Uma achega para o conhecimento da poesia de Orlando da Costa 1

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Uma achega para o conhecimento da poesia de Orlando da Costa1

Filomena Gomes Rodrigues [email protected]

Quando no ano 2000 foi inaugurada a Exposição “ Os Olhos Sem Fronteiras” no Museu do Neorrealismo, o escritor proferiu algumas palavras para falar dos contentamentos e descontentamentos da sua vida, no plano pessoal e literário. Assumiu como o neorrealismo foi a grande motivação literária desde o início da sua carreira, mas não esqueceu as influências recebidas de outros escritores de língua portuguesa ou estrangeira. Disse ser um escritor atento ao que se passava e consciente da responsabilidade que é escrever sob a vigilância da censura ou em liberdade. Procurou preservar a sua individualidade no plano da expressão estética e embora aspirasse à renovação e respeito pela modernidade admitiu não se deixar levar facilmente por modas e modismos. Nos versos de Orlando da Costa sentimos continuamente a harmonia entre poesia e ideologia. São poemas marcados por emoções dilatadas por circunstâncias e por causas, mas também pela relação serena e fraterna entre o sujeito poético e o leitor. Depois de ler os seus romances e dramas confesso que senti algum desapontamento pelo interregno que Orlando da Costa fez no seu percurso poético. Se tal não tivesse acontecido muito provavelmente teríamos um percurso ascendente de criatividade poética e de uma diversidade de temas muito mais vastas. Ainda que a sua obra poética, conhecida até hoje, seja reduzida a iniciativa de refletir sobre ela vem na perspetiva de um acréscimo positivo ao estudo da poesia neorrealista e, sobretudo, da obra deste nome da literatura lusófona.

Palavra-chave: Orlando da Costa, ideologia, mãos, nós, poesia, tu

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Todas as referências de citação e paginação remetem para a obra que serviu de suporte à elaboração desta análise: Canto Civil, Editorial Caminho, Lisboa, 1979.

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Iniciou a sua atividade literária pela poesia quando ainda era adolescente e frequentava o Liceu Nacional Afonso de Albuquerque, em Goa. O seu primeiro prémio foi-lhe atribuída num concurso literário organizado pela Associação Escolar do Liceu no ano de 1945. O poema premiado “O meu Ideal” continua ainda hoje a ser nomeado carinhosamente entre os goeses, a par do seu primeiro romance, O Signo da Ira, como texto de aproximação e reconhecimento a um escritor que nunca perdeu os laços com a sua Goa. O conjunto da obra poética de Orlando da Costa está reunido no livro, Canto Civil editado em 1979 e compreende um conjunto três livros, da década de 50, e um conjunto de alguns poemas inéditos sob o título, O Coração e o Tempo. A estreia na ficção com um dos mais belos romances do século XX, selada com atribuição de um prémio literário, foi o início de um percurso na literatura portuguesa alargado à poesia e ao drama. Não se consolidou, até ao momento, a projeção que se adivinhava para a sua obra após a atribuição do Prémio Ricardo Malheiros, em 1963. Ainda assim o seu romance, O Último Olhar de Manú Miranda publicado no ano 2000 foi reeditado em 2013 e entrou na lista dos livros recomendados pelo Plano Nacional de Leitura. A temática dos seus livros e o seu empenhamento na transformação da sociedade oprimida e conservadora, como era a portuguesa, não lhe permitiu escapar à ação dos censores do regime. Profundamente revoltado com a apreensão e proibição de venda dos seus livros de poesia, Orlando da Costa escolheu fazer uma pausa no seu exercício poético. Valeu a muitos poetas, para contrariar a posição da censura instituída, algumas iniciativas individuais de artistas que, na clandestinidade, divulgavam a poesia de muitos escritores em situação semelhante à do nosso poeta. Com efeito, apesar de ser um único registo, ao que parece foi o cantor e compositor Luís Cília o primeiro a musicar um dos seus poemas. Este facto não deixa de ser relevante quando temos em consideração que o artista em causa foi um importante cantor de intervenção, a atuar fora de Portugal e responsável por parcerias com importantes músicos estrangeiros ligados à oposição de regimes de ditadura. De Luís Cília é então editado em França, no ano de 1967,e mais tarde reeditado em Espanha, um disco onde estão reunidos alguns poemas de escritores importantes da época como Afonso Duarte, Borges Coelho, João Apolinário, José Gomes Ferreira e Orlando da Costa. Deste último o artista escolheu o poema “O Coração e o Tempo” que conheceu também uma versão em língua francesa.

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O Coração e o Tempo

Meu sonho, meu coração Caminho errado e sempre certo De quem do amor fez razão De sentir a vida mais perto. Meu sonho, meu coração, Destino de lume e vento Que bebe nos seios da opressão O veneno e o leite de cada momento. Meu sonho, meu coração, Segredo idílico de águas e areias, Gerando no ventre de cada estação O sangue e o sol da secura e das cheias.

Meu sonho, meu coração, Humano indício deste viver Que, rebelde, refaz a alegria e a mão, Sem receio de lutar e crescer. Meu sonho, meu coração. (p.105)

Voltamos a encontrar a poesia de Orlando da Costa ligada à música, anos mais tarde, durante a Revolução dos Cravos, e por iniciativa de Fernando Lopes-Graça que assinou a pauta para canto e piano do poema, “Soldado Raso”, incluída no 7º Caderno das Canções de Abril.

Soldado raso ao cimo da calçada em guarda de flor e farda a flor que te damos É pão amassado sem liberdade é gesto de guerra em nome da paz É flor de caução em terra mar e ar rubra flor popular num só cano de espingarda Soldado raso em sentido na memória lembra-te de novo e sempre A flor que te damos É da terra e do povo É pão de madrugada (pp.143-144)

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Qualquer análise à antologia, Canto Civil não pode deixar de ter em consideração o excelente prefácio “As Fronteiras e a Voz”, assinado por Maria Lúcia Lepecki, pelo contributo importante para a compreensão e explicação da poesia de Orlando da Costa. Num longo texto de uma dezena de páginas a autora faz a promoção da obra numa análise que começa por uma nota quase indireta a quem possa, à partida, prescindir da sua leitura pela simples condição de existir uma estrita afinidade das escolhas politico-ideológicas do escritor com o seu imaginário. Ultrapassada essa condição, que a bem da verdade foi citada porque o poeta também nunca escondeu que para ele, poesia e opção ideológica formavam uma unidade, as palavras de Maria Lúcia Lepecki, reforçam pela valorização esse encontro que resulta numa linha harmónica, plena de um virtuosismo literário que não subalterniza os valores estéticos à ideologia (cf.p.12). De facto, é curioso verificarmos como esta relação se manteve coesa e entre margens no processo de criatividade do escritor, embora nos pareça mais visível esta relação na poesia que em qualquer um dos outros géneros literários a que se dedicou. No momento de refletir sobre a publicação desta coletânea a preocupação de Orlando da Costa centrou-se sobretudo no distanciamento entre o que foi escrito e a atualidade pois, certamente, as leituras em diferentes momentos cronológicos levantam novas interrogações e considerações tanto a um autor como ao leitor. Refeitas as memórias pela releitura desta poesia, com data, como ele próprio lhe chamou, e tendo em consideração realidades sociais e políticas diferentes, o escritor entende como caminho coerente aquilo que deixa escrito e exposto. Falamos de caminho porque esta antologia é a exposição de etapas de uma vida, numa biografia partilhada sob a forma de um «calendário de amor, e luta e de esperança também» como regista o poeta na contracapa do livro.

Quando terminamos a leitura do livro ficamos convencidos que esta antologia tem um lugar merecido na literatura portuguesa. Apesar de existir uma distância entre as décadas a que datam os poemas e o tempo da nossa leitura a obra mantem a sua atualidade e o seu carater interventivo e universal. E isto acontece porque estes versos são, e ainda citando o autor no seu posfácio, «o eco de um tempo que ainda hoje nos afligirá». Muito provavelmente a maioria dos leitores, enquanto recetores, experimenta intensidades diferentes à receção dos temas, mas à circunstância de o leitor se sentir tocado por este mural do tempo em forma de verso, acresce uma sensação de encontro. Um encontro entre o sujeito lírico e o interlocutor graças a uma comunicação dialogal que se faz de um eu para um tu, ou por vezes um nós. 4

Pela sucessão de identificações que se estabelecem nessa comunicação, enunciada num discurso poético desenvolto, o leitor é levado a racionalizar sobre os problemas, os caminhos, as lutas e todo um conjunto de circunstâncias que fazem histórias de vidas e transformam a sociedade. Os versos transmitem acima de tudo uma vontade e uma necessidade de comprometimento e luta por um mundo mais fraterno. (…) Reparto contigo o dever De viver o tempo da revolta Reparto o secreto roteiro da madrugada que nos espera E ainda noite contigo parto Lado a lado sem escolta (p.106)

A tarefa de esboçar algumas linhas caracterizadoras da poesia de Orlando da Costa está facilita por alguns pontos antevistos no prefácio já citado de Maria Lúcia Lepecki, sobre o estilo e discurso poético, e que julgo bem sinalizados. De acordo com esse paratexto os poemas de Canto Civil apresentam um discurso consciente e consciencializador, valorizado pelo verbo poético, pela harmonia entre estética e ética e pela universalidade do canto. Servida por tudo isto chega-nos uma poesia militante, combativa, mas também de uma grande dimensão humana apesar de uma contida exposição íntima de sentimentos espontâneos e afetuosos, subvalorizados em relação à dependência entre sentimento coletivo e causa social ou politica, o que confere aos significados do texto um interesse interventivo. Como o discurso poético escapa de reduzir o texto ao óbvio pela capacidade de disfarçar na palavra, e no verso, um significado a ser extraído pela inteligência do leitor, este não perde a sua autonomia. Exibindo um estilo marcado por uma sensibilidade poética penetrante, regulado pela aproximação ao sentir dos dramas do homem e da sociedade, ao mesmo tempo, com um enlace de afetividade e inteligência, o verso penetra paulatinamente na racionalidade do leitor destabilizando a sua passividade. Leio nesses versos autenticidades, incisivas e penetrantes, que se misturam com o sentir e, por efeito, resulta o poeta conseguir anular no leitor a neutralidade. Logo se abre espaço para que a sua poesia se complete como estandarte na transformação.

Pelo corpo tombado Ergueremos sem cessar a nossa voz. E onde um dia ficou a morte Ficará a vida de todos nós! (p.114)

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No sentido de não perder de vista a exploração dos aspetos mais enriquecedores no conteúdo do prefácio a autora fez notar também o caracter pedagógico e cientifico deste livro, Canto Civil. A sua análise levou-a a afirmar que estamos diante de uma poesia pedagógica complexa e cheia de beleza porque ela expõe à inteligência do leitor, os problemas, caminhos e contradições para que sobre eles intua, reflita e escolha um novo rumo para o futuro. Para além desta face pedagógica dos poemas, o seu conteúdo e a sua ligação à realidade portuguesa acrescentam uma outra característica não menos importante, e a que Maria Lúcia Lepecki lhe apetece chamar de “ conteúdo científico” (cf. p.13). Desenham-se portanto dois aspetos muito importantes da poesia de Orlando da Costa, o carater pedagógico e o conteúdo científico, que podem proporcionar novas meditações muito para além dos momentos e das realidades fixadas nos versos. Vários poemas deste livro são a memória de lutas, de amor e de esperança que compõem, como ele escreveu na contracapa desta antologia, a sua biografia de vida mas, acrescentamos nós usando as suas palavras, são também o “eco de um tempo que ainda hoje nos afligirá” porque estes versos são, na sua grande maioria, uma comunhão de valores e estados de alma de outros homens, do antes e do depois de abril,

(…) tempo e lugar de lembrança tempo recanto de esperança sítio momento de esquecimento entre raiz e gesto de levantamento (…) (p. 152)

Outros traços mais visíveis contribuem para delinear o estilo do poeta como, por exemplo, o uso do pronome nós, em resultado da fusão entre o eu e o tu. Este processo metamórfico desperta uma unidade que não se estabelece só pela razão da comunicação através da palavra mas, também, pelo desejo de a transmitir em forma de energia física concreta. Apenas como exemplo recorremos a um dos poemas incluído no livro, A Estrada e a Voz onde está bem patente a simbologia das mãos como instrumento que cada individuo possui para fazer a construção do futuro, pelo trabalho e pela união Razão Porque as mãos se deram como mãos Um sol novo trepou pelos passos Para os ombros da multidão Porque as mãos se deram como mãos O sol fendeu troncos em ramos Como dedos de nova mão

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Porque as mãos se deram como mãos O sol juntou passos e estradas E bocas como bocas numa canção (p.45)

Por fim não quero deixar de fazer uma referência aos nomes citados nas dedicatórias por sabermos da sua importância e influencia na vida de Orlando da Costa como homem, como cidadão e como escritor. Em versos que vão da homenagem, à confissão e ao companheirismo ele seleciona a mensagem com espaço físico e psicológico coletivo para trazer à memória, e também à do leitor, Armindo Rodrigues, Adeodato Barreto, Amílcar Cabral, Paul Éluard, Pablo Neruda sem esquecer os familiares, entre outros. Muito mais fica por dizer sobre a poesia de Orlando da Costa, mas como o caminho para a divulgação da sua obra literária tem conhecido novas etapas, passará a ser mais frequente o folhear da sua obra literária.

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