselini junto à parede de autógrafos da OFMG após o concerto de estreia, 18 de fevereiro de 2016; foto de Narren Felipe.

                                                                                                                Eero Tarasti, Heitor Villa-Lobos: the Life and Works, 1887–1959, Jefferson e Londres, McFarland, 1995, 120–121. 7

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Citado por Donatello Grieco, Roteiro de Villa-Lobos, Brasília, Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 69.

 

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