Uma Abelha na Chuva. Uma revisão, Coimbra, Angelus Novus, 2003. Ed.: Pedro Serra.

May 23, 2017 | Autor: Pedro Serra | Categoria: Literatura Portuguesa, Crítica literária, Estudos Literários
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APRESENTAÇÃO Pedro Serra

Cumpre-se, neste ano de 2003, o cinquentenário da primeira edição de Uma Abelha na Chuva. O presente volume reune um conjunto de sete ensaios que propõem, de modo diverso, um regresso a este quarto romance da tetralogia gandaresa de Carlos de Oliveira, encetada com Casa na Duna (1943), continuada com Alcateia (1944) – obra que, como se sabe, viria a cair do corpus –, a que se seguiu Pequenos Burgueses (1948) e, então, Uma Abelha na Chuva (1953). Haveria, finalmente, que esperar um quarto de século para uma nova, e última, incursão no território da Gândara, com Finisterra (1978). A liturgia própria das efemérides, como a que este volume se presta, não obvia a precaridade, o efémero de uma celebração. Na verdade, o que se pretende é precisamente escavar a evanescência desta celebração. Um lance táctico, que trata sobretudo de inverter a lógica deste tipo de eventos: a de produzir algo como um up-to-date interpretativo e revisor que sature, que opere a mediação universal de uma determinada obra. Desiderato, no mínimo, cândido (por impossível) e, como tal, demasiado humano. E isto porque o que ele de algum modo implica é que a leitura de uma determinada obra seria um acto que lhe viria imperativamente destinado. O tempo da leitura pertenceria, assim, a uma consecutividade vazia onde, paradoxalmente, se consumaria uma plenitude de sentido. A lógica das efemérides é também esta: a de organizar socialmente o reconhecimento de que uma determinada obra, que individualmente nos afecta e consideramos importante, é relevante no âmbito do espaço cultural. É este, sem dúvida, o caso de Uma Abelha na Chuva, obra que é consensualmente um romance maior da literatura portuguesa do século XX, momento fulcral da trajectória intelectual e estética do autor, e que até há bem pouco tempo foi leitura obrigatória nos curricula do ensino secundário.

Pareceria, pois, que um regresso à obra de Carlos de Oliveira fazendo dela efeméride e ocasião para a revisão; pareceria que colocarmo-nos uma vez mais sob a sua alçada e responder às suas instigações, mais não significaria do que voltar a sublinhar o já de si demasiadamente sublinhado. E todavia, não é esse o caso, antes pelo contrário. É precisamente no carácter evanescente de uma celebração – que não caia na indulgência do mero sublinhado – que se joga e constata a espessura, a densidade do regresso à leitura. Na verdade é a própria obra que determina a pregnância da leitura contingente. A contingência não é algo dado, é bem o contrário da necessidade. Ler é uma forma de produzir essa contingência pregnante. Neste sentido, uma leitura, uma releitura ou a revisão de outras leituras, podem de forma especular rever-se na escrita como processo que Carlos de Oliveira exemplarmente desenvolveu. É sobejamente conhecido este facto, e ele tem vindo, de resto, a sobredeterminar o modo de ler Carlos de Oliveira. Uma Abelha na Chuva não é uma excepção, antes pelo contrário. Como sabemos, e como foi estudado por João Camilo dos Santos em Carlos de Oliveira et le roman, o romance foi submetido, como toda a restante obra oliveiriana, a um processo crítico de reescrita. Crítico no sentido de fazer do romance um ponto crítico, afim, digamos, ao momento em que a água entra em ebulição. Um lugar instável porque krisis, isto é, lugar de perigo, lugar do tempo vivido como mudança. Uma Abelha na Chuva não é excepção porque, precisamente, a obra de Carlos de Oliveira assenta nesta noção de um espaço crónico – e, em abismo, a crónica de um espaço, a Gândara. Os factos são conhecidos. O romance teve uma primeira edição em 1953, sofrendo alterações nas subsquentes: de modo muito destacado na quarta edição, de 1969, mas não apenas. Gera-se, então, uma tensão entre o material escrito que vai sendo acumulado em depósito e a sua reescrita. A modalização da rosácea que, deste modo, é produzida, rosácea que passa a ser a obra, é equívoca. A reescrita tanto nos autoriza a ver nela uma exclusão do anteriormente escrito; como não nos exime de projectar o

anteriormente escrito sobre o reescrito, e vice-versa. Tudo se passa como se a obra quisesse tender para um presente (autoral) em que coincidisse consigo mesma, sem lhe ser possível subrogar o passado. E todavia, há um terceiro termo a mobilizar a rosácea. A obra seria submetida à reescrita por apelo de uma obra futura a que nunca se chega. Este terceiro termo é, a bem dizer, a pressão daquilo que na obra pretérita teria ficado por cumprir. O «romance a escrever», trabalho fáustico como formulou Carlos de Oliveira. A obra tenderia, assim, para um seu quimérico cânone. A fábula da rosácea devolve-nos a modernidade do trabalho literário de Carlos de Oliveira. E isto porque a rosácea repete a fábula da obra de arte moderna, a fábula da Arte Moderna – como a obra prima secreta do pintor Frenhofer. Uma fábula que, bem vistas as coisas, faz símbolo do modo como se entende a literatura desde o momento em que a noção se estabiliza nos termos que serão ainda os nossos (ou talvez já não). A literatura é, como recorda Hans Ulrich Gumbrecht, temporalização e inovação. O desafio, neste sentido, que um romance como Uma Abelha na Chuva coloca, para além da constatação de dissolver um seu hipotético cânone, é o de observar a produtividade dessa tensão. É nessa produtividade que se negoceia o ser um clássico (movente) e, como tal, o ser obra merecedora de efeméride. Dito isto, os problemas persistem, se é que não se tornam intermináveis. De algum modo, obriga-nos a fazer da leitura a procura da necessidade da leitura, mas apenas para concluir o pouco necessária que é. E todavia, do que se trata é de não sucumbir a este agonismo. Dizer que a escrita como processo de reescrita é uma lição para a releitura é um tropo. Na verdade, podemos inverter os termos. É enquanto leitor da sua obra que Carlos de Oliveira a submeteu à reescrita. O estatuto de leitor, como recordava Wlad Godzich a propósito de Paul de Man, é condição intrínseca ao sujeito na modernidade. Acrescentaria a modulação de Fernando R. de la Flor, que formula antes a imanência da subjectividade

moderna a partir da noção de lecto-escrita. Carlos de Oliveira é, assim, um clássico nosso por nele vermos um lecto-escritor exemplar. Uma leitura que não se objectiva apenas como leitura íntima, ou leitura silenciosa, é também uma materialização escrita. E tal não significa que esta objectivação totalize esse legere íntimo. Do mesmo modo que, para um Deleuze, um livro sempre são dois livros – lição de um Melville, que distinguira uma escrita a sangue de uma outra a tinta –, também uma leitura objectivada são duas leituras. A noção de uma dupla inscrição da lecto-escrita, em letra visível e invisível, permite-nos voltar ao processo de reescrita de Uma Abelha na Chuva. Assim, a reescrita não obedece a uma lógica dualista. Ponhamos o caso da primeira edição, de 1953, e a quarta, de 1969, a mais significativa revisão da obra, como já referi. Entre uma e outra não opera uma reflexividade que fizesse da primeira, da segunda ou da que ficou «por escrever», forma arquetípica ou forma degradada das outras. A lógica que as une não é a lógica do uno mas da «metamorfose repetitiva». A noção, como se sabe, é do próprio Carlos de Oliveira, que a desenvolveu num conhecido ensaio sobre Afonso Duarte, intitulado «O Iceberg». O que cada uma das versões materializa é a repetição na diferença de um núcleo obsessional, matricialmente nomeado Gândara ou, melhor, romance da Gândara. Na verdade a reescrita é produção dessa diferença. Digamos que o depósito textual que a reescrita vai amealhando é a produção de um seu inconsciente. Também as leituras do romance aqui coligidas assistem essa produção. Se uma obra de arte é o historiador o inconsciente da sua época (Adorno), ela é produção desse continente submerso do iceberg. De igual modo, as leituras acrescentam-se ao iceberg: à sua linha de flutuação, mas também à sua porção fora e dentro da água. O ensaio de Osvaldo Manuel Silvestre, neste sentido, perscruta a recepção mais imediata da primeira edição de Uma Abelha na Chuva, mostrando como nessa recepção, globalmente considerada, se determinam muitos dos lugares comuns da

posterior crítica do romance. Maria Manuel Lisboa, por seu turno, observa a obra em função de um prisma de leitura «feminista», cruzando-o com a problemática da luta de classes. O ensaio de Abel Barros Baptista reflecte sobre o modo como a obra encena, e adensa, o problema (capital na Modernidade) da agência. Pedro Schachtt Pereira, por sua vez, indaga o modo como a morte, absoluta singularidade, afecta o universo ficcional do romance. A leitura de Sérgio Paulo Guimarães de Sousa incide sobre a adaptação cinematográfica do romance, levada a cabo por Fernando Lopes, mostrando como o filme suplementa o texto escrito, produzindo a sua própria autonomia. Por último, a revisão de Américo António Lindeza Diogo explora, em diferentes níveis, a dupla temporalidade que atravessa, sem cicatrização, o romance: o tempo (alienado) da Gândara e o tempo da forma espacial modernista. Cada uma destas leituras do romance pressupõe uma leitura «solitária mas solidária», como diria Carlos de Oliveira. Neste sentido, somam-se ao romance da leitura como (re)produção de um rosácea – Uma Abelha na Chuva – por onde «nenhum tempo se demora».

ÍNDICE Apresentação Osvaldo Manuel Silvestre, Do Elogio por Defeito: Uma Abelha na Chuva de 1953 a 1954 Maria Manuel Lisboa, Uma Chuva Molha-Tontos: Insurreição na Colmeia em Carlos de Oliveira Abel Barros Baptista, Instigações em Regime de Aguaceiros Pedro Schachtt Pereira, Três ou Quatro Jeiras de Quintal Pedro Serra, Notícias de Luanda Sérgio Paulo Guimarães de Sousa, «Ética do Olhar» e Pollini Américo António Lindeza Diogo, Trabalhador Ilegal Notas Bibliografia Colaboradores

Pedro Serra, ed., Uma Abelha na Chuva. Uma revisão, Coimbra, Angelus Novus, 2003, 206 pp.

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