Uma análise da Súmula Vinculante n. 13 na Administração Pública a partir da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: limites e possibilidades de sua aplicabilidade para a nomeação de cargo político

May 20, 2017 | Autor: Cynthia Juruena | Categoria: Jurisprudence, Administração Pública, Súmulas Vinculantes
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TEMAS POLÊMICOS DA JURISDIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL: MATÉRIA DE CORRUPÇÃO E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – ESTUDO DE CASOS

TEMAS POLÊMICOS DA JURISDIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL: MATÉRIA DE CORRUPÇÃO E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – ESTUDO DE CASOS VOLUME II

VOL. II

ORGANIZADORES: DES. ROGÉRIO GESTA LEAL | PROFA. DRA. CAROLINE MÜLLER BITENCOURT ARISTIDES PEDROSO DE ALBUQUERQUE NETO | AUGUSTO CARLOS DE MENEZES BEBER | BRENDA CATOI | BRUNA HENRIQUE HÜBNER | CARLA LUANA DA SILVA | CAROLINE MÜLLER BITENCOURT | CYNTHIA JURUENA | DENISE BITTENCOURT FRIEDRICH | EDUARDA SIMONETTI PASE | IANAIÊ SIMONELLI DA SILVA | JANRIÊ RECK | JAYME WEINGARTNER NETO | JOÃO BATISTA MARQUES TOVO | JONATHAN AUGUSTUS KELLERMANN KAERCHER | JULIANA MACHADO FRAGA | LEONEL PIRES OHLWEILER | LUIZ EGON RICHTER | LUIZ FELIPE NUNES | MÁRCIA SILVEIRA MOREIRA | MAURO BORBA | NEWTON BRASIL DE LEÃO | PAULO JOSÉ DHIEL | RAMÔNIA SCHMIDT | RICARDO HERMANY | ROGÉRIO GESTA LEAL | SÉRGIO LUIZ GRASSI BECK

Organizadores Des. Rogério Gesta Leal Profa. Dra. Caroline Müller Bitencourt

TEMAS POLÊMICOS DA JURISDIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL: MATÉRIA DE CORRUPÇÃO E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – ESTUDO DE CASOS VOLUME II

Porto Alegre Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul 2016

EXPEDIENTE Organizadores Des. Rogério Gesta Leal Profa. Dra. Caroline Müller Bitencourt Capa Marcelo Oliveira Ames Projeto Gráfico, Diagramação, Impressão e Acabamento Departamento de Artes Gráficas do TJRS ISBN 978-85-89676-19-9 (impresso) ISBN 978-85-89676-18-2 (e-book) Tiragem 2.000 exemplares    7HPDVSROrPLFRVGDMXULVGLomRGR7ULEXQDOGH-XVWLoDGR5LR*UDQGHGR 6XOPDWpULDGHFRUUXSomRHLPSURELGDGHDGPLQLVWUDWLYDHVWXGRGH FDVRV2UJDQL]DGRUHV5RJpULR*HVWD/HDOH&DUROLQH0OOHU %LWHQFRXUW±3RUWR$OHJUH7ULEXQDOGH-XVWLoDGR(VWDGRGR5LR *UDQGHGR6XO'HSDUWDPHQWRGH$UWHV*UiILFDV Y  ,6%1 LPSUHVVR  ,6%1 HERRN   7ULEXQDOGH-XVWLoD5LR*UDQGHGR6XO-XULVSUXGrQFLD &RPHQWiULR,PSURELGDGHDGPLQLVWUDWLYD-XULVSUXGrQFLD&RPHQWiULR &RQWUDWDomRS~EOLFD-XULVSUXGrQFLD&RPHQWiULR&RUUXSomR -XULVSUXGrQFLD&RPHQWiULR$GPLQLVWUDomR3~EOLFD-XULVSUXGrQFLD &RPHQWiULR,QYHVWLJDomRFULPLQDO-XULVSUXGrQFLD&RPHQWiULR 5HVSRQVDELOLGDGH3HQDO-XULVSUXGrQFLD&RPHQWiULR&ULPHFRQWUD D$GPLQLVWUDomR3~EOLFD-XULVSUXGrQFLD&RPHQWiULR,/HDO5RJpULR *HVWD,,%LWHQFRXUW&DUROLQH0OOHU,,,$OEXTXHUTXH1HWR$ULVWLGHV 3HGURVR,9%HEHU$XJXVWR&DUORVGH0HQH]HV9&DWRL%UHQGD 9,+EQHU%UXQD+HQULTXH9,,6LOYD&DUOD/XDQDGD9,,,-XUXHQD &\QWKLD*UXHQGOLQJ,;)ULHGULFK'HQLVH%LWWHQFRXUW;3DVH(GXDUGD 6LPRQHWWL;,6LOYD,DQDLr6LPRQHOOLGD;,,5HFN-DQULr5RGULJXHV;,,, :HLQJDUWQHU1HWR-D\PH;,97RYR-RmR%DWLVWD0DUTXHV;9 .DHUFKHU-RQDWKDQ$XJXVWXV.HOOHUPDQQ;9,)UDJD-XOLDQD0DFKDGR ;9,,2KOZHLOHU/HRQHO3LUHV;9,,,5LFKWHU/XL](JRQ;,;1XQHV/XL] )HOLSH;;0RUHLUD0iUFLD6LOYHLUD;;,%RUED0DXUR;;,,/HmR 1HZWRQ%UDVLOGH;;,,,'KLHO3DXOR-RVp;;,96FKPLGW5DP{QLD ;;9+HUPDQ\5LFDUGR;;9,%HFN6pUJLR/XL]*UDVVL   &'8      &DWDORJDomRQDIRQWHHODERUDGDSHOR'HSDUWDPHQWRGH%LEOLRWHFDHGH-XULVSUXGrQFLDGR7-56

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL ADMINISTRAÇÃO 2016-2017

Des. LUIZ FELIPE SILVEIRA DIFINI – Presidente Des. CARLOS EDUARDO ZIETLOW DURO– 1º Vice-Presidente Desa. MARIA ISABEL DE AZEVEDO SOUZA – 2ª Vice-Presidente Des. PAULO ROBERTO LESSA FRANZ – 3º Vice-Presidente Desa. IRIS HELENA MEDEIROS NOGUEIRA – Corregedora-Geral da Justiça

SUMÁRIO MENSAGEM INSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL ...............................................................................................................................7 MENSAGEM INSTITUCIONAL DA UNISC ........................................................... 9 APRESENTAÇÃO DO CENTRO DE ESTUDOS ................................................... 11 APRESENTAÇÃO DO DES. ROGÉRIO GESTA LEAL E PROFA. DRA. CAROLINE MÜLLER BITENCOURT ................................................................... 13 1 O desvio de rendas públicas para proveito de Prefeito Municipal e sua criminalização na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Aristides Pedroso de Albuquerque Neto...................................................................................... 17 2 Locação de imóvel com fraude à licitação e responsabilidade criminal do Prefeito Municipal – Newton Brasil de Leão ........................................................................... 31 3 Desvio de verba pública em diárias para vereadores como crime contra a Administração Pública: um estudo de caso – Rogério Gesta Leal ....................................................... 51 4 A contratação ilícita de servidor público (cunhada do Prefeito) como fato caracterizador de improbidade administrativa: um estudo de caso – Sérgio Luiz Grassi Beck.............. 65 5 Breves reflexões acerca da “perícia diversa” a partir de um estudo de caso: o que é, qual sua possibilidade e limites – João Batista Marques Tovo ...................................... 83 6 O dever de boa Administração Pública e as despesas no final do mandato: perspectivas hermenêuticas da improbidade fiscal – Leonel Pires Ohlweiler .................................... 99 7 Controle penal da corrupção – dispensa ou inexigibilidade de licitação, com apropriação ou desvio de rendas públicas – estudo de caso – Mauro Borba .................................. 127 8 Tráfico de drogas e meios ocultos de investigação: apontamentos iniciais – Jayme Weingartner Neto ................................................................................................... 159 9 A possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas: um estudo da Súmula n. 347 do STF e a posição do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – Caroline Müller Bitencourt e Janriê Rodrigues Reck ........................................ 175 10 Condições e possibilidades de cumulação das sanções parlamentares em face das estabelecidas pela Lei de Improbidade Administrativa e o seu tratamento na jurisprudência do Poder Judiciário Brasileiro – Eduarda Simonetti Pase ............................................ 197

11 Um estudo de caso da Ação Popular n. 70056129380 contra o município de Viamão: o controle social da tarifa dos transportes públicos – Augusto Carlos de Menezes Beber ...... 229 12 Uma análise da Súmula Vinculante n. 13 na Administração Pública a partir da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: limites e possibilidades de sua aplicabilidade para a nomeação de cargo político – Cynthia Gruendling Juruena e Ricardo Hermany .................................................................... 247 13 Antigovernabilidade e corrupção na esfera municipal: a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul envolvendo casos de repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares – Luiz Felipe Nunes e Ianaiê Simonelli da Silva ... 269 14 É possível a utilização do rito processual da ação civil pública para aplicar a lei de improbidade administrativa? Um estudo da postura do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul comparado ao Superior Tribunal de Justiça – Juliana Machado Fraga e Paulo José Dhiel...........................................................................................291 15 Os atos culposos de improbidade administrativa à luz do direito fundamental à Boa Administração Pública – Luiz Egon Richter e Augusto Carlos de Menezes Beber .............309 16 O silêncio da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul frente aos princípios consagrados no art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa – Denise Bittencourt Friedrich e Márcia Silveira Moreira ..................................................329 17 A aplicação da responsabilidade penal da pessoa jurídica pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Brenda Catoi e Bruna Henrique Hübner ......................345 18 A Lei Anticorrupção e a criação do cadastro de empresas punidas: a imagem empresarial frente à moral pública – Rogério Gesta Leal e Ramônia Schmidt ...............361 19 Um estudo de caso da Ação Popular n. 70032484198 contra a Câmara Municipal de Vereadores de Pelotas: o controle social em face da prática do nepotismo – Jonathan Augustos Kellermann Kaercher e Carla Luana da Silva ................................................381

MENSAGEM INSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL

Inicialmente, na qualidade de Presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, parabenizo a todos os organizadores e pesquisadores dos trabalhos apresentados na presente obra, a qual se mostra alinhada ao momento político-jurídico em que nos encontramos como sociedade civil. O tema corrupção e improbidade administrativa constitui árduo e delicado assunto, não apenas na seara acadêmica, mas especialmente no âmbito jurisprudencial. Exatamente por essa razão tem-se por relevante o trabalho desenvolvido pelos pesquisadores, visto que não só amplia o conhecimento dos demais operadores do direito acerca da matéria, como expõe ao cidadão e ao administrador o entendimento e o alcance do conjunto normativo referente à Administração Pública. Nessa perspectiva, não se pode olvidar que a divulgação do estudo de precedentes de nossa Corte Estadual de Justiça prestigia o trabalho de todos nós magistrados, na busca do pleno exercício de nossa função institucional que nada mais é a de prestar uma jurisdição efetiva e colaborativa à manutenção do Estado Democrático de Direito. Nossa Lei Maior menciona dentre os princípios basilares da Administração Pública a probidade, e a jurisprudência tem importante, senão imprescindível, papel à sua perfectibilização; quer como meio de reprimenda aos atos ímprobos, quer como balizadora à atividade do administrador.

Por tudo isso, honra-me, como representante do Poder Judiciário gaúcho, compartilhar do desenvolvimento e apresentação do presente livro, desejando sucesso a todos que colaboraram neste trabalho que certamente será útil aos operadores do direito.

Des. Luiz Felipe Silveira Difini, Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

MENSAGEM INSTITUCIONAL DA UNISC – VICE-REITOR

A Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, em vista de sua missão e com a aspiração de responder de forma criativa e dinâmica às transformações do contexto social e cultivando valores como a ética, a cidadania, o humanismo, a democracia, a criticidade, a solidariedade e a cooperação, incentiva, desde sua origem, o desenvolvimento da pesquisa, objetivando produzir, sistematizar e socializar conhecimentos que conduzam ao desenvolvimento de uma sociedade sustentável e justa. E, nesse contexto, a UNISC desenvolve um conjunto de linhas de pesquisa, agregando pesquisadores em torno de temas comuns, bem como estabelecendo cooperações de caráter científico, cultural e profissional com outras instituições. Em especial, o Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado destaca-se pela intensa produção por seus diversos grupos de pesquisa, resultado de qualificado estudo e forte interação com instituições nacionais e internacionais. Na área de concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas do Mestrado e Doutorado em Direito da UNISC, destacamos o grupo de estudos que vem pesquisando o tema Patologias Corruptivas no Estado, Administração Pública e Sociedade, estudo que vem sendo desenvolvido por docentes e discentes do mencionado programa de pós-graduação e em parceria com outros pesquisadores, tema cuja atualidade e oportunidade dispensa maiores explicações. Temos a satisfação de apresentar à comunidade acadêmica e jurídica um dos frutos dessa pesquisa, resultante da parceria com o Centro de Estudos do Poder Judiciário, que é o segundo volume do livro Temas Polêmicos da Jurisdição do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: matéria de corrupção e improbidade administrativa – estudo de casos.

Com a certeza de que esta publicação aproxima ainda mais as duas Instituições e permite que se colham resultados concretos no avanço do conhecimento, temos a convicção de que sua leitura trará luzes sobre a complexidade dos temas tratados nesta obra.

Professor Eltor Breunig, Vice-Reitor da UNISC.

APRESENTAÇÃO DO CENTRO DE ESTUDOS

Com renovada alegria, apresentamos agora o segundo volume desta publicação atual e importante sobre temas polêmicos da jurisdição, resultante da junção de esforços entre a Universidade de Santa Cruz do Sul e o Centro de Estudos do TJRS. O sucesso do primeiro volume confirma a importância da reflexão acerca da temática da corrupção e da improbidade administrativa, questões atuais e de grande repercussão nas mais diversas áreas do conhecimento. O estudo acerca do tema da corrupção é imperativo no momento político e social que atravessamos, sendo o fortalecimento das instituições, por meio da ampliação do conhecimento e da transparência, uma boa parte do grande caminho a ser percorrido no árduo combate à corrupção tão almejado por toda a sociedade. Esta obra apresenta de forma crítica a visão do Poder Judiciário sobre esse fenômeno polêmico e enraizado na sociedade moderna, revelando a necessidade de meditar não apenas a respeito das soluções a adotar no aspecto punitivo, mas também na busca de práticas que se revelem preventivas no âmbito da Administração Pública. Enquanto a corrupção rompe com os padrões morais e éticos, tornando a cada dia mais distante a concretização dos direitos mais básicos dos cidadãos, a atuação do Poder Judiciário visa a recompor o equilíbrio social perdido. Dentro desse contexto, a reflexão crítica das decisões, como a abordagem constante no presente trabalho, possibilita a busca por uma melhor prestação jurisdicional, ampliando o conhecimento e abrindo caminhos para novas teses e entendimentos. Além de dar prestígio à atividade jurisdicional, este trabalho expõe de forma clara o alcance prático das normas legais acerca da matéria, dando vida às

teses conhecidas pelos operadores do direito e cuja concretização é ansiada pelos administrados e administradores públicos comprometidos com a missão que lhes foi confiada. Tratando de tema bastante delicado e atual, esta publicação traz uma pequena amostra dos grandes desafios enfrentados diariamente pelo Poder Judiciário na busca pelo efetivo Estado Democrático de Direito, sendo a divulgação deste trabalho uma grande satisfação por sua qualidade e importância.

Desembargador Ney Wiedemann Neto Coordenador-Geral do Centro de Estudos do TJRS

APRESENTAÇÃO DO DES. ROGÉRIO GESTA LEAL E DA PROFA. DRA. CAROLINE MÜLLER BITENCOURT

O presente livro Temas Polêmicos da Jurisdição do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: matéria de corrupção e improbidade administrativa – estudo de casos, volume II, é fruto de intensos estudos e debates promovidos pelo grupo de estudos Patologias Corruptivas no Estado, Administração Pública e Sociedade, coordenado pelo Professor Doutor Rogério Gesta Leal, desenvolvendo suas atividades junto ao Mestrado e Doutorado em Direito, com área de concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas na Universidade de Santa Cruz do Sul. O segundo volume dessa parceria entre Universidade de Santa Cruz do Sul e o Centro de Estudos do Poder Judiciário permitiu ampliar as reflexões sobre a temática da corrupção, continuando a analisar criticamente a jurisprudência em matéria de improbidade administrativa e corrupção. A temática selecionada tem sido palco de intensos debates nas mais diversas áreas do conhecimento, perfazendo temas como o dever de boa administração pública, a ética pública, a cidadania e o controle da administração pública. Há muito se sabe que a temática da corrupção necessita por sua complexidade e constante mutabilidade um olhar mais interdisciplinar por parte dos juristas. Optou-se nesse segundo volume da obra pela divisão do livro em quatro momentos, sendo que as contribuições foram orquestradas conforme a linha de enfrentamento: a) controle social e parlamentar da corrupção; b) improbidade administrativa; c) governança e governabilidade; e d) controle penal e administrativo na Lei Anticorrupção. Assim como no primeiro volume, optou-se por uma orientação metodológica para redação dos referidos artigos, sendo de fundamental importância para situar o leitor.

A identificação da metodologia utilizada permitirá percorrer de forma mais segura os caminhos selecionados enquanto objeto de pesquisa, isto, pois, não há como lançar-se na tarefa hercúlea de buscar um significado uníssono na jurisprudência acerca dos conceitos-chaves nos quais se debruçará essa pesquisa. Quiçá se ventila a possibilidade de tirar resposta derradeira de como os tribunais decidem sobre essa matéria, pois qualquer conclusão poderia mostrar-se arbitrária. Levanta-se tal questão porque não é segredo que os tribunais decidem sem que haja fidelidade aos pactos semânticos firmados por meio de conceitos, permitindo que muitas vezes um mesmo termo, como, por exemplo, moralidade, assuma uma gama de significações. Também é sabido que nem todas as decisões dos nossos tribunais encontram-se disponíveis para pesquisa em seus sistemas virtuais; logo, a única conclusão possível será obtida a partir da extração de dados estatísticos das jurisprudências disponíveis, podendo ainda existir uma série de decisões em contrário aos resultados obtidos, capazes, inclusive, de alterá-los (não disponibilizadas para pesquisa). Enfim, sabe-se que a única “segurança” acerca dos dados coletados e analisados está situada no campo da metodologia de pesquisa a qual o trabalho adere, significando dizer que o leitor/pesquisador, ao utilizar tal metodologia para investigar o tema que se propõe, obterá os mesmos resultados. Logo, de acordo com a metodologia utilizada, a única conclusão possível é: utilizando-se da metodologia X podemos dizer que o tribunal Y pensa assim sobre a matéria Z em contratação pública. Por tal motivo, especialmente os artigos da segunda sessão, ao início, farão uma breve descrição dos seus passos para obter os resultados das pesquisas e julgados. Como já foi anunciada na introdução do texto, a metodologia de abordagem é a do caso concreto, sendo que, nos primeiros tópicos desse artigo, desforços serão direcionados para reconstruir algumas categorias que nos permitiram formar um pacto semântico capaz de guiar-nos na pesquisa jurisprudencial. A rigor, o acordo semântico aqui firmado sobre a corrupção mostrou-se muito mais abrangente do que a categoria penal encontrada na legislação, em sua modalidade passiva e ativa, na medida em que a corrupção, enquanto um fenômeno multifacetado, não pode estar desconectada das suas observações, segundo o direito administrativo e mesmo o direito civilista da responsabilidade civil. Sendo assim, o conceito abrangente entende que o critério de definição da corrupção se dá não apenas na intenção do agente administrativo causador do dano, mas, sim, pensando-se na consequência final que resulta prejuízo ao interesse público; logo,

agregam-se ao conceito de corrupção atos de imoralidade, improbidade, mesmo em modalidades ditas como culposas. Importa ainda referir que, ao se propor realizar um estudo de caso, tanto os operadores do direito quanto os gestores judiciais devem estar dispostos a enfrentá-lo em três momentos que são distintos, mas que ao mesmo tempo são complementares entre si: descritivo, analítico e prospectivo. No primeiro momento, o descritivo, os esforços voltam-se aos elementos de identificação, qualificação e contextualização do caso, em que, a fim de destacá-lo de seu contexto, irá elucidar-se o máximo de informações fáticas acerca dele; diagnosticar e aprofundar para uma melhor análise os elementos quantitativos e qualitativos; permear com elementos que o ligam ao conjunto da realidade social, a partir da identificação dos agentes envolvidos, os meios e os resultados que se relacionam. No segundo momento, o analítico, buscar-se-á a “demarcação dos fatores, variáveis, agentes que participam deste caso, bem como suas implicações múltiplas (econômicas, políticas, ideológicas, culturais, religiosas, etc.), além do enquadramento normativo matriz”. Sendo assim, acontecerá um aprofundamento dos atores (pessoas) envolvidos e seus respectivos contextos para um estudo de gestão, da análise da infraestrutura física, orçamentária, logística, de informação e equipamentos, das rotinas e procedimentos usados; a abordagem acerca de que medida os meios existentes no caso são aptos aos fins que estão postos em termos de gestão e mesmo de conflito interpessoal; e, por fim, o levantamento de forma sistêmica e também crítica de todos os elementos dogmático-positivos (aqui se entenda tudo que compõe a esfera do ordenamento, desde seus princípios até mesmo a jurisprudência) dos temas/problemas propostos. Para então, no último momento, o prospectivo, “em que se vai definir quais os cenários de enfrentamento do caso que estão presentes na espécie, possibilidades de ação (jurídica, política, social, cultural, etc.), e tarefas a realizar – individuais ou coletivas”, por meio do enfrentamento dos cenários fáticos e normativos (em todas as suas espécies), considerando-se todos os seus efeitos jurídicos, sociais, econômicos, políticos, culturais e outros; o levantamento das possibilidades de enfrentamento para realocar as perspectivas dos envolvidos fomentando as possibilidades de escolha; e, por fim, o acompanhamento por intermédio de tarefas preordenadas a fim de orientar a ação concreta. Nossa limitação espacial refere-se à jurisprudência brasileira, sendo que, em um primeiro momento, optou-se pela seleção dos julgados junto ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sendo o período da pesquisa anunciado nos referidos artigos.

Em momento em que a sociedade brasileira clama por uma administração mais ética e por gestões voltadas a combater e controlar o fenômeno corruptivo que tanto usurpa e inviabiliza a concretização de direitos fundamentais, esta obra pretende trazer uma reflexão crítica de casos enfrentados cotidianamente em nossos tribunais, a fim de avançarmos no enfrentamento da corrupção, em suas formas preventivas e repressivas. Parece-nos que sempre a reflexão crítica deve ser o primeiro passo. Pensar para avançar, eis nosso propósito.

Professor Doutor Rogério Gesta Leal Professora Doutora Caroline Müller Bitencourt Organizadores

O DESVIO DE RENDAS PÚBLICAS PARA PROVEITO DE PREFEITO MUNICIPAL E SUA CRIMINALIZAÇÃO NA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL Aristides Pedroso de Albuquerque Neto Ação Penal – Procedimento Ordinário n. 70059891887 (N. CNJ: 018175122.2014.8.21.7000) – 4ª Câmara Criminal – Comarca de Feliz Ementa: PROCESSO-CRIME. PREFEITO E VICE-PREFEITO. ART. 1º, INCISO I, DECRETO-LEI N. 201/67. Desvio de rendas públicas em proveito próprio. Solicitação, autorização e recebimento de diárias para participação de viagens estritamente de lazer, desprovidas de caráter oficial ou interesse público. Ação penal julgada parcialmente procedente. Unânime. Partes: Ministério Público, autor – Mauricio Kunrath e Jose Paulo Bohn, denunciados. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos. Acordam os Magistrados integrantes da Quarta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, julgar parcialmente procedente a ação penal para condenar o denunciado Maurício Kunrath por incurso no art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67 (cinco vezes), e art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67 c/c art. 29, caput, do Código Penal (uma vez), na forma do art. 71 do Código Penal,

Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

à pena de 03 anos de reclusão; e o denunciado José Paulo Bohn por incurso no art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67, c/c art. 29, caput, do Código Penal (uma vez), à pena de 02 anos de reclusão, ambos em regime inicial aberto; substituídas as penas privativas de liberdade de cada um deles por prestação de serviços à comunidade pelo prazo da pena aplicada e prestação pecuniária no valor de três salários mínimos para Maurício Kunrath e um salário mínimo para José Paulo Bohn. Determinar, ainda, após o trânsito em julgado, a perda do cargo e a inabilitação pelo prazo de 05 anos para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, para ambos, nos termos do disposto no § 2º do art. 1º do Decreto-Lei n. 201/67. Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), os eminentes Senhores DES. JULIO CESAR FINGER E DR. MAURO BORBA. Porto Alegre, 21 de julho de 2016. Des. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, Presidente e Relator. RELATÓRIO Des. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto (Relator) – O Ministério Público denunciou MAURÍCIO KUNRATH, por incurso nas sanções do art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67 (cinco vezes), e art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67, c/c art. 29, caput, do Código Penal (uma vez), tudo na forma do art. 69, caput, do Código Penal, e JOSÉ PAULO BOHN incorreu nas sanções do art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67, c/c art. 29, caput, do Código Penal (uma vez), pela prática dos seguintes fatos delituosos: 1. Em 17 de março de 2009, no Município de Alto Feliz/RS, o denunciado MAURÍCIO KUNRATH, no exercício do cargo de Prefeito Municipal e na condição de ordenador de despesas, desviou rendas públicas em proveito próprio, ao solicitar, autorizar e receber do Município o valor de R$ 178,36 (cento e setenta e oito reais e trinta e seis centavos), a título de diárias, para participar de viagem estritamente de lazer, acompanhando a Associação Alegria de Viver/Grupo de Terceira Idade em excursão realizada sem qualquer caráter oficial ou interesse público. Na oportunidade, o Prefeito denunciado, a pretexto de participar de evento social promovido pela entidade em Balneário Curumim, Capão da Canoa, nos dias 11, 12 e 13 de março de 2009, sob a justificativa de que o acompanhamento das entidades locais em eventos fazia parte das funções administrativas e políticas dos gestores públicos, solicitou, autorizou e recebeu diárias do Município de Alto Feliz, no valor total de R$ 178,36 (fls. 161/161 v). 18

O desvio de rendas públicas para proveito de Prefeito Municipal e sua criminalização na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

2. Em 05 de março de 2010, no Município de Alto Feliz/RS, o denunciado MAURÍCIO KUNRATH, no exercício do cargo de Prefeito Municipal e na condição de ordenador de despesas, desviou rendas públicas em proveito próprio, ao solicitar, autorizar e receber do Município o valor de R$ 268,24 (duzentos e sessenta e oito reais e vinte e quatro centavos), a título de diárias, para participar de viagem estritamente de lazer, acompanhando a Associação Alegria de Viver/Grupo de Terceira Idade em excursão realizada sem qualquer caráter oficial ou interesse público. Na oportunidade, o Prefeito denunciado, a pretexto de participar de evento social promovido pela entidade em Balneário Curumim, Capão da Canoa, nos dias 08 e 09 de fevereiro de 2010, sob a justificativa de que o acompanhamento das entidades locais em eventos fazia parte das funções administrativas e políticas dos gestores públicos, solicitou, autorizou e recebeu diárias do Município de Alto Feliz, no valor total de R$ 268,24 (fls. 160/160v). 3. Em 22 de março de 2011, no Município de Alto Feliz/RS, os denunciados MAURÍCIO KUNRATH, no exercício do cargo de Prefeito Municipal e na condição de ordenador de despesas, e JOSÉ PAULO BOHN, Vice-Prefeito Municipal, em conjugação de esforços e comunhão de vontades, desviaram rendas públicas em proveito próprio, ao solicitarem, autorizarem e receberem do Município, cada um, o valor de R$ 531,00 (quinhentos e trinta e um reais), a título de diárias, para participarem de viagem estritamente de lazer, acompanhando a Associação Alegria de Viver/Grupo de Terceira Idade em excursão realizada sem qualquer caráter oficial ou interesse público. Na oportunidade, os denunciados, a pretexto de participarem de evento social promovido pela entidade em Arroio do Sal, nos dias 22, 23 e 24 de março de 2011, sob a justificativa de que o acompanhamento das entidades locais em eventos fazia parte das funções administrativas e políticas dos gestores públicos, solicitaram, autorizaram e receberam diárias do Município de Alto Feliz, no valor total de R$ 531,00 cada um (fls. 155v/156 e 158/158v). 4. Em 24 de fevereiro de 2012, no Município de Alto Feliz/RS, o denunciado MAURÍCIO KUNRATH, no exercício do cargo de Prefeito Municipal e na condição de ordenador de despesas, desviou rendas públicas em proveito próprio, ao solicitar, autorizar e receber do Município o valor de R$ 3.004,80 (três mil e quatro reais e oitenta centavos), a título de diárias, para participar de viagem estritamente de lazer, acompanhando o Clube de Mães Rainha do Lar em excursão realizada sem qualquer caráter oficial ou interesse público. 19

Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

Na oportunidade, o Prefeito denunciado, a pretexto de participar de evento social promovido pela entidade em Gravatal, Santa Catarina, nos dias 02, 03 e 04 de março de 2012, sob a justificativa de que o acompanhamento das entidades locais em eventos fazia parte das funções administrativas e políticas dos gestores públicos, solicitou, autorizou e recebeu diárias do Município de Alto Feliz, no valor total de R$ 3.004,80 (fls. 137/137v). 5. Em 08 de março de 2012, no Município de Alto Feliz/RS, o denunciado MAURÍCIO KUNRATH, no exercício do cargo de Prefeito Municipal e na condição de ordenador de despesas, desviou rendas públicas em proveito próprio, ao solicitar, autorizar e receber do Município o valor de R$ 471,90 (quatrocentos e setenta e um reais e noventa centavos), a título de diárias, para participar de viagem estritamente de lazer, acompanhando a Associação Alegria de Viver/Grupo de Terceira Idade em excursão realizada sem qualquer caráter oficial ou interesse público. Na oportunidade, o Prefeito denunciado, a pretexto de participar de evento social promovido pela entidade em Balneário Curumim, Capão da Canoa, nos dias 09, 10 e 11 de março de 2012 sob a justificativa de que o acompanhamento das entidades locais em eventos fazia parte das funções administrativas e políticas dos gestores públicos, solicitou, autorizou e recebeu março de 2012, sob a justificativa de que o acompanhamento das entidades locais em eventos fazia parte das funções administrativas e políticas dos gestores públicos, solicitou, autorizou e recebeu diárias do Município de Alto Feliz, no valor total de R$471,90(fls.131/132). 6. Em 27 de fevereiro de 2013, no Município de Alto Feliz/RS, o denunciado MAURÍCIO KUNRATH, no exercício do cargo de Prefeito Municipal e na condição de ordenador de despesas, desviou rendas públicas em proveito próprio, ao solicitar, autorizar e receber do Município o valor de R$ 201,90 (duzentos e um reais e noventa centavos), a título de diárias, para participar de viagem estritamente de lazer, acompanhando a Associação Alegria de Viver/Grupo de Terceira Idade em excursão realizada sem qualquer caráter oficial ou interesse público. Na oportunidade, o Prefeito denunciado, a pretexto de participar de evento social promovido pela entidade em Balneário Curumim, Capão da Canoa, no dia 23 de fevereiro de 2013, sob a justificativa de que o acompanhamento das entidades locais em eventos fazia parte das funções administrativas e políticas dos gestores públicos, solicitou, autorizou e recebeu diárias do Município de Alto Feliz, no valor total de R$ 201,90 (fls.151-v). Desta forma, houve lesão ao erário público, pois em todas estas ocasiões os eventos promovidos pelas respectivas entidades privadas tinham caráter exclusivamente de 20

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lazer e turismo, destinados à confraternização de integrantes de grupos de mães e idosos, sem nenhuma relação com os cargos públicos exercidos pelos denunciados e sem nenhuma finalidade pertinente ao interesse público. Mesmo sabendo disso, o Prefeito e Vice-Prefeito denunciados solicitaram, autorizaram e receberam diárias para acompanharem os eventos. Por fim, consigna-se que em razão de tais fatos a Promotoria de Justiça de Feliz ingressou com ação civil pública por ato de improbidade administrativa contra os denunciados (fls. 34/49), a qual tramita naquela Comarca, sob o n° 146/1.13.0000505-9. Devidamente notificados (fl. 219), os denunciados MAURÍCIO KUNRATH e JOSÉ PAULO BOHN apresentaram resposta escrita (fls. 236/252). Após manifestação do Ministério Público (fls. 260/265v), a denúncia foi recebida, à unanimidade, por esta Quarta Câmara Criminal, em 16.10.2014 (fls. 272/276v). Apresentada defesa prévia (fls. 284/285), as testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa foram inquiridas (fls. 326/330, 330v/334, 334v/338, 338v/342, 342v/344v). Os réus foram interrogados (fls. 345/350). No prazo do art. 10 da Lei n. 8.038/90 o Ministério Público requereu a juntada da sentença de parcial procedência, proferida nos autos da ação civil pública de responsabilidade pela prática de ato de improbidade administrativa, cumulada com reparação do dano causado ao erário, movida contra os acusados sobre os mesmos fatos narrados no presente feito (fls. 384/388v). A defesa nada requereu (fl. 393). No prazo do art. 11 da Lei n. 8.038/90 o Ministério Público ofereceu alegações escritas. Refere que os réus admitiram o recebimento de diárias, justificando que acompanhavam o grupo da Terceira Idade e o Clube de Mães, como representantes do Município. Enfatiza a ausência de finalidade pública dos eventos, sempre realizados por entidades privadas em prol de seus membros. Afirma que ambos os acusados usufruíram diárias custeadas pelo erário para participar de eventos estritamente de lazer, sem qualquer caráter oficial ou interesse público. Assevera que as condutas dos acusados subsumem-se ao tipo penal descrito no art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67, na medida em que, valendo-se dos respectivos cargos que ocupavam, beneficiavam-se indevidamente com diárias de viagens realizadas com nítido desvio de finalidade. Por fim, requer seja julgada procedente 21

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a ação penal, condenando-se os réus Maurício Kunrath e José Paulo Bohn, nos termos da denúncia (fls. 395/409v). A defesa dos acusados Maurício Kunrath e José Paulo Bohn sustenta, em síntese, que o pagamento de diárias é algo habitual no serviço público, havendo regramento específico em cada esfera da Administração. Refere que os réus foram convidados pela sociedade civil organizada a acompanhar parte da população municipal em atividades. Ressalta que o Município de Alto Feliz, um dos menores do Estado, emancipado em 1992, possui como característica a ação direta dos membros políticos nas atividades de entidades associativas. Alega inexistência de dolo, má-fé, prejuízo erário ou mesmo vantagem indevida dos réus em relação aos fatos a eles imputados. Afirma não haver prova de dano ao erário. Relata que, inobstante as perguntas tendenciosas e até mesmo irônicas do Magistrado, as testemunhas foram uníssonas em demonstrar a importância da presença dos gestores nos eventos. Alega que os réus incorreram em erro de tipo e requer a absolvição de Maurício Kunrath e José Paulo Bohn, nos termos do art. 386, incs. III ou VII, do Código de Processo Penal. Subsidiariamente, a fixação da pena no mínimo legal, tendo em conta que ambos os acusados são primários. É o relatório. VOTOS Des. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto (Relator) – De acordo com a inicial, os denunciados MAURÍCIO KUNRATH e JOSÉ PAULO BOHN, respectivamente Prefeito e Vice-Prefeito do Município de Alto Feliz, nos quadriênios de 2009/2012 e 2013/2016, em conjunção de esforços e comunhão de vontades, teriam desviado rendas públicas em proveito próprio ao solicitarem, autorizarem e receberem do Município diárias para participarem de viagens com fins de turismo e lazer, com dinheiro público. A materialidade está demonstrada pelos documentos de fls. 139/140v, 145/145v, 160v, 164v/165, 167/167v, 170/170v e demais elementos coligidos ao feito. A autoria é certa. Interrogado, José Paulo Bohn confirma que recebeu diárias no valor de R$ 531,00 para dar incentivo à Associação Alegria de Viver/Grupo da Terceira Idade, com o transporte, local, psicólogo, assistente social. Disse que, como Secretário da Fazenda na época, ordenava o pagamento de diárias (fls. 345/346v). Maurício Kunrath relata que participava das atividades de lazer das entidades, e que a Prefeitura, além de convidada, fazia contribuições a esses 22

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grupos. Disse que, antes de participar dos eventos, consultou a assessoria jurídica do município, tendo sido informado através de parecer jurídico que não havia problema. Em relação às notas fiscais suspeitas de fraude, alega que não poderia ser responsabilizado, por tratar de um erro do Hotel Galo. Refere que em Curumim dormiu na casa de suas filhas e de sua ex-esposa (fls. 347/350). Os denunciados afirmam que eram convidados a participar dos eventos e que havia um parecer jurídico amparando suas condutas. Não é o que se depreende dos autos. Os relatos das testemunhas são uníssonos no sentido de que não havia finalidade pública nos eventos realizados por entidades privadas em prol de seus associados. O referido parecer jurídico sequer foi anexado aos autos. Não há dúvida de que ao Administrador Público é conferido o poder discricionário para concessão de diárias. Isso não significa, contudo, que o ato administrativo não precisa ser motivado. O pagamento de diárias, como previsto na Lei Municipal n. 759/2009, é devido às autoridades que estiverem no desempenho de suas funções. É o que se depreende do art. 1º, que estabelece: Ao Prefeito e ao Vice-Prefeito Municipal, quando se ausentarem do Município, a serviço, além do transporte, receberão diárias para cobrir as despesas de alimentação, pousada e locomoção urbana (fl. 180). Logicamente, não está contemplada na lei a hipótese de pagamento de diárias para participar de excursões privadas, desprovidas de qualquer interesse público. De acordo com a denúncia, o Prefeito Municipal participou de seis viagens e o Vice-Prefeito, de uma, conforme notas de empenho, a seguir discriminadas, que comprovam o recebimento de diárias pela participação em eventos de lazer. 1º fato - nota de empenho n. 000895/09, emitida em 11.03.2009, no valor de R$ 178,36, referente à despesa efetuada com diária para Prefeito Municipal, Sr. Maurício Kunrath, por motivo de deslocamento a cidade de Curumim para acompanhar o grupo da Terceira Idade. Consta assinatura do denunciado Mauricio como ordenador de despesa (fls.170 e verso). E duas notas fiscais do Restaurante Estrela Mar no valor de R$ 42,00 e R$ 45,00, respectivamente (fl. 171). 2º fato - nota de empenho n. 000921/10, emitida em 01.03.2010, no valor de R$ 268,24, referente à despesa efetuada com diária para Prefeito Municipal, Sr. Maurício Kunrath, por motivo de deslocamento a cidade de Capão da Canoa, Praia de Curumim, para acompanhar o grupo da Terceira Idade. Consta assinatura do denunciado Mauricio como ordenador de despesa (fls. 169 e verso). E duas notas fiscais do Hotel Brisa Mar, no valor de R$ 20,00 cada uma (fl. 168) e uma nota fiscal da churrascaria Dimmer, no valor de R$ 23,00 (fl. 168v). 23

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3º fato - nota de empenho n. 001042/11, emitida em 18.03.2011, no valor de R$ 531,00, referente à despesa efetuada com diária para Sr. Vice-Prefeito Municipal acompanhar o grupo da Terceira Idade. Consta assinatura do denunciado Maurício como ordenador de despesa (fls. 167 e verso). E duas notas fiscais do Hotel Brisa Mar, no valor de R$ 20,00 cada uma (fl. 168) e uma nota fiscal da churrascaria Dimmer, no valor de R$ 23,00 (fl. 168v). 4º fato - nota de empenho n. 000624/12, emitida em 23.02.2012, no valor de R$ 3.004,80, referente à despesa com diária para o Sr. Prefeito Municipal, em viagem a cidade de Gravatal para acompanhar o Clube de Mães Rainha do Lar em excursão. Consta assinatura do denunciado Mauricio como ordenador de despesa, determinando o pagamento, e do Vice Prefeito José Paulo Bohn, como conferido (fls. 145 e verso). E duas notas fiscais do Castelo Palace Hotel Ltda. no valor de R$ 92,00 e R$ 427,00, respectivamente (fl. 146). 5º fato - nota de empenho n. 000902/12, emitida em 06.03.2012, no valor de R$ 471,90, referente à despesa com diária para o Prefeito Municipal em deslocamento a Curumim para acompanhar a Terceira Idade. Consta assinatura do denunciado Mauricio como ordenador de despesa, determinando o pagamento, e a do Vice Prefeito José Paulo Bohn, como conferido (fls. 139/140). E três notas fiscais do Hotel Galo, com almoço e jantar, no valor total de R$ 36,50, cada uma (fls. 141/143). 6º fato - nota de empenho n. 000533/13, emitida em 25.02.2013, no valor de R$ 201,90, referente à despesa efetuada com pagamento de diária para Sr. Prefeito Municipal em deslocamento a Curumim para acompanhar o grupo Terceira Idade em excursão. Consta assinatura do denunciado Mauricio como ordenador de despesa (fl. 160v). E nota fiscal do Hotel Galo no valor de R$ 130,00 (fl. 161). Na espécie, as diárias recebidas pelos denunciados, por conta de viagens realizadas para acompanhar grupos da Terceira Idade e Clube de Mães, são desprovidas de qualquer interesse público, em flagrante violação ao princípio da finalidade pública. Nesse sentido, aliás, a jurisprudência: APELAÇÃO CÍVEL. INTEMPESTIVIDADE. DESERÇÃO. PRELIMINARES REJEITADAS. EMBARGOS À EXECUÇÃO. TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. EX-PREFEITO DO MUNICÍPIO DE ITAPUCA. VIAGEM INTERNACIONAL. DÉBITO APONTADO PELO TRIBUNAL DE CONTAS. 1. Não se apresenta intempestiva a 24

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apelação  interposta no prazo legal. 2. Quanto à alegada deserção, mostra-se inócua diante do preparo comprovado nos autos, conforme determinação judicial, pois o apelante não havia obtido sucesso na extração, via Internet, da respectiva guia para pagamento por ocasião da interposição do recurso, fato que não pode ser imputado à parte. 3. O apelante pretende a nulidade do título extrajudicial que originou a execução movida pelo Município de Itapuca em relação ao débito apontado pelo Tribunal de Contas no período em que exerceu o cargo de Prefeito Municipal (2005/2008), alegando que se trata de diárias e despesas decorrentes de viagem à Argentina e Chile com a finalidade de angariar conhecimento agrícola. Entretanto, do cotejo dos autos, tem-se que a viagem foi realizada com nítido cunho turístico, e não político, a caracterizar efetivo desvio de finalidade e, via de consequência, não teria legitimidade o autor para receber as diárias que se pretende o ressarcimento, pois estas não são devidas quanto se evidencia apenas o interesse particular preponderante. A autorização para a glosa encontra eco inclusive nos princípios norteadores da Administração Pública de impessoalidade e moralidade, insculpidos no art. 37, da Carta Magna. APELAÇÃO IMPROVIDA (Apelação Cível Nº 70062359179, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Francesco Conti, Julgado em 28/01/2015). Além disso, há relatos de que o denunciado Maurício Kunrath ficou em sua casa em Balneário Curumim – Capão da Canoa, nos encontros realizados naquele local, embora tenha recebido diárias para pernoitar no hotel com o grupo. Nesse sentido, os depoimentos de Armindo Schneider, Maria Conselha Schaefer, Maria Bruch e Elaine Reaber Mertins. Roque Lenger, ex-vereador, conta que, na época, havia uma CPI com relação às diárias do Prefeito Municipal. Constataram que o Prefeito participou de viagens realizadas por Clube de Mães, em carro oficial. Disse que as viagens realizadas pela Associação Alegria de Viver/Grupo de Terceira Idade e pelo Clube de Mães são de lazer, e que essas entidades não pertencem à Administração Pública (fls. 326/ 330). Armindo Schneider, tesoureiro da Associação Alegria de Viver/Grupo da Terceira Idade, refere que a associação é um grupo de lazer, e que recebia verbas da Prefeitura. Disse que, em algumas ocasiões, o Prefeito e o Vice-Prefeito, e suas respectivas esposas, participaram das confraternizações, uma delas realizada na residência de Maurício Kunrath, em Curumim (fls. 330v/334). A testemunha Maria Conselha Schaefer, integrante do Clube de Mães Rainhas do Lar e tesoureira da Associação Alegria de Viver/Grupo da Terceira 25

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Idade, afirma que tanto o clube quanto a associação são entidades de lazer. Disse que o Prefeito, nos anos de 2012 e 2013, visitou as entidades, não ficando em hotel, mas em sua residência em Curumim. Refere que os convites para o Prefeito, o Vice-Prefeito e os Vereadores eram feitos pela própria diretoria das associações (fls. 334v/338). Maria Bruch, integrante do Grupo da Terceira Idade, não sabe se a prefeitura disponibiliza alguma verba para a entidade. Afirma que a associação é um grupo de lazer e que, no ano de 2012 ou 2013, o Prefeito e sua esposa participaram das confraternizações, mas não pernoitaram no hotel, pois tinham uma casa no local (fls. 338v/342). A testemunha Elaine Raaber Mertins, integrante do Clube de Mães Rainha do Lar, disse que não recebeu nenhum valor de dinheiro da Prefeitura de Alto Feliz. Conta que em 2012 o Prefeito participou de viagem a Gravatal, ficando hospedado junto com o grupo no hotel. Quando foram para Curumim, refere que esteve na casa do Prefeito, que fica próxima ao hotel onde o grupo ficou hospedado (fls. 342v/344v). Como consabido, nos processos envolvendo Prefeitos Municipais, a representação muitas vezes é efetuada por opositores, o que, por si só, não retira a credibilidade dos testemunhos, se harmônicos e coerentes com os demais elementos existentes nos autos. É o que ocorre. A prova, como reconstituída, revela que os réus desviaram rendas públicas em proveito próprio, ao solicitar, autorizar e receber diárias do Município para participar de viagens estritamente de lazer. O fato de o pagamento de diárias ser algo habitual no serviço público não autoriza o recebimento de verba pública em atividades desprovidas de qualquer interesse público, como no caso. Nem mesmo o fato de a conduta ter sido realizada por outros gestores isenta os réus de responsabilidade criminal. Também não há falar em falsa percepção da realidade, ou em erro de tipo, como pretende a defesa, porquanto, como administradores públicos, os réus tinham plena consciência de que as atividades praticadas eram recreativas e de lazer, sem caráter oficial e, portanto, sem qualquer interesse público. Além disso, embora se reconheça a independência das esferas cível e criminal, os réus foram responsabilizados, em sentença – confirmada pela Quarta Câmara Cível desta Corte, decisão ainda não transitada em julgado – proferida nos autos da ação civil pública, pela prática de ato de improbidade administrativa, ocasião em que assim consignou a douta Magistrada: 26

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Como ocupantes que eram dos mais altos postos do Executivo de Alto Feliz, os réus tinham a obrigação de saber que o recebimento de diárias para o acompanhamento de integrantes do clube de mães e do grupo de terceira idade em viagens de recreação, lazer e turismo, era imoral e ilegal. Assim, não há falar em culpa, ignorância, mero erro, inabilidade ou irregularidade na conduta dos réus. Ao contrário. Reconhece-se aqui que se houveram eles com um grau de culpabilidade capaz de revelar desvio ético e desonestidade na condução da res publica, o que caracteriza inquestionável dolo, ainda mais que, segundo a lição do eminente Desembargador Armínio José Abreu Lima da Rosa, quando do julgamento da Apelação Cível n. 70048988497, julgada em 20/06/2012, “Os atos de improbidade previstos no art. 11, Lei nº 8.429/92 reclamam a presença de dolo, bastando aquele genérico, consistente na vontade de realizar o fato descrito na norma incriminadora, é dizer, conduta contrária aos deveres de honestidade e legalidade, e aos princípios da moralidade administrativa e da impessoalidade, desnecessário perquirir a existência de enriquecimento ilícito do administrador público ou prejuízo ao Erário, estando a lesão à Administração Pública in re ipsa”. E, como bem referido pelo Desembargador Eduardo Uhlein, ao julgar o recurso de apelação:

No caso, a margem de discricionariedade conferida pela lei diz apenas com o poder de decidir sobre a conveniência e oportunidade na concessão de diárias dentro da situação prevista na lei (Lei Municipal n° 759/2009): viagens a serviço. A concessão de diárias, pois, deve necessariamente está fundamentada no superior interesse do serviço público, o que não se verificou na hipótese descrita na inicial (...) Deu-se, então, de forma dolosa, através de desvio de finalidade, o enriquecimento ilícito dos apelantes, que se utilizaram de seus mandatos para impor prejuízo ao erário, percebendo diárias para realização de atividades recreativas e de lazer em período de veraneio, de forma indevida, assim preenchendo as hipóteses típicas dos arts. 9º e 11 da Lei Federal nº 8.429/92. A distância temporal entre os seis delitos cometidos pelo Prefeito deve ser relativizada, havendo que prevalecer o fato de terem sido praticados na mesma gestão. Assim, tratando-se de crimes da mesma espécie, executados de forma

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semelhante, atendidos os demais requisitos do art. 71 do Código Penal, deve ser reconhecida a continuidade delitiva para todos os fatos, inclusive aquele em que o Vice-Prefeito, José Paulo Bohn, aderiu a sua conduta. Nessas condições, comprovadas materialidade e autoria, impositiva a condenação de Maurício Kunrath por incurso nas sanções do art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67 (cinco vezes), e art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67 c/c art. 29, caput, do Código Penal (uma vez), na forma do art. 71 do Código Penal; e José Paulo Bohn por incurso nas sanções do art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67, c/c art. 29, caput, do Código Penal (uma vez). Passo à fixação das penas. MAURÍCIO KUNRATH não registra antecedentes negativos; agiu com dolo intenso, como administrador do Município deveria zelar pela coisa pública e não se locupletar as custas do erário. Favoráveis os demais operadores do art. 59 do Código Penal, vai estabelecida a pena-base em 02 anos e 02 meses de reclusão, para cada um dos seis delitos. Diminuída de 02 meses pela confissão espontânea (ainda que não tenha admitido o dolo). Reconhecida a continuidade delitiva, vai aumentada a pena de um dos crimes (02 anos de reclusão), já que idênticas, de 1/2, tendo em conta a reiteração de condutas delitivas, seis vezes, definitiva a pena em 03 anos de reclusão, em regime inicial aberto. Acerca do critério para exasperação da pena quando praticados crimes em continuidade delitiva, a orientação do Superior Tribunal de Justiça, a exemplo do julgado cuja ementa segue transcrita: AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. 1. DOSIMETRIA. CONTINUIDADE DELITIVA. FRAÇÃO DE AUMENTO. CRITÉRIO OBJETIVO. QUANTIDADE DE DELITOS. 2. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. Na exasperação da pena pela continuidade delitiva predomina o critério objetivo, segundo o qual a fração de aumento varia de acordo com a quantidade de crimes praticados em continuidade. 2. Agravo regimental a que se nega provimento (AgRg no HC 249.012/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 02/04/2013, DJe 09/04/2013). JOSÉ PAULO BOHN não registra antecedentes negativos; agiu com dolo intenso, como Vice-Prefeito do Município deveria zelar pela coisa pública e não se

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locupletar as custas do erário. Favoráveis os demais operadores do art. 59 do Código Penal, vai estabelecida a pena-base em 02 anos e 02 meses de reclusão, diminuída de 02 meses pela atenuante da confissão espontânea (embora não tenha admitido o dolo); definitiva a pena em 02 anos de reclusão, em regime inicial aberto. Presentes os requisitos do art. 44 do Código Penal, vai substituída a pena privativa de liberdade, de cada um dos réus, por duas penas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade pelo prazo da pena aplicada, em local a ser definido pelo juízo da execução, e prestação pecuniária, no valor de um salário mínimo para JOSÉ PAULO BOHN e três salários mínimos para MAURÍCIO KUNRATH, em favor de entidade pública ou privada com destinação social a ser definida também no juízo da execução. As condutas como praticadas, tanto pelo Prefeito, quanto pelo Vice-Prefeito, demonstram que nenhum deles tem condições de permanecer no cargo. Dele se utilizaram para atividades desprovidas de qualquer interesse público, pois desviaram rendas públicas, em proveito próprio, ao solicitar, autorizar e receber diárias do Município para participar de viagens de lazer. Como agentes públicos, fizeram conduta oposta àquela desejada, de atendimento ao interesse da comunidade, bem ao contrário, usurparam de sua condição para gozo pessoal, ofendendo aos princípios da moralidade administrativa e impessoalidade, constitucionalmente previstos. O Prefeito utilizando-se do cargo viajou seis vezes as custas do erário, para acompanhar grupos de Terceira Idade e Clube de Mães, em excursões realizadas sem qualquer finalidade pública. O mesmo para o Vice-Prefeito, ainda que o tenha feito uma única vez. Agiram ambos com culpabilidade elevada. Nessas condições, determina-se, ainda, após o trânsito em julgado, a perda do cargo e a inabilitação pelo prazo de 05 anos para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, para ambos os denunciados, sem prejuízo da reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou particular, nos termos do disposto no § 2º do art. 1º do Decreto-Lei n. 201/671. Julgo parcialmente procedente a ação penal para condenar o denunciado Maurício Kunrath por incurso no art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67 (cinco vezes), e art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67 c/c art. 29, caput, do Código Penal (uma vez), na forma do art. 71 do Código Penal, à pena de 03 anos de reclusão;

1 – § 2º A condenação definitiva em qualquer dos crimes definidos neste artigo, acarreta a perda de cargo e a inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, sem prejuízo da reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou particular. 29

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e o denunciado José Paulo Bohn por incurso no art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67, c/c art. 29, caput, do Código Penal (uma vez), à pena de 02 anos de reclusão, ambos em regime inicial aberto; substituídas as penas privativas de liberdade de cada um deles por prestação de serviços à comunidade pelo prazo da pena aplicada e prestação pecuniária no valor de três salários mínimos para Maurício Kunrath e um salário mínimo para José Paulo Bohn. Determino, ainda, após o trânsito em julgado, a perda do cargo e a inabilitação pelo prazo de 05 anos para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, para ambos, nos termos do disposto no § 2º do art. 1º do Decreto-Lei n. 201/67. Custas em proporção. Após o trânsito em julgado, inclua-se o nome dos réus no rol dos culpados. A Secretaria providenciará os registros e comunicações. Des. Julio Cesar Finger (Revisor) – De acordo com o(a) Relator(a). Dr. Mauro Borba – De acordo com o(a) Relator(a). Des. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto – Presidente - Acao Penal Procedimento Ordinario nº 70059891887, Comarca de Feliz: “À UNANIMIDADE, JULGARAM PARCIALMENTE PROCEDENTE A AÇÃO PENAL PARA CONDENAR O DENUNCIADO MAURÍCIO KUNRATH POR INCURSO NO ART. 1º, INCISO I, DO DECRETO-LEI Nº 201/67 (CINCO VEZES), E ART. 1º, INCISO I, DO DECRETO-LEI Nº 201/67 C/C ART. 29, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL (UMA VEZ), NA FORMA DO ART. 71 DO CÓDIGO PENAL, À PENA DE 03 ANOS DE RECLUSÃO; E O DENUNCIADO JOSÉ PAULO BOHN POR INCURSO NO ART. 1º, INCISO I, DO DECRETO-LEI Nº 201/67, C/C ART. 29, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL (UMA VEZ), À PENA DE 02 ANOS DE RECLUSÃO, AMBOS EM REGIME INICIAL ABERTO; SUBSTITUÍDAS AS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE DE CADA UM DELES POR PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE PELO PRAZO DA PENA APLICADA E PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA NO VALOR DE TRÊS SALÁRIOS MÍNIMOS PARA MAURÍCIO KUNRATH E UM SALÁRIO MÍNIMO PARA JOSÉ PAULO BOHN. DETERMINARAM, AINDA, APÓS O TRÂNSITO EM JULGADO, A PERDA DO CARGO E A INABILITAÇÃO PELO PRAZO DE 05 ANOS PARA O EXERCÍCIO DE CARGO OU FUNÇÃO PÚBLICA, ELETIVO OU DE NOMEAÇÃO, PARA AMBOS, NOS TERMOS DO DISPOSTO NO § 2º DO ART. 1º DO DECRETO-LEI Nº 201/67, NOS TERMOS DOS VOTOS PROFERIDOS EM SESSÃO.”

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LOCAÇÃO DE IMÓVEL COM FRAUDE À LICITAÇÃO E RESPONSABILIDADE CRIMINAL DO PREFEITO MUNICIPAL Newton Brasil de Leão Ação Penal – Procedimento Ordinário n. 70043300532 (N. CNJ: 026284764.2011.8.21.7000) – 4ª Câmara Criminal – Comarca de Sapucaia do Sul Ementa: AÇÃO PENAL. CRIME DE RESPONSABILIDADE. PREFEITO MUNICIPAL, COORDENADORA DA VIGILÂNCIA SANITÁRIA DO MUNICÍPIO E SEU ESPOSO. LOCAÇÃO DE IMÓVEL PELO MUNICÍPIO, MEDIANTE DISPENSA DE LICITAÇÃO. IMÓVEL QUE, EMBORA REGISTRADO EM NOME DE TERCEIRO, PERTENCE, NA VERDADE, AO CASAL DE CO-RÉUS. VEDAÇÃO LEGAL DE CONTRATAÇÃO COM O PODER PÚBLICO, FACE AO EXERCÍCIO DE CARGO, PELA CO-RÉ, NA VIGILÂNCIA SANITÁRIA DO MUNICÍPIO. PROCESSO DE DISPENSA DE LICITAÇÃO NITIDAMENTE FORJADO, LEVADO A EFEITO, DE FORMA DUVIDOSA, APÓS A ESCOLHA DO IMÓVEL. AUTOS QUE DEMONSTRAM A UTILIZAÇÃO DE VERBAS PÚBLICAS EM DESCONFORMIDADE COM A ORIENTAÇÃO LEGAL (INDEVIDAMENTE), EM BENEFÍCIO DOS CO-RÉUS. AGENTES QUE, SOB O MANTO DE ATENDIMENTO AO INTERESSE PÚBLICO, AGIRAM, EM VERDADE, VISANDO SATISFAZER INTERESSE PESSOAL. INTERESSE PÚBLICO QUE PODERIA SER ATENDIDO MEDIANTE A LOCAÇÃO DE QUALQUER OUTRO IMÓVEL NA REGIÃO CENTRAL, NÃO PERTENCENTE À SERVIDORA PÚBLICA. DECRETO-LEI N. 201/67 QUE SE APLICA A QUEM NÃO É PREFEITO

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MUNICIPAL, MAS QUE PRATICA CRIME DESCRITO NA LEI MENCIONADA, EM CONCURSO COM ESTE. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. CONDENAÇÕES IMPOSITIVAS. CRIME ÚNICO. UMA SÓ CONDUTA PRATICADA. NÃO CONFIGURADO O CRIME CONTINUADO. AÇÃO JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE. Partes: Ministério Público, autor – Vilmar Ballin, Maria Salete Mariani dos Santos e Milton Pinheiro dos Santos, denunciados. ACÓRDÃO Acordam, os Desembargadores integrantes da Quarta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, à unanimidade, em julgar parcialmente procedente a denúncia, nos termos do voto. Custas na forma da lei. Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores DES. ARISTIDES PEDROSO DE ALBUQUERQUE NETO (PRESIDENTE) E DES. IVAN LEOMAR BRUXEL. Porto Alegre, 06 de agosto de 2015. Des. Newton Brasil de Leão, Relator. RELATÓRIO 1. Trata-se de ação penal, proposta pelo Ministério Público contra VILMAR BALLIN, Prefeito Municipal de Sapucaia do Sul/RS, MARIA SALETE MARIANI DOS SANTOS, Coordenadora da Vigilância Sanitária do mesmo Município, e seu marido, MILTON PINHEIRO DOS SANTOS, pela prática, em tese, do ilícito do arti. 1º, inc. II, do Decreto-Lei n. 201/67, combinado com o art. 29, caput, do Código Penal, na forma do art. 71, do mesmo diploma legal, por fatos ocorridos entre abril de 2010 e 1º.06.2011, em Sapucaia do Sul/RS, oportunidades em que os denunciados, em comunhão de esforços e vontades, utilizavam-se indevidamente de rendas públicas, em proveito dos dois últimos, ao manterem contrato de locação, junto à Prefeitura, de imóvel pertencente a estes, mesmo sabendo que MARIA SALETE está impedida de contratar com o Município. Conforme a vestibular, “...o denunciado VILMAR BALLIN instaurou o Processo de Dispensa de Licitação nº 4.314/2010, mediante o fundamento de que o imóvel localizado 32

Locação de imóvel com fraude à licitação e responsabilidade criminal do Prefeito Municipal

na Rua Lauretino Juliano, nº 24, em Sapucaia do Sul/RS, seria o ideal para a instalação da Coordenadoria da Vigilância Sanitária do Município, hipótese de dispensa com base no artigo 24, inciso X, da Lei de Licitações. Assim, em 1º de abril daquele ano, firmou o Contrato de Locação n.º 46/2010 com os proprietários do imóvel, MARIA SALETE MARIANI DOS SANTOS e seu marido MILTON PINHEIRO DOS SANTOS, pelo valor mensal de R$ 7.000,00 (sete mil reais), com prazo de vigência de 60 meses, fazendo, no entanto, constar no contrato o nome do antigo proprietário – Roni Luiz Ribeiro, Dr. Roberto Mariani, que teria intermediado a contratação com a prefeitura no processo de dispensa, é sobrinho de MARIA SALETE (fls. 197/199). Aliás, todo procedimento de dispensa foi realizado como se o proprietário do imóvel fosse Roni Luiz Ribeiro, o qual teria constituído Roberto Mariani como seu procurador para o fim especial de administrar o imóvel (fls. 140/140v). Isso tudo para mascarar a locação pelo Município de um imóvel pertencente, na realidade, a MARIA SALETE MARIANI DOS SANTOS e seu marido MILTON PINHEIRO DOS SANTOS, a quem foram cedidos e transferidos os direitos hereditários sobre o imóvel por Roni, em 05 de novembro de 1999 (fls. 10/13). Inclusive já em 2.000, o próprio MILTON protocolou na Prefeitura Municipal de Sapucaia do Sul pedido de aprovação de projeto arquitetônico para construir no imóvel, bem como solicitou alinhamento para edificação (fls. 160/171). Ocorre que MARIA SALETE é servidora do Município, Coordenadora da Vigilância Sanitária, razão pela qual não poderia contratar com o Poder Público, por força do disposto no artigo 9º, inciso III, da Lei Federal n.º 8.666/93. Portanto, houve utilização indevida de rendas públicas, para pagamento de alugueis de imóvel pertencente à MARIA SALETE, destinado à instalação de órgão de Vigilância Sanitária do Município, que é por ela coordenado. Chama atenção, ainda, o fato de que o procurador do ex-proprietário Roni Luiz Ribeiro, Dr. Roberto Mariani, que teria intermediado a contratação com a Prefeitura no processo de dispensa, é sobrinho de MARIA SALETE (fls. 197/199). Roberto Mariani recebe direto em sua conta os valores dos aluguéis, conforme comprovantes de pagamento e recibos das fls.(...)”. Apresentadas respostas pelas defesas (fls. 318/323 e 332/341), e manifestação sobre as respostas pelo Ministério Público (fls. 348/357), esta Câmara, forma unânime, recebeu a denúncia (fls. 376/380). Foram apresentadas defesas preliminares (fls. 388/390 e 392/396). 33

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Ouvidas as testemunhas e interrogados os réus (fls. 727/737), foi aberto o prazo previsto no art. 10, da Lei Federal n. 8.038/1990 (fl. 777), tendo o Ministério Público requerido a atualização dos antecedentes dos acusados (fl. 780). Aberto o prazo do art. 11, da Lei n. 8.038/1990 (fl. 929), foram apresentadas alegações escritas pelo Ministério Público (fls. 931/945) e pelas defesas de VILMAR BALLIN (fls. 949/961) e de MILTON e MARIA SALETE DOS SANTOS (fls. 966/ 971). O Ministério Público, tendo como demonstradas materialidade e autoria dos delitos, requer a condenação dos réus, nos termos da denúncia. A defesa de VILMAR BALLIN aduz que não houve ilegalidade no contrato locatício, mas que, diante de documento constante dos presentes autos, o qual poderia tisnar a contratação, determinou o desfazimento do contrato. Alega, ainda, que à Administração Pública afigurava-se legal a formalização da locação, a qual foi imediatamente desfeita após a ciência acerca da propriedade do imóvel. Seguindo, refere ausência de prova da autoria; impossibilidade de comunhão de esforços entre VILMAR e MILTON, eis inimigos políticos; e, atipicidade da conduta, face ao manifesto interesse público e à inocorrência de uso em proveito próprio ou alheio. Pugna pela improcedência da ação. A defesa de MILTON e MARIA, por sua vez, sustenta ausência de ilicitude na locação de imóvel que visa o atendimento do interesse público. Menciona, ainda, que os demandados não eram proprietários do imóvel locado pela Prefeitura; impossibilidade de prévio ajuste entre as partes, eis adversários políticos os envolvidos; atendimento de interesse público na locação; inexistência de alternativas (outros imóveis) às necessidades da locação; ausência da participação dos co-réus no ato da licitação e da contratação; que a vedação do art. 9º, inc. III, da Lei das Licitações, não prevê a hipótese de locação, restringindo-se à participação na execução da obra ou serviço e ao fornecimento de bens a eles necessários. Alega, também, que não houve danos ao erário, face ao valor contratado para a locação, abaixo dos índices de mercado. Por fim, alega ausência de ardil. Pedem seja julgada improcedente a ação penal. É o relatório. VOTOS Des. Newton Brasil de Leão (Relator) – 2. Os acusados foram denunciados como incursos nas sanções do art. 1º, inc. II, do Decreto-Lei n. 201/67, combinado com o art. 29, caput, na forma do art. 71, ambos do Código Penal. 34

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Conforme descrito na peça pórtica, VILMAR BALLIN, Prefeito Municipal de Sapucaia do Sul, teria utilizado rendas públicas de forma indevida, em favor de MARIA SALETE, então Coordenadora da Vigilância Sanitária do município, e de seu esposo, MILTON PINHEIRO, à época Procurador Jurídico da Câmara de Vereadores, ao formalizar, com pessoa legalmente impedida de contratar com o Poder Público, contrato de locação de imóvel, com dispensa de licitação, para a instalação da Coordenadoria de Vigilância Sanitária do município. Analisados os autos e o contexto fático, verifico conluio entre os denunciados, fim de, com aparência de legalidade, firmar o Município pacto locatício de imóvel com pessoa impedida de com ele contratar, situação esta que tipificou a conduta de utilizar, o Prefeito Municipal, rendas públicas, indevidamente, em proveito alheio. 3. Esclareço, de início, que, muito embora figure no contrato de locação que originou a presente denúncia (fls. 148/155), como parte locadora, a pessoa de Roni Luiz Ribeiro, o qual representado por Roberto Mariani, fato é que, em verdade, o imóvel locado pela Prefeitura Municipal de Sapucaia do Sul pertence aos co-denunciados MARIA SALETE e MILTON. Isso se constata por meio de documentos trazidos aos autos, bem como através de declarações testemunhais, conforme abaixo passo a analisar. Às fls. 184/185, verifico que o imóvel em questão pertencia aos genitores de Roni Luiz Ribeiro, tendo este o recebido por sucessão (legítima), conforme anotação de n. R-2/31.534 na matrícula. No documento constato, ainda, que o pai de Roni faleceu no ano de 1994, e sua mãe no ano de 1997. No ano de 1999, portanto após o falecimento dos genitores de Roni, este formalizou ‘Escritura Pública de Cessão de Direitos Hereditários’ (fls. 15/18), pela qual cedeu e transferiu os direitos sobre o imóvel em tela ao co-réu MILTON (cessionário), já estando este casado, pelo regime da comunhão parcial de bens, com a co-ré MARIA SALETE. Referida cessão não foi registrada na matrícula do imóvel. Após, no ano de 2004, Roni, omitindo a cessão de direitos hereditários firmada em favor dos co-réus MILTON e MARIA SALETE, protocolou, na comarca de Sapucaia do Sul, petição de Arrolamento com Pedido de Adjudicação (processo que recebeu o n. 035/1.04.0001902-2), postulando a adjudicação do imóvel ora em apreço em seu favor (fls. 138/140). E conforme anotação contida na matrícula do imóvel (n. R-2/31.534, às fls. 184/185), o Juízo de Sapucaia do Sul expediu formal de partilha em 07 de julho de 2005, e termo de retificação em 35

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24 de setembro de 2009, conferindo a Roni a propriedade do bem, tendo este levado o título a registro somente no ano de 2010. No dia 1º de março de 2010, Roni outorgou procuração a Roberto Mariani, para o fim especial de administrar o imóvel em questão, com poderes expressos, dentre outros, para alugá-lo (fls. 143/143v). Logo após, em 1º de abril de 2010, foi firmado o contrato de locação com o município de Sapucaia do Sul (fls. 148/155). Às fls. 808/809, verifico que Roni, em setembro de 2013, formalizou novo ‘Termo de Cessão e Transferência de Direitos Contratuais’, este em favor de Maria Cristina Mariani dos Santos e José Augusto Mariani dos Santos, ambos filhos dos co-réus MILTON e MARIA SALETE. O histórico acima descrito demonstra que, após o falecimento dos pais de Roni, este cedeu seus direitos hereditários aos co-réus MILTON e MARIA SALETE, conferindo-lhes os direitos sobre o imóvel em tela. A escritura pública de cessão, todavia, não restou averbada na matrícula do imóvel, com o que evitada a publicidade da negociação, bem como a informação acerca dos então reais titulares do domínio sobre o bem. No meu sentir, houve nítida intenção das partes envolvidas em omitir tais informações de terceiros, tanto assim que, quando da nova cessão, esta em favor dos filhos dos co-réus MILTON e MARIA SALETE, a anotação registral foi de imediato procedida – o termo de cessão firmado em setembro de 2013, e levado a registro em 10 de setembro de 2013 –, conforme se vislumbra às fls. 808/809. Além disso, há ainda outras circunstâncias que confirmam a propriedade dos co-réus MILTON e MARIA SALETE sobre o imóvel em questão. Depois da formalização da escritura pública de cessão de direitos hereditários firmada por Roni Luiz em favor dos co-réus MILTON e MARIA SALETE, estes últimos buscaram a regularização administrativa do imóvel em questão junto a Prefeitura Municipal de Sapucaia do Sul, mediante requerimentos firmados por MILTON, conforme observo às fls. 163/170 (Aprovação de Projeto), 171/172 (Certidão Descritiva), e 173/174 (Alinhamento para Edificação). Especificamente às fls. 166 e 168, MILTON firma documentos como sendo, forma expressa, proprietário do imóvel. Há testemunhas que também apontam os co-réus como sendo os proprietários/possuidores do imóvel, dentre as quais destaco Marco Antônio da Rosa, Marcelo Andrade Machado e Roberto Mariani. O primeiro, respondendo questão formulada pelo Ministério Público, confirmou que o bem pertence ao casal 36

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de co-réus (fl. 420). O segundo, ex-Prefeito do município de Sapucaia do Sul, disse saber que MILTON tinha a posse do imóvel, sendo tal fato de conhecimento geral na cidade (fl. 554v). O terceiro, administrador do imóvel, mencionou, referindo-se a MILTON e ao bem, que: “eu sabia que ele tinha comprado, mas não sei a que título teria sido” (fl. 557). Não bastasse, o procurador de Roni Luiz Ribeiro, Roberto Mariani, declarou que recebia os valores relativos à locação do imóvel, na qualidade de administrador, repassando-os, porém, não ao outorgante Roni, mas ao co-réu MILTON (fls. 557/ 557v). Roberto Mariani, aliás, é sobrinho da co-ré MARIA SALETE. Os próprios co-réus isso admitem. MARIA SALETE, quando questionada perante o Juízo, declarou que ela e seu esposo detinham a posse do imóvel, sendo eles que recebiam os valores auferidos com a locação (fl. 734). MILTON, por sua vez, quando questionado acerca de quem recebia os locativos do imóvel, asseverou ser ele, mediante repasse efetuado por Roberto Mariani, administrador do bem (fl. 729/729v). Indagado se Roni se recebia algum valor referente à locação, respondeu que não. Ainda das palavras de MILTON, extraio o seguinte trecho, quando se refere ao imóvel (fl. 727v): “que nós tínhamos, nós temos a posse, nós somos proprietários, temos a posse locado por uns serviços públicos do Município que é da vigilância em saúde, mais farmácia municipal”. Diante de todo o contexto, não restam dúvidas de que os co-réus MARIA SALETE e MILTON são, desde a formalização da cessão de direitos hereditários, os reais e efetivos proprietários do imóvel em questão, exercendo sobre ele os direitos de disposição, procederam em edificação no terreno; uso, decidiram locar o bem, ocupando-o com o fim a que se destina; e gozo, colheram os frutos decorrentes da opção locatícia. O falta de registro do imóvel em seus nomes não tem o condão de modificar a situação fática que efetivamente se verifica, exercendo ditos co-réus, claramente, o domínio sobre o imóvel, tendo cedido, a título de locação, a posse. A escritura pública de cessão de direitos hereditários já denotava o intento das partes de transferir a propriedade do imóvel aos elencados co-réus, o que se confirmou quando da formalização de nova cessão em favor dos filhos destes, tendo somente este último ato sido levado a averbação. Tenho, portanto, assim como dito pela acusação, que a ausência de registro da primeira cessão, procedida em favor dos co-réus MARIA SALETE e MILTON, 37

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constituiu ardil que objetivava sonegar a informação quanto aos reais proprietários do imóvel. E se efetivos proprietários do imóvel MARIA SALETE e MILTON, e exercendo aquela a função pública de Coordenadora da Vigilância Sanitária do Município, era ela impedida de contratar com o poder público, conforme orientação do inc. III, do art. 9º, da Lei n. 8.666/93. 4. Constatada a real propriedade do imóvel, mister analisar os procedimentos de sua oferta ao Município, de dispensa de licitação e da efetivação da locação. De acordo com as palavras de MARIA SALETE, no ano de 2008 foi solicitado o aluguel de um imóvel para a vigilância sanitária do Município, pedido que restou renovado no ano de 2009, e que culminou na locação do imóvel em questão, somente no ano de 2010. No dia 1º de março de 2010, Roni outorgou procuração a Roberto Mariani, para o fim especial de administrar o imóvel em questão, com poderes expressos, dentre outros, para alugá-lo (fls. 143/143v). No dia 22 de março de 2010, Roberto Mariani, sobrinho de MARIA SALETE e procurador de Roni - em nome de quem o bem estava registrado -, ofertou à locação para a Prefeitura, conforme está no documento da fl. 145, o imóvel em apreço. Roberto Mariani, destaco, era sabedor de que o imóvel pertencia a MARIA SALETE e MILTON, tanto assim que, indagado, nestes termos se manifestou (fls. 556v/557): “Ministério Público: Quem tinha a posse desse imóvel? Testemunha: O Dr. Milton. Ministério Público: Desde quando? Testemunha: Eu tenho ele como sendo de 2009, 2010. Ministério Público: E o senhor tem conhecimento a que título ele tinha a posse desse imóvel? Testemunha: Eu sabia que ele tinha comprado, ...”. Se sabedor Roberto Mariani acerca dos efetivos proprietários do imóvel (e mesmo que sob sua ótica fossem “apenas” possuidores), é certo que a locação foi levada a efeito mediante a anuência destes, os co-réus MARIA SALETE e MILTON. A transferência da posse – essência da relação locatícia – em favor da Prefeitura, somente poderia ocorrer mediante a aceitação e concordância de seus

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possuidores, os quais o próprio ofertante sabia quem eram, e que não declinaram do intento, mesmo sabedores de que a contratação se daria com a Municipalidade. A situação, contudo, não se restringe à mera aceitação (quanto à locação) e omissão (quanto à qualidade de efetivos proprietários) dos co-réus, pois, analisado o procedimento de dispensa de licitação, percebe-se, claramente, que referido expediente foi forjado, fim de conferir ar de legalidade à contratação, eis levada a efeito com pessoa legalmente impedida de assim proceder. A solicitação de locação de imóvel é datada de 19 de março de 2010, conforme documento da fl. 121. Conforme declaração do, à época, Secretário de Saúde do Município de Sapucaia do Sul, José Eloir Winck (fls. 562v/567), diligenciou ele na busca de imóveis para a instalação da Coordenadoria da Vigilância Sanitária, tendo Roberto Mariani lhe ofertado o imóvel em tela. Considerando-o adequado ao propósito, protocolou o requerimento de locação, o qual datado de 19 de março de 2010 (fl. 121). No dia 25 de março de 2010, a Prefeitura Municipal de Sapucaia do Sul deu início ao procedimento de dispensa de licitação de n. 4314/2010 (fl. 120), com base no requerimento acima referido. O parecer da Procuradoria Geral do Município de Sapucaia do Sul, que analisou o requerimento de locação mediante dispensa de licitação, aprovando-o, é datado de 31 de março de 2010 (fl. 147). O contrato de locação foi assinado no dia seguinte, 1º de abril de 2010 (fls. 148/155). Chama a atenção, dentro do processo de dispensa de licitação, que as análises de situação cadastral dos CPFs de Roberto Mariani e de Roni Luiz Ribeiro, bem como a certidão negativa de débitos federais (esta emitida apenas em nome de Roberto Mariani), têm data posterior a do parecer de aprovação da locação, e, inclusive, a da assinatura do contrato. Conforme está nas fls. 144A, 144B e 146, estas análises datam de 06 de maio de 2010! Não há no processo de dispensa de licitação, outrossim, qualquer documento que ateste a regularidade fiscal (municipal, estadual e federal) de Roni Luiz Ribeiro, em nome de quem estava registrado o imóvel, mesmo que à época já não fosse seu efetivo proprietário, tendo, por aquela razão, figurado como contratante no pacto locatício. Chama a atenção, ainda, o fato dos editais relativos à contratação e dispensa de licitação terem sido publicados, tão-somente, no final do mês de julho de 2010, ou seja, após firmado o contrato locatício. 39

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De outra banda, a duração do processo de dispensa de licitação foi de apenas 07 dias, culminando, nesse exíguo prazo, na contratação com o Município. E não há no processo licitatório (e também nos autos), como percebo, qualquer documento que informe e/ou ateste não haver outro imóvel, de características similares ao que restou eleito pela administração pública, na região em que situado este, ao que sua escolha, diante de todo o contexto fático, foi, ao que tudo indica, previamente acertada e programada. Tais “curiosos” detalhes, acima apontados, somados à situação da real propriedade do imóvel, denotam articulação e ajuste entre as partes denunciadas – e, quiçá, até mesmo junto a outras –, visando dar ares de legalidade a um procedimento de dispensa de licitação, o qual objetivava contratação do Município com pessoa impedida de assim proceder. 5. Da prova carreada aos autos verifico, igualmente, o ajuste entre as partes, visando alcançar o intento de contratar a municipalidade com pessoa impedida de assim proceder. Como já analisado, MARIA SALETE e MILTON eram não só os possuidores do imóvel, bem como seus reais proprietários, sobre ele exercendo os direitos inerentes à propriedade. E mediante os serviços de Roberto Mariani – sobrinho de MARIA SALETE e proprietário de imobiliária –, ofertaram o imóvel para locação à Prefeitura de Sapucaia do Sul, sendo que referida co-ré, anteriormente, havia solicitado ao Município que locasse imóvel para instalar a Coordenadoria por ela administradada, e para a qual o imóvel ora em questão acabou sendo alugado/ destinado. Como a contratação não poderia ser levada a efeito em nome dos reais proprietários, dado o impedimento legal da co-ré MARIA SALETE de contratar com o Município, foi o nome de Roni Luiz Ribeiro que figurou como locador no contrato de locação, mesmo que, àquela altura, o imóvel não mais lhe pertencesse, de fato. Ocorre que diante da omissão de registro na matrícula do imóvel acerca da cessão de direitos hereditários em favor dos co-réus MARIA SALETE e MILTON, isso fez-se possível, uma vez que seguiu Roni constando na matrícula do imóvel como sendo seu proprietário, embora de fato já não o fosse. E como comprovado, os valores mensais do aluguel jamais foram repassados a Roni, mas, sim, ao casal de co-réus, conforme por eles (e por Roberto Mariani) confirmado. 40

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Valeram-se os co-réus MARIA SALETE e MILTON, portanto, do nome de Roni Luiz Ribeiro, para conferir suposta legalidade à relação locatícia, bem como dos serviços de Roberto Mariani, sobrinho daquela, o qual, possuindo procuração para agir em nome de Roni Luiz, conferia segurança aos primeiros quanto à relação entabulada com o Município, bem como quanto ao recebimento dos locatícios. 6. No que diz com a conduta do Prefeito Municipal de Sapucaia do Sul, VILMAR BALLIN, foi tipificadora do delito denunciado, conforme abaixo passo a fundamentar. A relação do Prefeito com a co-ré MARIA SALETE era de nítida confiança, tanto que ele, após sugestão do Secretário de Saúde, José Eloir Winck, a manteve no cargo de Coordenadora da Vigilância Sanitária do Município. E não se trata de cargo de menor importância. Ao contrário, afigura-se função de notória relevância na comunidade, que desenvolve metodologias e políticas públicas destinadas a prevenção, diminuição ou eliminação de riscos e/ou danos à saúde, estando diretamente ligada à Secretaria da Saúde do Município. A manutenção do cargo de MARIA SALETE na Prefeitura demonstra, de outra banda, que a alegada inimizade entre o Prefeito e seu esposo, o também denunciado MILTON, caso efetivamente houvesse, não seria óbice à prática do delito. Na verdade, é inviável crer que o Prefeito Municipal mantivesse em seu quadro de servidores, e em cargo de tamanha importância e destaque, pessoa que não fosse de seu conhecimento e confiança, e tampouco que fosse assim proceder com pessoa de íntima ligação com adversário político seu, dado o risco a que passaria a estar exposta a gestão deste cargo. Aliás, visando afastar de vez tal argumento, destaco que nem mesmo VILMAR BALLIN referiu qualquer forma de inimizade com o co-réu MILTON, tendo, quando questionado a respeito, apenas mencionado se tratar de adversário político (fl. 732v). Superada a aludida (e inverossímil) alegação de inimizade entre as partes – o que, sob a ótica da defesa, poderia afastar a possibilidade de ajuste para a prática delituosa –, vou adiante. 7. A posse exercida pelos co-réus MARIA SALETE e MILTON sobre o imóvel locado pela Prefeitura era de conhecimento notório. Neste sentido, pronunciaram-se as testemunhas Marco Antônio da Rosa (fl. 420), Roberto Mariani (fls. 556v/557) e Marcelo Andrade Machado (fl. 553v). 41

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Marco Antônio da Rosa foi assim questionado: “Ministério Público: E pelo que o senhor confirma, então, esse imóvel é do casal denunciado? Testemunha: Sim”. Roberto Mariani, por sua vez, assim se manifestou quanto ao ponto: “Ministério Público: Quem tinha a posse desse imóvel? Testemunha: O Dr. Milton. Ministério Público: Desde quando? Testemunha: eu tenho ele como sendo de 2009, 2010. Ministério Público: E o senhor tem conhecimento a que título ele tinha a posse desse imóvel? Testemunha: Eu sabia que ele tinha comprado, mas não sei a que título teria sido. Ministério Público: Comprado de quem? Testemunha: Do seu Roni”. Marcelo Andrade Machado, ex-Prefeito, declarou: “Juíza Instrutora:O senhor conhece o imóvel? Testemunha: Conheço o imóvel. Juíza Instrutora: Sabe dizer a quem pertencia aquele imóvel? Testemunha: A propriedade não. Eu sabia que tinha a posse do Milton, ...”. E como bem referido pela acusação – cujo argumento reflete meu entendimento –, “...o imóvel em questão – seja pela dimensão ou pela localização – possui destaque na comunidade local, isto é, em outras palavras, as pessoas que convivem no município de Sapucaia do Sul ... tem conhecimento de quem são os proprietários (ainda que de fato) de um imóvel com essas características peculiares...”. Tal situação era seguramente de conhecimento também do Prefeito Municipal, pois, engajado na comunidade de Sapucaia do Sul há tantos anos (lá reside desde 1975, já tendo inclusive exercido mandatos como Vereador na cidade), difícil aceitar não fosse conhecedor deste “detalhe” acerca do diferenciado imóvel, situado na região central da cidade. Não se mostra verídica, data venia, a assertiva de que o Prefeito, morador de longa data no Município e pessoa de grande atuação política (e, por consequência, 42

Locação de imóvel com fraude à licitação e responsabilidade criminal do Prefeito Municipal

social), não tinha conhecimento acerca dos reais possuidores/proprietários de fato do destacado imóvel, escolhido para abrigar importante coordenadoria de sua gestão. Reforça tal entendimento, o fato dos reais proprietários serem indivíduos com notória atuação pública no município (MARIA SALETE coordenadora da vigilância sanitária desde gestão anterior, e MILTON Procurador-Geral e, também, da Câmara Municipal), assim como o Prefeito. De qualquer forma, este argumento defensivo perde força quando, mesmo após ter tido ciência acerca da ilegalidade do contrato firmado em sua gestão, o Prefeito não determinou, de imediato, seu rescindir, mantendo-o ainda vigente. Ora, se diante das evidências que indiscutivelmente lhe foram expostas não tomou imediata medida visando dar término ao ilegal contratar, é porque já tinha conhecimento da situação, ou porque com ela compactuou. Para bem ilustrar, destaco que à fl. 178, encontra-se ofício enviado pela Procuradoria de Prefeitos do Ministério Público, em data de 12.01.2011, ao Sr. VILMAR BALLIN, não só noticiando os fatos e a denúncia, bem como lhe conferindo prazo para esclarecimentos extrajudiciais. Ou seja, se já não soubesse antes – o que na verdade tenho como impossível, diante de todos os fatos –, no momento em que recebeu a notificação o Prefeito teve plena ciência quanto à situação de ilegalidade da contratação. Após, no dia 29.07.2011, o Prefeito foi notificado para apresentar resposta escrita no presente processo-crime (fl. 327 e verso), e, inobstante isso, mais uma vez manteve vigorando o contrato de locação, cuja ilegalidade já lhe havia sido informada/demonstrada/questionada. O pacto locatício, contudo, mesmo diante da denunciada ilegalidade, somente restou rescindido pelo município no dia 02.12.2013 (fl. 831), portanto quase 03 anos depois da “primeira cientificação” do Prefeito à respeito dos fatos. Assim, não se há cogitar do acolhimento da tese de falta de conhecimento por parte do Prefeito VILMAR BALLIN, acerca da iliegalidade da contratação. 8. Diante de tudo o que retro exposto e analisado, tenho como comprovada a prática denunciada, tendo os acusados, em ajuste de vontades e comunhão de esforços, mediante omissão de fatos reais e com fulcro em processo de dispensa de licitação nitidamente forjado, procedido na contratação do município com pessoa legalmente impedida de assim proceder, por força da orientação contida no inc. III, do art. 9º, da Lei n. 8.666/93. As condutas dos denunciados caracterizaram utilização indevida de rendas públicas em proveito alheio, na medida em que o Prefeito Municipal, ao autorizar 43

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processo de dispensa de licitação (nitidamente forjado), e assinar pacto locatício de imóvel para o Município, ciente de que pertencente este a pessoa impedida de contratar com o Poder Público, procedeu destinação de verbas em desconformidade com a orientação legal, assim beneficiando, forma indevida, os co-réus MARIA SALETE e MILTON PINHEIRO. Estes, por sua vez, inobstante a real condição de proprietários do imóvel ofertado à Prefeitura, levaram a efeito a contratação mesmo cientes da impossibilidade, eis MARIA SALETE, na condição de Coordenadora da Vigilância Sanitária do Município, não poderia com o Poder Público contratar. Para tanto, utilizaram-se do nome de Roni Luiz Ribeiro – sucessor dos antigos proprietários e que anteriormente lhes havia cedido os direitos sucessórios sobre dito bem, todavia omitindo o registro de tal cessão na matrícula do imóvel –, como sendo o locador, assim visando conferir ares de legalidade a pactuação. Roni, porém, fez-se representado por Roberto Mariani, o qual, na qualidade de proprietário de imobiliária na cidade de Sapucaia do Sul, daquele recebeu poderes para administrar e locar o imóvel, assim conferindo segurança aos co-réus MARIA SALETE e MILTON não só quanto ao sigilo de toda a operação, bem como quanto ao recebimento, por estes, dos valores do aluguel, os quais sempre destinados por Roberto Mariani a eles, e não a Roni. 9. As defesas argumentam, ainda, atípicas as condutas, sob a alegação de que a contratação visava o atendimento de interesse público. Aludida tese, contudo, não vinga. In casu, tenho que os agentes, sob o manto de atendimento ao interesse público, agiram, em verdade, visando satisfazer interesse pessoal, ou seja, dos co-réus MARIA SALETE e MILTON. Entendo assim, não só por todo o nebuloso enredo que envolveu a contratação, bem como porque o interesse público poderia ser atendido mediante a locação de qualquer outro imóvel localizado na região central da cidade, que não o pertencente à servidora do Município. Não se pode aceitar que, sob o argumento de atendimento ao interesse público, o Prefeito Municipal deixe de observar ditames legais outros, especialmente referentes à livre concorrência para a contratação com o Município, assim privilegiando pessoas que sequer poderiam proceder à contratação. A conduta dos denunciados, portanto, é típica, devendo eles responder pela infração penal cometida. 44

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Sobre as características dos crimes de responsabilidade, Paulo Mascarenhas (1990, p. 70), com sabedoria ímpar, assim se expressou: “Os crimes definidos neste artigo dispensam a valoração do resultado para a tipificação do delito, não importando se o dano causado ao erário ou ao patrimônio públicos foi de maior ou menor monta. (...). Se ... o elemento motivador foi o interesse pessoal do agente – o prefeito ou seu substituto – ou de terceiro a quem queria beneficiar, trata-se, inequivocamente, de crime de responsabilidade, punível na forma e modo previsto neste Decreto-Lei.” 10. A defesa de MILTON e MARIA SALETE aduz, ainda, que a vedação do art. 9º, inc. III, da Lei das Licitações, não prevê a hipótese de locação, restringindo-se à participação na execução da obra ou serviço e ao fornecimento de bens a eles necessários. Sem razão. Assim prevê o mencionado artigo e inciso: “Art. 9o: Não poderá participar, direta ou indiretamente, da licitação ou da execução de obra ou serviço e do fornecimento de bens a eles necessários: (...) III - servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação”. E os serviços estão assim definidos por dita lei, em seu artigo 6º, inciso II: “Art. 6o: Para os fins desta Lei, considera-se: (...); II - Serviço - toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais;”. Como se vislumbra, portanto, a locação é considerada serviço, para os fins da Lei n. 8.666/93. 11. Os danos ao erário, no presente caso, decorrem da utilização indevida de rendas públicas, as quais eram destinadas ao pagamento de aluguel de imóvel. 45

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Como visto, a locação foi levada a efeito com pessoa impedida de contratar com o Poder Público, daí restando demonstrada a destinação dos valores em desconfirmidade com previsão legal. Diante disso, em comprovadas a materialidade e a autoria do ilícito, bem como todo o ardil utilizado para a realização da irregular locação, corolário lógico a condenação dos infratores. 12. Razão não assiste aos réus MILTON e MARIA SALETE, ainda, quando sustentam ausência da participação no ato da licitação e da contratação. Quanto ao ato da contratação, já restou demonstrado todo o ardil por eles perpetrado, fim de atingir o objetivo de locarem imóvel seu à municipalidade, mesmo cientes de que assim não poderiam proceder. Quanto à licitação, em conjunto com o Prefeito Municipal, articularam um processo para sua dispensa, o qual nitidamente forjado ante as singularidades elencadas acima. E, mesmo não se tratando os co-réus de Prefeitos do Município, a eles igualmente aplicável o Decreto n. 201/67, conforme entendimento jurisprudencial. Neste sentido, ilustro com a decisão abaixo: “Apelação Criminal. Preliminares. Inquérito policial. Dispensável. Ministério Público preside as investigações. Possibilidade. Aplicação do Decreto-Lei n. 201/67 a quem não é prefeito. Instauração de ação penal após a extinção do mandato de prefeito. Defesa do patrimônio público. Quebra de sigilo bancário pelo Ministério Público. Possibilidade. Juntada de certidão criminal aos autos. Ausência de comunicação ao réu. Ofensa ao princípio do contraditório. Inocorrência. Ausência de prejuízo. Forjar processo licitatório para desviar verba pública. Crime de responsabilidade de prefeito. Configuração. Prova. Existência. Condenação mantida.O inquérito policial é peça meramente informativa que pode ser dispensada pelo Ministério Público quando possuir informações suficientes para a propositura da ação penal. A jurisprudência é pacífica no sentido de autorizar a punição, nos termos do Decreto-Lei n. 201/67, de quem, mesmo não sendo prefeito, pratica crime descrito na lei mencionada, em concurso com prefeito municipal. (...). Restando comprovado nos autos, por meio de documentos e provas testemunhais, que o réu, em conluio com o prefeito municipal e demais co-réus, forjaram processo de licitação e desviaram renda pública, deve ser mantida a condenação pelo crime previsto no art. 1º, inc, I, § 1º, do Decreto-Lei n. 201/67”. (TJ-RO - APR: 10100320010013817 RO 101.003.2001.001381-7, Relator: 46

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Desembargador Cássio Rodolfo Sbarzi Guedes, Data de Julgamento: 23/03/2006, 1ª Vara Criminal). 13. Para o fixar das penas, passo à análise dos comemorativos do art. 59, do Código Penal. Ré MARIA SALETE: A culpabilidade é acentuada, tendo em vista a considerável reprovabilidade do comportamento praticado, eis ciente da impossibilidade de contratar com o Município, omitiu sua real condição de proprietária do imóvel ofertado, e posteriormente locado, a Prefeitura Municipal. A ré não apresenta antecedentes (fl. 909). Sua conduta social e personalidade não a desfavorecem. O motivo, ao que tudo indica, era o lucro financeiro. As circunstâncias a desfavorecem, uma vez que, mesmo ciente da impossibilidade de contratar com o Poder Público, levou adiante a irregular contratação. A consequência do delito foi a irregular e ilegal destinação de verbas públicas. E, por fim, não há falar, in casu, em comportamento da vítima. Sopesadas tais circunstâncias, a pena-base é estabelecida em 02 anos e 10 meses de reclusão. Entendo não configurada a hipótese de crime continuado, mas sim de crime único, porquanto somente uma conduta delituosa foi perpetrada. Inobstante tenham os pagamentos pelo aluguel sido efetuados em diversas oportunidades, fato é que houve apenas uma contratação, daí incidindo na espécie o comando do art. 71, do Código Penal. Ausentes alteradoras outras, resta definitizada neste patamar. O regime de cumprimento vai estabelecido no aberto. Preenchidos os requisitos do art. 44, do Código Penal, vai a sanção carcerária substituída por duas restritivas de direitos (§ 2º, do art. 44, do Código Penal), consistentes em prestação de serviços à comunidade, por igual prazo, e prestação pecuniária, estabelecida em 10 salários mínimos (face à situação econômica da ré). Réu MILTON: A culpabilidade é acentuada, tendo em vista a considerável reprovabilidade do comportamento praticado, eis ciente da impossibilidade de contratar com o Município, tendo em vista o cargo exercido por sua esposa, omitiu a real condição de proprietário do imóvel ofertado, e posteriormente locado, à Prefeitura Municipal. O réu apresenta antecedente (processo n. 035/2.03.0000014-9, fl. 910). Sua conduta social e personalidade não o desfavorecem. O motivo, ao que tudo indica, era o lucro financeiro. As circunstâncias o desfavorecem, uma vez que, mesmo ciente 47

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da impossibilidade de contratar com o Poder Público em decorrência do cargo exercido por sua esposa, levou adiante a irregular contratação. Além disso, em exercendo a atividade de advogado, tendo inclusive laborado como Procurador do Município e da Câmara Municipal, tinha plena ciência da vedação da contratação. A consequência do delito foi a irregular e ilegal destinação de verbas públicas. E, por fim, não há falar, in casu, em comportamento da vítima. Sopesadas tais circunstâncias, a pena-base é estabelecida em 03 anos e 04 meses de reclusão. Entendo não configurada a hipótese de crime continuado, mas sim de crime único, porquanto somente uma conduta delituosa perpetrada. Inobstante tenham os pagamentos pelo aluguel sido efetuados em diversas oportunidades, fato é que houve apenas uma contratação, daí incidindo na espécie o comando do art. 71, do Código Penal. Ausentes alteradoras outras, resta definitizada neste patamar. O regime de cumprimento vai estabelecido no aberto. Preenchidos os requisitos do art. 44, do Código Penal, é a sanção carcerária substituída por duas restritivas de direitos (§ 2º, do art. 44, do Código Penal), consistentes em prestação de serviços à comunidade, por igual prazo, e prestação pecuniária, estabelecida em 10 salários mínimos (face à situação econômica do réu). Réu VILMAR: A culpabilidade é igualmente acentuada, tendo em vista a considerável reprovabilidade do comportamento praticado, eis ciente da impossibilidade de contratação do Município com os co-réus, face ao cargo exercido por MARIA SALETE, autorizou processo de dispensa de licitação nitidamente forjado, tudo visando dar ares de regularidade à contratação levada a efeito. O réu não apresenta antecedentes (fls. 908/908v). A conduta social e personalidade não o desfavorecem. O motivo, ao que tudo indica, foi o favorecimento de terceiros, in casu dos co-réus. As circunstâncias o desfavorecem, uma vez que mesmo ciente da real propriedade sobre o imóvel ofertado à Prefeitura, e da impossibilidade de contratação diante desta, autorizou processo de dispensa de licitação, e, após, firmou contrato com pessoa impedida de pactuar com o Poder Público. A consequência do delito foi a irregular e ilegal destinação de verbas públicas, e favorecimento de terceiros em detrimento à livre concorrência. E, por fim, não há falar, in casu, em comportamento da vítima. Sopesadas tais circunstâncias, a pena-base é estabelecida em 03 anos e 02 meses de reclusão. 48

Locação de imóvel com fraude à licitação e responsabilidade criminal do Prefeito Municipal

Entendo não configurada a hipótese de crime continuado, mas sim de crime único, porquanto somente uma conduta delituosa perpetrada. Inobstante tenham os pagamentos pelo aluguel sido efetuados em diversas oportunidades, fato é que houve apenas uma contratação, daí incidindo na espécie o comando do art. 71, do Código Penal. Ausentes alteradoras outras, resta definitizada neste patamar. O regime de cumprimento vai estabelecido no aberto. Preenchidos os requisitos do art. 44, do Código Penal, é a sanção carcerária substituída por duas restritivas de direitos (§ 2º, do art. 44, do Código Penal), consistentes em prestação de serviços à comunidade, por igual prazo, e prestação pecuniária, estabelecida em 10 salários mínimos (face à situação econômica do réu). E como ponderado pela acusação, em ausente pleito de perda do cargo e/ou de inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, inaplicável à espécie o comando do art. 1º, § 2º, do Decreto-Lei n. 201/67. 14. Ante ao exposto, julgo parcialmente procedente a denúncia, para condenar MARIA SALETE MARIANI DOS SANTOS, MILTON PINHEIRO DOS SANTOS e VILMAR BALLIN, como incursos nas sanções do art. 1º, inc. II, do Decreto-Lei n. 201/67, combinado com o art. 29, caput, do Código Penal, às penas, respectivas, de 02 anos e 10 meses de reclusão, 03 anos e 04 meses de reclusão, e de 03 anos e 02 meses de reclusão, a serem cumpridas no regime aberto, sendo todas substituídas por penas restritivas de direitos, nos termos do voto. Des. Ivan Leomar Bruxel (Revisor) – De acordo com o(a) Relator(a). Des. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto (Presidente) – Acompanho o eminente Relator. Des. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto – Presidente - Acao Penal - Procedimento Ordinario nº 70043300532, Comarca de Sapucaia do Sul: “JULGARAM PARCIALMENTE PROCEDENTE A DENÚNCIA. UNÂNIME.”

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DESVIO DE VERBA PÚBLICA EM DIÁRIAS PARA VEREADORES COMO CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: UM ESTUDO DE CASO Rogério Gesta Leal

I – NOTAS INTRODUTÓRIAS Pretendo neste artigo tratar do tema do desvio de verba pública em diárias para Vereadores como forma de crime contra a Administração Pública, estabelecendo o contexto em que isto se enquadra no sistema normativo brasileiro, em especial a partir da ideia de moralidade pública e responsabilidade dos agentes públicos. Ao final vou apresentar um estudo de caso que julguei no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.1 II – OS CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL: CONTEXTOS NORMATIVOS Os crimes contra a Administração Pública no Brasil devem ser compreendidos a partir de sua necessária integração com todo o sistema normativo nacional, constitucional e infraconstitucional e, em especial, com os demais referenciais jurídicos que pautam a Administração Pública contemporânea em geral (princípios e regras). 1 – O caso é a Apelação Criminal n. 70056085798, julgado pela Quarta Câmara Criminal, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em 7 de novembro de 2013, com os Eminentes Desembargadores Gaspar Marques Batista e Newton Brasil de Leão.

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Já tive oportunidade de dizer que os princípios fundamentais constitucionais brasileiros são vinculantes à Administração Pública, fazendo com que todas as ações estatais (criação e desenvolvimento de políticas públicas, atos administrativos, legislativos e jurisdicionais) estejam previamente determinadas por alguns contornos, limites e direções estatuídos por tais princípios, operando sempre e de forma continuada como filtro prévio do exame da constitucionalidade e legalidade dos seus atos a partir do cotejo com os fundamentos e objetivos do Estado Democrático de Direito brasileiro normatizado.2 Assim é que, quando a Administração, pela via dos seus agentes públicos (servidores públicos ou agentes políticos), estiver promovendo seus atos oficiais, cumprindo com suas atribuições normativas e políticas, ou o faz respeitando e perseguindo os ditames constitucionais insertos nos Princípios Fundamentais, ou corre o risco de cometer inconstitucionalidades por omissão ou ação. De outro lado, cumpre reconhecer que enquanto os princípios explícitos da Administração Pública encontram-se bem identificados no sistema jurídico nacional, têm a doutrina e a jurisprudência pátrias reconhecido a existência dos chamados princípios implícitos da Administração, demandando esforço hermenêutico e desvelador diferenciado, uma vez que não contam, salvo melhor juízo, com a plasticidade direta e posta pela norma cogente, a despeito de já constarem do sistema jurídico como um todo.3 Neste particular, chamo a atenção, a título exemplificativo, para três clássicos e importantes princípios da Administração Pública, dois implícitos e um explícito, que entendo como constitutivos do Estado Administrador Democrático de Direito4, em face da ordem constitucional vigente, a saber: (a) os dois implícitos, a supremacia do interesse público e a indisponibilidade do interesse público; (b) o explícito, a moralidade administrativa.

2 – Aqui entendidas como atinentes à supremacia do interesse público da maior parte quantitativa da população e sua indisponibilidade. Tratei deste tema em meu livro LEAL, Rogério Gesta. Estado, Administração Pública e Sociedade: novos paradigmas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 3 – Vale aqui a advertência de GRAU, Eros. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 130: “... esses princípios se existem, já estão positivados; se não for assim, deles não se trata. A sua positivação, todavia, não se dá mediante seu resgate no universo do direito natural, como tantos supõem; ela não é constituída, essa ‘positivação’, mas simplesmente reconhecida no instante do seu descobrimento (do princípio) no interior do direito pressuposto da sociedade a que corresponde”. 4 – Entendido aqui como aqueles que estabelecem os pressupostos que a Administração Pública deve observar na execução de suas políticas e pautas gerenciais cotidianas. 52

Desvio de verba pública em diárias para Vereadores como crime contra a Administração Pública: um estudo de caso

Tratando como primeiro o da supremacia do interesse público, tem-se que ele é inerente a qualquer Sociedade contemporânea, a despeito de não constar expressamente no texto constitucional brasileiro5, haja vista que diz respeito, de um lado, a uma circunstância que não pode ser negada no âmbito das relações de poder e políticas contemporâneas, marcadas que estão por interesses e projetos muito mais corporativos do que sociais; de outro lado, à formatação de práticas de poder geralmente corporativas e unilaterais, exatamente para reproduzir o modelo de crescimento econômico hegemônico. Assim, tenho como interesses públicos os que dizem respeito, de um lado, ao plexo normativo de prerrogativas sociais atinentes a toda comunidade – principalmente os constitucionais; de outro lado, os apresentados cotidianamente pelas demandas de natureza política, econômica, cultural, etc. da Sociedade como um todo.6 Por óbvio, não se está aqui a defender a tese de que há uma contraditória relação entre interesse público e privado, pois eles, em verdade, se inter-relacionam constantemente, sendo por vezes causa e efeito recíprocos. Todavia, revela-se inafastável a percepção de que também operam com lógicas diferenciadas, mantendo certo tensionamento em suas coexistências que precisa ser identificado e solvido em cada situação concreta que se apresentar. Essa tarefa, de qualquer sorte, deve estar coordenada pelo Estado, eis que é espaço de gestão de todos os interesses que interagem no contexto do mundo da vida. E ainda se tem o princípio da indisponibilidade do interesse público7. Sobre ele, a doutrina administrativista brasileira tem, em regra, unificado sua interpretação, sustentando que, em face da natureza do interesse, demarcada pelos contornos de sua supremacia e objeto que alcança, dizem respeito não à vontade/propriedade do administrador ou do Estado, mas, ao contrário, pertence originariamente a outrem, o detentor da soberania material: a Sociedade. E, assim, não possuindo a Administração a titularidade do bem público (aqui entendido como o interesse público), cabe-lhe, tão somente, a condição de gestora, por delegação 5 – Trata-se, aqui, de um Princípio Implícito ao ordenamento jurídico, tão importante quanto os explícitos, consoante ensinamento de GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. 6 – Estou falando, por exemplo, do conjunto de direitos insertos nos arts. 5º, 6º, 7º, 144, 150, 170, 182, 191, 194, 196, 203, 205 da Constituição de 1988. 7 – A indisponibilidade, aqui, diz respeito exatamente à noção ou ideia contrária de bens ou interesses disponíveis, ou seja, aqueles sujeitos à livre alienação ou à transação pelos seus titulares. 53

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de competências, de tal patrimônio8. Esta gestão, por sua vez, também está condicionada por objetivos e fins pré-ordenados, ao menos em termos gerais9. O denominado interesse particular pode ser considerado como disponível porque informado, tão somente, pela vontade humana livre, limitada pelos termos vedatórios da norma jurídica (veja-se que a disponibilidade impera no campo do direito privado, visto que está subordinada a voluntas do dominus), tendo como critério diferenciador do interesse público, dentre outros, o fato de que se revela como indisponível porque informado pela ideia de fim. Se no direito privado prevalece a vontade, no direito administrativo tem-se a finalidade como elemento informador das possibilidades da ação ou omissão estatal. A atividade administrativa obedece, cogentemente, a uma finalidade, à qual o agente é obrigado a adscrever-se, quaisquer que sejam as suas inclinações pessoais; e essa finalidade domina e governa a atividade administrativa, imediatamente, a ponto de assinalar-se, em vulgar, a boa administração pela impessoalidade, ou seja, pela ausência de subjetividade. À relação jurídica que se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente dá-se o nome de relação de administração. Esta domina e paralisa a de direito subjetivo.10 Diante do ponderado, resta claro que o administrador não tem a proprietas do bem/interesse público; não tem o direito de operar com o interesse público de tal maneira que dele disponha a seu talante, em função das normas que o restringem, explicitando-se, cotidianamente, como intangível e indisponível. Indisponível, no sentido que lhe dá Calmon de Passos11, é todo o direito em relação ao qual o titular não é livre de manifestar a sua vontade. Tais são os bens da 8 – Nesse sentido FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 63. Da mesma forma e direção: ALESSI, Renato. Instituciones de Derecho Administrativo. Buenos Aires: Casa Editorial, 1990; BIELSA, Rafael. Derecho Administrativo. Buenos Aires: La Ley, 1975; BONNARD, Roger. Précis de Droit Administratif. Paris: LGDJ, 2001; CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Tratado de Direito Administrativo. São Paulo: Freitas Bastos, 1986. 9 – Os já referidos princípios constitucionais e direitos e garantias fundamentais. 10 – LIMA, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo. Porto Alegre: Globo, 1984, p. 51. O autor usa a interessante expressão paralisação do direito subjetivo, que prefiro não usar, evitando assim qualquer associação negativa à capacidade e obrigação do gestor público exercer, com responsabilidade e vinculatividade ao ordenamento jurídico, sua discricionariedade oficiosa. 11 – CALMON DE PASSOS, J. J. Comentários ao Código de Processo Civil. Volume III. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 406-408. 54

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Fazenda Pública, uma vez que estão fora da disposição de seus titulares. Por conseguinte, os representantes das pessoas jurídicas de Direito Público Interno, para a satisfação dos objetivos de interesse coletivo, não detêm a disponibilidade dos direitos daquelas pessoas jurídicas. Neste particular, importa reforçar a ideia de que o interesse público é confiado ao Estado, não aos seus órgãos, muito menos aos seus agentes, destacando-se as pessoas administrativas como verdadeiros instrumentos do Poder Público, o que não significa total paralisia no processo de planejamento, instituição e execução de políticas públicas, mas que tais não podem estar atreladas a idiossincrasias intersubjetivas e objetivos pessoais desses agentes.12 Para que haja a disponibilidade do interesse público, há que se observar todo um plexo de medidas e procedimentos reflexivos e aferidores das motivações e fundamentos apresentados para tanto, mediante, necessariamente, o pronunciamento e autorização, por exemplo, do legislativo, tudo ficando a mercê da sindicabilidade jurisdicional. Os Poderes da Administração, nessa perspectiva, apresentam-se como instrumentais servientes do dever de bem cumprir a finalidade a que estão, indissoluvelmente, atrelados. Logo, quem desempenha o munus público, tem, na realidade, deveres-poderes, em que a tônica reside, como quer Mello13 e Alessi14, no dever. Por fim, como que pairando sobre todo e qualquer ato da Administração Pública, de forma até instigante, tem-se o complexo princípio da moralidade administrativa que, por sua vez, constitui pressuposto da validade de todo o 12 – Assim, não se pode imaginar que a Administração Pública possa proceder a transações administrativas, ou mesmo judiciais, envolvendo o patrimônio público, sem qualquer autorização para tanto. Neste sentido se pronunciou o já extinto Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul: Recurso: APC – Número: 189022809 – Data: 06-06-1989 – Órgão: Primeira Câmara Cível – Relator: Osvaldo Stefanello – Origem: Rio Pardo – E M E N T A – Possessória contra Município. Bens de uso comum do povo. Acordo. Não é válido acordo feito em audiência, reconhecendo, o Município, a legitimidade da posse dos autores em ação proposta contra a pessoa jurídica de direito público, fazendo doação de benfeitorias construídas, com dinheiro público, sobre a área objeto da lide. Apelação. Legitimidade do Município. Tem legitimidade o Município para interpor o recurso de apelação, objetivando seja declarado nulo o acordo de cujas condições decorre lesividade ao patrimônio público municipal, ante a indisponibilidade dos bens de domínio público ou de uso comum do povo. Provimento do apelo do Município. Decisão: dado provimento. Unânime. Escolhi de propósito decisão tão antiga para evidenciar que o tema não escapou do Poder Judiciário já há bastante tempo. 13 – MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 57. 14 – ALESSI, Renato. Principi di Diritto Amministrativo. Milano: Giuffrè, 1990, p. 82. 55

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comportamento do agente público e suas instituições, compreendendo os princípios da lealdade e da boa-fé.15 A moralidade administrativa está inserida na Constituição Federal como princípio fundamental a ser obedecido pela Administração Pública (órgãos e agentes), sendo diversos e variados os desdobramentos por atingir, de modo nuclear, o aspecto axiológico das ações concretas desenvolvidas pelos agentes públicos. A despeito de tamanha significação, não se pode afirmar que exista, hoje, nas teorias que se ocupam do Estado Administrador, uma especial e definitiva conceituação para a configuração jurídica da moralidade administrativa. O que se tem, como certo, é que ela constitui, isto sim, pressuposto da validade de todo ato da Administração Pública. A doutrina especializada atribui a Maurice Hauriou16 a sistematização de tal conceito, fato ocorrido nas primeiras décadas do século XX. Segundo o referido doutrinador, não se busca impor, na prática da atividade administrativa, uma moral comum, mas sim, uma moral jurídica, entendida como o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração. Tem-se, portanto, na escola administrativa francesa, a base da construção da moralidade administrativa moderna, como princípio que se compõe, de um lado, pela afirmação de que a legalidade dos atos jurídicos administrativos é fiscalizada pelo recurso baseado na violação da lei; de outro, de que é preciso aferir também a conformidade desses atos aos princípios basilares da boa administração, determinante necessária de qualquer decisão administrativa, atentando-se para os riscos do chamado desvio de poder, cuja zona de policiamento é a da moralidade administrativa17. Assim é que, a partir do princípio da moralidade administrativa, a satisfação dos requisitos legais do ato não é suficiente, impondo-se ir adiante, no intento de investigar se, realmente, há interesse público nele, ou outro tipo de interesse, desse divorciado; ou seja, os poderes administrativos concedidos à autoridade pública não são ilimitados, mas deverão estar sempre em consonância com os princípios 15 – Conforme quer BONNARD, Roger. Précis de Droit Administratif. Paris: LGDJ, 2001, p. 82 e ss. 16 – HAURIOU, Maurice. Precis Élémentaire de Droit Administratif. Paris: Dalloz, 1976. Para o autor, esta moralidade diz respeito a ações que têm como resultados elementos satisfatórios ao interesse da comunidade, fim primordial da Administração Pública. 17 – Nesse sentido ver também BRANDÃO, Antônio José. Moralidade Administrativa. In Revista de Direito Administrativo, n. 25. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 457-471. 56

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que lhe são impostos pelo ordenamento jurídico, implícitos ou explícitos, todos aqui considerados horizontalmente.18 Em outras palavras, é indispensável à caracterização da moralidade de um ato administrativo a análise dos seus motivos e objetos, o que possibilita afirmar se houve ou não a efetivação do dever de boa administração inerente ao Administrador/Interesse Público19. De se ver que o âmbito de subjetividade que a moral contém implica não se tratar apenas de saber se é ou não legal determinado ato de gestão pública, mas se ele está ou não em consonância com os anseios de justiça, objetivos e finalidades da República que informam a organização social dos administrados, previamente insertos no Texto Constitucional. A finalidade do controle da moralidade, assim, é, fundamentalmente, assegurar que os atos da Administração Pública estejam sempre de acordo com esses vetores axiológicos administrativos. Observa-se, dessa forma, que o conceito de moralidade é determinante de regras de conduta, ou seja, traça linhas de comportamento para o administrador, fazendo com que este, ao realizar seus atos, observe, além dos elementos constitutivos próprios de cada um, a eficácia dos mesmos no plano dos compromissos e vinculações político-jurídicas já existentes.20 O elemento moral, então, a partir da Constituição Brasileira de 1988, passa a integrar o ato administrativo por força de preceito da mais alta categoria. A consequência gerada é de relevância, porque a moralidade passou a ser um requisito constitucional de sua validade, evidenciando-se como um dos elementos integrantes da formação e validade do ato administrativo, o que não mais permite a conduta jurisprudencial a abandonar a sua análise, pelo que, agindo de conformidade com o princípio constitucional referido, põe um freio na conduta da Administração e/ou seus agentes que, por vezes, apresenta evolver desordenado, irregular, impróprio, desajustado com o ordenamento jurídico. 18 – O desvio de finalidade, por sua vez, se efetiva quando a prática do ato estiver fundamentada em motivos ou tiver fins diversos dos objetivados pela lei ou pelo interesse público, conforme ensinamento de DIEZ, Manoel Maria. El acto administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1995, p. 273. 19 – Evidencia-se, pois, viciada a moralidade administrativa quando houver a prática de um ato fundado em motivo inexistente, insuficiente, incompatível, etc.; do mesmo modo, caracteriza-se a imoralidade administrativa quando o ato visar ao objeto impossível, desconforme e ineficiente ao permissivo legal e ao interesse público. Neste sentido o texto de MAIRAL, Héctor. Control Judicial de la Administración Pública. V. I. Buenos Aires: Depalma, 1990, p. 134. 20 – Como quer FRAGOLA, Umberto. Degli atti amministrativi. Milano: Giuffrè, 1992, p. 187. 57

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A jurisprudência nacional já vem a bastante tempo insistindo em assim compreender esse princípio, entendendo, por exemplo, em sede de Ação Popular, que basta existir ato administrativo que contraria normas específicas que regem a sua prática ou que se desviam dos princípios que norteiam a Administração Pública, para os fins de ensejar sua interposição, afigurando-se como dispensável a demonstração de prejuízo material aos cofres públicos no caso concreto, já que o disposto no inc. LXXIII do art. 5º da Constituição Federal abarca não só o patrimônio material do Poder Público, como também o patrimônio moral, o cultural e o histórico21. Em outra situação curiosa do legislativo brasileiro, a jurisprudência histórica pátria entendeu que, uma vez sendo a remuneração do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos Vereadores fixada pela Câmara Municipal em cada legislatura para a subsequente, nos termos do que dispõe a Carta Política, em seu art. 29, V, em ocorrendo a fixação pelos edis de sua própria remuneração para viger na própria legislatura, praticam ato inconstitucional lesivo não só ao patrimônio material do Poder Público, como à moralidade administrativa.22 Em face desses elementos configurativos todos da Administração Pública contemporânea, relevando sua importância à democracia social e institucional no País, é que se tem criado ao longo do tempo instrumentos de controle e responsabilização tanto do Poder Público como dos Agentes Políticos que o gerenciam. Estou falando, exemplificativamente, das ferramentas da Ação Popular, da Ação Civil Pública, da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, 21 – Conforme decisão RE 170.768 – DJ: 13-08-99. p. 00016, Ement. vol. 01958-03, p. 00445. Julgamento em 26-03-99, Primeira Turma, Relator: Ministro Ilmar Galvão. Origem: São Paulo. 22 – RE 206.889/MG. DJ: 13-06-97, p. 26718, Ement. vol. 01873-11, p. 02257. Julgamento em 25-03-97, Segunda Turma, Relator: Ministro Ilmar Galvão. Assim também a seguinte decisão envolvendo o Tribunal de Contas da União: EMENTA: Tribunal de Contas. Nomeação de seus membros em Estado recém-criado. Natureza do ato administrativo. Parâmetros a serem observados. Ação Popular desconstitutiva do ato. Tribunal de Contas do Estado de Tocantins. Provimento dos cargos de conselheiros. A nomeação dos membros do Tribunal de Contas do Estado recém-criado não é ato discricionário, mas vinculado a determinados critérios, não só estabelecidos pelo art. 235, III, das disposições gerais, mas também, naquilo que couber, pelo art. 73, par. 1, da CF. NOTORIO SABER - Incisos III, art. 235 e III, par. 1, art.73, CF. Necessidade de um mínimo de pertinência entre as qualidades intelectuais dos nomeados e o oficio a desempenhar. Precedente histórico: parecer de Barbalho e a decisão do Senado. Ação Popular. A não observância dos requisitos que vinculam a nomeação enseja a qualquer do povo sujeita-la a correção judicial, com a finalidade de desconstituir o ato lesivo a moralidade administrativa. Recurso extraordinário conhecido e provido para julgar procedente a ação. In RE 167.137/TO. DJ: 25-11-94, p. 32312, Ement. vol. 01768-04, p. 00840. Julgamento em 18-10-94, Ministro Paulo Brossard, Segunda Turma. 58

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a previsão de responsabilidade civil e criminal em face de atos de improbidade administrativa deste Decreto-Lei n. 201/67, todas formas de densificação material protetiva daqueles princípios debatidos e da Boa Administração em geral. É este cenário de fundo que se faz muito presente na contextualização dos chamados crimes dos Prefeitos e Vereadores, lembrando quais os bens jurídicos mediatos e imediatos que estão em jogo, e ele tem de ser trazido à colação sempre, dando-se conformidade teleológica às atribuições de sentido – interpretativas – à aplicação da norma. Feitas tais considerações, quero agora tratar mais pontualmente do caso concreto julgado. III – O CASO CONCRETO O Ministério Público, na Comarca de Montenegro, em data de 3 de janeiro de 2011, ofereceu denúncia contra Raul Fernando Feiten e Elói Inácio Stein como incursos nas sanções do art. 31223, caput, e art. 30424, ambos do Código Penal, na forma do art. 6925, do mesmo diploma legal; e o denunciado José Luis Oliveira de Souza, nas sanções do art. 312, caput, e art. 29926, caput, ambos do Código Penal, também na forma do art. 69, do mesmo diploma legal, pela prática dos seguintes fatos delituosos: 1º FATO (Peculato): Entre os dias 05 e 10 de dezembro de 2005, no Município de Maratá/R, os denunciados RAUL FERNANDO FEITEN e ELÓI INÁCIO STEIN, em

23 – Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio. Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa. 24 – Art. 304 - Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302. Pena a cominada à falsificação ou à alteração. 25 – Art. 69 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela. 26 – Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante. Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, se o documento é particular. 59

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acordo de vontades e em conjunção de esforços, na condição de Vereadores de Maratá, desviaram em proveito próprio, a importância de R$ 1.560,24 (mil, quinhentos e sessenta reais e vinte e quatro centavos) cada um, referente a duas diárias com pernoite, fora do Estado, que os dois receberam do erário municipal, em razão do cargo que exerciam (conforme notas de empenho n.º 003157/2005 e 003158/2005 e Recibos de Transferência de Valores entre Contas Banrisul n.º 201128/031587 e 201328/032427, de fls.), para que frequentassem, no Balneário Camboriú/SC, Hotel Geranium, dias 07, 08, 09 e 10 de dezembro de 2005, o curso “A Responsabilidade Política, Cível e Penal dos Administradores Públicos e seus Agentes”, sem a necessária contrapartida ou justificativa, já que não participaram do seminário, eis que não constam os nomes e nem as assinaturas dos denunciados na lista de presença do evento. 2º FATO (Peculato): Nas mesmas circunstâncias de tempo, possivelmente, em Lages/SC, sede do DAP, o denunciado JOSÉ LUÍS OLIVEIRA DE SOUZA, em conluio com os demais, na condição de Diretor-responsável pelo Desenvolvimento em Administração Pública e também pelo evento “A Responsabilidade Política, Cível e Penal dos Administradores Públicos e seus Agentes” desviou em proveito de RAUL e ELÓI a importância de R$ 1.560,24, para cada, pagos pelo erário municipal de Maratá, sem a necessária contrapartida, pois não participaram de qualquer atividade que determinou o pagamento antecipado das diárias. 3º FATO (FALSIDADE IDEOLÓGICA): No dia 10 de dezembro de 2005, o denunciado JOSÉ LUÍS, com a finalidade de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante e, assim facilitar a prestação de contas de diárias recebidas de forma antecipada pelos vereadores RAUL e ELÓI, inseriu declaração falsa nos certificados de frequência referentes ao evento “A Responsabilidade Política, Cível e Penal dos Administradores Públicos e seus Agentes”, ao atestar que os referidos vereadores participaram do curso, quando, na verdade, sequer compareceram. 4º FATO (Uso de documento falso): Em data não esclarecida, provavelmente no curso do mês de dezembro de 2005, na Câmara Municipal dos Vereadores de Maratá, os denunciados RAUL e ELÓI fizeram uso de documento falso, ao apresentarem para prestação de contas de duas diárias com pernoite os certificados de frequência que atestavam falsamente a participação no evento “A Responsabilidade Política, Cível e Penal dos Administradores Públicos e seus Agentes”, no qual sequer compareceram. 60

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A denúncia foi recebida em 18 de julho de 2011, e o processo teve regular processamento, com sentença de 1º Grau em 26-04-13, julgando parcialmente procedente a denúncia para: a) condenar os réus RAUL FERNANDO FEITEN e ELÓI INÁCIO STEIN pelo crime de peculato (FATO 1 – art. 312 do Código Penal), imputando-lhes a pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de reclusão, a ser cumprida inicialmente em regime aberto, como pena de multa fixada em 10 (dez) dias-multa, à razão unitária de 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo vigente ao tempo do fato. b) absolver o réu JOSÉ LUIS OLIVEIRA DE SOUZA da acusação formulada no 2° fato delituoso; e absolver os réus RAUL FERNANDO FEITEN e ELÓI INÁCIO STEIN da acusação formulada no 4° fato delituoso, com base no art. 386, inc. III, do Código de Processo Penal. Inconformadas, as defesas dos réus condenados apelaram e em suas razões aduziram, em síntese, que houve ausência de fundamentação na sentença apelada ao fixar a pena em 2 anos e 8 meses para o crime de peculato, contrariando o disposto no art. 93, inc. IX, da Constituição Federal. Sustentou que no crime de peculato o elemento subjetivo do tipo é o dolo, que não se encontrou no caso em tela. Fizeram ainda referência a fragilidade probatória constante nos autos, impondo a absolvição dos acusados. Por fim, pediram a redução da pena para o mínimo legal, sob o argumento de que os fatos narrados na denúncia ocorreram em dezembro de 2005, sendo esta recebida em 18 de julho de 2011, transcorrendo um lapso temporal de 5 anos e 7 meses, configurando a prescrição punitiva, com base no art. 109, inc. V, do Código Penal. Nas contrarrazões, o Ministério Público de 1º Grau postulou o desprovimento do recurso, e assim o fez também o seu representante no 2º Grau. O deslinde do caso resta fácil a partir dos elementos coligidos na primeira parte deste trabalho. Ao analisar os autos do feito é possível verificar que eles dão conta da imputação do delito de peculato contra Raul Fernando Feiten e Elói Inácio Stein, em conjunção de esforços, na condição de Vereadores do Município de Maratá, pelo fato de terem desviado em proveito próprio, entre os dias 5 a 10 de setembro, a importância de R$1.560,24 cada um, quantia esta destinada para o pagamento de duas diárias para frequentarem o curso “A Responsabilidade Política, Cível e Penal dos Administradores Públicos e seus Agentes”, em Balneário Camboriú/SC, conforme Resolução de Mesa da Câmara de Vereadores n. 10/2005, notas de empenho 61

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n. 003157/2005 e 003158/2005, recibos de transferência para as contas dos acusados, certificados de frequência do curso (fls. 220 e 230), e listas de presenças do curso. No âmbito da Promotoria de Justiça, o acusado Elói Inácio Stein disse que participou do evento realizado em Balneário Camboriú, tendo apresentado os documentos de comprovação. Informou que não participou integralmente da programação do evento, assistindo apenas parte das palestras, e que não assinou a lista de presença, pois não sabia da sua existência. Disse que chegava tarde nas palestras. O acusado Raul Fernando Feiten disse na Promotoria que participou de quase todas as palestras. Recordou que assinou um caderno que seria a lista de presenças. Apresentada a lista, não localizou a sua assinatura. Afirmou que ficou hospedado no mesmo hotel onde foi realizado o evento. O problema é que o Diretor Jurídico da empresa DAP – Desenvolvimento em Administração Pública, organizadora do evento, Sr. José Luís Oliveira de Souza, prestou esclarecimento escrito referindo que: No controle que me foi passado pelo encarregado das inscrições e certificados, Sr. Edemar, não consta que a Câmara de Vereadores de Maratá/RS, tivesse enviado algum participante. (...) os nominados vereadores compareceram ao mesmo evento com o mesmo tema, realizado em Porto Alegre/RS, nos dias 28 a 30/08/2006, cumprindo carga horária de 75%, ainda que com relutância dos mesmos. Judicialmente, os acusados negaram os fatos para os quais foram denunciados. O réu Raul disse que fez o curso, pegou o certificado e foi embora. Não sabe porque está sendo acusado. Afirmou que não foi apresentada a lista de presença. Disse que o curso era das 8h até às 13h. O réu Elói, por sua vez, mencionou que voltaram com certificado e recibo de inscrição, não soube explicar o porquê estava sendo acusado. Disse que o curso foi realizado em Camboriú, em uma sala comercial. O horário do curso era de manhã e tarde. Não assinou a lista porque nunca foi apresentada. Não fez compras e não fez passeio pela cidade. Veja-se que há nítidas contradições entre os depoimentos dos réus, quanto ao local que foi realizado o evento, porquanto o acusado Elói sequer soube afirmar onde efetivamente ocorreu o evento, se foi em um apartamento ou sala comercial. Já Raul disse que o evento foi realizado num hotel, cujo nome não recordava. Além disso, outra evidência do cometimento do delito de peculato está na versão de Raul quanto à assinatura na ficha de presenças. Na fase investigatória,

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disse que assinou tal documento, porém, quando apresentadas as listas de presenças fornecidas pela organização do evento, não encontrou sua assinatura. Já na fase judicial, ratificou suas declarações anteriormente prestadas, alterando a versão quanto à assinatura no referido documento. Assim, restou amplamente demonstrada a autoria e o dolo dos acusados, porquanto aproveitaram das facilidades dos cargos públicos que ocupavam para obter vantagem pessoal, desviando dos cofres públicos o montante de R$ 1.560,24 (mil, quinhentos e sessenta reais e vinte e quatro centavos) cada um. Sobre o tema, ensina Cezar Roberto Bitencourt: O crime de peculato, na precisa descrição do caput do art. 312 – peculato próprio –, consiste no apossamento ou desvio (destinação diversa), por parte de funcionário público, de coisa móvel (dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel), pública ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, em proveito próprio ou alheio.27 Em termos de dosimetria da pena, ao analisar as condutas dos réus com base no art. 59, a julgadora nada acrescentou quanto à culpabilidade, antecedentes, personalidade dos agentes, os motivos, as consequências e o comportamento da vítima, considerando desfavorável tão somente as circunstâncias do crime, sob o fundamento de que os acusados, no intuito de simular a participação no curso, dirigiram-se até o Balneário Camboriú, praticando turismo às custas ao erário. Por tal razão, fixou a pena-base em 2 (dois) anos e 8 (oito) meses, restando definitiva neste patamar, em face da ausência de outras moduladoras. Tenho que se mostrou adequado o aumento da pena com base nas circunstâncias do crime, em face das pessoas envolvidas (agentes políticos eleitos), relatada pela prolatora da sentença, isto porque, além do benefício obtido pelos réus com o dinheiro público, restaram violadas drasticamente a moralidade e a ética públicas, protegidas pelo tipo penal de forma indireta. E Nélson Hungria é lapidar no ponto ao lembrar que: no peculato a posse ou detenção resulta da confiança imposta pela lei como indispensável ao cargo público exercido pelo agente... A confiança, deve merecê-la o agente, não por sua qualidade genérica de funcionário público, mas porque titular do cargo que o torna competente, na ocasião, para o recebimento e consequente posse.28 Por todos esses elementos, os recursos dos réus foram julgados improcedentes pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

27 – BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial: dos crimes contra a administração pública e dos crimes praticados por prefeitos. Vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 45. 28 – HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. IX. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 340. 63

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IV - BIBLIOGRAFIA ALESSI, Renato. Instituciones de Derecho Administrativo. Buenos Aires: Casa Editorial, 1990. ______. Principi di Diritto Amministrativo. Milano: Giuffrè, 1990. BIELSA, Rafael. Derecho Administrativo. Buenos Aires: La Ley, 1975. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial: dos crimes contra a administração pública e dos crimes praticados por prefeitos. Vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2013. BONNARD, Roger. Précis de Droit Administratif. Paris: LGDJ, 2001. BRANDÃO, Antônio José. Moralidade Administrativa. In Revista de Direito Administrativo, n. 25. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. CALMON DE PASSOS, J. J. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense, 2001. CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Tratado de Direito Administrativo. São Paulo: Freitas Bastos, 1986. DIEZ, Manoel Maria. El acto administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1995. FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1999. FRAGOLA, Umberto. Degli atti amministrativi. Milano: Giuffrè, 1992. GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. ______. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002. HAURIOU, Maurice. Précis Élémentaire de Droit Administratif. Paris: Dalloz, 1976. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. IX. Rio de Janeiro: Forense, 1959. LEAL, Rogério Gesta. Estado, Administração Pública e Sociedade: novos paradigmas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. LIMA, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo. Porto Alegre: Globo, 1984. MAIRAL, Héctor. Control Judicial de la Administración Pública. Vol. I. Buenos Aires: Depalma, 1990. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1997. 64

A CONTRATAÇÃO ILÍCITA DE SERVIDOR PÚBLICO (CUNHADA DO PREFEITO) COMO FATO CARACTERIZADOR DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: UM ESTUDO DE CASO Sérgio Luiz Grassi Beck Apelação Cível n. 70065500431 (N. CNJ: 0235421-38.2015.8.21.7000) – 1ª Câmara Cível – Comarca de Três de Maio Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA DA CUNHADA DO PREFEITO NO OITAVO MÊS DE GRAVIDEZ. CARACTERIZAÇÃO DO ATO ÍMPROBO. AUSÊNCIA DE NOTIFICAÇÃO PRÉVIA. NULIDADE RELATIVA. 1. Ausente a comprovação de efetivo prejuízo e verificada a existência dos pressupostos de admissibilidade da ação de improbidade administrativa, não se justifica a anulação dos atos processuais em fase recursal, de acordo com o assegurado pelo princípio constitucional da efetividade do processo. Precedente do e. STJ. 2. Caracterizada a conduta dolosa e ímproba do Prefeito ao contratar a cunhada, por prazo indeterminado para o cargo de Auxiliar de Dentista, em seu último mês de gestação, concedendo-lhe, passados quinze dias, licença maternidade. 3. Mantida a condenação posta na sentença, por estar de acordo com a razoabilidade. À UNANIMIDADE, PRELIMINAR AFASTADA. NO MÉRITO, POR MAIORIA, NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO.

Sérgio Luiz Grassi Beck

Partes: Rudi Joao Massuda Cornelius, apelante – Ministerio Publico, apelado. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos. Acordam os Desembargadores integrantes da Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em afastar a preliminar; no mérito, por maioria, negar provimento ao recurso, vencido o vogal que proveu. Custas na forma da lei. Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores DES. IRINEU MARIANI (PRESIDENTE E REVISOR) E DES. CARLOS ROBERTO LOFEGO CANÍBAL. Porto Alegre, 09 de março de 2016. Des. Sérgio Luiz Grassi Beck, Relator. RELATÓRIO Des. Sérgio Luiz Grassi Beck (Relator) – Trata-se de recurso de apelação interposto por JUDY JOÃO MASSUDA CORNELIUS em face da sentença fl. 374-381 que, nos autos da ação civil pública ajuizada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, julgou parcialmente procedentes os pedidos iniciais. Em suas razões recursais, o apelante faz breve síntese dos fatos. Em inconformidade com a sentença, sustenta que a mesma afronta a administração pública e infringe o art. 11 da Lei n. 8.429. Alega a inexistência de dolo, porquanto cumpriu a Legislação Trabalhista. Defende injusta a pena aplicada, visto que o apelante possui baixa renda. Afirma que a nomeação da cunhada para cargo público não gerou prejuízo à municipalidade, assim como não beneficiou financeiramente o nomeador. Invoca a aplicabilidade do art. 392, §§ 1º, 2º,3º e 4º I, II da CLT e art. 7º, I, da Magna Carta. Ao final, pugna pelo provimento do recurso (fls. 385-389). Oferecidas contrarrazões (fls. 393-402), subiram os autos para este Tribunal de Justiça. Neste grau de jurisdição, o Ministério Público apresenta parecer opinando pelo conhecimento e desprovimento do recurso de apelação. Vieram os autos conclusos para julgamento. É o relatório.

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VOTOS Des. Sérgio Luiz Grassi Beck (Relator) – Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso. Eminentes colegas. De plano, mister afastar a questão de nulidade da sentença por ausência de notificação prévia suscitada apenas em memoriais. Com efeito, determina o art. 17, § 7º, da Lei n. 8.429/92 a necessidade de notificação prévia do réu para manifestação. Contudo, entendo que a sua ausência somente importará em invalidade processual quando comprovado o efetivo prejuízo, o que não ocorreu na hipótese. Como se vê do contido nos autos, a ampla defesa e o contraditório foram assegurados ao réu que apresentou contestação na ação de improbidade administrativa, inclusive o presente recurso e, em momento algum declinou qualquer fundamento no sentido de que a inicial não deveria ser recebida. Destarte, estando a presente ação revestida dos devidos pressupostos de admissibilidade, assim como devidamente caracterizada a tipificação, não se justifica a anulação dos atos processuais em fase recursal, de acordo com o assegurado pelo princípio constitucional da efetividade do processo. Esse também é o entendimento do e. Superior Tribunal de Justiça, sic: ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ALEGADA VIOLAÇÃO AO ART. 535, I E II, DO CPC. VÍCIOS INEXISTENTES. ALEGADA ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. SÚMULA 329/STJ. ILEGITIMIDADE PASSIVA DO SÓCIO-COTISTA. SÚMULA 7/STJ. ALEGADO CERCEAMENTO DE DEFESA. SÚMULA 7/STJ. NOTIFICAÇÃO PARA APRESENTAÇÃO DE DEFESA PRÉVIA (ART. 17, §7º, DA LEI 8.429/92). NULIDADE RELATIVA. NÃO COMPROVAÇÃO DO PREJUÍZO. JULGAMENTO EXTRA PETITA. INEXISTÊNCIA. INDEVIDA DISPENSA DE LICITAÇÃO. REALIZAÇÃO DE SUBCONTRATAÇÕES, PELAS EMPRESAS CONTRATADAS. ACÓRDÃO IMPUGNADO QUE, À LUZ DAS PROVAS DOS AUTOS, CONCLUIU PELA EXISTÊNCIA DE ATO ÍMPROBO. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. I. Não 67

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há falar, na hipótese, em violação ao art. 535 do CPC, porquanto a prestação jurisdicional foi dada na medida da pretensão deduzida, de vez que os votos condutores do acórdão recorrido e do acórdão dos Embargos Declaratórios apreciaram fundamentadamente, de modo coerente e completo, as questões necessárias à solução da controvérsia, dando-lhes, contudo, solução jurídica diversa da pretendida, não havendo falar em negativa de prestação jurisdicional. II. No que tange à alegada ilegitimidade ativa do Ministério Público, esta Corte firmou entendimento no sentido de que o Ministério Público possui legitimidade ad causam para propor ação civil pública, objetivando o ressarcimento de danos ao Erário, mormente em se tratando de danos decorrentes de atos de improbidade administrativa - como na hipótese -, atuando não somente na defesa de interesses patrimoniais - como alegam os agravantes -, mas na defesa da legalidade, da moralidade administrativa e do patrimônio público. É o que se extrai da Súmula 329/STJ: “o Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública em defesa do patrimônio público”. III. Ademais, esta Corte já se manifestou no sentido de que, “conferir à Fazenda Pública, por meio de suas procuradorias judiciais, a exclusividade na defesa do patrimônio público, é interpretação restritiva que vai de encontro à ampliação do campo de atuação conferido pela Constituição ao Ministério Público, bem como leva a uma proteção deficiente do bem jurídico tutelado” (STJ, REsp 1.119.377/SP, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe de 04/09/2009). No mesmo sentido: STJ, REsp 1.289.609/DF, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe de 02/02/2015; STJ, AgRg no REsp 1.481.536/RJ, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe de 19/12/2014. IV. No que tange à alegada ilegitimidade passiva do sócio-cotista da empresa Itel Informática Ltda., observa-se que o principal fundamento do acórdão impugnado, para a sua inclusão no polo passivo da demanda, e, também, para a sua condenação nas sanções da Lei 8.429/92 - ao contrário do que sustentam os agravantes -, não foi apenas sua qualidade de sócio, mas também o fato de ter participado do ato ímprobo. Portanto, considerando a fundamentação adotada na origem, não há como afastar a incidência da Súmula 7/STJ, no ponto. Precedentes do STJ. V. Quanto ao alegado cerceamento de defesa, concluiu o acórdão impugnado que 68

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“os documentos juntados eram hábeis e suficientes para o deslinde da questão”, tendo sido “devidamente oportunizada a defesa às partes e respeitado o regular processamento do feito”. Nesse contexto, acolher a pretensão recursal - no sentido de que houve prejuízo aos recorrentes, decorrente do indeferimento de provas testemunhais e periciais - exige o revolvimento do acervo probatório, providência vedada, na via do Recurso Especial, a teor da Súmula 7 desta Corte. VI. Segundo a jurisprudência desta Corte, “eventual descumprimento da fase preliminar da Lei de Improbidade Administrativa, que estabelece a notificação do acusado para apresentação de defesa prévia, não configura nulidade absoluta, mas nulidade relativa que depende da oportuna e efetiva comprovação de prejuízos” (STJ, AgRg no REsp 1.499.116/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe de 17/09/2015). No caso, não tendo sido comprovado efetivo prejuízo para a defesa, não há falar em nulidade. VII. O STJ firmou entendimento no sentido de que “não há violação dos arts. 128 e 460 do CPC e o julgamento extra petita quando o órgão julgador interpreta de forma ampla o pedido formulado na exordial, decorrente de interpretação lógico-sistemática da petição inicial” (STJ, AgRg no REsp 1.366.327/PE, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe de 11/05/2015). No mesmo sentido: STJ, AgRg no REsp 1.324.787/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, DJe de 09/04/2015. VIII. Não há como analisar as teses defensivas, relativas aos arts. 182, 186 e 927 do Código Civil e arts. 10 e 11 da Lei 8.429/92, nas quais se sustentam a legalidade das subcontratações, a ausência de culpa da empresa recorrente ou de seu sócio, bem como a ausência de prejuízo ao Erário, já que os serviços teriam sido prestados, porquanto o Tribunal de origem, com fundamento no acervo fático-probatório dos autos, concluiu pela ilegalidade das subcontratações, bem como pela existência de lesão ao patrimônio público, aptos a ensejarem a condenação dos recorrentes por ato de improbidade administrativa, situação que impede a sua revisão, pelo Superior Tribunal de Justiça, em razão do óbice previsto na Súmula 7/STJ. IX. Agravo Regimental improvido. (AgRg no AREsp 484.423/MS, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/12/2015, DJe 14/12/2015) (grifei) 69

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Feitas essas considerações, passo ao exame do mérito do recurso. Versa a presente demanda acerca da prática de ato ímprobo pelo ex-prefeito de RUDY JOÃO MASSUDA CORNÉLIUS, que contratou de forma emergencial sua cunhada grávida de oito meses, para exercer o cargo de Auxiliar de Dentista, concedendo-lhe licença maternidade quinze dias após a sua contratação. Com efeito, a Lei de Improbidade Administrativa, Lei n. 8.429, de 1992, divide os atos de improbidade administrativa em três espécies, a saber: os que importam enriquecimento ilícito (art. 9º); os que causam prejuízo ao erário (art. 10); e aqueles que atentam contra os princípios da Administração (art. 11). No caso em comento, o Ministério Público imputa ao réu a prática de ato ímprobo, tipificado no art. 11, caput e inc. I, da Lei n. 8.429/92, face a manifesta violação dos princípios da administração pública. Registro que a Lei de Improbidade Administrativa tem como bem jurídico tutelado a moralidade administrativa, razão por que o dolo do agente público caracteriza-se pela violação dos deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade. Nesse sentido a lição de Sérgio Cavalieri Filho, para quem “A ideia de culpa está visceralmente ligada à responsabilidade, por isso que, de regra, ninguém pode merecer censura ou juízo de reprovação sem que tenha faltado com o dever de cautela em seu agir1.” Ainda, no mesmo sentido, assinala Maria Sylvia Zanella Di Pietro2: O enquadramento na Lei de Improbidade exige culpa ou dolo por parte do sujeito ativo. Mesmo quando algum ato ilegal seja praticado, é preciso verificar se houve culpa ou dolo, se houve um mínimo de má-fé que revele realmente a presença de um comportamento desonesto. A quantidade de leis, decretos, medidas provisórias, regulamentos, portarias torna praticamente impossível a aplicação do velho princípio de que todos conhecem a lei. Além disso, algumas normas admitem diferentes interpretações e são aplicadas por servidores públicos estranhos à área jurídica. Por isso mesmo, a aplicação da Lei de Improbidade exige

1 – CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. P. 39. 2 – DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005. pp. 727-8. 70

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bom-senso, pesquisa da intenção do agente, sob pena de encarregar-se inutilmente o Judiciário com questões irrelevantes, que podem ser adequadamente resolvidas na própria esfera administrativa. A própria severidade das sanções previstas na Constituição está a demonstrar que o objetivo foi o de punir infrações que tenham um mínimo de gravidade, por apresentarem consequências danosas para o patrimônio público (em sentido amplo), ou propiciarem benefícios indevidos para o agente ou para terceiros. A aplicação das medidas previstas na lei exige observância do princípio da razoabilidade, sob o aspecto de proporcionalidade entre meios e fins. Assim, não há como admitir a imputação de ato de improbidade administrativa na ausência de elemento subjetivo. Nesse sentido apontam a doutrina e a jurisprudência, especialmente a do e. Superior Tribunal de Justiça: ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. SUPOSTA NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INOCORRÊNCIA. INICIAL FUNDADA NA MERA ILEGALIDADE DO ATO IMPUGNADO. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DO ELEMENTO SUBJETIVO DA CONDUTA. JURISPRUDÊNCIA PACIFICADA DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. (AgRg no Ag 1339336/MG, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03.03.2011, DJe 16.03.2011) AGRAVOS REGIMENTAIS EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE. ELEMENTO SUBJETIVO NÃO DEVIDAMENTE DEMONSTRADO. INEXISTÊNCIA DE DOLO APTO A CARACTERIZAR A IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. 1. O juízo acerca da ilegalidade do ato tido como ímprobo, sem a devida demonstração do elemento subjetivo dos agentes públicos, não é suficiente para a condenação por improbidade administrativa (precedentes idênticos). 2. ‘É razoável presumir vício de conduta do agente público que pratica um ato contrário ao que foi recomendado pelos órgãos técnicos, por pareceres jurídicos ou pelo Tribunal de Contas. Mas não é razoável que se reconheça ou presuma

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esse vício justamente na conduta oposta: de ter agido segundo aquelas manifestações, ou de não ter promovido a revisão de atos praticados como nelas recomendado, ainda mais se não há dúvida quanto à lisura dos pareceres ou à idoneidade de quem os prolatou. Nesses casos, não tendo havido conduta movida por imprudência, imperícia ou negligência, não há culpa e muito menos improbidade. A ilegitimidade do ato, se houver, estará sujeita a sanção de outra natureza, estranha ao âmbito da ação de improbidade.’ (REsp nº 827.445/SP, Relator Ministro Luiz Fux, Relator p/ acórdão Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, in DJe 08.03.2010). 3. ‘A jurisprudência desta Corte já se manifestou no sentido de que se faz necessária a comprovação dos elementos subjetivos para que se repute uma conduta como ímproba (dolo, nos casos dos artigos 11 e 9º e, ao menos, culpa, nos casos do artigo 10), afastando-se a possibilidade de punição com base tão somente na atuação do mau administrador ou em supostas contrariedades aos ditames legais referentes à licitação, visto que nosso ordenamento jurídico não admite a responsabilização objetiva dos agentes públicos.’ (REsp nº 997.564/SP, Relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, in DJe 25.03.2010). 4. Agravos regimentais providos. (AgRg no REsp 1065588/SP, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08.02.2011, DJe 21.02.2011) A corroborar, a Ministra Denise Arruda, relatora do Resp n. 805.080/SP, Primeira Turma, julgado em 23/06/2009, DJe 06/08/2009, assim referiu: [...] a configuração de qualquer ato de improbidade administrativa exige a presença do elemento subjetivo da conduta do agente público, pois não é admitida a responsabilidade objetiva em face do atual sistema jurídico brasileiro, principalmente considerando a gravidade das sanções contidas na Lei de Improbidade Administrativa. Portanto, é indispensável a presença de conduta dolosa ou culposa do agente público ao praticar o ato de improbidade administrativa (...) Por outro lado, é importante ressaltar que a forma culposa somente é admitida no ato de improbidade administrativa relacionado à lesão ao erário (art. 10 da LIA), não sendo aplicável aos demais tipos (arts. 9º e 11 da LIA).

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Com efeito, para caracterização de ato ímprobo é imprescindível a presença do elemento subjetivo do agente público – conduta dolosa ou culposa, não sendo suficiente uma conduta irregular para justificar a aplicação das graves sanções previstas pela Lei nº 8.429/92. Assim, analisando o conjunto probatório dos autos, tenho que tanto a prova documental quanto a testemunhal foram capazes de dar certeza da intenção do Prefeito de beneficiar sua cunhada através da sua contratação temporária, por prazo indeterminado para o cargo de Auxiliar de Dentista, em seu último mês de gestação, concedendo-lhe passados quinze dias licença maternidade pelo prazo legal de 120 dias. Outrossim, como bem apanhado no parecer ministerial “a contratada vinha ocupando cargos em comissão durante todo o mandato do demandado, os quais naturalmente se extinguiram em 31.12.2004, sendo a contratação temporária, objeto da presente, uma possibilidade de manutenção do vínculo laboral com o Município durante a próxima administração, vez que estaria gozando de licença-maternidade”. Destarte, tenho que a nomeação da cunhada no oitavo mês de gestação à cargo público temporário, no apagar das luzes do seu mandato como Prefeito, não só beneficiou pessoa de suas relações pessoais, como atentou contra os princípios que regem a administração pública, mais especificamente a moralidade, a legalidade e a impessoalidade. Oportuno lembrar que na administração posterior, o Prefeito, Sr. João Edécio Graeff, entendeu pela nulidade da contratação, rescindindo o contrato com a servidora. Pelas razões acima, entendo proporcional o valor fixado ao apelante, multa civil de 03 vezes o valor do salário bruto do Prefeito Municipal de Independência à época do fato, uma vez que embora alegue viver de recursos de uma pequena serraria, não demonstra nos autos a sua renda através de pro-labore, ou orçamento doméstico, por exemplo. Logo, entendo que não cabe a redução da multa civil fixada, estando de acordo com o disposto no inc. III do art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa. Por sua vez, a suspensão dos direitos políticos por 03 anos, decorre da deslealdade que o apelante teve para com a Administração Pública, restando também, a meu ver, proporcional o prazo de inelegibilidade fixado pelo juízo a quo. Assim, mantenho o dispositivo sentencial, por estar consoante com o que estabelece o inc. III do art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa. 73

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Desta feita, diante das circunstâncias apresentadas nos autos, entendo que a manutenção da sentença do juízo a quo é a medida que se impõe. Por fim, dou por prequestionados os dispositivos legais invocados pelas partes, com a finalidade de evitar eventual oposição de embargos de declaração tão somente com esse propósito, salientando que o juiz não está obrigado a se manifestar acerca de todos os artigos de lei articulados na demanda, bastando que a decisão proferida esteja devida e coerentemente fundamentada. Ante o exposto, rejeito a preliminar e nego provimento ao recurso. É o voto. Des. Irineu Mariani (Presidente e Revisor) – Sem embargo da qualidade do trabalho desenvolvido no processo pelos ilustres advogados, inclusive que elaboraram o memorial, estou acompanhando o eminente relator. 1. Preliminar de nulidade do processo. É o que o réu sustenta, considerando o descumprimento do art. 17, § 7º, da Lei n. 8.429/92, conforme demonstra o eminente relator, não há demonstração de prejuízo à defesa do réu, e nesse sentido orientação jurisprudencial. Ademais, o prejuízo que autoriza a anulação é a de natureza processual, não, eventualmente, o acontecido em relação à imagem social do réu. Ainda, o retrocesso não traz ao réu vantagem alguma, nem mesmo quanto à prescrição, uma vez que a notificação para fins de defesa-prévia é interruptiva. Nesse sentido, inclusive quanto à ausência de nulidade, já deliberou esta Câmara na Ap 70 005 559 778, da qual fui relator, em cuja ementa, no quanto interessa, consta: “1. Se a inicial da ação civil pública por improbidade administrativa não estava ajustada aos §§ 7º, 8º e 9º do art. 17 da Lei 8.429/92, no sentido de requerer a notificação dos réus para fins de defesa-prévia, impunha-se ao juiz conceder a oportunidade prevista no art. 284 do CPC. Ainda, a notificação para a fase preliminar, com posterior citação para fins de contestação em caso de a inicial ser recebida, em primeiro lugar não exclui o preceito do art. 219, § 1º, do CPC, pelo qual a interrupção da prescrição retroage à data do ajuizamento; em segundo, desimporta que tipo de ato judicial dá ciência ao réu, se citação ou notificação, até porque a citação não é a único ato interruptivo do fluxo prescricional. Há vários outros, conforme o art. 172 do CC/1916, vigente à época, dentre eles qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor (inc. IV), que no CC/2002 está no inc. V do art. 202. Entenda-se devedor como parte processual, e não apenas como aquele obrigado a alguma dívida pecuniária já constituída. Nas circunstâncias, é imperativo que o ato judicial que determina a notificação seja hábil para descontinuar prescrição, com retroatividade à data do ajuizamento. É a única maneira de o sistema legal não armar uma cilada ao 74

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autor, por um lado instituindo uma fase preliminar que pode demorar diversos meses, e, por outro, incluindo o tempo consumido para a sua solução no cômputo do prazo prescricional, na prática reduzindo substancialmente o período de cinco anos previsto no art. 23, I, da Lei 8.429/92. Por fim, a eventual supressão da fase preliminar, tal como acontece na área criminal nos processos contra funcionários públicos, gera nulidade apenas relativa, já que a Lei não prevê consequência mais severa, não podendo o juiz, por conseguinte, pronunciá-la de ofício, ainda mais, a fim de acolher a prescrição, desconsiderar o próprio ajuizamento, violando o art. 219, § 1º, do CPC.” 2. Mérito (questão de fundo). A verdade é que o réu contratou ou recontratou a cunhada quando ela estava no 8º mês de gestação – portanto, situação já visível –, e decorridos 15 dias, conceder-lhe auxílio-maternidade. Se havia, subjacentemente, alguma outra motivação, deveria ter instaurado procedimento administrativo. Assim, por mais que se esforce o réu no sentido de buscar justificativas, não há dúvida quanto às intenções e objetivos ímprobos do ato. 3. Valor da multa. Igualmente estou de acordo com o relator, uma vez que o art. 12, III, da Lei n. 8.429/92, prevê multa de até cem vezes o valor da remuneração, e no caso foi fixada em apenas três vezes. 4. Suspensão dos direitos políticos. Sempre votei no sentido da suspensão dos direitos políticos quando a improbidade, como no caso, é cometida no exercício de mandato popular. Sem dúvida, trata-se de medida necessária e pertinente, de sorte que não viola o princípio da suficiência, ainda mais quando estabelecida pelo prazo mínimo. 4. Dispositivo. Com essas considerações, e mais uma vez rogando vênia os ilustres patronos, também desprovejo. Des. Carlos Roberto Lofego Caníbal – Acompanho o ilustre Relator quanto à preliminar de nulidade. Preliminar de nulidade por ausência de notificação, nos termos do art. 17, §7º, da Lei nº 8.429/92. O § 7º do art. 17 da Lei de Improbidade Administrativa, com a redação que lhe deu a Medida Provisória nº 2.225-45/2001, prevê, de fato, que estando a inicial em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notificação do requerido, para oferecer manifestação por escrito, que poderá ser instruída com documentos e justificações, dentro do prazo de quinze dias. Apresentada a defesa escrita, o juiz, em decisão fundamentada, rejeitará a ação, se convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita (§8º) ou receberá a inicial da ação de improbidade, citando o réu para contestar (§9º). 75

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Este, pois, eminentes Colegas, o rito diferenciado da ação de improbidade administrativa, que assim o é por imposição de lei. No caso em apreço, o magistrado abreviou o rito previsto em lei e, sem prévia notificação do réu para fins de apresentar defesa escrita, recebeu a inicial da ação de improbidade, determinando sua citação. No entanto, ao que se depreende dos autos, o demandado somente veio insurgir-se quanto à ausência de notificação para defesa escrita nos memoriais apresentados a esta Corte na antevéspera desta sessão de Julgamento. Denota-se que o réu contestou a lide, não apresentou memoriais, recorreu da sentença de procedência, e absolutamente nada referiu acerca do abreviamento do rito processual levado a efeito pelo magistrado a quo. Diante disto, rogando a máxima vênia ao ilustre advogado que apresenta os memoriais e alega a nulidade por descumprimento da regra disposta no § 7º do art. 17 da Lei n. 8.429/92, o qual, ao que se denota, acabou assumindo o processo tão apenas agora, pois a parte ré era patrocinada por outra causídico, o qual, inclusive, recorreu da sentença de procedência, reitero, sem alegar a nulidade, estou rejeitando a preliminar, em razão da preclusão. É que doutrina e jurisprudência são uníssonas, sobretudo no STJ, no sentido de que se trata de uma nulidade relativa, e não absoluta, de modo que deveria ter sido arguida na primeira oportunidade em que veio o réu aos autos, ou seja, na contestação, cabendo-lhe, ainda, demonstrar efetivo prejuízo, o que em nenhum momento fora levado a efeito, como já se disse, mas tão apenas na antevéspera desta sessão de julgamento, em memoriais. Nessa linha, cito alguns dos precedentes a que me referi, desta Corte, e do Superior Tribunal de Justiça: AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PÚBLICO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AUSÊNCIA DE NOTIFICAÇÃO PARA MANIFESTAÇÃO PRÉVIA. NULIDADE. INOCORRÊNCIA. NÃO DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO. Segundo estabelece o art. 17, §§ 7º, 8º e 9º, da Lei de Improbidade Administrativa, o Julgador deve oportunizar a manifestação prévia dos demandados, sendo que somente após análise desta é que poderá receber a inicial e determinar a citação. Cuida-se de permitir aos réus que declinem razões para que sequer se dê início ao processo. Na hipótese, evidenciado que o Município e a Câmara de Vereadores foram notificados para apresentar manifestação prévia, 76

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ao passo que os agravantes tiveram o direito tolhido, o que ensejaria a desconstituição da decisão que recebeu a inicial para que lhes fosse oportunizada a referida manifestação prévia. No entanto, não tendo sido demonstrado pelos agravantes a ocorrência de prejuízo (é dizer, não tendo declinado qualquer fundamento para que a inicial não fosse recebida), a decisão deve ser mantida. Trata-se de aplicação da regra pas de nullité sans grief, de modo que somente se cogita de invalidade processual quando demonstrado prejuízo. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. Gratuidade judiciária para fins recursais indeferida. NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO. UNÂNIME. (Agravo de Instrumento Nº 70060678422, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Laura Louzada Jaccottet, Julgado em 25/03/2015) AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. FATOS ANTERIORES E POSTERIOR À LEI 8.429/92. 1. Questões processuais gerais. 1.1 ¿ Legitimidade do Ministério Público. O Ministério Público tem legitimidade para ajuizar ação civil pública tendo por objeto qualquer das modalidades de improbidade administrativa (Lei 8.429/92, art. 17). Ainda, diz a Súm. 329 do STJ: ¿O Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública em defesa do patrimônio público.¿ 1.2 ¿ Nulidade do processo. Notificação para defesa-prévia. Se, quando do advento do § 7º do art. 17 da Lei 8.429/92, acrescido pela MP 2.225, de 4-9-01, já havia decorrido o momento processual para sua aplicação imediata, não há falar em nulidade do processo. Ademais, assim como no processo-crime, trata-se de nulidade relativa. 2. Fatos anteriores à Lei 8.429/92. 2.1 ¿ Responsabilidade e penas civis. Não se aplica a Lei 8.429/92 a fatos anteriores, face aos princípios do tempus regit actum e da irretroatividade das leis repressivas, salvo para beneficiar o acusado. Exegese do art. 5º, XL, da CF. Todavia, aplica-se a legislação anterior da responsabilidade civil comum. 2.2 ¿ Prescrição. No que tange ao ressarcimento de prejuízos, já previsto na legislação anterior, mas com prescrição vintenária, aplica-se a prescrição qüinqüenária do art. 23, I, da Lei 8.429/92, salvo se o prazo residual pela legislação anterior não se exaurir antes. Adota-se, aí, a solução que mais favorecer aquele a favor de quem fluir a prescrição. Significa isso dizer que, iniciado o prazo sob a 77

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égide de lei anterior, (a) aplica-se o prazo da lei velha se o tempo que faltava para se exaurir terminar antes do prazo da lei nova, contado da sua entrada em vigor; e (b) aplica-se o prazo da lei nova, contado da sua entrada em vigor, se o tempo que faltava para se exaurir pela lei velha terminar depois. 2.3 ¿ Início do prazo prescricional. O prazo prescricional que teve início normal sob a égide da lei anterior, ainda que passe a reger-se, quanto à duração, pela lei posterior, não se interrompe por causa só prevista nesta. Não incide, em tais circunstâncias, a postergação prevista no art. 23, I, da Lei 8.429/92. 3. Fato posterior à Lei 8.429/92. 3.1 ¿ Prescrição intercorrente. Só resta caracterizada quando, por mais de cinco anos, o processo fica paralisado por inércia da parte interessada. Ainda, o inc. LXXVIII do art. 5º da CF, acrescido pela EC 45/04, não vai além de um ideal a ser atingido, pois não define o que significa, em termos concretos, a expressão ¿razoável duração do processo¿, e, se atentarmos para o sentido da expressão ¿meios que garantam a celeridade de sua tramitação¿, conclui-se que são os disponíveis na legislação processual. 3.2 ¿ Questões processuais específicas. 3.2 1 ¿ Suspensão do processo por motivo da reclamação nº 2.138-6 no STF. Além de não servir como precedente de caráter geral, pois objetiva resolver questão específica, não c suspensão prevista no art. 265, IV, a, do CPC, ocorre por conveniência, e não por condição de validade do processo, haja vista que dura no máximo um ano (§ 5º), quer dizer, o suspenso não se transforma em processo-refém. 3.2.2 ¿ Aplicação da Lei 8.942/92. O agente público, referido no art. 1º da Lei 8.942/92, é gênero do qual o agente político é espécie, haja vista que menciona os de qualquer dos Poderes, abrangendo, pois, os próprios integrantes. Não por acaso o art. 12 estabelece a perda da função pública, sem fazer qualquer distinção, abrangendo, portanto, o mandato eletivo, e perda dos direitos políticos. 3.3 ¿ Improbidade administrativa. Fazer o Município pagar uma empresa pela construção de obra pública (construção de rede elétrica), na realidade já construída e paga pela concessionária de energia a outra empresa, caracteriza improbidade administrativa na forma de prejuízo ao erário (Lei 8.429/92, art. 10). Descabimento da tese de que, para compensar, foram realizadas outras obras. 4. Dispositivo. Preliminares gerais e específicas rejeitadas e, no mérito, providas as 2ª e 4ª apelações, e em parte as 1ª, 3ª e 5ª. (Apelação Cível Nº 70024302044, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 08/10/2008) 78

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DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. NOTIFICAÇÃO PARA APRESENTAÇÃO DE DEFESA PRÉVIA (ART. 17, § 7º, DA LEI 8.429/92). DESCUMPRIMENTO DA FASE PRELIMINAR. NULIDADE RELATIVA. PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. É pacífico o entendimento desta Corte Superior no sentido de que o eventual descumprimento da fase preliminar da Lei de Improbidade Administrativa, que estabelece a notificação do acusado para apresentação de defesa prévia, não configura nulidade absoluta, mas nulidade relativa que depende da oportuna e efetiva comprovação de prejuízos. 2. Nesse sentido, os seguintes precedentes desta Corte Superior: EREsp 1008632/RS, 1ª Seção, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe de 9.3.2015 ; AgRg no REsp 1.194.009/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe de 30.5.2012; AgRg no AREsp 91.516/DF, 1ª Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe de 17.4.2012; REsp 1.233.629/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe de 14.9.2011. 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp 1499116 / SP AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2014/0307104-2, Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, Julgado em 03/09/2015, publicado em 17/09/2015 IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AGRAVO REGIMENTAL. FALTA DE NOTIFICAÇÃO PRÉVIA. RECEBIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. POSSIBILIDADE. INDISPONIBILIDADE E SEQUESTRO DE BENS. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. A jurisprudência do STJ está firmada no sentido de que a ausência de notificação prévia somente acarreta nulidade processual se houver comprovação de efetivo prejuízo, de acordo com a parêmia pas de nullité sans grief. 2. O acórdão recorrido está em sintonia com o atual entendimento do STJ, razão pela qual não merece prosperar a irresignação. Incide, in casu, o princípio estabelecido na Súmula 83/STJ.

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3. Agravo Regimental não provido. (AgRg no REsp 1336055 / GO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL2012/ 0155931-4 , relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 10/06/2014, publicado em 14/08/2014) Não destoa disto a doutrina de Waldo Fazzio Junior:3 “Em caso de inobservância, pelo juiz, da providência de notificação, haverá nulidade relativa que deverá ser alegada pela parte, na primeira oportunidade em que falar nos autos, sob pena de preclusão (art. 245 do CPC)” Tratando-se, portanto, a ausência de notificação prévia ao recebimento da inicial, em descumprimento ao disposto no art. 17, § 7º, da Lei n. 8.429/92, uma nulidade relativa, e não tendo o réu a arguido e demonstrado efetivo prejuízo na primeira oportunidade em que falou nos autos, vindo a fazê-lo tão apenas em memoriais apresentados a esta Corte, poucos dias antes da sessão de julgamento, estou rejeitando a preliminar, respeitada vênia ao ilustre procurador. Mérito. Quanto ao mérito, com a devida vênia ao douto Relator, estou reformando a senteça para julgar improcedentes os pedidos. É que ao que se depreende dos autos, a servidora Janice, embora cunhada (irmã de sua companheira) do ex-Prefeito, já vinha exercendo cargo em comissão junto à Prefeitura quando da gravidez, de modo que, ainda que houvesse violação à Sumula Vinculante n. 13, o fato é que, em razão do disposto no art. 7º, XVIII, da Constituição Federal, cumulado com art. 39, § 3º, também da Constituição, não poderia ser dispensada. Eis a norma constitucional: Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (omissis) XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias;

3 – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA, 2ª EDIÇÃO, SÃO PAULO: EDITORA ATLAS, 2014, p. 453. 80

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Art. 39. (omissis) § 3º Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) Denota-se dos autos que a Sra. Janice vinha ocupando diversos cargos junto ao Município desde o ano de 2001, ininterruptamente, tendo engravidado em 2014, quando então fora contratada emergencialmente pelo réu. Aliás, importa destacar que a contatação fora embasada em lei municipal que a autorizou – Lei n. 1573/2004. Portanto, ainda que possa ter havido violação à Súmula Vinculante n. 13, em razão da contratação da Sra. Janice durante sua gestão, o fato é que a sua exoneração, quando do término do mandato do Prefeito, violaria frontalmente o disposto no art. 7º, XVIII combinado com art. 39, § 3º, da Constituição Federal, negando à referida senhora seu direito constitucional à licença maternidade – direito este que se estende aos ocupantes de cargos em comissão. Nesse sentido: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CARGO EM COMISSÃO. SERVIDORA GESTANTE. EXONERAÇÃO. DIREITO À INDENIZAÇÃO. 1. As servidoras públicas e empregadas gestantes, inclusive as contratadas a título precário, independentemente do regime jurídico de trabalho, têm direito à licença-maternidade de cento e vinte dias e à estabilidade provisória desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. Precedentes: RE n. 579.989AgR, Primeira Turma, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, Dje de 29.03.2011, RE n. 600.057-AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Eros Grau, Dje de 23.10.2009 e RMS n. 24.263, Segunda Turma, Relator o Ministro Carlos Velloso, DJ de 9.5.03. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. (STF. 1ª Turma. AI-AgR 804574. Relator Ministro Luiz Fux. Julgado em 30/08/11). A meu sentir, portanto, irrazoável entender que se trate de ato ímprobo quando, ao contratar emergencialmente a Sra Janice, de modo a mantê-la vinculada

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ao Município, o demandado cumpriu com norma constitucional que garante direito a toda e qualquer mulher, ainda que ocupante de cargo em comissão, à licença maternidade. Com tais considerações, portanto, e insistindo, ainda, na existência de lei autorizadora à contratação, estou votando por prover o recurso para julgar improcedentes os pedidos. ISSO POSTO, rejeito a preliminar e, no mérito, dou provimento ao apelo, nos termos supra. É o voto. Des. Irineu Mariani – Presidente - Apelação Cível n. 70065500431, Comarca de Três de Maio: “À UNANIMIDADE, AFASTARAM A PRELIMINAR; NO MÉRITO, POR MAIORIA, NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO, VENCIDO O VOGAL QUE PROVEU.” Julgador(a) de 1º Grau: EDUARDO GIOVELLI

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BREVES REFLEXÕES ACERCA DA “PERÍCIA DIVERSA” A PARTIR DE UM ESTUDO DE CASO: o que é, qual sua possibilidade e limites João Batista Marques Tovo1

INTRODUÇÃO Em recente caso levado à mesa de julgamento, do qual participava como vogal, deparei-me com essa denominação dada a uma avaliação pericial realizada quanto a óbito decorrente de suposto erro médico. Não houvera exame necropsial, e era imputado agir omissivo ao profissional atendente, absolvido no 1º Grau. Debatia-se a possibilidade de ele resultar condenado pela Câmara. Percebendo a gravidade da questão, decidi buscar melhor compreensão sobre o tema e acabei por tomar vista dos autos. O resultante da reflexão, no que tem de genérico2, devido à relevância que o tema me parece ter, vai aqui oferecido à superior reflexão dos colegas. Não tenho outro intuito, senão o de contribuir para a análise crítica de quem se interesse por ele. Ela não dispensa alguma revisão doutrinária de conceitos, de cuja maçante leitura peço desde logo escusas ao colega leitor que me agraciar com sua atenção, se dela me fizer merecedor. Em um primeiro momento, tecerei considerações acerca da admissibilidade e peculiaridades desse meio de prova, depois, sobre a

1 – Desembargador da Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 2 – Por pudor e em respeito às pessoas cujos nomes estão envolvidos no processo, preferi não dar a público minha fundamentação sobre as questões fáticas nem o resultado do decisum. Para quem sabe pesquisar, será fácil encontrar o acórdão por inteiro, se até lá for publicado.

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realidade da prática médica atual e suas dificuldades e como contextualizar um suposto erro médico, para, ao final, indicar os limites da avaliação pericial e a inevitabilidade de uma avaliação judicial independente, cuidadosa e concreta sobre a responsabilidade penal do imputado. 1 A PERÍCIA DIVERSA E AS OUTRAS PERÍCIAS Então, o que é uma “perícia diversa”? Bem, não é um exame pericial em sentido estrito, ainda que deva ser vista sob essa ótica. Mas, seguramente, é admissível como meio de prova, tanto por aplicação do princípio da liberdade dos meios de prova quanto pela referência feita a outras perícias no código de processo. Aliás, recebe esse nome justo para diferenciar do exame de corpo de delito, em cujo capítulo são referidas. Em suas finalidades, conteúdo e limites é que reside alguma dificuldade, como se verá, mas nada que a torne ilegítima. Ela ser incomum é outro problema, tanto para o perito que se disponha – o que é raro – a realizá-la, por falta de disciplina específica, quanto para o juiz a que se dirige, devido à confusão conceitual com o exame pericial propriamente dito, apesar do cuidado em sua nominação, e do que pode vir a derivar dessa mistura. Veja-se a diferença. O exame pericial, como o primeiro elemento lexical da expressão está a indicar, pressupõe contato sensível (direto) do experto com o objeto examinando, o que garante precisa determinação dos fatos observados, os quais serão depois entretecidos com o conhecimento técnico-científico específico na costura lógica de um resultado conclusivo, quando possível, sobre a existência e certificação de fatos relevantes para a justa valoração de uma causa. O contato direto, inspecional, é conforme o princípio da imediação dos meios de prova, que dota de segurança e confiabilidade as deduzidas assertivas periciais, a cognição judicial deles já sendo mediada pelo raciocínio lógico do perito. De modo que o exame pericial, em regra, se compõe de uma inspeção pericial seguida de uma avaliação pericial. A inspeção pericial visa a preservar e comunicar ao juiz do processo, ainda em perspectiva ou já em andamento, o conhecimento (cognição pericial) sobre dados da realidade, transitórios ou não, úteis à formação de juízos fundados no exercício da jurisdição. A finalidade última, em regra, é documentar os fatos observados que recebam destaque. Quando transitórios, soma-se a finalidade tornar perene esse conhecimento haurido. O perito funciona como longa manus do juiz natural, em caráter substitutivo. Antiga lição de doutrina nos diz que ele cumpre papel similar 84

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ao da testemunha, diferindo em que esta é chamada a depor e ele a testemunhar.3 Fácil perceber, há também aqui uma mediação da cognição judicial, que se torna indireta, informada pela cognição pericial. A mediação sempre é um problema.4 Para assegurar a precisão do visum et repertum, tão indispensável às questões fáticas que sobejam na seara criminal, formaram-se corpos técnicos, integrados por profissionais previamente selecionados, preparados e doutrinados, que atuam com independência em relação aos órgãos da persecutio criminis, evitando previsíveis ingerências, ainda que não de todo. Aliás, entre parênteses e quase num cochicho, digo que nunca entendi porque tal corpo técnico, abrigado antes no departamento policial, hoje relativamente independente, segue vinculado ao braço administrativo do Estado, quando deveria integrar a estrutura do Poder Judiciário, a quem presta seus relevantes serviços em última análise, com produção de prova antecipada, definitiva e irrepetível. Não estaria aí algo a ser corrigido de lege ferenda? Por que nunca cogitamos, ou será que já tivemos essa oportunidade e a desprezamos? Retorno ao fio condutor. Pela mesma razão, o juiz tem muito cuidado ao nomear peritos não oficiais, quando for indispensável, para funcionarem como seus auxiliares. Mas, ainda que chamados a testemunhar, os relatos do perito sobre a inspeção são invariavelmente mais precisos e confiáveis do que os da testemunha natural devido ao distanciamento, à observação focada e ao emprego de meios auxiliares. Achados da perícia quase não são contestados. Ademais, para evitar falhas involuntárias, valendo-se das facilidades proporcionadas pela modernidade, eles têm o hábito de fazerem registros fotográficos e audiovisuais, à semelhança do art. 165 do CPP. Em mais um cochicho, digo que seria adequado substituir o registro descritivo escritural pelo

3 – Há diferença entre testemunhar, que é fazer contato sensível com um fato observado ou experienciado, e depor, que é declarar a respeito desse testemunho. É demasiado comum a confusão conceitual. A correção semântica é muito útil para o que estamos a dizer, como se verá adiante. 4 – O conhecimento indireto de um fato não dispensa uma avaliação da sua fonte ou do destinatário, o que imprime o subjetivismo e a falibilidade humana. Leonel de Moura Brizola disse certa feita a jornalista que o importante não era a verdade, mas a versão. No processo de reconstrução histórica, dispomos apenas de versões, próprias e alheias, e de alguns dados objetivos que nos auxiliam na análise crítica do conjunto da prova. Mais de uma mediação subjetiva transmite tanta insegurança que, segundo antiga lição doutoral, o testemunho de auditu deve ser desprezado, se não for possível confirmar o seu conteúdo com a fonte. 85

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fotográfico e audiovisual, pois tem a significativa vantagem da imediação5 para a cognição judicial. Estendendo um pouco esse entre parênteses, não compreendo por que a polícia judiciária ainda não adotou o modelo bem sucedido de registros audiovisuais da prova oral produzida em juízo, que afasta a mediação do registro tomado a termo para a cognição do 2º Grau. Aumentaria a confiabilidade dos achados investigativos. Indo mais além, em alguns Estados Americanos, não sei se todos, tais registros são feitos para ações de policiamento ostensivo, o que tem a indiscutível vantagem de evitar alegações tão frequentes de arbitrariedade e abuso, além de estimular boas práticas policiais. Os sistemas de persecução penal e judiciário teriam muito proveito, afastando falsas querelas e promovendo uma atuação policial cidadã, com melhor seleção de seus quadros e exclusão de indesejáveis personalidades arbitrárias. Retomo, uma vez mais, o tema objeto da dissertação. Ainda que convenha a inspeção pericial ser direta, a lei processual prevê a realização do exame de corpo de delito indireto (art. 158, CPP), ou seja, sem contato sensível com o corpo de delito, abrindo possibilidades, tais como a em comento. Nessa hipótese, reza a doutrina, o perito deve buscar informes em fontes indiretas. Avaliar o dano patrimonial causado por furto de veículo automotor não recuperado, por exemplo, só é possível de modo indireto. Se não convém impor tantas amarras à prova da materialidade nas infrações que deixam vestígios materiais – esta a razão da previsão legal, considerado o contexto de sua inclusão, como exceção a uma prova tarifada6 –, tampouco convém deixar essa nau sem amarras, pois incontida e levada pelas marés a embarcação se põe ao largo, abandona porto seguro. Então, é possível o exame indireto, apesar da impropriedade terminológica. Bem, mas o exame pericial indireto não é propriamente inspecional, ao menos não do objeto examinando. Com ele, introduz-se uma outra mediação, agora na cognição pericial, que se comunica à cognição judicial, reduzindo a confiabilidade das assertivas fáticas que servem de pressuposto ao raciocínio indiciário dedutivo. Em sendo incomum, ainda gera risco de maior confiabilidade, por falsa indução, qual seja, de considerar certificados, de modo acrítico, todos os pressupostos fáticos da avaliação pericial. Em casos tais, o escrutínio dos pressupostos fáticos da conclusão pericial é tão importante quanto o da expertise aplicada e da própria lógica empregada, sobretudo quando a conclusão seja incriminadora. Logo, devem ser 5 – Quando menos quanto ao que foi assim registrado. 6 – Ela própria, já excepcional no sistema introduzido pelo código de processo. 86

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aplicados aqui os princípios que governam a apreciação judicial sobre a avaliação pericial. Adiante se verá quais são. A segunda fase do labor técnico em comento é a avaliação pericial, momento em que o perito arrola os pressupostos fáticos por ele certificados mediante a inspeção e os entretece com o seu conhecimento técnico-científico, mediante lógica irrepreensível, retirando conclusões assertivas ou dubitativas sobre questões que lhe são propostas, a depender da finalidade da perícia. A avaliação pericial não está para a avaliação judicial assim como a inspeção pericial para a judicial, apesar da semelhança, pois ela não é substitutiva nem dispensa análise crítica pelo juiz, o qual não pode se resumir a um singelo “homologador” de laudos. Fosse de modo diverso, haveria delegação de jurisdição, o que a Constituição Federal não permite. Ainda que seja trabalhoso, é inescapável desincumbir-se desse mister. O perito não julga nem pode julgar a causa. Apesar de o juiz não deter o conhecimento específico do perito, por isso que busca o seu auxílio, cabe-lhe escrutinar o laudo, verificar a atualidade e precisão do conhecimento técnico-científico invocado, as premissas lógicas e o encadear lógico do raciocínio dedutivo, para só então admitir as assertivas feitas como certificadas, delas tirando proveito ou não. O juiz é o peritus peritorum, o maestro dessa orquestração que é a reconstrução histórica de um fato. Assim como o maestro não precisa ser um virtuose em cada instrumento que compõe a orquestra para afirmar que a execução não é correta, tampouco o juiz necessita ser um experto para desqualificar conclusões periciais. Se bem que isso já não pode ser feito arbitrariamente, deve ser fundamentado o quantum satis, sob pena de substituir o arbítrio pericial pelo judicial. É mais difícil, mas indispensável. Aliás, assim deve ser em relação a todo e qualquer meio de prova, pois não há hierarquia entre eles, como enunciado na exposição de motivos do vetusto código de processo. Nenhum deles tem valor apriorístico, a avaliação sendo sempre em concreto. Erro extremamente comum no foro criminal é o dos operadores jurídicos tomarem como verdade insofismável todas as afirmações dos peritos, como se ele não estivesse sujeito a erros, ainda que isso seja incomum. Ora, se para o juiz da causa o que vale é a autoridade do argumento, não o argumento de autoridade, por que haveria de ser diferente para o perito? Em verdade, essa postura muitas vezes constitui apenas um atalho lógico, dispensando esforço. Essa falha lógica já foi responsável por erros judiciários, sabemos todos, e deve ser evitada. 87

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Mas, aprioristicamente, pode-se ter como mais confiável ou menos confiável, esta ou aquela fonte de informação, o que é mesmo indispensável para a própria avaliação a fazer sobre determinado meio de prova, em concreto, o que não é definitivo. E, nesse contexto, pode ser dito que o exame pericial indireto é menos confiável do que o direto, sobretudo nas premissas fáticas tidas pelo perito como certificadas de modo indireto. Ou seja, deve-se tomar mais cuidado na análise desse meio de prova, como antes referido, evitar a confusão entre eles e comunicá-lo de uma segurança e confiabilidade quanto a elas (premissas fáticas) de que não dispõe, em razão da mediação da cognição pericial, que se faz de modo indireto. E há, ainda, outros cuidados a tomar, como se verá adiante. Repetindo, os presupostos fáticos considerados pelo raciocínio dedutivo pericial, quando derivados, hauridos de modo indireto, devem ser escrutinados com zelo, para verificar a sua certificação, pois a força da conclusão no raciocínio dedutivo depende do vigor das premissas consideradas. A quem não seja um experto na avaliação da prova – este indiscutivelmente é o juiz, não o perito7 – sucede inúmeras vezes tomar o falso ou o dubitativo por certo, contaminando todo o raciocínio, o que pode passar despercebido. Calha lembrar, o perito que aceita fazer uma perícia diversa é chamado a depor – não a testemunhar como o outro – e para confirmar uma hipótese investigativa ou já acusatória. Seu desafio não é revelar o desconhecido, mas confirmar ou não o que já é suspeitado. A diferença é significativa, o risco também. Mas não vejo impropriedade em ele depor sobre o conhecimento técnicocientífico e, indagado, opinar sobre questões controversas. Pelo princípio da liberdade dos meios de prova, são admissíveis tanto a simples inspeção quanto a simples avaliação, desde que esta seja pericial. A situação é um tanto curiosa e causa certa perplexidade, pois esse perito funciona como uma testemunha qualificada, e o código de processo impõe ao juiz evitar que testemunhas manifestem apreciações pessoais8. Aqui ocorre justo o oposto. Ainda assim, não vejo maior dificuldade na admissibilidade, embora reconheça certa confusão com a indelegável avaliação judicial. As pecularidades dessa função recomendam impor claros limites ao que se possa considerar esteja certificado pela apreciação do perito. De fato, há profissões – tais como a do médico – cujo conhecimento técnico-científico é tão específico e complexo que o julgador tem séria dificuldade em 7 – Sim, quem tem o saber específico e a experiência acumulada de avaliar a prova e dela tirar uma certeza fundada quanto a existência de determinado fato é o juiz, não o perito, ainda que oficial. 8 – Mas, já disse, ele não é de fato testemunha em sentido estrito, senão a respeito do seu saber específico. 88

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avaliar a correção e adequação da conduta profissional adotada, assim como estabelecer relação de causa e efeito entre esta e o resultado danoso. Em casos tais, é mais do que possível, recomendável, ele busque aconselhamento de um experto para suprir falhas cognitivas. Mas deve tomar muito cuidado quando tal perícia diversa venha pronta, requisitada por órgão da persecução, de modo a preparar a ação penal em perspectiva, sobretudo quando ele não tenha providenciado antes na realização do exame necropsial. No exame que é requisitado pelo órgão da persecução, não resta dúvida, o perito vem em auxílio deste, não do juízo ainda em perspectiva. A avaliação judicial deve ser ainda mais rigorosa, portanto. Hei de enumerar os limites probatórios da perícia diversa adiante. 2 A MEDICINA E O PAPEL DO JULGADOR Agora, julgo adequado fazer uma digressão. É sabido que, tirante intervenções plásticas, a obrigação do médico é de meios, não de fins. E que a medicina não é uma ciência pronta e acabada, tal como se apresenta ao imaginário popular, ainda tem muito de experimental, não oferece solução para tudo. É voz corrente entre os próprios médicos, aliás, que a nobre ciência avançou muito no tratamento das patologias agudas e pouco nas crônicas, em relação às quais serve mais de paliativo, com redução de sintomas incômodos, estabilização do quadro e retardamento do curso da doença, às vezes inexorável. Avaliar a conduta adotada sob a ótica da frustração com o insucesso da intervenção, em relação a tais patologias, é ignorar tais limitações, crer na ficção da onipotência médica, que tantas vezes atrapalha os próprios praticantes dessa tão indispensável profissão. Além dos limites da própria ciência, que também é arte, o médico é limitado em sua iniciativa pela soberana vontade do doente, quando capaz, e de seus familiares, que precisam acatar seu diagnóstico e prescrição, além de aderir ao tratamento, que ele não pode impor, se bem que deva acionar mecanismos de proteção ao doente quando perceber sua relativa incapacidade.9 O compromisso não vai além. Tampouco se pode olvidar, hoje muito voltada a mecanismos de diagnóstico não clínicos e a intervenções custosas, nunca ao alcance dos menos favorecidos, 9 – Veja-se o Código de Ética Médico, Resolução CFM n. 1.931/09: “É vedado ao médico: Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”. 89

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a conduta médica é pressionada por uma superestrutura em que está inserida, devendo buscar alternativas dentro dela, quando houver. O Sistema Único de Saúde é uma superestrutura à parte, que atende de modo deficitário por burocracias e políticas de economia. Sabidamente, o médico do SUS é inibido em sua prática por essa superestrutura. Quando o paciente se apresenta à consulta com suas queixas, o médico atendente, seja qual for, é posto ante um enigma a exigir decifração, cabe-lhe fazer a diagnose, desvendar a patologia, se existente, informá-la ao paciente, com o seu prognóstico, recomendar o tratamento, se possível, planejá-lo de comum acordo com ele e acompanhar sua execução até a cura, quando lhe caiba fazê-lo. Essa relação é contratual e sinalagmática. Ainda que gratuita, depende da adesão do paciente, que deve confiar e seguir todas as recomendações e prescrições, além de proporcionar meios e empreender esforços nesse andamento. Se este não lhe deposita confiança ou não atende às prescrições, o médico pode romper o contrato10, mas não pode abandoná-lo à própria sorte, ministrando cuidados paliativos se a moléstia for incurável.11 O paciente que consulta pelo SUS, menos favorecido, não proporciona tais meios, espera que o sistema o faça, o que tampouco ocorre inúmeras vezes. E o médico fica na difícil situação de não poder romper com a inércia, tampouco com o contrato ou o atendimento público a que se obrigou. A omissão do sistema não é uma omissão do médico. Quando mais jovens e idealistas, os médicos que atendem pelo SUS irresignam-se com a inércia estatal e lutam briosamente por um andamento célere e eficaz, obtendo alguns sucessos, mas vão acumulando mais frustrações do que estes, até que a máquina burocrática, que sempre emperra intervenções de alto custo, os domestica. Alguns o abandonam. Relatos dessas experiências são comuns no meio médico. E nem sequer o órgão de classe consegue modificar esse status quo. Os médicos que ficam no sistema se conformam com a baixa resolutividade em muitos casos, pois ela se faz alta em muitos outros. O SUS não é tão frustrante assim. Há inúmeros relatos de atendimentos bem-sucedidos. O que emperra a máquina estatal são os altos custos da medicina atual, havendo seletividade e foco nas patologias de doentes não terminais ou de curso inexoravelmente letal. A assistência dada é como um cobertor curto, ficam de fora, devemos supor, pessoas 10 – Art. 36, § 1º, da mesma resolução. 11 – Idem, art. 36, § 2º. 90

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e moléstias que os detentores do poder decisório reputam o retorno não compensar os custos. Se não há como alterar a realidade econômica, o que torna compreensível essas escolhas, sob certa ótica, o fato é que o médico está no balcão do sistema, seu foco é o paciente, não os custos, e não consegue sequer explicar a opção. Quando nos pusermos a julgar médicos do SUS pelas condutas adotadas, devemos ter tudo isso em mente, e levar em conta que a omissão do sistema não é do médico, a omissão do paciente, frustrado com as idas e vindas por diversos balcões, tampouco é dele. A máquina burocrática que oprime o médico atendente e desqualifica o trato dado à saúde da pessoas menos favorecidas é a responsável inúmeras vezes pela inércia e omissão verificada, por mais que o médico se tenha acomodado com semelhante estado de coisas e já não se disponha a enfrentar o sistema. Puni-lo por ter se conformado com a baixa resolutividade em alguns casos, pois cumpre sua missão, dotado de alta resolutividade em outros, é sobrepor a essa superestrutura opressiva ainda outra, transmitindo-lhe responsabilidades que não tem. Talvez muito em razão disso, os Conselhos de Medicina, Federal e Regionais, têm se ocupado de estudar e controlar um fenômeno atualmente crescente, o da medicina defensiva, que consiste em o médico prescrever um teste diagnóstico ou tratamento terapêutico que não são a melhor opção para o paciente e sua patologia, mas têm a vantagem de protegê-lo contra este em previsível conflito subsequente, em razão da prevista frustração em suas expectativas de cura. O tema tem sido objeto de debates de bioética e jurídicos, havendo recomendações e resoluções dos Conselhos de Medicina, além de livros publicados sobre o tema. Esse fenômeno imbrinca em outra realidade da medicina moderna, da qual iremos tratar adiante, provocando o encarecimento da medicina, com todos os seus reflexos nocivos, inclusive um efeito rebote. Seguramente também em resposta a essa medicina defensiva, que tanto encarece seus custos, o SUS burocratiza e emperra o andamento do ciclo completo de atendimento, o curso do diagnóstico-terapêutica tornando-se impropriamente lento, inibida a ação do médico. Se esse maior controle sobre prescrições e encaminhamentos é necessário por um lado, ele é nefasto por outro. A frustração da clientela é inevitável. O preço cobrado é a litigiosidade de um paciente que já consulta desconfiado e descrente da resolutividade do atendimento ministrado, o que dificulta a tão indispensável confiança na relação médico-paciente, e o resultante é uma retroalimentação da própria medicina defensiva pretendida evitar, moto contínuo em espiral perversa de desatendimento, dirigida toda essa frustração ao 91

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médico-assistente, cuja personalidade é a única visível como representante desse sistema. Se o paciente que consulta pelo SUS não escolhe o médico, tampouco a este é dado escolher o paciente, ou renunciar o atendimento, como lhe garante o código de ética em circunstâncias diversas, pois não é possível encaminhá-lo ao atendimento de outro profissional, assegurando-se da continuidade dos cuidados, como exigido para fazê-lo, logo deve perseverar em que pese a quase inevitável quebra de confiança. Não bastasse tudo isso, o sistema ainda é extremamente concentrador dos investimentos em centros de referência. De modo que uma é a situação de um médico do SUS atuando em Porto Alegre, outra a daquele atuando no Interior. E, ao julgá-lo por um atendimento prestado do qual se reclama, sobretudo quando se lhe impute ter sido omisso, esse cenário deve estar bem presente e contextualizado. Pretender que o médico do SUS de pequena cidade interiorana dê atendimento similar ao desses centros de referência em que se acotovelam pacientes por força do que a mídia apelidou de “ambulancioterapia”, tão praticada por pequenas prefeituras, apesar de todo o custo emocional que o deslocamento representa para o doente e seus familiares, sobretudo quando há diagnóstico clínico de patologia letal em longo curso, submetê-lo a uma bateria de exames invasivos e intervenções paliativas e não curativas, é desumano, tanto para o paciente quanto para o médico, se exigido que ele assim proceda. Não é a toa que outro dos grandes males da medicina atual é a, assim chamada, requisição de vários exames e testagens, para depois não ser acusado de não ter providenciado diagnóstico oportuno. Nesse difícil ambiente, o médico exerce sua profissão. Exige-se-lhe que atenda todas as nossas expectativas. Nada disso está a ser dito em favor ou para justificar erros médicos, quase tão frequentes quanto os erros judiciários, sabemos todos por experiência própria. Quem não tem uma história para contar, mesmo em famílias de médicos? A razão de ser dos erros médicos e judiciários é a mesma, a dependência de um diagnóstico clínico (juízo), que não se despega do subjetivismo e da tão imperfeita natureza humana, se bem que erros judiciários, em regra, podem ser desfeitos e erros médicos, com demasiada frequência, não. Talvez seja em razão disso que a corporação desenvolveu verdadeira obsessão para com o erro e sua evitação. A prática médica é disciplinada por um corpo de normas, objeto de rígida doutrinação desde os bancos escolares, o órgão de classe tendo o cuidado de repreender e inabilitar profissionais que as infringem. Apesar de tanto esforço, o erro segue sendo uma constante, os mais consequentes nem tanto. Seguramente em razão disso e para evitar os erros de 92

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diagnóstico clínico, foram desenvolvidos instrumentos auxiliares. E em tal medida que se edificou toda uma economia de indústria e comércio em torno deles, com todos os problemas disso decorrentes. O que alimenta essa economia é a falsa ideia de que o diagnóstico laboratorial ou de imagem afasta todo o subjetivismo do diagnóstico clínico, quando os mais informados sabem do oculto subjetivismo do operador, sem paralelo com o preparo do médico e das igualmente ocultas falhas dos aparelhos e insumos. Na seara cível, os juízes têm uma boa ideia dos falsos-positivos e falsos-negativos de exames, e o próprio fabricante aponta margens de erro em seus manuais. Mas, em se tratando do interesse de toda uma economia, isso não vem a público. Como substituto da onipotência médica no imaginário popular, mas ainda não de todo, temos hoje a ficção da precisão absoluta dos exames, dotados de uma aura de perfeição tecnológica. E, o que é ainda pior, os próprios médicos não arriscam diagnosticar sem exames e, quando a hipótese clínica não se confirma, duvidam de si, nem sempre com razão. Atualmente, a primeira visita a um médico é sempre inconclusiva, é seguida por uma bateria de exames, nem sempre necessários, e uma segunda visita muitas vezes ainda inconclusiva, sucedida por um encaminhamento a especialista diverso e nova visita, por vezes ainda inconclusiva, e assim por diante. Não carece dizer do custo econômico que isso representa. Para a medicina, o custo é o de um corpo de médicos quase burocratas, desaprendida a nobre e antiga arte diagnóstica. Mas, nem todos têm acesso a essas trilhas, não em tempo hábil. Se acertar um diagnóstico já era difícil antes, imagine-se agora, com toda essa parafernália de instrumentos auxiliares, excessiva especialização dos médicos e descrédito deles próprios em seus juízos. O tema é motivo de longos debates na academia, assim como para os sistemas que suportam economicamente o tratamento médico. Essa febre por testagens e a insegurança no arbitrar um diagnóstico clínico afastam pronta intervenção e desqualificam a medicina. Ainda, o médico transmite sua insegurança ao paciente, quando deveria ser o oposto, frustra suas expectativas e reduz a disposição de aderir aos procedimentos prescritos. Mas nem tudo é tão nefasto, pois as testagens proporcionaram ao praticante médico um mecanismo muito útil à confirmação de suas hipóteses clínicas. Mas quem disse que um diagnóstico é sempre possível? Para um mal transitório, que tenha passado antes de as testagens possibilitarem o acertamento diagnóstico, consultem-se três médicos, e cada um deles terá uma opinião diversa. Estou falando por experiência própria. A falta de diagnóstico preciso e o erro médico são uma constante nessa prática profissional, 93

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até porque o juízo sobre a patologia depende de uma anamnese, portanto, dos imprecisos relatos do doente e seus familiares. Todo bom praticante coleciona um histórico de erros, por ele próprio identificados, o mais das vezes com oportuna correção, com os quais ele aprendeu – pois essa prática também depende de experiência – e cresceu em humildade. Se algum médico disser que não tem lembrança de seus erros, estará ocultando ou não é capaz de aprender e, portanto, é muito provável erre de novo e sempre. Vale a pena ler o livro de Henry Marsh: “Sem Causar Mal”. Guardadas as proporções, não é muito diferente com o bom juiz. Se ele tem consciência crítica, saberá reconhecer seus erros retroativamente e crescer em experiência e na tão indispensável humildade. O que nós não temos é um corpo de doutrina judicial, ao menos similar ao dos médicos ou que mereça esse nome, nem tanta obsessão com a evitação do erro. Quiçá usando como paradigma, possamos aprender, ao menos com o erro de tentar substituir o subjetivismo do diagnóstico (juízo) por uma prática mecanicista, de aparência objetiva. Nas duas profissões, únicas em que o praticante recebe o epíteto de doutor ainda que não o seja, o que se tem a Humanidade como limite – por isso que erramos –, mas também como única salvação. A jurisdição mecanicista, robotizada ou estandardizada é tão nociva quanto semelhante à medicina. 3 OS LIMITES DA PERÍCIA DIVERSA Como disse antes, a medicina é uma ciência incompleta, ainda muito experimental, o que hoje se tem como boa prática, amanhã pode ser o inverso, como ocorreu muitas vezes. Outrossim, a adjetivação da conduta como expressão de boa ou má prática é um juízo de valor sobre a ética médica, que compete exclusivamente ao órgão de classe, não ao juiz do processo nem ao perito. E, deve-se recordar, há significativa margem de transição entre uma e outra, derivada das circunstâncias em que feita a escolha do praticante. Mas esse juízo ético não é pressuposto da decisão judicial, que dele não depende, nem a condiciona, ainda que possa ser considerado. A pesquisa de jurisprudência revela, em regra, uma reprovação ética pela classe e tem peso considerável na avaliação judicial, o mesmo não ocorre com a aprovação. Apesar de inúmeros pontos de contato, os juízos ético-profissional e jurídico-penal não têm os mesmos pressupostos nem podem ser confundidos. O primeiro cabe, modo exclusivo, ao órgão de classe; o segundo, ao julgador da causa penal. Tanto um quanto outro não são nem podem ser da alçada do perito chamado a 94

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depor. Ao médico chamado a fazer uma perícia diversa versando um cogitado erro médico, sobretudo na esfera criminal, não cabe julgar o seu colega de profissão, nos aspectos ético ou jurídico. Esse é um claro limite à avaliação pericial, que deve ser observado. Aliás, o Conselho Federal de Medicina manifestou-se expressamente nesse sentido no Processo-Consulta CFM n. 7.401-A/98, PC/CFM n. 19/99. Veja-se ementa que resume o entendimento: EMENTA: Somente o Poder Judiciário (magistratura) e os Conselhos Regionais de Medicina têm competência para, firmando o convencimento, julgar – aquele a existência de culpa, estes o delito ético que envolve também a ação ou omissão culposas. Sendo assim, “exorbita competência” o médico legista emitir parecer, ainda que por indícios, da existência ou não, de negligência, imperícia ou imprudência praticadas por médico, pois isto é um julgamento, missão privativa de juiz ou dos Conselhos Regionais de Medicina. O parecer se encaixa como uma luva no tema em comento, pois a consulta foi feita por perito médico-legista do Distrito Federal, em razão de reiterados pedidos feitos ao IML por autoridades policiais, Ministério Público e Judiciário, solicitando aos médicos legistas dissessem afirmativamente ou não se houve negligência, imperícia ou imprudência em atos praticados por médicos, em serviço público ou privado. E a pergunta feita pelo consulente era a seguinte: “É de competência dos peritos médicos-legistas se pronunciarem afirmativamente ou não sobre negligência, imperícia e imprudência praticados por médicos no exercício da profissão? Em caso negativo, a quem cabe?”. O parecer pode ser cogente para o perito, mas não é para o juízo. Todavia, vem ao encontro de tudo o que estou a aqui afirmar. A consulta feita suscita uma indagação. Afinal, porque aquelas autoridades do Distrito Federal estavam tanto a insistir em que houvesse manifestação conclusiva sobre um tema jurídico? No que diz respeito aos órgãos da persecução, evidentemente que para dar substrato a uma causa penal em perspectiva. Mas, no caso dos juízes, se é que a informação procede, pois o juiz poderia apenas estar requisitando o que lhe fora pedido pelas partes, não se compreende. Por certo, o perito médico-legista não é um experto em temas jurídicos, a menos que tenha dúplice formação superior, mas isto tampouco o torna experto no tema, pois dificilmente há de exercer as duas profissões. E é inconcebível que um juiz chame alguém para aconselhá-lo juridicamente. Afinal, iura novit curia e da mihi factum, dabo tibi jus.

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Ao perito que funcionar em tal perícia diversa cabe, apenas e tão somente, considerando os pressupostos fáticos certificados – não deve se pôr a fazer cogitações hipotéticas – nos autos e aqueles que obtiver por iniciativa própria, comunicando seus achados devidamente, dizer [1] em que medida a suposta prática relatada guardou conformidade ou se distanciou do padrão estabelecido, que deve ser explicitado quantum satis, com sua fonte, para que o juiz verifique a sua cogência e a extensão da violação; [2] se a discrepância era justificável pelas circunstâncias ou foi justificada por seu autor, não se ela deve ser havida como justificada; e [3] a existência de relação de causalidade entre tal conduta e o resultado danoso. Nada além, pois é apenas disso que o juiz precisa. E tudo o que for dito além deve ser desprezado. Aliás, se o perito se exceder em sua manifestação, todo o produto de seu trabalho acaba sendo contaminado pelas assertivas indevidas, devendo ser objeto de análise crítica ainda mais cuidadosa. A objetividade da manifestação de qualquer perito é o que dá segurança ao juiz quanto à consistência de suas conclusões, tanto assertivas quanto dubitativas. Depois, caberá ao juiz indagar ao imputado as razões da apontada discrepância, se há alguma justificativa para a excentricidade no caso concreto e sobre a relação de causalidade apontada. E, mais tarde, com base nesse conjunto de informes, contrastado com a restante prova dos autos, decidir a respeito da imputação fática feita na inicial, aferindo a responsabilidade penal do increpado. O juiz não pode ser um homologador de laudos, sobretudo estes. Por derradeiro, anoto que a falha de conduta pode ser um fazer (intervenção) ou um não fazer (omissão), mas o que importa estabelecer é se ela foi consciente, era evitável e foi consequente, não se o paciente foi bem-atendido ou não, se o praticante foi bem -sucedido no diagnóstico ou na conduta escolhida, se houve a cura ou o mal foi evitado, se o paciente e seus familiares ficaram satisfeitos ou manifestam desconformidade e se a conduta adotada deve receber a qualificação de má-prática. Assim, porque não se trata de aprovar nem reprovar o médico ou sua conduta, mas de verificar se ele cumpriu com seus deveres e se, os descumprindo, deu causa ao resultado danoso. E não é justo exigir dele uma conduta ideal ou que não estava a seu alcance no caso específico, posto que se lhe exige “usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance” (art. 32 do Código de Ética). Esses, a meu juízo, os limites de tal perícia diversa. E a reflexão, aqui se conclui.

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CONCLUSÃO Resumindo, a perícia diversa feita por médico-legista, com a finalidade de auxiliar o juízo na avaliação de imputado erro médico, é um meio de prova admissível. O resultado conclusivo não pode ser um juízo ético-profissional nem jurídico-penal, devendo ser limitado à verificação de discrepância entre conduta realizada e conduta-padrão, a partir de pressupostos fáticos bem certificados, com indicação da regra profissional desatendida. Também deve ser indicado se a conduta era justificável, contextualizando-a, e a relação de causa e efeito entre ela e o resultado danoso. O juiz não está vinculado às conclusões do perito e deve ter muito cuidado com o conteúdo do laudo, devido a essas suas peculiaridades. Por derradeiro, a falha de conduta, se comprovada, deve ser contextualizada pelo juiz para aferir se o dano resultante é atribuível a título de culpa subjetiva ou não, sempre recordando que a medicina é uma ciência incompleta e não serve de panaceia para todos os males.

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O DEVER DE BOA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E AS DESPESAS NO FINAL DO MANDATO: PERSPECTIVAS HERMENÊUTICAS DA IMPROBIDADE FISCAL Leonel Pires Ohlweiler Desembargador do TJRS. Pós-Doutor em Direito pela UFSC. Mestre e Doutor em Direito. Professor da Graduação e do Mestrado em Direito do Unilasalle.

INTRODUÇÃO A constitucionalização da Administração Pública, tema tantas vezes debatido no âmbito do Direito Administrativo, produz intensos efeitos sobre o exercício das competências de gestão dos orçamentos públicos. A materialização da democracia substancial impôs a construção de indicações mais profundas para o controle fiscal, o que a Lei Complementar n. 101/2000 concretizou em diversos dispositivos, dentre eles o art. 42 ao tratar do tema das obrigações de despesas em final de mandato. O objeto da presente pesquisa restringe-se aos delineamentos hermenêuticos da chamada improbidade fiscal, importante instrumento para o resgate material do ethos constitucional de boa administração pública. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial. Na primeira parte haverá a análise do estado da arte na jurisprudência, focando-se no Superior Tribunal de Justiça e no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, indicando-se as principais decisões e capazes de elucidar as referências necessárias para materializar o citado dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal. Partindo-se da linha de entendimento tradicional do STJ

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sobre o elemento subjetivo do ato de improbidade administrativa, com especial atenção para o art. 11 da Lei n. 8.429/92, destacam-se os argumentos utilizados para elencar os elementos de configuração da improbidade fiscal. Após, a partir do profícuo diálogo com a concepção hermenêutica de Ronald Dworkin, será debatida a leitura moral da Lei Complementar n. 101/2000, especificando a necessária compreensão da unidade hermenêutica representada pela boa administração pública e suas indicações de prudência e probidade fiscais. Não basta, portanto, agregar o material jurisprudencial e doutrinário sobre o tema, mas é preciso construir uma dada concepção para a leitura desse material. Adota-se o entendimento segundo o qual o texto normativo do art. 42 materializa em diversos aspectos a ideia de responsividade e, de modo mais específico, as virtudes de prudência e probidade. Estabelecidas tais pré-compreensões, a última parte deste breve estudo destina-se ao exame das indicações da tipicidade da improbidade administrativa fiscal, em especial pela violação de princípios da Administração Pública, na linha das decisões destacadas do STJ e do TJRS. A finalidade é contribuir de algum modo para a melhor decisão sobre o tema, laborando com a necessária circularidade hermenêutica entre as dimensões objetiva e subjetiva, de modo a compreender a descrição da conduta ímproba em seus aspectos normativos e o requisito relacionado com a subjetividade da ação praticada e capaz de ensejar a aplicação da Lei n. 8.429/92. 1 A RESPONSABILIDADE NA GESTÃO FISCAL EM FINAL DE MANDATO: O DEBATE JURISPRUDENCIAL O art. 42 da Lei Complementar n. 101 sempre foi objeto de debates em virtude da vedação estabelecida com relação às obrigações de despesas nos dois últimos quadrimestres do mandato de agentes políticos. A necessidade da análise do texto normativo também adquire relevância pelas disposições contidas no art. 73 ao prever a possibilidade de a infração aos dispositivos desta Lei Complementar ser punida segundo a Lei n. 8.429/92, Lei de Improbidade Administrativa. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça realizou-se pesquisa constatando a escassez de decisões sobre o tema, destacando-se apenas três casos julgados. No REsp n. 706.744-MG, Rela. Mina. Eliana Calmon, 2ª Turma, julgamento ocorrido em 07-02-06, muito embora sem o enfrentamento direto do tema da improbidade administrativa por violação do citado art. 42, o julgamento 100

O dever de boa Administração Pública e as despesas no final do mandato: perspectivas hermenêuticas da improbidade fiscal

é digno de nota por algumas questões interessantes. Trata-se de acórdão do TJMG julgando ação de cobrança proposta contra o Município de São João Batista do Glória, sendo a própria Administração Pública recorrente, cujo objetivo era alterar a decisão e a respectiva sentença de 1º Grau que condenou o Município ao pagamento de crédito referente à venda de produtos hospitalares. A tese veiculada consistiu na circunstância comprovada de tal obrigação ter sido contraída pelo gestor público anterior em desacordo com o art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal, ocasionando, portanto, a nulidade dos atos administrativos praticados. O STJ estabeleceu algumas questões importantes: (a) com relação ao propósito da Lei de Responsabilidade Fiscal, referiu que regras de finanças públicas destinam-se a impor responsabilidade na gestão fiscal dos entes públicos, cujo escopo é reprimir a irresponsabilidade dos governantes; (b) foram introduzidos dispositivos endereçados a ele, destacando-se a imputação de responsabilidade ao gestor passado pelos restos a pagar, cuja normatividade inclusive lhe imputa a prática de crimes e atos de improbidade administrativa; (c) o regramento do art. 42 não determina a nulidade das despesas contraídas no contexto do período suspeito; (d) o princípio da legalidade impõe à Administração Pública a observância das regras de direito financeiro no controle de suas despesas e de seu orçamento; e (e) muito embora a despesa contraída seja irregular, o ato praticado pela Administração Pública é capaz de gerar direito público subjetivo de crédito a um terceiro, devendo-se considerar a vedação do enriquecimento ilícito em relação a terceiro de boa-fé. A questão foi novamente debatida, agora de forma específica sobre o art. 42 da LRF, no AgRg no Agravo de Instrumento n. 1.282.854-SP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, julgado em 15-03-11, em virtude de decisão monocrática que negou provimento ao recurso especial interposto, sustentando-se a inexistência de dolo do agente público. O caso tratava de condenação por ato de improbidade administrativa mantida pelo TJSP em relação a determinados agentes políticos, com base em relatório de fiscalização das contas do Município, relativo ao exercício 2004, elaborado pela fiscalização e adotado pelo TCE, indicando o desastre da gestão no final do exercício do mandato do Prefeito Municipal. Há referências de o recorrente ampliar em 75,4% a indisponibilidade financeira apurada em 31 de abril de 2004, período no qual estava impedido de comprometer receitas em montante superior as que pudessem ser liquidadas no curso do exercício seguinte ou sem que houvesse disponibilidade de caixa para pagamento. O STJ firmou parâmetros sobre a aplicação do art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal, em especial sobre os problemas relacionados com o 101

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elemento subjetivo: (a) destacou-se a relevância da atuação do TCE, pois no caso julgado ocorreram sucessivos alertas e, mesmo assim, o agente público ampliou o percentual de indisponibilidade no período suspeito e (b) com relação ao dolo, a improbidade administrativa por violação do citado dispositivo exige o dolo, mas admite-se a caracterização de dolo eventual, manifesto na vontade livre e consciente de contrair despesas em nome do Município nos dois últimos quadrimestres de seu mandato que não podiam ser cumpridas integralmente dentro dele e havia parcelas a serem pagas no exercício seguinte, sem suficiente disposição de caixa para este efeito, atentando contra princípios da Administração Pública, em especial legalidade e moralidade administrativa. O tema da improbidade administrativa em exame voltou à discussão somente com o julgamento do REsp n. 1.252.341-SP, Rela. Mina. Eliana Calmon, 2ª Turma, j. 05-09-13, no qual se debateu sobre acórdão do TJSP que julgou procedente ação de improbidade administrativa de Prefeito Municipal, muito embora a aprovação das contas pela Câmara Municipal de Vereadores. O fato determinante foi similar ao já referido, qual seja, o ato de improbidade administrativa consistiu na violação do art. 42 da Lei Complementar n. 101/2000, consistente na assunção de obrigações nos últimos dois quadrimestres do exercício 2000, sem que houvesse, ao final do seu mandato, disponibilidade financeira para saldá-las. Relativamente ao elemento subjetivo, o STJ decidiu pela configuração, na linha da jurisprudência da Corte, no sentido de exigir-se o dolo, ainda que genérico, para os casos dos arts. 9º e 11 e a culpa, para a hipótese do art. 10, todos da Lei n. 8.429/92. O caso submetido ao exame revelou, segundo os Ministros, no mínimo, a presença de culpa na gestão dos recursos públicos, argumentando-se com base nas conclusões da própria sentença de 1º Grau imputando ao agente público ter agido de má-fé. Destacou-se a circunstância fática de o réu ter conhecimento de os cofres públicos não dispuserem de numerário suficiente para fazer frente às despesas realizadas, demonstrando seu descaso com a gestão do bem público e deveres de conduta do administrador público, pois inclusive deixou um “rombo” no orçamento de mais de um milhão de reais. As decisões referidas, portanto, indicam a importância do tema do equilíbrio na gestão das contas públicas, em especial no final do mandato, preocupação também presente em julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, muito embora não existam em números quantitativamente significativos. Tal aspecto é exatamente o elemento determinante da pesquisa aqui realizada, como no julgamento da Ação Civil Pública n. 70007000557, Rel. Des. Carlos Eduado 102

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Zietlow Duro, 22ª Câmara Cível, j. 28-04-05, ocasião na qual se enfrentou a situação de determinado Município com valor de disponibilidade de caixa bem inferior à dívida total empenhada, sem a devida cobertura disponível no caixa do Município. Houve destaque para a peculiaridade do caso concreto, pois a Lei de Responsabilidade Fiscal entrou em vigor quando já estava em vigência o exercício financeiro relativo ao ano 2000 da municipalidade, existindo autorização legislativa prévia. No entanto, alguns elementos foram assentados sobre a aplicação do art. 42 em análise: (a) o dispositivo direciona-se para evitar que o administrador, em final de mandato, efetue gastos comprometendo a administração futura, prejudicando a própria coletividade; (b) a normatividade do art. 42 não pode importar na interrupção dos serviços públicos continuados, inerentes à própria máquina administrativa para possibilitar o seu funcionamento e (c) despesas administrativas para funcionamento da administração como combustível, água, energia elétrica, telefonia, material de expediente, dentre outros, não podem ser computados para os fins do art. 42. Posteriormente, questão similar da superveniência da Lei de Responsabilidade Fiscal em pleno exercício da execução orçamentária foi novamente julgada por meio da Apelação Cível n. 70013319512, Des. Carlos Eduardo Zietlow Duro, j. 15-12-05. Além dos argumentos acima aludidos reafirmando o entendimento de não ser crível incluir na expressão “restos a pagar” as despesas administrativas imprescindíveis para o funcionamento da máquina administrativa, mencionou-se a existência de despesas relativas aos restos a pagar não vencidas e, desta forma, somente poderiam ser pagas no exercício seguinte, existindo saldo disponível e afastando a ocorrência de qualquer ato de improbidade administrativa. Na Apelação Cível n. 70039928122, Rel. Des. Luiz Felipe Silveira Difini, 1ª Câmara Cível. j. 06-04-11, ainda na linha das questões trazidas para o Poder Judiciário logo após a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal, a discussão envolveu o próprio papel do TCE de constatar as irregularidades nas contas públicas, não havendo surpresa, pois houve a incidência dos dispositivos cuja aplicação já era possível, mesmo no curso da execução orçamentária. No entanto, prevaleceu o entendimento de não ser possível exigir do administrador a adaptação da execução do orçamento já aprovado à regra superveniente e a mera existência de restos a pagar não implica, por si só, a configuração de ato de improbidade administrativa. Para o fim específico desta pesquisa, destaca-se a decisão proferida por ocasião do julgamento da Apelação Cível n. 70046660098, Rel. Des. Jorge Maraschin dos 103

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Santos, j. 15-02-12, na qual o exame da prática de ato de improbidade administrativa por violação do art. 42 exigiu a análise da circunstância de o agente público realizar empenhos retroativos de despesas contraídas pela Municipalidade. Debateu-se sobre a existência ou não de violação dos princípios da Administração Pública e o fato de a conduta gerar despesas sem as respectivas dotações orçamentárias. Ao final, o TJRS concluiu pela ausência de ato de improbidade administrativa, pois o próprio TCE concluiu pela veracidade das despesas, referindo não terem sido criadas para maquiar a contabilidade pública. Muito embora não seja o procedimento recomendável, inexistiu ato de improbidade administrativa, mas manobra necessária, útil e normativamente possível a partir dos arts. 58 e 63 da Lei n. 4.320/64. Por ocasião do julgamento prevaleceu a tese de admitir a possibilidade no caso concreto do registro contábil extemporâneo, sem que tal conduta viole o art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Julgamento recente sobre o tema, Apelação Cível n. 700651375645, Rela. Desa. Maria Isabel de Azevedo Souza, 22ª Câmara Cível, j. 30-07-15, enfrentou de modo direto os requisitos necessários para caracterizar ato de improbidade administrativa por violação do art. 42, cujo acórdão foi assim ementado: IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PREFEITO. DESPESAS. FALTA DE DISPONIBILIDADE DE CAIXA. DOIS ÚLTIMOS QUADRIMESTRES DO MANDATO. RESTOS A PAGAR. LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL. 1. Não há nulidade pela inversão da ordem de oitiva das testemunhas sem a prova do prejuízo para as partes. Princípio “pas de nullité sans grief ”. 2. O regime da repercussão geral previsto no artigo 543-B do CPC não induz ao sobrestamento do recurso de apelação. 3. O julgamento da ação de improbidade administrativa não se subordina ao prévio julgamento do processo criminal que versa sobre os mesmo fatos, em razão da independência entre as esferas. 4. Nos dois últimos quadrimestres do seu mandato, é vedado ao titular de Poder assumir nova despesa que não possa ser cumprida dentro do exercício por indisponibilidade de caixa. Art. 42 da LRF. 5. O art. 42 da LRF não tem por escopo proibir despesas ilegais por desvio de finalidade, mas sim a assunção de despesas, nos últimos oito meses do mandato, ausente disponibilidade de caixa para seu pagamento até o final do exercício. Nos dois últimos quadrimestres do mandato, se não há disponibilidade de caixa, é vedado ao agente público assumir despesa, ainda que presente 104

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a finalidade pública. Todavia, na interpretação desta norma, devem ser levadas em conta as situações extraordinárias decorrentes de fatos imprevisíveis ou previsíveis mas de consequências incalculáveis. Assim, a indisponibilidade de caixa não impede a assunção de dívidas para atender à situação excepcional em razão de emergência ou calamidade ou necessidade premente ou para garantir o funcionamento das atividades essenciais da máquina administrativa. 6. A infração ao art. 42 da LRF constitui ato de improbidade administrativa. Art. 73 da LC 101/2000. A finalidade pública das contratações não exclui, por si só, o dolo genérico do Prefeito de violar o referido dispositivo legal. 7. O Prefeito candidato à reeleição que, nos últimos oito meses do seu mandato, em violação ao art. 42 da LRF, celebra contrato, sem que haja disponibilidade de caixa, para veicular em rádio programa para divulgar as realizações de sua gestão incorre nas sanções do art. 12, inciso II, da Lei de Improbidade Administrativa. A infração ao referido dispositivo legal aliada à ausência de finalidade pública da despesa, já que destinada à promoção da sua gestão, configura ato de improbidade administrativa tipificada no art. 10 da Lei nº 8.429/1992 pela malversação de recursos públicos, cujo total deverá ser ressarcido ao erário. 8. Configura ato de improbidade administrativa, previsto no art. 11 da Lei nº 8.429/1992, a assunção livre e consciente pelo Prefeito de novas despesas, nos últimos oito meses do seu mandato sem disponibilidade de caixa, ausente situação excepcional decorrente de situação de urgência ou calamidade pública ou necessidade premente para garantir o funcionamento das atividades essenciais da máquina administr pública das contratações não exclui, por si só, o dolo genérico do Prefeito de violar o art. 42 da LRF, porquanto o aludido dispositivo legal não se destina a vedar despesas destituídas de interesse público em desvio de finalidade, mas despesas legais sem disponibilidade de caixa nos últimos oito meses do mandato. A exclusão do dolo depende da prova de que a despesa era inadiável ante situação excepcional em razão de urgência, calamidade ou necessidade premente ou para garantir o funcionamento das atividades essenciais da máquina administrativa. Hipótese em que parte das despesas não apresenta sequer indícios de situação excepcional de modo a excluir a culpabilidade do agente público. A alegação do então Prefeito de já havia sido reeleito, ao tempo da assunção de algumas dessas despesas, não é hábil o bastante 105

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para excluir sua conduta dolosa em violar o art. 42 da LRF. Ao contrário, tal só reafirma sua intenção de descumprir a proibição legal. 9. Ante a gravidade da conduta, representada pelo dano ao erário e quebra do dever de lealdade aos princípios que norteiam o agir do agente público pelo comprometimento de caixa que transcende o exercício transitório do mandato, e a intensidade do elemento subjetivo do agente, afigura-se adequada a condenação do agente político em todas as sanções do art. 12, inciso II, da LIA. Agravo retido desprovido. Recurso de apelação provido em parte. (Apelação Cível Nº 700651375645, Vigésima Segunda RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em 20/08/2015) No caso acima referido, examinou-se a situação de prefeito municipal que contraiu nos dois últimos quadrimestres do seu mandato dezessete obrigações, cujas despesas não poderiam ser pagas no referido exercício financeiro e inscreveu parcelas em restos a pagar sem contrapartida de caixa, em violação ao art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal. O TJRS manteve a condenação por ato de improbidade administrativa, adotando o seguinte entendimento: (a) a caracterização do quadro de crise financeira não é suficiente para excluir a responsabilidade, pois mais razão haveria para o agente público não assumir obrigações no período vedado pelo art. 42; (b) houve comprovação da concordância do réu com a realização de novas despesas sem que houvesse disponibilidade de caixa nos últimos oito meses; (c) para a condenação por ato de improbidade administrativa não basta a assunção consciente de novas dívidas nos dois últimos quadrimestres do mandato sem suficiente disponibilidades de caixa, sendo imperioso examinar o elemento subjetivo; (d) a proibição de novas despesas por indisponibilidade de caixa não impede a assunção de dívidas para atender as necessidades públicas decorrentes de situação excepcional em razão de urgência ou calamidade ou necessidade premente para garantir o funcionamento das atividades essenciais da máquina administrativa; (e) em termos probatórios impõe-se examinar o objeto e a justificativa de cada um dos contratos celebrados no período proibido, a fim de verificar se eles se destinavam a prover necessidade pública urgente; (f) a finalidade pública da despesa das contratações não exclui, por si só, o dolo genérico do agente público em violar o art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal e (g) no caso houve prática de ato de improbidade administrativa em virtude de as despesas não se relacionarem com situação excepcional capaz de afastar a proibição legal do dispositivo. 106

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Por fim destaca-se decisão do 2º Grupo de Câmaras Cíveis, Embargos Infringentes n. 70062555792, Rel. Des. Eduardo Delgado, j. 10-06-16, no qual o dispositivo em exame foi objeto de debates, cujo acórdão foi assim ementado: EMBARGOS INFRINGENTES. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PREFEITO DE BOM PRINCÍPIO. INCIDÊNCIA DA LEI 8.429/92 AOS AGENTES POLÍTICOS. JURISPRUDÊNCIA DO STF, STJ E TJRS. COMPROVADA A ASSUNÇÃO DE DESPESAS NOS DOIS ÚLTIMOS QUADRIMESTRES DO EXERCÍCIO E A IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO NO MANDATO - ART. 42 DA LC 101/00. NÃO OBSTANTE O DISSENSO NA INTERPRETAÇÃO DO ART. 42 DA L. C. Nº 101/2000 - LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL. EVIDENCIADA A REITERAÇÃO DA CONDUTA APESAR DOS ALERTAS DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO - TCE. DOLO CONFIGURADO. ART. 11, I C/C ART. 12, III, DA LEI FEDERAL Nº 8.429/92. I - Esta Corte pacificou a posição no sentido da incidência da Lei nº 8.429/92 aos agentes políticos, com base na jurisprudência do STF e STJ. II - Incontroversa a reiteração voluntária da conduta ilícita de comprometimento de despesas nos dois últimos quadrimestres do mandato, em ofensa à regra do art. 42 da L. C. 101/2000, a configurar o atentado voluntário ao princípio da legalidade, constante do art. 11, I, da Lei 8.429/92. Embargos infringentes acolhidos. (Embargos Infringentes Nº 70062555792, Segundo Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eduardo Delgado, Julgado em 10/06/2016). A decisão foi de condenação do agente público por ato de improbidade administrativa previsto no art. 11, inc. I, da Lei n. 8.429/92, adotando-se o entendimento de a comprovação do dolo genérico ser suficiente, caracterizando-se pela consciência de assumir compromissos financeiros em nome do Município nos dois últimos quadrimestres do mandato, mesmo que sem disponibilidade financeira para o cumprimento no período ou na administração seguinte. Destacou-se na decisão a circunstância de o agente público não ter adotado medidas suficientes para atender à notificação do TCE em relação ao período anterior, já possuir condenação na esfera penal pela prática do crime previsto no art. 359-C do Código Penal, bem como a ciência inequívoca em relação à ilegalidade perpetrada,

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considerando a ausência de qualquer comprovação de circunstância excepcional ou emergencial, para o empenho de gastos ou novas obrigações. 2 A COMPREENSÃO DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL A PARTIR DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL: PRUDÊNCIA E PROBIDADE COMO VIRTUDES FISCAIS O conjunto das indicações jurisprudenciais construídas a partir das decisões acima referidas do STJ e do TJRS comprovam a íntima relação do tema da gestão de verbas públicas com o conteúdo da moralidade administrativa. A Lei Complementar n. 101/2000 e especificamente o texto do art. 42 não foram erigidos no vácuo, mas no contexto constitucional representado pelo art. 165, § 9º, II, CF, quando refere caber à lei complementar estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta, bem como pelo art. 70 do texto constitucional ao especificar importantes referências principiológicas para o controle dos orçamentos públicos, como a legalidade, legitimidade e economicidade. Sobre a questão refere Ricardo Lobo Torres1: O controle da legitimidade é o que se exerce sobre a legalidade e a economicidade da execução financeira e orçamentária. As finanças públicas no estado Social de Direito, que, ao contrário do Estado Guarda-Noturno ou do Estado Liberal do século passado, tem a sua dimensão intervencionista e assistencialista, não se abre apenas para a tomada de contas ou para o exame formal da legalidade, senão que exige também o controle de gestão, a análise de resultados e a apreciação da justiça custo/ benefício, a ver se o cidadão realmente obtém a contrapartida do seu sacrifício econômico. O aspecto da legitimidade, por conseguinte, engloba os princípios constitucionais orçamentários e financeiros, derivados da ideia de segurança jurídica ou de justiça, que simultaneamente são princípios informativos de controle. (...) O controle da legitimidade, que é da própria moralidade, só agora se positivou na Constituição, mas, já era reclamado há muito pelos juristas

1 – O Orçamento na Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 285-286. 108

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brasileiros. Indubitável que a novidade constitucional do controle do aspecto da legitimidade significa a abertura para a política. Entenda-se: não para a política partidária nem para a atividade política ou discricionária, mas para a política fiscal, financeira e econômica. Tal referência é crucial para bem dimensionar a relevância do art. 73 da Lei de Responsabilidade Fiscal, ainda que preceitos relacionados com a moralidade da gestão de verbas públicas sejam de caráter abstrato. No entendimento de Ronald Dworkin, ao defender a leitura moral da Constituição Americana, “a leitura moral propõe que todos nós – juízes, advogados e cidadãos – interpretemos e apliquemos esses dispositivos abstratos considerando que eles fazem referência a princípios morais de decência e justiça.”2 Assim, o tema da improbidade administrativa em debate relaciona-se exatamente com a necessidade de ultrapassar a concepção de controle formal para a dimensão de legitimidade, substancial, cujo espaço normativo propõe a discussão sobre de que modo a Administração Pública deve gerir as verbas públicas. Qual a melhor concepção deste princípio abstrato de moralidade em relação aos orçamentos públicos? Trata-se de assunto proposto pela leitura moral da Constituição Federal e da própria Lei Complementar n. 101/2000. Concorda-se com Ronald Dworkin quando responde aos críticos da leitura moral referindo que na prática cotidiana do Direito os intérpretes e aplicadores laboram com exigências morais em suas decisões, mas apenas não as explicitam3. Ora, também estão na gênese das práticas orçamentárias determinadas concepções, finalidades a serem realizadas, objetivos a serem alcançados, cujo substrato interpretativo é orientado por concepções de moralidade política dos agentes públicos responsáveis pela sua elaboração e execução. A questão aqui retratada, com reflexos diretos no art. 42 da LRF, reside em explicitar e debater a melhor concepção para orientar o controle dos orçamentos públicos. A citada transformação do controle meramente formal, antes da Constituição Federal de 1988, para o exame de legitimidade substancial, está conectada diretamente com a própria ideia de democracia, por exemplo, explicitada nos arts. 1º e 3º da Constituição Federal. Não há como desvincular a compreensão da gestão fiscal das questões típicas do Estado Democrático de

2 – Cf. DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade. A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 2. 3 – Cf. DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade. A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana, p. 04. 109

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Direito. As características desse modelo de Estado foram muito bem explicitadas por J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira4: ‘‘a) Constitucionalidade: vinculação do Estado Democrático de Direito a uma Constituição como instrumento básico de garantia jurídica; b) Organização Democrática da Sociedade; c) Sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos, seja como Estado de distância, porque os direitos fundamentais asseguram ao homem autonomia perante os poderes públicos, seja como um Estado antropologicamente amigo, pois respeita a dignidade da pessoa humana e empenha-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e da solidariedade; d) Justiça Social com mecanismos corretivos das desigualdades; e) Igualdade não apenas como possibilidade formal, mas, também, como articulação de uma sociedade justa; f) Divisão de Poderes ou Funções; g) Legalidade que aparece como medida do direito, isto é, através de um meio de ordenação racional, vinculativamente prescritivo, de regras, formas e procedimentos que excluem o arbítrio e a prepotência; h) Segurança e Certezas Jurídicas.” Com efeito, para Ronald Dworkin, “quando compreendemos melhor a democracia, vemos que a leitura moral de uma constituição política não só não é antidemocrática como também, pelo contrário, é praticamente indispensável para a democracia.”5 É nessa esteira que o art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal conecta-se com os princípios do Estado Democrático de Direito e a moralidade administrativa do art. 37, caput, da CF, como relevante indicação normativa para permitir a plena realização de tais propósitos por meio do dever de boa administração pública. No entendimento de Juarez Freitas, relaciona-se com a administração pública eficiente, eficaz, “proporcional, cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas...”6. Relativamente à gestão fiscal, é crível dizer que ao dever de boa administração pública materializa a concepção de legitimidade democrática do art. 70 da Constituição Federal, impondo ao agente público o dever de integridade e coerência com relação à unidade dos princípios constitucionais.

4 – CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra, 1991, p. 83. 5 – O Direito da Liberdade. A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana, p. 10. 6 – Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 20. 110

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É imprescindível, assim, na finalidade de melhor compreender a moralidade fiscal presente na Constituição Federal e legislação infraconstitucional, não perder de vista a historicidade da Lei Complementar n. 101/2000 como tentativa de ultrapassar a compreensão meramente formal de democracia e o senso comum de então, qual seja, “o orçamento serviu, durante mais de um século, muito mais aos interesses dos políticos e do aparelho do Estado do que aos da sociedade.”7 Urge vislumbrar o art. 42 já referido com a consciência histórica de o atual marco normativo culminar com a institucionalização do equilíbrio das contas públicas e da responsividade fiscal como referências fundamentais para materializar o novo ethos em matéria de gestão do Erário. Como refere Diogo de Figueiredo Moreira Neto, da responsabilidade, como elemento tradicional ligado à legalidade, o Estado Democrático de Direito renova-se com a responsividade8: No Estado Democrático de Direito se inova o princípio da responsividade, introduzindo um novo dever substantivo, em razão do qual o administrador público também fica obrigado a prestar contas à sociedade pela legitimidade de seus atos. A responsividade consiste, portanto, em apertada síntese, na obrigação de o administrador público responder pela violação da legitimidade, ou seja, pela postergação ou deformação administrativa da vontade geral, que foi regularmente expressa, explícita ou implicitamente, na ordem jurídica. Da compreensão e do desenvolvimento desse conceito, pois assim é que se deve entender a responsabilidade fiscal como tratada na Lei que leva essa designação, muito dependerá o êxito de sua aplicação. 7 – Cf. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Considerações sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal. Finanças Públicas Democráticas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 85. Vale também a referência de Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves sobre o processo de amadurecimento para a edição de uma lei com a finalidade de assegurar uma gestão responsável do dinheiro público. Muito embora seja evidente tal conduta dos administradores, refere as resistências à Lei de Responsabilidade Fiscal voltada para coibir o despautério, a insensatez e a má-fé na administração do patrimônio público: “Com tais objetivos, foi editada a Lei Complementar n. 101/2000, também denominada de Lei de Responsabilidade Fiscal, que é parte integrante de um conjunto de medidas que compõem o denominado Plano de Estabilização Fiscal (PEF), tendo estabelecido mecanismos de gestão dos recursos públicos, visando conter o deficit e estabilizar a dívida pública, possibilitando a manutenção do equilíbrio que deve existir entre despesas e receitas públicas.” (Improbidade Administrativa. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 528-529.) 8 – Considerações sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal. Finanças Públicas Democráticas, p. 60. 111

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O texto infraconstitucional do art. 42 da Lei Complementar n. 101/2000, portanto, materializa a ideia de responsividade em certo modo, ainda que não se reconheça o caráter de princípio, mas como dever público de gestão administrativa, pois o agente público em final de mandato não se pode valer de tal circunstância para, desconsiderando as referências do equilíbrio fiscal, assumir obrigações novas a serem pagas pelo sucessor na Administração Pública, sem a devida cobertura orçamentária, com suficiente disponibilidade de caixa. A outra dimensão da moralidade aplicada aos orçamentos públicos refere-se à prudência fiscal, exigindo-se do administrador não apenas o comprometimento com a boa administração pública: Mas no Estado Democrático de Direito vai-se mais adiante nesse mesmo caminho e se define, ainda com maior precisão e vigor, um princípio de prudência fiscal, que vem a ser um standard comportamental a ser observado pelo administrador financeiro diante de riscos na administração dos dinheiros públicos, um conceito que é mais apropriado à extrema delicadeza ética exigida para o manejo dos recursos compulsoriamente entregues pela sociedade à administração Estado... (...) Demanda-se, portanto, nesse contexto neodemocrático, que o administrador de recursos públicos opere com especial moderação e extremo cuidado, passando a considerar e a evitar riscos, que até poderiam ser assumidos se fora uma gestão de interesses privados por gestores privados, mas que não podem ser ignorados ou negligenciados quando se trate de gestores públicos, de interesses públicos, dai o moderno conceito de gestão sem riscos.9 As indicações acima mencionadas justificam-se ainda pela compreensão dos julgados do STJ sobre a matéria, como no REsp n. 706.744-MG, no qual se destacou a materialização de uma espécie de moralidade fiscal com a referência de a Lei Complementar n. 101/2000, dentre outros propósitos, vocacionar-se para reprimir a irresponsabilidade dos governantes, no caso, em especial daqueles em final de mandato. Tal desiderato, por exemplo, encontra-se no próprio art. 1º do

9 – Cf. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Considerações sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal. Finanças Públicas Democráticas, p. 62-63. 112

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diploma legal ao explicitar a responsabilidade na gestão fiscal como referência para interpretação dos diversos dispositivos, destacando-se o § 1º ao disciplinar que a responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições referentes à inscrição de restos a pagar. Não se pode olvidar a menção contida no acórdão do julgamento da Ação Civil Pública n. 70007000557 sobre a restrição do art. 42 e a finalidade de evitar gastos por parte do administrador em final de mandato, com o comprometimento da administração futura e prejudicando, em última análise, a própria coletividade. 3 REQUISITOS NORMATIVOS PARA A APLICAÇÃO DO ART. 42 DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL COMO ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA A combinação desse dispositivo com o art. 73 do mesmo diploma legal, como já aludido, traz relevantes consequências em termos de gestão do orçamento público, proporcionando o debate sobre a denominada improbidade fiscal. O texto normativo refere que as infrações dos dispositivos da Lei Complementar n. 101/2000 serão punidas também segundo a Lei n. 8.429/92. Dentre os casos julgados pelo STJ e TJRS, destacam-se o AgRg no Agravo de Instrumento n. 1.282.854-SP, STJ, a Apelação Cível n. 70065137564 e os Embargos Infringentes n. 70062555792, ambos do TJRS, pois nos três julgamentos houve a condenação por ato de improbidade administrativa previsto no art. 11 da Lei n. 8.429/92. Tais referências jurisprudências mostram-se úteis para delimitar o ato de improbidade administrativa do art. 42 da LRF, destacando-se, de plano, sua íntima relação com o dever de boa gestão fiscal e accountability, pois a má gestão pública revela-se no interior das práticas ímprobas, como alude Fábio Medina Osório10: Talvez não pareça novidade situar a improbidade como espécie de má gestão pública, porque tal constatação resultaria situada no senso comum, até mesmo num olhar empírico. Entretanto, a dificuldade reside em situar corretamente a improbidade no campo axiológico da má gestão pública, 10 – Teoria da Improbidade Administrativa. Má Gestão Pública. Corrupção. Ineficiência. 3ª ed. São Paulo: RT, 2013, p. 37 e 47. 113

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ou seja, como uma categoria ético-normativa apta a designar precisamente fenômenos situáveis no âmbito da má gestão pública. Realmente, a novidade consiste em posicionar a improbidade no universo rico e complexo da má gestão pública, deixando claro que se trata de conceitos próximos, porém distintos, na medida em que nem toda má gestão pública será expressão da improbidade, ainda que o inverso seja verdadeiro. Com efeito, improbidade administrativa e má gestão fiscal situam-se na órbita da recepção realizada do vetusto princípio da moralidade administrativa, mencionando-se a figura de Maurice Hauriou e sua concepção sobre desvio de finalidade e boa administração pública11. Com a contextualização para este estudo, o administrador público, mesmo quando exerce sua competência de gestão fiscal observando as prescrições formais, mas utiliza tal prerrogativa por outros motivos diversos daqueles presentes na regra de competência, pratica desvio de poder e, por consequência, má gestão pública. Aqui reside aspecto relevante: os agentes públicos, no processo de administração dos orçamentos, devem ter a capacidade funcional de bem compreender o todo representado pela ideia de responsabilidade fiscal e adotarem o melhor em termos de gestão pública. Não há liberdade neste ponto. O art. 42, dessa forma, em termos de boa administração, exige do agente público a necessidade de compreender os objetivos, as finalidades, os móveis de sua função no processo de administração das obrigações de despesas em final de mandato, cuja atuação desviante, circunstância sempre apurada a partir do caso e das ideias de integridade e coerência da Lei de Responsabilidade Fiscal, importará na prática de improbidade administrativa. Em termos de tipificação jurídica, e restrita aos termos dos debates sobre a aplicação do art. 11 da Lei n. 8.429/92, pode-se defender a incidência conjunta dos arts. 73 e 42 da LRF quando o agente público, de forma livre e consciente, nos dois últimos quadrimestres do seu mandato, contraiu obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte, sabendo ou devendo saber sobre a inexistência de suficiente disponibilidade de caixa, violando assim princípios da Administração Pública e, de modo específico, a prudência e probidade fiscais, sem causar dano ao erário ou haver enriquecimento ilícito, cuja conduta também é incompatível com a proporcionalidade. 11 – Précis de Droit Administratif et de Droit Public. 12ª ed. Paris: Dalloz, 2002, p. 442-443. 114

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Como aduz Diogo de Figueiredo Moreira Neto12: O que se pretende na Lei Complementar é por um paradeiro ao lamentável hábito do mau administrador público de legar dívidas ao seu sucessor, acumulando obrigações a serem satisfeitas no exercício seguinte ao término de seu mandato. A prudência e o bom senso impedem a realização de despesas de capital cujo valor ultrapasse a possibilidade de liquidação no exercício, inibindo a gestão eleitoreira, que é a praticada às pressas, para impressionar, no final dos mandatos. Denota-se a impossibilidade hermenêutica de laborar com tal questão com as restritas possibilidades metodológicas da subsunção, exigindo-se por parte do intérprete/aplicador desenvolver determinada concepção para construir decisões jurídicas constitucionalmente adequadas sobre a improbidade fiscal do art. 42. Os seguintes aspectos podem ser destacados: (a) a improbidade administrativa fiscal é um conceito interpretativo; (b) laborar com a integridade e coerência da Lei de Responsabilidade Fiscal; (c) individualizar hermeneuticamente a tipicidade do texto do art. 42 dado a partir do caso; (d) compreender a melhor justificativa da probidade fiscal como unidade de princípios do caso; (e) dialogar com as concepções rivais de probidade fiscal; e (f) a melhor concepção de probidade fiscal será aquela capaz de realizar o conjunto coerente de princípios da boa Administração Pública. É claro que o bloco de indicações não é estanque e não ocorre de modo isolado e abstrato, mas integra o inexorável processo de aplicação, marcado pela circularidade hermenêutica. Na linha do jusfilósofo Ronald Dworkin, laborar com a improbidade fiscal como conceito interpretativo parte do pressuposto segundo o qual não é possível responder ao questionamento sobre o que é improbidade administrativa no campo da mera descrição fática ou fincado em algum fundamento externo, como refere Sthephen Guest relativamente ao conceito de Direito13. Trata-se de uma atitude (interpretativa) voltada às práticas que conformam o próprio Direito Administrativo, e não há como divorciar da compreensão o seu caráter deontológico, cujo conteúdo contém o princípio de os agentes públicos serem responsáveis pela gestão fiscal da Administração Pública a partir de indicações do ethos constitucional.

12 – Considerações sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal. Finanças Públicas Democráticas, p. 231. 13 – GUEST, Sthephen. Ronald Dworkin. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 16. 115

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O caráter interpretativo aludido, portanto, evidencia a necessidade de abrir a compreensão do fenômeno da improbidade administrativa para outros âmbitos, como o das práticas jurídicas construídas intersubjetivamente pela comunidade política, conforme sustenta em outro contexto Lenio Luiz Streck14. Como consequência para melhor dimensionar a improbidade administrativa fiscal, não se pode perder de vista – o olhar hermenêutico – a necessidade de materializar tal conceito com o conjunto de objetivos e princípios que lhe conferem sentido, mas não um sentido abstrato, obtido por meio de conceitos semânticos, e sim propósito construído e projetado na história institucional15 da comunidade política a que pertence, marcado pela pergunta prática: de que modo o gestor público deve gerir as obrigações de pagamentos em final de mandato? O point16 da improbidade administrativa fiscal é imprescindível para a aplicação da regra do art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal, pois o tema em debate não se reduz tão somente a um conjunto de regras jurídicas qualificadas por textos normativos tout court. Mesmo quando se discutem os inúmeros problemas de aplicação da Lei n. 8.429/92 e, no caso, combinando-a com os arts. 73 e 42 da LRF, não se pode cair no que Dworkin denomina de aguilhão semântico. Como conceito interpretativo, a improbidade administrativa não se resume a textos normativos, surgindo assim todo o debate realizado na obra do autor acima aludido sobre o point das práticas jurídicas. Determinada concepção de improbidade administrativa fiscal não inclui somente as regras da Lei Complementar n. 101/2000, mas o conjunto de princípios que melhor justificam hermeneuticamente tais regras. É preciso, desta forma, compreender não apenas os materiais jurídicos sobre o tema, mas construir determinada teoria de como ler esse material. Os princípios da Administração Pública, vislumbrados como unidade hermenêutica de boa administração pública, atuam como justificação normativa da regra do art. 42, pois assumem um caráter deontológico, ou seja, introduzem o mundo prático do Direito Administrativo, conforme expressão utilizada por Lenio Luiz Streck17. 14 – STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 544. 15 – No entendimento de Lenio Luiz Streck, Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas, p. 202, aplicar princípios e resolver casos possui relação direta com a reconstrução da história institucional do caso, elemento indispensável para não haver decisões arbitrárias. 16 – A questão do propósito na interpretação, a partir da obra de Ronald Dworkin, ver MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia. Dworkin e a Teoria do Direito Contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. 17 – Trata-se da concepção construída em Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias 116

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Adotar a atitude interpretativa com relação à improbidade do dispositivo supra significa concretizar a virtude de integridade, ou seja, a melhor compreensão da Lei de Responsabilidade Fiscal realiza-se segundo o conjunto único e coerente de princípios, como sustenta Ronald Dworkin18. Aliás, a integridade assim é considerada por Dworkin a partir de alguns ideais políticos compartilhados pela teoria política do Estado Democrático de Direito em matéria de gestão administrativa, como o de estrutura política e administrativa imparcial, justa distribuição de recursos e processo equitativo de aplicar regras e regulamentos que os estabelecem19. Os agentes públicos, portanto, devem, ao aplicar os deveres jurídicos de gestão das obrigações de despesas em final de mandato, vê-los e cumpri-los como sendo coerentes com os princípios de boa administração pública, sob pena de olvidar o referido no item anterior sobre a leitura moral da Lei de Responsabilidade Fiscal. No que tange às indicações de tipicidade, para fins de aplicar devidamente o art. 42, impõe-se individualizar hermeneuticamente aquilo que será capaz de tornar determinadas condutas do agente público no exercício da competência administrativa orçamentária como relevante para os fins da Lei n. 8.429/92, considerando a combinação com o art. 73 da Lei Complementar n. 101/2000. Sob a perspectiva hermenêutica, a tipicidade da improbidade administrativa fiscal diz respeito às referências capazes de materializar os indícios formais de conduta,

Discursivas, p. 65, na qual o autor sustenta que não é mais possível laborar com as teses positivistas de separação entre Direito e Moral, pois os princípios jurídicos possuem esta importante função de inserir no Direito o mundo prático. Não há, portanto, como separar a compreensão daquela antecipação de sentido que vem do mundo prático dado pelos princípios jurídicos. Mas, com isto, não se pode dizer que o Direito está atrelado à moral, eis que ela não exerce um papel de correção do Direito (p. 153), pois, como aduz o autor, trata-se antes de uma “relação de cooriginariedade”, na medida em que os princípios institucionalizam a moral no Direito (p. 226). 18 – O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 202. Segundo Sthephen Guest, uma interpretação adequada do Direito, segundo Dworkin, encontra-se na ideia de integridade, pois por meio desta ideia deve-se personificar o Direito, tratá-lo como possuindo sua própria integridade, de modo que ele assuma um caráter moral (Ronald Dworkin, p. 19). Aplicando tal entendimento ao caso, a improbidade administrativa do art. 42 da LRF não pode divorciar-se da integridade e coerência com as quais a LRF deve ser compreendida, ou seja, fazendo parte de um retrato integral, o comprometimento dos agentes públicos e intérpretes com as virtudes constitucionalmente institucionalizadas de boa administração. 19 – O Império do Direito, p. 203. 117

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daquilo que foi delimitado como a esfera20 do ímprobo em matéria de gestão dos restos a pagar. A expressão utilizada “indícios formais” remete para os trabalhos desenvolvidos pela filosofia hermenêutica de um dos maiores filósofos do século XX, Martin Heidegger, especialmente na obra Ser e Tempo, e pode contribuir para melhor vislumbrar o processo de descrição fenomenológica, como aduz Ernildo Stein21. A linguagem do art. 42 constitui-se como aproximação, como o acontecer significado como ímprobo, desde que materializado na integridade dos dois diplomas legais acima citados, cujo labor hermenêutico é a atividade de descrição desses indícios formais de conduta, anúncios22 de uma das condições de possibilidade de ver (hermeneuticamente) a concretude da improbidade administrativa fiscal. Tal atitude interpretativa também permite não cair na tentação de objetificar tais indicações do texto normativo por meio de conceitos semânticos. Sob a perspectiva de indicações da materialidade do ato de improbidade administrativa destacam-se: (a) contrair obrigação de despesa nos dois últimos quadrimestres do seu mandato e (b) que não possa ser cumprida dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte. Sob a perspectiva doutrinária, vale citar a referência de Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves23: Para a correta exegese desse dispositivo, é necessário identificar o exato momento em que se considera contraída a obrigação de despesa. De acordo com o art. 58 da Lei nº 4.320/1964, “o empenho de despesa é o ato emanado de autoridade competente que cria para o Estado obrigação de pagamento pendente ou não de condição.” Constata-se, assim, que, para os fins do art. 42 da LRF, somente se pode falar em obrigação após o empenho. (...) A execução de despesa pública pressupõe seja realizado o seu empenho, que consiste na reserva de recursos previstos em determinada dotação 20 – Sobre a teoria da tipicidade na esfera penal e capaz de influenciar as reflexões sobre a improbidade administrativa, ver COELHO, Walter. Teoria Geral do Crime. Volume I. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1991, p. 32-33. 21 – Pensar é Pensar a Diferença. Filosofia e Conhecimento Empírico. Ijuí: Unijuí, 2002, p. 156. 22 – Cf. HEBECHE, Luiz. Heidegger e os Indícios Formais. In: O Escândalo de Cristo. Ensaio sobre Heidegger e São Paulo. Ijuí: Unijuí, 2005, p. 318. 23 – Improbidade Administrativa, p. 549-550. 118

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orçamentária em montante suficiente ao seu pagamento. Ato contínuo, é emitida a nota de empenho – documento que materializa o empenho e cuja emissão pode ser dispensada em alguns casos. No intuito de completar as referências de materialidade, o texto do art. 42 alude à necessidade de uma importante indicação, impondo ao intérprete a análise da ilegitimidade da conduta do agente público por intermédio da constatação da ausência de suficiente disponibilidade de caixa, cujo propósito da normatividade reside na imposição de limites na utilização das obrigações de despesas e, como já aludido, serão limitadas “às disponibilidades de caixa, evitando-se a transferência de despesa de um exercício para outro sem a correspondente fonte de receita.”24 Agora, sob a perspectiva das indicações de âmbito subjetivo, e restrito aos casos colacionados do STJ e do TJRS referentes ao ato de improbidade administrativa do art. 11 da Lei n. 8.429/92, o elemento doloso na conduta do agente público é necessário. No entanto, considerando a impossibilidade do ingresso direto na subjetividade do agente público, ressalvada a hipótese de confissão, o dolo manifesta-se por meio de indícios formais de conduta capazes de permitir a construção hermenêutica de um propósito. Configura-se quando o agente público, de forma livre e consciente, nos dois últimos quadrimestres do seu mandato, contrai obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte, sabendo ou devendo saber sobre a inexistência de suficiente disponibilidade de caixa. O conjunto de decisões judiciais citadas no primeiro item deste estudo é importante para dimensionar a integridade e coerência do art. 42 da LRF com a prática jurisprudencial, pois no AgRg no AI n. 1.282.854-SP, é fácil constatar a presença da violação do sentido de boa administração, especificamente com relação à prudência e probidade fiscal, referindo-se a comprovação do desastre da gestão no final do exercício do mandato do Prefeito Municipal, considerando a indicação de o agente público aumentar em 75,4% a indisponibilidade financeira, conforme já mencionado. No intuito de dialogar com as concepções rivais do citado dispositivo, destaca-se a tese veiculada pela defesa do Prefeito Municipal no sentido de que a receita pública do Município foi incrementada em 23,6% em relação ao exercício anterior e as despesas de caráter continuado contribuíram para o aumento da indisponibilidade de caixa. 24 – Cf. GARCIA, Emerson e ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa, p. 552. 119

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No entanto, muito embora não tenha ocorrido discussão mais aprofundada sobre circunstâncias capazes de excluir a tipicidade da improbidade administrativa fiscal no julgado, o STJ adotou a melhor concepção, ou seja, aquela capaz de melhor realizar o point da boa administração pública, de, na esteira de Ronald Dworkin, conferir a melhor luz ao tipo da improbidade administrativa do art. 42 quando integrado à totalidade dos princípios da prudência e probidade fiscal. Ao justificar a decisão proferida, o Min. Mauro Campbell Marques valeu-se do conteúdo fático fixado pelo TJSP no sentido de que, mesmo expurgando do cálculo das verbas de caráter continuado, ainda assim comprovou-se uma variação de 39% na indisponibilidade de caixa, realizando-se despesas com comprometimento do equilíbrio fiscal do Município. O malferimento da probidade, portanto, consistiu na conduta dolosa, livre e consciente, de contrair despesas em nome da Administração Pública no período considerado suspeito, sem suficiente disposição de caixa. O julgamento da Apelação Cível n. 700651375645 pelo TJRS igualmente foi capaz de contribuir como prática jurisprudencial para a melhor aplicação da improbidade administrativa fiscal, com base no art. 11 da Lei n. 8.429/92. O réu argumentou no sentido de não haver improbidade administrativa porque a mera inscrição de restos a pagar sem a correspondente disponibilidade de caixa, por si só, não caracteriza improbidade administrativa, pois agiu com boa-fé e com a finalidade de atender o interesse público. Ademais, mencionou-se a presença de grave crise econômica, agravando a situação fiscal do Município e, por fim, as despesas realizadas referem-se a serviços necessários para o bom andamento da máquina administrativa. No entanto, a melhor concepção, na linha da teoria hermenêutica aqui adotada, foi a preponderante na decisão judicial, pois capaz de relacionar hermeneuticamente os fatos com a integridade e coerência da jurisprudência do STJ e dos princípios da boa administração fiscal da Lei Complementar n. 101/2000. A questão da crise financeira, conforme consta no acórdão, pelo contrário, reafirma a necessidade de olhar com extremo cuidado se o agente público agiu para dar efetividade à prudência fiscal, ao necessário cuidado com a assunção de despesas públicas. Aqui há relevante aspecto em termos probatórios. O período mencionado no art. 42 caracteriza-se como suspeito, mas o que tal indicação significa? É obvio não ter a potencialidade de impor imediata condenação por ato de improbidade administrativa, mas um ônus maior de

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argumentação e justificação para o agente público, consistente na explicitação das razões fáticas pelas quais realizou cada uma das despesas, mas, repita-se, se realmente essa for a linha de argumentação para excluir a tipicidade e houver disponibilidade de tais dados, considerando que por vezes em virtude da omissão do próprio Poder Executivo de fornecer dados para as Cortes de Contas, a apuração de indisponibilidade refere-se aos empenhos e respectivos valores de modo geral. A relevância do precedente também passa pelo debate argumentativo realizado sobre a não aceitação de cada uma das justificativas apresentadas para a assunção das despesas e o exame das circunstâncias em tese e, no caso concreto, de exclusão da tipicidade, de modo específico em relação à indicação subjetiva da conduta do agente público. Houve o seguinte argumento, capaz de manter integridade e coerência com a prática doutrinária e jurisprudencial da improbidade administrativa fiscal do art. 42: Daí que, na interpretação desta regra, devem ser levadas em conta situações extraordinárias decorrentes de fatos imprevisíveis ou previsíveis mas de consequências incalculáveis que precisam de pronta resposta pela Administração Pública. Assim, a proibição de novas despesas por indisponibilidade de caixa não impede a assunção de dívidas para atender às necessidades públicas decorrentes de (a) situação excepcional em razão de urgência ou calamidade ou (b) necessidade premente para garantir o funcionamento das atividades essenciais da máquina administrativa. A decisão proferida nos EI n. 70062555792 seguiu a linha do entendimento até aqui exposto, destacando a necessidade de configurar o dolo, ainda que genérico, para permitir a condenação por ato de improbidade administrativa fiscal, considerando a existência de notificação do próprio TCE relativamente ao período anterior, inexistindo comprovação de circunstâncias excepcionais ou emergenciais capazes de justificarem o empenho de gastos ou novas obrigações, materializando-se no julgado a aplicação do art. 11, caput, por violação do dever de legalidade e do inc. I, da Lei n. 8.429/92, cuja conduta do agente público foi de praticar ato visando a fim proibido em lei ou diverso daquele previsto na regra de competência. É relevante atentar para a concepção de boa administração

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fiscal utilizada para caracterizar a indicação de desvio de finalidade, pois, como aludido, o contributo de Maurice Hauriou25 é útil ainda hoje para compreender o alcance de dispositivos como o do art. 42 da LRF. Importante ainda mencionar as indicações contidas no julgado sobre as dimensões objetiva e subjetiva da tipicidade da improbidade administrativa fiscal, marcada pela ideia de o conjunto global das despesas assumidas, dentro do marco temporal previsto no citado dispositivo, orientar a compreensão da conduta do agente público. Ademais, a comprovação por exame técnico realizado pelo TCE de que a despesa pública contraída não possa ser cumprida integralmente nos dois últimos quadrimestres do mandato ou com parcelas a serem pagas no exercício seguinte, sem haver suficiente disponibilidade de caixa. Sobre o elemento subjetivo prevaleceu o argumento da comprovação de vontade livre e consciente dirigida ao resultado ilícito de contrair obrigação de despesa, nas condições mencionadas, sempre a partir do aludido sobre a impossibilidade de ingressar na esfera de subjetividade do agente público, salvo as raras hipóteses de confissão, construindo-se a melhor concepção de dolo, ainda que eventual, com os indícios formais de conduta capazes de permitir a construção hermenêutica de um propósito, qual seja, violação dos princípios do ethos constitucional de boa administração pública, no caso, prudência e probidade fiscais. CONCLUSÃO O art. 42 da Lei Complementar n. 101/2000, desde sua edição, provocou debates, especialmente em virtude da possibilidade de o descumprimento ensejar a prática de ato de improbidade administrativa fiscal, por força da combinação do art. 73 com a Lei n. 8.429/92. Pesquisa realizada na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul permite a conclusão de não haver quantitativamente um grande número 25 – É claro que atualmente surgiram novos temas circundando a questão da boa administração, como a governança, ultrapassando-se a compreensão inicial vinculada aos problemas econômicos e aspectos de operacionalização para destacar a necessidade de prevalência do bem comum sobre interesses pessoais nos processos de gestão e decisões públicas, assumindo relevância o exercício das competências administrativas por meio da accountability, isto é, “o termo accountability pode ser aceito como o conjunto de mecanismos e procedimento que levam os decisores governamentais a prestar contas dos resultados de suas ações, garantindo-se maior transparência e exposição pública de políticas públicas.” (MATIAS-PEREIRA, José. Governança no Setor Público. São Paulo: Atlas S. A., 2010, p. 25 e 110.) 122

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de julgados. Fundamentalmente nas decisões examinadas, os Tribunais de Contas desempenham papel crucial para o devido controle sobre a gestão das obrigações de despesas e os problemas de insuficiência de caixa, além do Ministério Público na propositura das ações civis públicas. Para a melhor aplicação do dispositivo inicialmente referido, urge vislumbrar que a Lei de Responsabilidade Fiscal não foi erigida no vácuo, mas no contexto da relevância constitucional do art. 169, § 9º, II, e art. 70, ambos da Constituição Federal, institucionalizando o controle de legitimidade dos orçamentos públicos. Corolário, a gestão das obrigações de despesa em final de mandato não se encontra na esfera de disponibilidade dos agentes públicos, mas deve orientar-se pela indicação hermenêutica da moralidade administrativa, com suas devidas materializações no horizonte de sentido da responsabilidade fiscal. A discussão aqui proposta, portanto, em última análise voltou-se para o debate sobre qual a melhor concepção de moralidade em relação aos orçamentos públicos? Surge como indicativo o dever de boa administração pública, compreendido como a Administração Pública agindo na gestão das obrigações de pagamento e das disponibilidades de caixa em final de mandato com base na transparência, motivação, imparcialidade e plena responsabilidade. A unidade hermenêutica do art. 42 da LRF importa para o agente público a necessidade de exercer as competências administrativas fundado na responsividade, conforme indicado no art. 1º, § 1º, do diploma legal, destacando-se os deveres de prudência e probidade fiscais. As decisões examinadas ao longo deste breve estudo comprovam que, em virtude de quadros de crises econômicas e fiscais, redobra-se a relevância de o administrador público agir conforme o ethos constitucional na administração dos recursos públicos, operando com especial moderação e extremo cuidado, evitando os riscos de assumir obrigações especialmente no período final de mandato. Trata-se não apenas de obrigação relacionada com o modo como o agente público deve comportar-se na sua atividade funcional, mas de como deve tratar os interesses da própria coletividade. Violar o art. 42 importa desconsiderar as referências de ação pública planejada e transparente. A improbidade administrativa fiscal, configurada a partir do art. 11 da Lei n. 8.429/92, situa-se no campo da má gestão pública e caracteriza-se como conceito interpretativo, exigindo por parte do intérprete a devida justificação, cuja decisão constitucionalmente legítima será aquela capaz de integrar-se na rede complexa 123

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dos princípios da probidade e prudência fiscal, salvaguardando a integridade e a coerência das práticas jurídicas doutrinárias e jurisprudenciais. Por meio do exame das indicações tipificadoras da improbidade administrativa fiscal, conclui-se pela necessidade de comprovar que o agente público, de forma livre e consciente, nos dois últimos quadrimestres do seu mandato, contraiu obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte, sabendo ou devendo saber sobre a inexistência de suficiente disponibilidade de caixa, violando os princípios da Administração Pública e, de modo específico, a prudência e probidade fiscais, sem causar dano ao erário ou haver enriquecimento ilícito, bem como olvidando de forma grave deveres do cargo público ou os fins visados pela gestão pública fiscal. REFERÊNCIAS CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra, 1991. COELHO, Walter. Teoria Geral do Crime. Volume I. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1991. DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade. A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. FREITAS, Juarez. Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2007. GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. GUEST, Sthephen. Ronald Dworkin. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. HAURIOU, Maurice. Précis de Droit Administratif et de Droit Public. 12ª ed. Paris: Dalloz. HEBECHE, Luiz. Heidegger e os Indícios Formais. In: O Escândalo de Cristo. Ensaio sobre Heidegger e São Paulo. Ijuí: Unijuí, 2005. MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia. Dworkin e a Teoria do Direito Contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. MATIAS-PEREIRA, José. Governança no Setor Público. São Paulo: Atlas S. A., 2010.

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CONTROLE PENAL DA CORRUPÇÃO – DISPENSA OU INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO, COM APROPRIAÇÃO OU DESVIO DE RENDAS PÚBLICAS – ESTUDO DE CASO Mauro Borba1

INTRODUÇÃO A corrupção é hoje um tema central para todos os que se preocupam com os destinos das democracias ocidentais. A história recente brasileira, principalmente depois da Constituição de 1988, mostra que a redemocratização do País tornou visíveis fatos que antes não chegavam ao conhecimento da população, mas não impediu que o fenômeno se repetisse. Os escândalos do governo Collor, passando pelos governos Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Temer evidenciam que a corrupção não é um acontecimento marginal na vida pública (AVRITZER, 2012). Casos de corrupção que envolvem políticos e pessoas públicas no nível federal e nas grandes cidades são os que têm a atenção da mídia e que estão na lembrança popular; mas há uma corrupção cotidiana, quase silenciosa, mas não menos deletéria, porque revela sua naturalização como forma de governar/administrar, que é a corrupção que acontece nas pequenas (e médias) cidades do interior. O presente trabalho objetiva tratar desse tema, a partir de um caso concreto decidido pela 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Para tanto analisará a corrupção como fenômeno multifacetário, global e local, seguindo a exposição do caso judicial e sua solução. 1 – Juiz em Porto Alegre, Doutor (UFRGS) e Mestre em Direito (UFSC/UNISC).

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A CORRUPÇÃO COMO FENÔMENO MULTIFACETÁRIO E GLOBAL O que vemos e lemos na mídia sobre corrupção é, quase sempre, enganoso. Não porque as notícias envolvem desproporcionalmente este ou aquele partido, mas porque narrativas jornalísticas simplificam a realidade de uma maneira extrema, bem mais danosa do que se costuma imaginar. Há um recorte linear da realidade, como se todos os personagens fossem “planos”, com um único atributo: ser ou não ser corrupto, participar ou não de atos corruptos. A narrativa jornalística não deixa espaço para a complexidade. No jornal não tem espaço para a corrupção como ela é: um fenômeno multifacetado (BARROS FILHO e PRAÇA, 2014). A corrupção em termos de delimitação conceitual afigura-se como um fenômeno de múltiplos fundamentos e nexos causais, tratada por diversos campos do conhecimento (filosofia, ciência política, economia, sociologia, antropologia, ciências jurídicas, etc.), não sendo de fácil compreensão e definição. Não há na tradição do pensamento político ocidental consenso sobre o que vem a ser a corrupção, não se podendo falar de uma Teoria Política da Corrupção madura e já constituída, existindo tão somente diferentes abordagens do tema, a partir de determinados marcos teóricos e filosóficos específicos (BIGNOTTO, 2011, p. 31). Há quem sustente a corrupção como indutora do crescimento econômico e importante mecanismo de distribuição de renda (Delfim Neto, citado por MONTORO FILHO, 2012). Renato Janine Ribeiro (2000) observa que: (...) não há corrupção sem uma cultura de corrupção, pois tal fenômeno demanda o endosso, mesmo que tácito, do seu entorno, com níveis de aceitação social e institucional. E mais, esta cultura cresce nos costumes que a reproduzem, os quais, por sua vez, têm natureza política destacada. (RIBEIRO, 2000, p. 167) Lembra ainda Janine (2000) que: (...) os costumes funcionam como cimento da obediência, como linguagem comum pela qual nos entendemos, pela qual constituímos nossa coisa pública, no caso republicano, ou nossa contrafação da república, quando a corrupção se generaliza. (Idem)

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A corrupção não pode ser atribuída a uma época ou a um sistema econômico ou político. Em qualquer momento histórico e em qualquer situação, ela pode manifestar-se e invariavelmente o faz com sérias consequências para a sociedade em geral e, também, para o indivíduo em particular. Um estudo feito pela Federação das Indústrias de São Paulo – FIESP (2010) indica que o custo da corrupção no Brasil fica entre R$ 41,5 e R$ 69,1 bilhões por ano, montante que representa entre 1,38 a 2,3% do Produto Interno Bruto (PIB). O dinheiro desviado poderia construir moradias para mais de 2,9 milhões de famílias, levar saneamento básico a mais de 23,3 milhões de domicílios, passar de 34,5 milhões para 51 milhões o número de estudantes matriculados na rede pública do ensino fundamental, aumentar a quantidade de leitos para internação nos hospitais públicos, entre outros investimentos de estrutura e qualidade de vida da sociedade brasileira. No Brasil, os casos de corrupção remontam ao período colonial e vão se apagando da memória ao longo do tempo. Os mais recentes tomam o lugar dos mais antigos, numa sucessão que parece interminável. “Nunca se roubou tanto nesse País” é uma frase de senso comum ouvida e repetida em diversos momentos da história. Nas últimas décadas, dois fatores contribuíram para ampliar essa impressão: a multiplicação das fontes de informação e o controle mais rigoroso da máquina pública. Casos que, em outros tempos, dificilmente viriam à tona, ganharam projeção. Assim, torna-se quase impossível comparar o grau de corrupção em diferentes momentos no País, mas alguns mais recentes tornaram-se emblemáticos por força dos personagens e valores envolvidos, como o caso Capemi2, o caso Banestado3 e a famosa operação Sanguessuga4. 2 – Escândalo de corrupção de 1983, no qual a Capemi, seguradora de vida e previdência, decidiu se aventurar na Amazônia e desmatar área que seria inundada para a construção da usina Tucuruí no Pará. Entrou em concorrência pública com um capital de Cr$ 50 milhões de cruzeiros, apesar do edital exigir um capital mínimo de Cr$ 500 milhões. Contraiu empréstimos no exterior, não cumpriu acordos com credores e ainda assim conseguiu que a dívida fosse salva pelo Banco Nacional de Crédito Cooperativo – BNCC, subordinado ao Ministério da Agricultura, havendo fortes suspeitas de desvio de recursos públicos, até hoje não comprovados. 3 – O caso ganhou notoriedade por envolver a soma aproximada de R$ 150 bilhões e tendo como um dos envolvidos o então presidente do Banco Central, Gustavo Franco. Tal caso teve origem a partir de uma portaria de Franco, permitindo que cinco agências bancárias em Foz do Iguaçu, no Paraná, recebessem depósitos sem identificação do depositante, o que permitia a estrangeiros e residentes fora do País transformar real em dólar. As agências eram dos bancos Real, Banestado, Bemge e Banco do Brasil. 4 – Revelou o esquema da venda irregular de ambulâncias, realizada em, pelo menos, onze Estados brasileiros. 129

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Casos de corrupção sucedem-se atualizando aquele senso comum. Da grande mídia à chamada opinião pública, passando por importantes tradições intelectuais, vigora o entendimento de que o alto nível de corrupção endêmica no Brasil, que goza de impunidade praticamente absoluta, é irremediável; herança de nossa formação como colônia escravocrata de um Portugal em que sempre vigoraram privilégios da burocracia estatal. (...) Advindos desde além-mar, os colonizadores foram se instalando como “amigos” e “familiares” amistosos, efeito que terminou por produzir confusões entre a esfera pública e a privada, entre a ideia de família e de Estado. (OLIVEIRA JÚNIOR, 2015, p. 80) O que pode levar um político não colonizador a legislar contra seu próprio país, fomentando o endividamento público e o déficit externo? Que interesses estão por trás de decisões que destroem a indústria, a agricultura e a pesca, exterminam empregos e obrigam a importação de bens, cuja manufatura ou construção devia ser estimulada no próprio país? Que interesses motivam o estrangulamento da economia, quando o que deveria prevalecer é o seu revigoramento? Que interesses regem as decisões de políticos – empregados – que determinam o desemprego de seus concidadãos? As respostas a essas perguntas deságuam nos procedimentos antiéticos e nas práticas incompetentes e negligentes que abrem as portas à corrupção em todos os continentes. Até há bem pouco tempo, o suborno pago por empresas de alguns países europeus a governos estrangeiros era contabilizado como despesa dedutível para fins tributários. Deve-se ter presente também que o fenômeno não é exclusivamente brasileiro. A corrupção ocorre com maior ou menor frequência ou reconhecimento na grande maioria dos países. Na culta Itália, com toda a sua experiência milenar, o notório Silvio Berlusconi é sabidamente tão ou mais corrupto que as nossas maiores expressões nessa área. Na Espanha, o próprio genro do rei está envolvido em falcatruas; no Japão pululam os políticos corruptos bilionários e um ou outro só sente vergonha disso quando tudo vem a público, o que o leva ao suicídio. Na Holanda, a própria família real, a Casa Orange, esteve envolvida em negociatas com a Boeing, só para citar alguns. Os atos de corrupção são partes constitutivas do desrespeito generalizado que há na sociedade com o bem público, que perpassam os agentes privados e

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públicos e vão desde pequenos atos de desobediência até desvios de vultosas somas de recursos públicos. É, pois, um fenômeno generalizado. Mas por outro lado, não se pode dizer que toda a sociedade é corrupta, ou mesmo que a maioria das pessoas é corrupta; na verdade é certo que a maioria dos cidadãos e cidadãs não é corrupta. Só por isso, já se tem presente que a corrupção é um fenômeno de difícil combate, o que, no entanto, não deve ser motivo para que se refreie esse mister. A CORRUPÇÃO COMO FENÔMENO LOCAL. A PRÁTICA QUE A NATURALIZA A corrupção, já se disse, é um fenômeno mundial e atemporal. É pressuposto de bom funcionamento da sociedade e, por conseguinte, da democracia, a existência de altos índices de confiança nas suas instituições; confiança essa que representa um valor cívico, ético e moral que aumenta consideravelmente a qualidade democrática das relações impessoais, interinstitucionais e políticas em geral. A corrupção tem um efeito deletério sobre essa necessária confiança, deslegitimando o Estado e por efeito enfraquecendo a democracia. Ela atinge diretamente o indivíduo e por consequência os Direitos Humanos Fundamentais, quando recursos, por exemplo, da saúde e/ou educação, são desviados para outros fins. Em que pese à profusão de situações corruptivas no País em geral, apesar de os eventos que envolvem políticos e pessoas públicas no nível federal e nas grandes cidades serem os que mais tempo ocupam na mídia e, por isso, os que estão mais presentes na memória popular, é a corrupção cotidiana das pequenas (e médias) cidades, que é a mais reveladora de um fenômeno ainda mais perverso para a democracia como um todo e para o indivíduo no particular: a sua naturalização como forma de governar/administrar (PINTO, 2011). Segundo dados do Ipea, os Municípios pequenos e médios, com menos de 450 mil habitantes, que representam 92% dos Municípios brasileiros, desviam para a corrupção cerca de 10% das verbas federais5. 5 – Segundo levantamento feito por Cláudio Ferraz, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea e Frederico Fenan, da Universidade da Califórnia em Los Angeles – UCLA, Estados Unidos, o Brasil deixa de gerar R$ 1,5 bilhão por ano por causa da corrupção. O trabalho de Ferraz e Fenan, que tem como objetivo avaliar os efeitos eleitorais da corrupção – e deu origem a dois estudos –, 131

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Corroboram esses dados notícias que dão conta da generalização dos atos de corrupção dos Municípios. Dados de 2008 mostram que, nos últimos cinco anos, pelo menos R$ 70,3 milhões destinados a ações relacionadas a atividades específicas da área da saúde, definidas na lei e nos contratos com os Municípios, perderam-se em gastos como os citados acima6. Em reportagem da série “Sangria na Saúde”, os jornais Correio Brasiliense e o Estado de Minas apresentaram desvios na aplicação da verba para a saúde dos brasileiros. Nos 1.341 relatórios produzidos nos últimos cinco anos pela Controladoria-Geral da União – CGU, são citados 1.105 episódios em que prefeitos lançaram mão de recursos públicos para pagar despesas de outra natureza7. No Estado do Maranhão, segundo informações coletadas na Procuradoria-Geral de Justiça, no início do ano 2008, 53% dos prefeitos estavam sendo

baseou-se numa amostra de 493 Municípios com menos de 450 mil habitantes abordados pelo Programa de Fiscalização a partir de sorteios públicos, lançado em 2003 pela Controladoria-Geral da União – CGU. O programa consiste em sorteios periódicos, aproximadamente a cada dois meses, de cerca de 60 Municípios, que então recebem uma fiscalização especial. O trabalho nota que as transferências federais para os Municípios são cerca de R$ 35 bilhões por ano, mas por questões estatísticas não é possível determinar o valor total desviado. O resultado indica, porém, que uma fração relevante vai para o bolso dos corruptos. A pesquisa de Ferraz e Fenan integra uma nova tendência de abordagem econômica do problema da corrupção. É uma área relativamente nova, mesmo no cenário internacional. “Os economistas estão tentando entender não só as causas da corrupção, mas as consequências, como a redução do crescimento e do investimento privados”, explica Ferraz. Outro especialista no tema é o economista André Carraro, da Universidade Federal de Pelotas – RS. Em um trabalho com colegas, ele usou um modelo de equilíbrio geral para investigar a corrupção e chegou a um valor de 11,36% do PIB em 1998. O objetivo da pesquisa eram avaliações de impacto sobre o crescimento – disponível em www.ipea.gov.br e citado por PINTO, ob. cit. 2011, 171). 6 – Os gastos a que a notícia se refere são os seguintes: marmitas, adega, televisão, pousada, tai chi chuan, cartão de natal, folder, cachê de banda, pensão alimentícia, persianas, abadá, colchões, portas, salário do secretário de saúde, aluguel, bar, ioga, consultoria, gasolina, celular, acupuntura, óculos, curso de relaxamento, cortina, taxa de licenciamento, CD player, balões coloridos, salão de beleza, tarifa de cheque especial, ar-condicionado, videocassete, enfeite natalino, colchões, suco de frutas, ração, notebook, funerária, conta de luz, camisetas, verduras, fechadura, xerox, gratificação para secretária, pão de queijo, internet, ventilador, tratamento de piscina, presentes, chocolate e multa de carro (CORREIO BRAZILIENSE, 28-08-2008). 7 – CORREIO BRASILIENSE, 28-08-2008, exemplifica gastos como cobrir buracos no orçamento e pagar ações diferentes de conveniadas. 132

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processados8. Os atos de corrupção vão desde má administração por simples falta de competência até a profissionalização em desvio de verbas. A corrupção que acontece no âmbito do poder municipal, principalmente nas pequenas cidades, é particularmente importante, porque é ali que a corrupção encontra sua forma mais deletéria, a sua naturalização; porque ali a população, principalmente nas cidades mais pobres, não dispõe de canais de reconhecimento e defesa de seus interesses, o que permite que a corrupção se estenda como uma malha, que atue como uma força viva que conta com uma certa complacência da população. Segundo ARANTES9 em pesquisa feita sobre o Ministério Público de São Paulo, há uma convivência mais ou menos pacífica entre a população e a corrupção dos agentes políticos: “... a prática de corrupção por funcionários públicos é coisa antiga. Dela se diz até institucionalizada, o que pareceria um contrassenso não o fato de a expressão indicar que, de fato, as práticas de concussão, peculato, extorsão etc., realizadas por funcionários públicos da prefeitura há tanto tempo, já foram incorporadas pela sociedade à sua folha de ‘custos de transação econômica e política’...” Embora reconhecendo que há uma relação assimétrica entre os funcionários e a população e que esta é, de certa forma, refém, Arantes conclui seu raciocínio: “... mesmo a idéia de refém poderia ser esticada até o ponto em que, para os particulares, em alguns casos, pode ser mais vantajoso conviver com a corrupção na esfera pública do que exigir o cumprimento estrito da legalidade e aí estaríamos falando em um sistema de solidariedade”. O enfrentamento dessa situação passa, necessariamente, por uma maior conscientização da sociedade, seja em relação à adoção de padrões éticos no âmbito da Administração Pública, seja em relação aos mecanismos de caráter normativo existentes para combate. 8 – Jornal O ESTADO DO MARANHÃO, 13-06-2008. 9 – Rogério Arantes, Ministério Público e Corrupção Política em São Paulo, in SADEK, Maria Tereza (Org.). “Justiça e Cidadania no Brasil”, São Paulo: Editora Sumaré, 2000, p. 68-69. 133

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Dados os limites e objetivos deste trabalho, o foco, a seguir, restringir-se-á a análise de estudo de caso com base em julgamento da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em que, de passagem, será visto um dos marcos normativos penais de controle da corrupção no âmbito dos julgados deste Tribunal. SÍNTESE DO CASO CONCRETO O caso judicial10 em concreto, que vai servir de análise para este trabalho, diz respeito aos fatos ocorridos entre 2009 e 2011 no Município de Travesseiros, interior do Rio Grande do Sul, onde o prefeito municipal e a secretária de saúde foram denunciados como incursos nas sanções do art. 89, caput, da Lei n. 8.666/93 (dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei), e do art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67 (apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los em proveito próprio ou alheio); porque dispensaram licitação fora das hipóteses previstas em lei, ao adquirirem medicamentos diretamente das farmácias “J. S. B.” e “G. D. e Cia Ltda.”, de forma fracionada, totalizando, ao final do triênio 2009/2011, um montante de R$ 519.998,10 (quinhentos e dezenove mil novecentos e noventa e oito reais com dez centavos). Também foram denunciados como incursos nos mesmos dispositivos legais, art. 89, parágrafo único, da Lei n. 8.666/93 (na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público) e art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67 (apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los em proveito próprio ou alheio), tudo na forma dos arts. 29, caput, e 69, caput, ambos do Código Penal, os proprietários das farmácias beneficiadas. Segundo a denúncia, as farmácias, valendo-se dos descontos concedidos aos munícipes, venderam a sua medicação por valor muito maior do que os preços praticados no mercado, de forma que o Município de Travesseiro pagou um valor altíssimo pela medicação adquirida sem licitação junto às farmácias locais, as quais são de propriedade de familiares do atual e do ex-administrador do Município de Travesseiro. O Município de Travesseiro, com base na Lei Municipal n. 321/99, foi autorizado a subsidiar medicamentos à população com descontos iniciais, na ordem de 20 a 30%, que 10 – Processo n. 70047723259, competência originária, 4ª Câmara Criminal, TJRS, julgado em 02-07-2016. 134

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poderiam ser adquiridos em qualquer farmácia existente nos Municípios de Nova Bréscia e Marques de Souza ou em qualquer outra localidade, neste caso com 5% de desconto. No ano 2002, foi editada a Lei Municipal n. 545/02, estabelecendo desconto de 100% na medicação adquirida nas farmácias estabelecidas no próprio Município de Travesseiro para as pessoas com idade superior a 65 anos (medicação de uso contínuo). Tal Lei manteve os descontos de 20 a 30% para os demais medicamentos. Nessa época, a única farmácia estabelecida no Município era a “Janete S Both”, de propriedade da denunciada J. S. B., que é casada com o sobrinho do então Prefeito, G. R. H., correligionário do atual Administrador, o denunciado R. R., o qual, aliás, foi Secretário da Saúde daquela gestão. No ano 2009, sob a gestão do atual Prefeito, R. R., a Lei Municipal foi novamente alterada (fls. 31/31 do Inquérito Policial), passando a conceder descontos ainda maiores, na ordem de 40, 50 e 100%, na aquisição de medicamentos juntos às farmácias estabelecidas no Município. A este tempo, além da farmácia da sobrinha do ex-Prefeito (parceiro político de R. R.), estabeleceu-se no Município a farmácia “G. D. e Cia Ltda.”, de propriedade do denunciado G. D., sobrinho do Prefeito R. As únicas duas farmácias estabelecidas no Município eram de familiares próximos do antigo e do atual Administradores e foram diretamente beneficiadas pela compra direta, fracionada e superfaturada de medicamentos. Valendo-se do desconto fornecido aos munícipes, as farmácias praticavam o máximo preço previsto na tabela da ANVISA, sendo que o Município de Travesseiro arcava com o altíssimo custo dos medicamentos, beneficiando os empresários familiares dos Administradores. A aquisição dos medicamentos dava-se da seguinte forma: os munícipes, quando não encontravam a sua disposição remédios da farmácia básica, o que era comum, até de forma deliberada, dirigiam-se às duas únicas farmácias existentes no Município e faziam um levantamento do preço do remédio com base na receita médica. De posse do orçamento, o munícipe retornava ao Posto de Saúde, onde era feita a análise da quantidade do desconto devido ao cidadão travesseirense, o qual variava, de acordo com a legislação municipal, entre 40 e 100%, dependendo do caso. No Posto de Saúde, era expedida a autorização para aquisição do remédio. O paciente voltava à farmácia e comprava a medicação. Na farmácia, a pessoa assinava uma planilha de controle, a qual, no final de semana, era encaminhada à Prefeitura. Quem analisava e aprovava a planilha para ser encaminhada à tesouraria para empenho e pagamento era a Secretária de Saúde, a denunciada E. C. W. R. O pagamento à farmácia era feito por meio de depósito na conta-corrente da empresa, precedido de empenho firmado pelo denunciado R. O recurso utilizado para o pagamento era verba arrecadada pelo Município. 135

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Da análise dos documentos juntados às fls. 111/232 do Inquérito Policial, comprovou-se que as farmácias do Município de Travesseiro praticavam o máximo preço ao consumidor, de maneira que a medicação adquirida de forma direta e fracionada junto a esses estabelecimentos custou mais cara do que se a mesma medicação fosse adquirida, por exemplo, no Município de Arroio do Meio. Os descontos aos munícipes eram fictícios. O Município pagou, durante o triênio 2009/2011, valores altíssimos pela medicação adquirida sem licitação junto às farmácias de propriedade de familiares dos gestores municipais. DISPENSA E OU INEXIGIBILIDADE CONDIÇÕES E POSSIBILIDADES

DE

LICITAÇÃO.

A Licitação, procedimento obrigatório, em regra geral, para as contratações feitas pelo Poder Público, tem por objetivo assegurar que estas selecionarão sempre a melhor proposta com as melhores e mais vantajosas condições para a Administração, salvaguardando, também, o direito à concorrência igualitária entre os participantes do certame, a publicização dos atos, assegurando a transparência e probidade do mesmo, etc. A obrigatoriedade de licitação é, inclusive, mandamento da Magna Carta, contido no inc. XXI do art. 37, in verbis: “Art. 37 - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: XXI - Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.” O procedimento licitatório, em atendimento ao preceito constitucional, foi regulamentado por meio da Lei n. 8.666/93, a qual fixa os critérios norteadores dos certames. DI PIETRO (2002) explica que a licitação é o procedimento administrativo pelo qual o ente político possibilita a todos os interessados, uma vez sujeitados 136

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às condições estabelecidas no instrumento convocatório, a possibilidade de formularem propostas, dentre as quais selecionará e aceitará a mais conveniente com a celebração do contrato. PRINCÍPIOS NORTEADORES Face ao interesse público em jogo, além de bens e direitos de titularidade alheia, incidem os princípios que regem a Administração Pública: constitucionalidade, legalidade e transparência. Devem os administradores agirem de modo a possibilitarem a maior aplicação possível dos princípios norteadores da Administração Pública que se encontram no caput do art. 37 da Constituição Federal, ou seja, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Quando se trata de licitações, há uma relação estreita e complementar dos mencionados princípios. No aspecto do princípio da legalidade, deve-se explicitar que ao administrador é vedada a prevalência da sua vontade subjetiva, vez que é dever cumprir os ditames legais, obedecendo as regras impostas no procedimento e tudo mais que a lei determinar. “...O princípio da legalidade é talvez o princípio basilar de toda a atividade administrativa. Significa que o administrador não pode fazer prevalecer sua vontade pessoal; sua atuação tem que se cingir ao que a lei impõe. Essa limitação do administrador é que, em última instância, garante os indivíduos contra abusos de conduta e desvios objetivos” (FILHO, 2008). Por seu turno, a moralidade exige do administrador uma postura condizente com os preceitos éticos, observando a honestidade e boa-fé ao lidar com o interesse público. A impessoalidade e a igualdade são princípios que indicam que a Administração Pública não deve dispensar tratamento diferenciado aos administrados que estejam em igualdade de condições, ou seja, em mesma situação jurídica. O princípio da publicidade preceitua a obrigatoriedade de ampla divulgação que deve girar em torno das licitações. Não obstante seja requisito indispensável à validade da licitação, também possibilita, inelutavelmente, melhores condições de contratação para a Administração Pública, já que há um maior alcance de interessados, gerando, por conseguinte, melhor competitividade e possibilidade de mais particulares concorrerem do certame licitatório, se for o caso. 137

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DISPENSA X INEXIGIBILIDADE Existem, entretanto, determinadas hipóteses em que, legitimamente, tais contratos são celebrados diretamente com a Administração Pública, sem a realização da licitação. Há duas situações distintas em que tal se verifica: a inexigibilidade de licitação ou sua dispensa. Nos casos em que a lei autoriza a não realização da licitação, diz ser ela dispensável. A licitação dispensável tem previsão no art. 24 da Lei n. 8.666/93. Já no que se refere às hipóteses de inexigibilidade, a licitação é inviável, ou seja, impossível de ser realizada, tendo em vista fatores que impedem a competitividade. “A diferença básica entre as duas hipóteses está no fato de que, na dispensa, há possibilidade de competição que justifique a licitação; de modo que a lei faculta a dispensa, que fica inserida na competência discricionária da Administração. Nos casos de inexigibilidade, não há possibilidade de competição, porque só existe um objeto ou uma pessoa que atenda às necessidades da Administração; a licitação é, portanto, inviável”. (DI PIETRO, 2002, p. 310, 320-321). A dispensa de licitação caracteriza-se pela circunstância de que, em tese, poderia o procedimento ser realizado, mas que, pela particularidade do caso, decidiu o legislador não torná-lo obrigatório. Diversamente ocorre na inexigibilidade, porque aqui sequer é viável a realização do certame. Vale destacar que a ausência de licitação não isenta da observação de formalidades prévias, como a consequente celebração do contrato, mas ao contrário disto devem ser respeitadas, como se licitação tivesse havido. Ausência de licitação não significa desnecessidade de observar formalidades prévias (tais como verificação da necessidade e conveniência da contratação, disponibilidade, recursos, etc.). Devem ser observados os princípios fundamentais da atividade administrativa, buscando selecionar a melhor contratação possível, segundo os princípios da licitação” (JUSTEN FILHO, 2000). No tocante à inexigibilidade, a Lei n. 8.666/93 estabelece hipóteses nas quais, se configuradas, impõe-se a obrigatoriedade de contratação direta da Administração Pública com o particular, haja vista a realização do procedimento licitatório ser materialmente impossível. Com efeito, o art. 25 do referido diploma legal faz exemplificações de hipóteses de inexigibilidade: “Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial: I - para aquisição de materiais, equipamentos, ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo, vedada a preferência de marca, devendo a comprovação de exclusividade ser feita através de 138

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atestado fornecido pelo órgão de registro do comércio do local em que se realizaria a licitação ou a obra ou o serviço, pelo Sindicato, Federação ou Confederação Patronal, ou, ainda, pelas entidades equivalentes; II - para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação; III - para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.” Estabelecidas tais premissas, impende o retorno ao caso concreto para encaminhar sua solução. A SOLUÇÃO DO CASO EM APREÇO Conforme referido, o Ministério Público atribuiu ao Prefeito do Município de Travesseiro, à Secretária Municipal de Saúde e a dois empresários do ramo farmacêutico, ligados ao Partido Progressista – PP, no período de 2009 a 2011, a conduta de desviar verbas públicas do Município, aproveitando-se de um suposto desconto em prol dos travesseirenses sobre medicamentos comercializados pelas duas farmácias privadas da cidade, dispensando licitação indevidamente. A denúncia foi recebida integralmente pela 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em competência originária11, em acórdão que data de 23-09-13 (fls. 982/990). 11 – Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul Art. 24. Às Câmaras Criminais Separadas compete: (...) Parágrafo único – Compete à 4ª Câmara Criminal, preferencialmente, o processo e julgamento dos Prefeitos Municipais, podendo o Relator delegar atribuições referentes a inquirições e outras diligências (Assento Regimental n° 02/92 - dispõe sobre a competência para julgamento de Prefeitos Municipais). Art. 12 da Resolução n. 01/98 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, dispõe sobre a composição e competência dos Órgãos do Tribunal de Justiça, conforme redação dada pela Resolução n. 01/06: “Art. 12. Às Câmaras Criminais serão distribuídos os feitos atinentes à matéria de sua especialização, assim especificada: (...) II - À 4ª Câmara: 1 - competência originária para as infrações penais atribuídas a Prefeitos Municipais (Constituição Federal, art. 29, inciso X). 139

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O processo tramitou regularmente, com oferecimento de defesas prévias, inquirição de testemunhas e interrogatórios dos acusados. Em alegações finais, o Ministério Público sustentou (fls. 1260/1276): a) o Poder Executivo de Travesseiro, Município que conta com 2.300 habitantes, direcionou aos estabelecimentos privados recursos públicos que ultrapassaram um milhão de reais; b) os empresários beneficiaram-se superfaturando os produtos farmacêuticos adquiridos (e/ou subsidiados) pelo Poder Executivo, praticando preços acima dos valores de mercado à época dos fatos, aplicando o preço máximo ao consumidor (da tabela da ANVISA); c) os gestores públicos sequer fiscalizavam se havia preferência na aquisição dos fármacos, com os descontos da Lei Municipal, para os de nome comercial (éticos ou de referência), ou para compra de medicação genérica (com preço mais acessível), fato que demonstra a intenção de favorecimento dos comparsas empresários, em afronta à Lei Federal n. 9.787/99; d) a Prefeitura de Travesseiro gastou verba bem maior do que a necessária para atender a saúde da população local, visto que, houvesse a realização de licitação, o valor observaria o preço fabricante (PF) estipulado pela ANVISA; e) os descontos concedidos aos munícipes eram fictícios, favorecendo os comerciantes; f) o exame do conjunto probatório consubstanciado nos documentos das fls. 116/240, no Parecer Técnico das fls. 551/560, na Revista Guia de Preços (encartada na fl. 1253), no Relatório de Auditoria do SUS (fls. 12/23) e na prova oral, conduz à certeza de que ocorreu lesão patrimonial ao ente local, justamente pela falta de licitação. Por sua vez, os denunciados assim se manifestaram: R. R. alegou (fls. 1289/1296): a) a concessão de subsídio para os cidadãos vem sendo executada desde 1999, sem nunca antes ter havido o apontamento de irregularidade, ilegalidade ou mesmo cometimento de crime; b) não se configurou o delito do art. 89 da Lei n. 8.666/93, pois não se tratou da aquisição de medicamentos sem licitação, mas sim de concessão de benefício financeiro, amparada em lei; c) o delito do art. 1º, inc. I, do DL n. 201/67 igualmente não restou comprovado, haja vista que os percentuais destinaram-se à efetiva compra dos fármacos; d) não houve comprovação do elemento subjetivo, qual seja o dolo; e) não se confundem os descontos concedidos pelas farmácias aos seus clientes com o programa municipal de auxílio para a aquisição de medicamentos; f) a compra não era feita diretamente pelo Erário, que apenas concedia auxílio nos percentuais de 40, 50 ou 100%, e desde que o remédio não estivesse disponível no estoque municipal; g) não houve intuito de favorecimento pessoal dos proprietários das drogarias, citando, para tanto, que a farmácia de seu sobrinho, G. D., vendeu menos para cidadãos com subsídios do que 140

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a JM Drogaria, esta de propriedade da codenunciada J. B., casada com o sobrinho do ex-Prefeito G. e que, por sua vez, é da sua oposição política e partidária; h) não houve elemento de prova de prejuízo ao Erário, tampouco a indicação de que outras propostas poderiam ter sido obtidas pela municipalidade; i) requereu a absolvição, com base no inc. III ou VII do art. 386 do Código de Processo Penal. J. S. B. disse (fls. 1299/1306): a) não pode ser responsabilizada pela não realização de licitação, já que tal obrigação é do gestor público; b) os critérios para concessão dos descontos igualmente não são de sua responsabilidade, não podendo ser punida, por estipular a tabela da ANVISA para venda dos medicamentos; c) o projeto de lei que concedia o benefício passou pelo Conselho Municipal de Saúde, Câmara de Vereadores e foi amparado por auditores fiscais do Tribunal de Contas, não tendo sofrido notificação por parte do referido órgão e/ou pelo Ministério Público, bem como não houve medida para questionar a legalidade da lei; d) não se verificou a atuação dolosa da denunciada, tampouco que possuísse influência junto à administração para indicação de seu estabelecimento para fins de aquisição de fármacos; e) não recebeu valores e nem os repassou a qualquer agente público em decorrência de vantagem auferida com o ato de dispensa de licitação; f) a sua condição econômica revela a classe média, sendo que seus únicos bens materiais são a casa em que reside, um veículo e a farmácia provedora do sustento familiar, além disso, está concluindo a faculdade, custeada por financiamento estudantil; g) postulou a absolvição, com base no art. 386, inc. VII, do Código de Processo Penal. E. C. W. R. e G. D. alegaram (fls. 1311/1315): a) a atipicidade da conduta, não sendo cabível a licitação para compra de medicamentos, em face do não conhecimento prévio de quais fármacos seriam utilizados pela população, nos termos da Lei Municipal n. 321/99; b) a denunciada E., na condição de Secretária da Saúde, não tinha autoridade sobre a licitação, e o denunciado G, como empresário e munícipe, não tinha dever de fiscalizar as leis municipais, mas tão somente de fazer cumpri-las; c) pleitearam a absolvição, com fundamento no art. 386, inc. III, do Código de Processo Penal. Ora, O Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde (Auditoria n. 8.183), na verificação de aplicação dos recursos financeiros do Município, emitiu a Constatação n. 28.691 (abrangência 2007/2008), no seguinte teor (fls. 17/19): O Município de Travesseiro fracionou a aquisição de medicamentos, comprando produtos diretamente das farmácias, utilizando os recursos de contrapartida/EC-29 141

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acobertados pela Lei Municipal nº 545/2002, que segundo denúncia são de parentes do Prefeito Municipal. Evidência: O Município de Travesseiro utilizou recursos da contrapartida Municipal na aquisição fracionada de medicamentos das farmácias: JANETE S. BOTH e GUILHERME e DERTZBACHER & CIA LTDA., todas sediadas no município de Travesseiro. As aquisições efetuadas encontram-se acobertadas pela Lei Municipal nº 545 de 18 de outubro de 2002. O Município utilizou o valor total de R$ 313.636,36 (trezentos e treze mil, seiscentos e trinta e seis reais e trinta e seis centavos) no exercício de 2007, o valor de R$ 218.246,19 (duzentos e dezoito mil, duzentos e quarenta e seis reais e dezenove centavos) no período de 01/01 a 31/03/09 na aquisição direta de medicamentos não básicos sem a observância dos procedimentos de licitação previstos na Lei nº 8.666/93 e na Lei nº 10.520/2002. Convém destacar que a Lei Municipal nº 545 não pode ser contrária as Leis das licitações nº 8.666/93 e 10.520/2002, muito pelo contrário deve observar os preceitos emanados pelas leis federais. [...] Recomendação: Não contratar com empresas cujos sócios sejam parentes de funcionários ligados a Administração Pública. Realizar licitação para aquisição de medicamentos e outros, visando atender a legislação (Lei nº 8.666/93, Lei nº 10.520/2002 e Art. 37 da CF/88). A Administração Pública tem o dever de pautar a sua gestão pelo planejamento, pela coordenação, pela organização das suas atividades meio e fins. A lei está a exigir isso. E, quando o faz, tem que constituir, ao longo do tempo, uma projeção de despesas e gastos. Daí a possibilidade de ela buscar o melhor preço para atender o interesse público em suas atividades corriqueiras – aquelas demandas que lhes são ordinárias, que não se caracterizam de caráter eventual. Por isso, a lei exige dela, sim, inclusive com cominação de sanções, que estabeleça essa programação, essa organização, essa gestão coordenada de receita e de despesa. A Lei n. 321/99 autorizou o Poder Executivo de Travesseiro a subsidiar medicamentos à população, com descontos iniciais de 20 e 30% para as compras efetivadas no Município, dependendo da necessidade do paciente, se eventual ou contínua. Com a Lei n. 545/02, instituiu-se desconto de 100% para a medicação adquirida no Município às pessoas com idade de 65 anos ou mais e que dela necessitassem continuamente, mantendo os demais percentuais. Nesta época, a 142

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única farmácia lá estabelecida era a “J. S. B.”12, de propriedade da codenunciada J., casada com o sobrinho do então Prefeito Municipal, G. R. H. (fls. 714/725). Na gestão do codenunciado R. R., a legislação foi novamente alterada, tendo ele sancionado a Lei n. 37/0913, para conceder descontos ainda maiores para os fármacos adquiridos no Município, em 40, 50 e 100%, limitado o valor do subsídio a R$ 300,00 (trezentos reais) mensais por inscrição (fl. 38). Quando da edição dessa última normativa, além da farmácia de Janete, também lá se instalara a farmácia “G. D. e Cia Ltda.”14, propriedade do coacusado G., sobrinho do atual Prefeito. A legislação municipal ao autorizar o Poder Executivo a subsidiar medicamentos adquiridos pelos travesseirenses detém conotação de assistência social. Todavia, essa política pública não pode ser executada ao arrepio da Lei de Licitações, que visa justamente a preservar o patrimônio público na busca da proposta mais vantajosa à Administração. As provas dos autos demonstram que, no período referido na denúncia (2009 a 2011), realizou-se licitação tão somente para a compra dos medicamentos integrantes da lista básica do Município, com aplicação de recursos federais: Pregões Eletrônicos n. 1/2009, 1/2010 e 1/2011, do tipo menor preço por lote, para aquisição de medicamentos (fls. 380/396, 409/425 e 435/450), cujas despesas foram cobertas por recursos orçamentários consignados na Lei Orçamentária Anual, formado pelo Fundo Municipal de Saúde, PAB, Farmácia Básica, Municipalização Solidária, Epidemiologia, Vigilância Sanitária e outros decorrentes de repasses do Governo Federal e Estadual com fins específicos. Os demais fármacos necessitados pela população foram adquiridos no comércio local e subsidiados pelo Poder Público em até 100%, dependendo da necessidade do paciente e da sua idade. As planilhas de controle interno indicam a listagem dos munícipes beneficiados, data da retirada, percentual do subsídio, número da autorização, número da carteira de saúde e, finalmente, a assinatura do beneficiário (fls. 747/917). O sistema de subsídios não pressupunha carência financeira e, tampouco, havia deliberação pela compra do fármaco pelo melhor preço, em sua forma genérica ou similar, ficando a cargo do munícipe dirigir-se à farmácia de sua preferência, para lá comprar o medicamento.

12 – A empresa obteve registro junto à Receita Federal, em 24-11-2000 (fl. 561). 13 – A Lei entrou em vigor na data da sua publicação – em 09-06-2009. 14 – Guilherme obteve o registro, perante a Junta Federal, em 31-10-2005 (fl. 556). 143

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Note-se que, com tal procedimento, a aquisição por parte do Município foi feita de forma direta, sem a realização de procedimento licitatório. Ainda que as defesas aleguem não era o ente municipal que adquiria o fármaco, inequívoco que, ao abster-se de comprar a medicação necessária para a farmácia básica do Município e ao subsidiar até 100% de medicamentos adquiridos, exclusivamente, nas duas farmácias já nominadas, era o Município, sim, que adquiria os fármacos, de forma direta. Desse modo houve burla ao processo licitatório, e os preços praticados causaram prejuízo à Administração, uma vez que, em se tratando da venda destinada a entes da administração pública direta e indireta, o preço máximo a ser aplicado era o Preço Fabricante (PF), de acordo com a Resolução CMED n. 03, de 04-05-09, disposta no Guia da Farmácia (fls. 920 e 1.253), ou seja, de ciência inequívoca dos empresários réus, in verbis: CÂMARA DE REGULAÇÃO DO MERCADO DE MEDICAMENTOS CONSELHO DE MINISTROS RESOLUÇÃO nº. 3, de 4 de maio de 2009 Proíbe a aplicação de Preço Máximo ao Consumidor – PMC a medicamentos de uso restrito a hospitais. A Secretaria-Executiva faz saber que O CONSELHO DE MINISTROS da CÂMARA DE REGULAÇÃO DO MERCADO DE MEDICAMENTOS CMED, no uso das competências atribuídas pelos incisos I, II, V, VIII e XIII do art. 6º da Lei nº. 10.742, de 2003, e na observância da Orientação Interpretativa nº. 2, de 13 de novembro de 2006, aprovou a seguinte RESOLUÇÃO: Art. 1º Preço Fabricante - PF é o teto de preço pelo qual um laboratório ou distribuidor de medicamentos pode comercializar no mercado brasileiro um medicamento que produz. Art. 2º Preço Máximo ao Consumidor – PMC é o teto de preço a ser praticado pelo comércio varejista, ou seja, farmácias e drogarias. Parágrafo único. As farmácias e drogarias, quando realizarem vendas destinadas a entes da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, deverão praticar o teto de preços do Preço Fabricante – PF, de que trata o artigo 1º. Art. 3º Fica proibida a publicação de Preço Máximo ao Consumidor – PMC, em qualquer meio de divulgação, para medicamentos cujo registro defina ser o mesmo “de uso restrito a hospitais e clínicas”. Art. 4º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação. 144

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Como visto, os valores pagos pelos medicamentos, a maior pela Administração, revela o dano causado ao ente federado pela dispensa fora das hipóteses legais, estando o prejuízo aos cofres públicos devidamente descrito na denúncia. Nesses termos, cumprem-se os requisitos para tipificação da conduta, não havendo apenas a contratação despida de disputa pública, mas também a vontade livre e consciente (dolo) de lesar o Erário, consistente na intenção de produzir um prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação. Este é o entendimento proclamado pelo Excelso STF: Ação Penal. Ex-prefeito municipal. Atual deputado federal. Dispensa irregular de licitação (art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93). Dolo. Ausência. Atipicidade. Ação penal improcedente. 1. A questão submetida ao presente julgamento diz respeito à existência de substrato probatório mínimo que autorize a deflagração da ação penal contra os denunciados, levando-se em consideração o preenchimento dos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, não incidindo qualquer uma das hipóteses do art. 395 do mesmo diploma legal. 2. As imputações feitas na denúncia aos ora denunciados foram de, na condição de prefeito municipal e de secretária de economia e finanças do município, haverem acolhido indevidamente a inexigibilidade de procedimento licitatório para a contratação de serviços em favor da Prefeitura Municipal de Santos/SP. 3. Não se verifica a existência de indícios de vontade livre e conscientemente dirigida por parte dos denunciados de superarem a necessidade de realização da licitação. Pressupõe o tipo, além do necessário dolo simples (vontade consciente e livre de contratar independentemente da realização de prévio procedimento licitatório), a intenção de produzir um prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação. 4. A incidência da norma que se extrai do art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93 depende da presença de um claro elemento subjetivo do agente político: a vontade livre e consciente (dolo) de lesar o Erário, pois é assim que se garante a necessária distinção entre atos próprios do cotidiano político-administrativo e atos que revelam o cometimento de ilícitos penais. A ausência de indícios da presença do dolo específico do delito, com o reconhecimento de atipicidade da conduta dos agentes denunciados, já foi reconhecida pela Suprema Corte (Inq. nº 2.646/RN, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Ayres Britto, DJe de 7/5/10). 5. Denúncia rejeitada. Ação penal julgada improcedente. (Inq 2616, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 29/05/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-167 DIVULG 28-08-2014 PUBLIC 29-08-2014) 145

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Identicamente: STF/AP 559, Relator: Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, julgado em 26-08-14, publicado 31-10-14; e STJ/APn 480/MG, Rela. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Rel. p/ Acórdão Ministro Cesar Asfor Rocha, Corte Especial, DJe 15-06-1215. Para além disso, houve comprovado ganho financeiro, auferido pelos réus J. e G., a partir da conduta do Prefeito R. de não realizar licitação quando essa se mostrava absolutamente indispensável, visto que a despesa em tela não era de caráter excepcional e transitório, bem como os valores despendidos excederam, e muito, o limite legal para dispensa16. Assim, houve desvio de verbas públicas, em proveito próprio e das empresas farmacêuticas, causando efetivo dano ao Erário. Veja-se que os empenhos e os posteriores depósitos bancários somente foram viabilizados com a contribuição da Secretária da Saúde E. C., que efetuava a conferência dos medicamentos que possuíam aprovação junto ao Posto de Saúde e das notas fiscais dos valores vendidos pelas farmácias, cotejando se o subsídio revertia no valor da compra, para, assim, possibilitar o empenho das notas e posterior pagamento às drogarias. Conforme conteúdo probatório produzido na instrução, o dolo dos agentes públicos é inequívoco, pois, a contar da Auditoria do SUS no ano 2009, passou a ser de conhecimento público que a sistemática de subsídios violara a Lei Licitatória, com fracionamento de despesas e prejuízo ao ente federado. Outrossim, os empresários praticaram valores excessivos ao contratarem com ente da administração direta, tomando parte no ato ilegal e concorrendo no delito licitatório17, quando não poderiam aplicar o PMC (Preço Máximo ao Consumidor), beneficiando-se do desvio de verbas. Tais elementos decorrem da prova testemunhal.

15 – No mesmo sentido: RHC n. 35.598/SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 05-04-2016, DJe 15-04-2016, e Representação Criminal n. 70065999203, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogério Gesta Leal, julgado em 20-08-2015. 16 – Art. 24, inc. I, da Lei n. 8.666/93. 17 – Colhe-se a doutrina de NUCCI: “Art. 89: figura específica para o contratado: [...] importante destacar que a inserção do parágrafo único restringiu o alcance da lei penal ao contratado (não servidor), pois colocou, na figura típica, além da intenção especial de obter benefício, a comprovada concorrência para a consumação da ilegalidade. Assim, caso o servidor dispense a licitação, mas o particular não tome parte em qualquer ato ilegal, que lhe diga respeito, ainda que se beneficie da contratação indevida, é incabível a punição” (NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais comentadas. 7ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 469-470). 146

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Ref. às testemunhas de acusação: G. R. H. destacou ter sido eleito Prefeito no Município a contar de 2001 (gestões 2001-2004 e 2005-2008), tendo alterado a lei que concedia o subsídio para beneficiar os idosos e as pessoas que fizessem uso de medicação contínua, residentes no Município. Foi proprietário da primeira farmácia instalada em Travesseiro, mas, antes de assumir o cargo político, repassou o negócio à sua sobrinha. A pessoa que necessitava da medicação era quem escolhia o local onde iria realizar a compra e que, na sua gestão, fiscalizavam os valores a serem gastos. Nunca recebeu notificação do Ministério Público ou do Tribunal de Contas indicando irregularidade no procedimento. Realizava licitação para aquisição de medicamentos que ficavam à disposição da população na farmácia básica do Município. Não tem conhecimento sobre a compra superfaturada de medicamentos. Sobre a sistemática dos subsídios, declarou que a pessoa deveria ter mais de 65 anos de idade, fazer uso contínuo, e aos outros, que esporadicamente necessitassem de medicação, dava-se trinta ou quarenta por cento de desconto. Sabe-se que outros Municípios praticam essa mesma sistemática de compra de medicamentos para munícipes que se enquadram nas regras da assistência social (fls. 1023/1031). R. dos S., enfermeira concursada do Município, salientou que, em razão das isenções concedidas, o consumo de remédios acabava sendo estimulado. As duas farmácias são pertencentes a parentes do anterior e do atual Prefeito. Sobre a farmácia básica, que ficava no Posto de Saúde, havia a disponibilidade da medicação obrigatória. Para os demais fármacos, poderiam ser adquiridos mediante desconto, nas duas farmácias do Município, conforme a necessidade dos munícipes. Para obtenção do benefício, a pessoa apresentava uma receita médica, a qual poderia ser tanto a concedida por médico particular quanto por médico do Posto de Saúde. Portanto, não havia aplicação apenas aos necessitados e, sequer, havia uma preocupação de escolher o melhor preço. Comprado o fármaco em uma das farmácias, a Prefeitura o subsidiava (fls. 1032/1040). P. S., agente administrativa, relatou que o ente municipal concedia desconto nos medicamentos, baseado em lei municipal. Sabia que as farmácias estabelecidas no Município são de parentes dos Prefeitos. Não tinha ciência de que os valores praticados eram altos. A depoente concedia autorização para aquisição dos medicamentos, o que consistia no seguinte procedimento: “a pessoa ia na farmácia... Pegava a autorização com a receita, ia lá, pegava o orçamento, trazia lá e a gente concedia o desconto”. Declarou que bastava apenas um orçamento, não se exigindo a pesquisa de preços em ambos os estabelecimentos. Não havia regra quanto à 147

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situação econômica da pessoa, sendo o subsídio concedido até mesmo para quem apresentasse receituário particular. Não sabe dizer se, em municípios próximos, os preços eram menores. No período que participou junto à Secretaria de Saúde não houve acusação ou imputação de que o Prefeito estivesse privilegiando uma ou outra farmácia, não sendo apontado, por qualquer órgão, que a prática fosse irregular. O subsídio era visto como um benefício para o povo (fls. 1041/1045). T. S., pedreiro aposentado, relatou que esteve no Posto de Saúde para retirar o remédio de que necessitava, o qual não havia disponibilidade, sendo então encaminhado para compra na rede privada. Adquiriu-o na drogaria de Guilherme e era um preço, então, uma vizinha avisou-o de que na farmácia da Janete era outro preço, reclamando dessa diferença, pois acabou pagando mais. O medicamento era o Sinvastatina, o qual é considerado básico. O Município não exigia orçamento pelo menor preço. Quando constatou a diferença de valores, a ré Elis estava presente, não tendo lhe pedido para que retornasse à farmácia para comprar o mais barato. Recebeu o subsídio na ordem de 100% (fls. 1.046/1.049). A. Q., atual Vice-Prefeito de Travesseiro, sustentou que o Município subsidiava a compra de medicamentos nas farmácias locais, conforme escolha do paciente, não lhe sendo exigido orçamento pelo menor preço. Na farmácia básica do Município, havia os medicamentos básicos, os quais eram adquiridos por meio de licitação. Afora essa medicação, outros remédios que eram consumidos pelos travesseirenses o Município subsidiava a compra, sem licitação. Em farmácias situadas fora do Município, os descontos a título de subsídio eram menores, ainda que o valor do fármaco fosse mais baixo. Os descontos eram concedidos para todo e qualquer cidadão, não havendo favorecimento. Não houve apontamento da Câmara de Vereadores, Tribunal de Contas ou do Ministério Público acerca da irregularidade dessa prática antes da denúncia oferecida nos autos. Declarou que, nas redes de farmácia maiores, por adquirirem produtos em larga quantidade, conseguem praticar um melhor preço em comparação às farmácias de menor porte. Havia controle sobre os valores estarem dentro do permitido pela guia de medicamentos fornecida pela ANVISA (fls. 1050/1055). Ref. às testemunhas de defesa: P. H. trabalhou na farmácia do corréu Guilherme. Disse que o cliente vinha com o receituário médico, orçava-se o valor do medicamento, ele voltava ao Posto de Saúde para retirar a autorização, e depois retornava para a farmácia, às vezes sim, às vezes não, com a aprovação do Posto de Saúde. Referiu que os valores praticados para as pessoas que possuíssem autorização do Município, ou 148

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para qualquer compra particular, eram os mesmos, seguindo a tabela da ANVISA. Os medicamentos genéricos tinham um preço menor do que o ético. Referiu que G. é sobrinho do Prefeito R., sendo que J. é sobrinha do ex-Prefeito. As isenções eram concedidas, independente da classe social do postulante, observadas as autorizações do Posto de Saúde (fls. 1130/1133). A. M. K. F. mencionou que J. é casada com o sobrinho do ex-Prefeito G. Sobre os descontos concedidos pela municipalidade, após a consulta com o médico, o paciente dirigia-se ao Posto de Saúde para retirar os remédios que o médico receitava; o que não havia no Posto era buscado na farmácia particular, onde se orçava o valor e, em seguida, retornava-se à Secretaria para fins de autorização, ou indeferimento da compra. Relatou que o seu filho teve problema de audição, então os descontos concedidos lhe favoreceram, diante dos gastos despendidos com os médicos. Para toda e qualquer aquisição de medicação, exigia-se o receituário médico. Não havia necessidade de comparar os preços entre as farmácias (fls. 1.133v/1.136). M. N. Q. sustentou que já adquiriu medicamentos nas duas farmácias estabelecidas no Município, recebendo desconto na ordem de 50% nas compras. O benefício era concedido independentemente da realização de orçamento pelo melhor preço, e se destinava à compra de remédios que não estivessem disponíveis na farmácia básica do Município, sendo, assim, obtidos na rede particular. Comprava o fármaco que o médico prescrevia, o qual, por vezes, era genérico (fls. 1136v/1138v). M. S. M., farmacêutico, narrou não saber sobre os fatos denunciados. Por atuar no ramo farmacêutico, esclareceu que, nos produtos genéricos, pode haver variação do preço dependendo do laboratório. Os medicamentos genéricos e os de referência vêm tabelados pelo governo com o PMC (Preço Máximo ao Consumidor). As farmácias podem realizar um cadastro e comercializar algumas faixas de remédios de uso contínuo, por um preço menor. As grandes redes conseguem praticar preço mais baixo em comparação às de pequeno porte. Já fora proprietário de farmácia e efetuava a compra dos medicamentos de distribuidoras, e não de laboratórios, por exigirem pedido elevado, e, nesse período, vendia pelo maior preço autorizado pela ANVISA (PMC), sob pena de não obter qualquer lucro. O Guia da Farmácia é distribuído mensalmente pelo governo quanto ao PMC. Relatou que, em termos de medicamento genérico, similar ou de referência, o princípio ativo é o mesmo, e, portanto, idêntico é o efeito, mostrando-se mais vantajoso ao consumidor adquirir, sempre, o similar ou genérico (fls. 1139/1142). 149

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P. J. F. abonou a conduta dos réus. Não se realizava a cotação de preços. Buscava na rede privada os medicamentos que não estivessem disponíveis na farmácia básica. O Município não exigia atestado de pobreza ou de insuficiência de recursos (fls. 1142v/1144v). J. R. W. detalhou que trabalhava na concessão dos descontos, os quais eram fornecidos, inclusive para os pacientes que consultavam em consultório particular. Havia sistema informatizado, o qual apontava se o medicamento era de uso contínuo ou não. Para os idosos que faziam uso contínuo, a isenção era de 100% e, para os demais, o desconto era de 50%; quando não se tratava de medicação contínua, o desconto era de 40%, inclusive para os idosos. Os fármacos adquiridos na rede privada restringiam-se aos não oferecidos na farmácia básica. Não fiscalizava se os valores cobrados nas farmácias efetivamente observavam o PMC. O limite para os gastos era de R$ 300,00 (trezentos reais) mensais. Concedia a autorização para os descontos, mas a Secretária que verificava tais concessões e, em seguida, encaminhava a documentação correlata à Prefeitura. Não era exigido dos pacientes que realizassem pesquisa pelo menor preço nas farmácias (fls. 1145/1148v). C. C. H. trabalha no setor interno da Prefeitura. Afirmou que os descontos concedidos para os travesseirenses independiam da faixa de renda, pelo teto mensal de R$ 300,00 (trezentos reais). O paciente escolhia a farmácia, não sendo necessário fazer orçamento. Na farmácia básica, os medicamentos eram fornecidos de forma gratuita. Quanto aos medicamentos de referência, genérico ou similar, observava a medicação prescrita pelo médico. O Município de Travesseiro utilizou como modelo para aquisição dos fármacos a legislação do “Município-mãe” de Arroio do Meio. A lei local partiu de uma discussão do Conselho de Saúde, sendo o projeto encaminhado pelo Executivo. O Município pagava o subsídio diretamente às farmácias, não entregando dinheiro ao paciente. Nas auditorias do Tribunal de Contas, jamais houve apontamento quanto a qualquer irregularidade, embora fiscalizassem os empenhos realizados. Sabia que a primeira farmácia instalada no Município era de propriedade do ex-Prefeito Genésio, que a repassou aos seus familiares quando assumiu o cargo eletivo. O Prefeito Ricardo foi Secretário de Saúde na gestão do Prefeito Genésio, no período de 2007, 2008. Não soube responder o porquê das compras dos medicamentos na rede particular não serem precedidas de licitação (fls. 1149/1153v). D. S., contador, alegou que presta serviços de assessoria para o Município de Travesseiro desde a sua criação, em janeiro de 1993. No início da concessão 150

Controle penal da corrupção – dispensa ou inexigibilidade de licitação, com apropriação ou desvio de rendas públicas – estudo de caso

do subsídio, o munícipe era ressarcido do preço despendido na farmácia; posteriormente, passou a realizar-se o pagamento à farmácia, por meio de empenho direto. A autorização de empenho era concedida pela Secretária da Saúde. O dispêndio com os medicamentos era registrado como despesa de medicação, aquisição de medicamentos, uma rubrica específica na contabilidade. Não havia controle efetivo de pagamento quanto aos preços, observando-se, apenas, a tabela da ANVISA. O Tribunal de Contas não emitiu apontamento quanto à concessão dos subsídios. Atualmente, o Município faz licitação (fls. 1154/1158). V. R. B., professora municipal, narrou que já se utilizou dos subsídios concedidos para compra de medicamentos não ofertados na farmácia básica do Município. Exerceu o cargo de Secretária da Saúde no ano 2001, período em que havia apenas uma farmácia no Município (fls. 1158v/1160v). M. N. R. D., irmã do Prefeito e mãe do corréu G., salientou que não havia restrição da faixa de renda para a compra de medicamentos. Atualmente, os fármacos são disponibilizados na rede básica. Quanto aos demais, devem ser buscados por meio de ação judicial (fls. 1161/1163). E. G. recordou que, quando houve a auditoria do DENASUS, no ano 2009, interou-se no assunto relativo à sistemática de como funcionava a questão dos subsídios para a população. O modelo fora copiado de Arroio do Meio no ano 1999. Num primeiro momento, o subsídio era pago diretamente ao contribuinte, como ressarcimento. Após, houve um apontamento do Tribunal de Contas pela forma como era feito o pagamento, em espécie. A partir disso, alterou-se o procedimento, passando o valor correspondente a ser empenhado diretamente para as farmácias, mas a sistemática de operação continuou inalterada. Na auditoria do DENASUS, houve aponte dizendo que o Município estaria burlando o processo licitatório. O aumento do percentual dos subsídios partiu da própria comunidade, por intermédio do Conselho Municipal de Saúde, não tendo conhecimento da ingerência política de qualquer pessoa ligada à administração. Em relação aos preços praticados nas farmácias da rede privada, disse que observavam a tabela da ANVISA, que orienta a prática de preços. Pelo que conferiu das documentações, tal orientação não foi extrapolada (fls. 1163v/1168). E. M. Z., vereadora, tendo trabalhado na gestão do Prefeito G. Atuou como professora, depois no CRAS, na Assistência Social do Município e, nos últimos seis meses, foi Secretária de Saúde. Na época em que esteve à frente da Secretaria fazia o levantamento de preços. Havia um livro com a relação dos medicamentos do menor ao maior preço, sendo que as farmácias não extrapolavam 151

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o limite legal. Assinava as autorizações e essas eram repassadas à Prefeitura, onde era feito o empenho, e depois, tal era direcionado às farmácias. O critério para a concessão do subsídio era residir no Município. A mesma sistemática era seguida pelos Municípios de Arroio de Meio e Capitão (fls. 1168v/1172v). N. M. B. H. trabalhou como Secretária da Saúde na gestão do Prefeito G., nos anos 2002 e 2003. Os descontos eram concedidos para quem morasse no Município. Sabe que os proprietários das farmácias são sobrinhos do ex-Prefeito e do atual Prefeito (fls. 1175v/1177). D. K. K., farmacêutica, trabalhou na farmácia de Janete no período de 2008 a 2012. O paciente apresentava a receita e solicitava o medicamento; fazia o orçamento do preço que a farmácia vendia, conforme a tabela da ANVISA; retornava à Secretária de Saúde e obtinha a autorização. Disse que apresentava aos clientes, além do remédio de referência, também o genérico e o similar. A farmácia realizava a compra dos produtos pelas distribuidoras de medicamentos atuantes na região. O valor cobrado do cliente independia se ele comprava utilizando-se do subsídio do ente municipal ou de forma particular (fls. 1180/1182). E. C. W. R., Secretária da Saúde na época dos fatos. Passou a exercer o cargo no ano 2009 e deu continuidade ao que era seguido na municipalidade. O funcionário da Secretaria autorizava o subsídio para determinado medicamento; depois tal autorização era repassada à farmácia e, antes de ser encaminhada para o empenho, a interroganda recebia a despesa. Com a sua autorização, o valor a ser pago era encaminhado para a Prefeitura, abrindo-se um processo para empenho e pagamento. Em todo o procedimento havia uma tabela, sempre respeitada para a venda dos medicamentos. Não tem conhecimento do beneficiamento de qualquer dos envolvidos nessa ação penal. Não soube responder por que, depois da auditoria do DENASUS, no ano 2009, o Município não passou a observar imediatamente a licitação para compra dos remédios. O benefício de subsídio era concedido a todos, sem diferenciação. O Município de Arroio do Meio possuía programa idêntico (fls. 1183/1185). G. D., farmacêutico, à época, proprietário da farmácia F. Medicamentos. Relatou que se formou em farmácia e, em seguida, abriu o seu próprio comércio, no ano 2006, sendo que o seu tio R. se elegeu Prefeito apenas no ano 2009. Negou a prática dos crimes que lhe são imputados. Sobre os preços praticados, mencionou que o PF, na verdade, é o preço de custo da medicação, e o PMC é o preço aplicado para a venda. Qualquer nota fiscal de distribuidora registra o PMC, em cima da nota, que é o preço praticado. Já trabalhou em outras drogarias, nas quais o 152

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cálculo também era feito pela venda do fármaco. O paciente apresentava a receita médica, não sendo dado ao farmacêutico questioná-la. Inclusive, se o médico prescrevesse um remédio de marca, não detinha autonomia para substituí-lo por um genérico. Afirmou que os valores praticados por convênio da Prefeitura eram os mesmos vendidos para terceiros, sem subsídios. Acrescentou que a medicação que chegava à farmácia era etiquetada com o preço do dia, conforme a nota fiscal (fls. 1185v/1188). R. R., Prefeito Municipal em segundo mandato, asseverou que a lei que concedia subsídios foi firmada em 1999, dando continuidade a tal sistema. Na sua gestão aumentou os percentuais e fixou o teto mensal de R$ 300,00 (trezentos reais) por munícipe. O Tribunal de Contas não reconheceu qualquer ilegalidade nessa prática. Não havia como realizar a licitação para compra de medicação sem saber qual seria a real necessidade do paciente. O Município tem 2.314 habitantes e, a cada ano, há redução desse número em função de a população ser formada essencialmente por pessoas idosas e pelo ramo de atividade ser agrícola. Tudo isso o levou a ajudar as pessoas, e também o comércio, com o regime de subsídio, mantendo também os empregos, os programas que ajudam os agricultores. Para quem é produtor, eles têm incentivos, a indústria e o comércio. Disse ser inocente dos fatos que lhe são atribuídos. Após a auditoria do SUS, continuou defendendo a impossibilidade de licitação para a compra dos medicamentos não oferecidos na farmácia básica. Com a denúncia apresentada, o programa de subsídios foi extinto, havendo a realização de licitação. Alegou que a lei não onerava os cofres públicos dentro dos 15% que eram definidos para a Saúde (fls. 1188v/1190). J. S. B., comerciante no ramo da farmácia JM Drogaria. Casada com o sobrinho do ex-Prefeito G. Atualmente, a sua farmácia é a única atuante no Município. Jamais ultrapassou o preço máximo do consumidor, atentando à tabela da ANVISA. Com a extinção da prática dos subsídios, concede 10% de desconto, e trabalha com a farmácia popular, comercializando fármacos com até 90% de desconto, benefício concedido diretamente pela União. Disse que, tivesse auferido ganho financeiro, não estaria na faculdade, com financiamento estudantil do FIES. Sobre os medicamentos, a população buscava aqueles que não eram disponibilizados pela farmácia popular. Auferia no final do mês o pagamento alcançado pelo Município, e acabava vendendo mais os medicamentos previstos na farmácia básica. O cliente tinha a opção de comprar o medicamento de referência (original), o genérico ou o similar, podendo exigir o de maior preço. Não participou das licitações promovidas pelo Erário (fls. 1202/1208). 153

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Embora os denunciados tenham alegado a impossibilidade de realizar licitação considerando o objeto, após o oferecimento da denúncia pelo Órgão acusador, houve extinção do programa de subsídios, passando o Município a observar aquela modalidade para a compra de fármacos, sem que tenha havido o relato de qualquer dificuldade para promover a disputa. Ainda, não procede a argumentação de que o Ministério Público comparou a medicação comercializada por farmácia de grande porte para fins de mensuração de dano ao Erário. O fato é que, a fim de beneficiar os comerciantes locais, houve dispensa de licitação fora das hipóteses legais, procedimento adotado com o fim de causar dano à Administração, o qual efetivamente ocorreu, culminando no desvio de verbas públicas em proveito próprio e alheio, já que os valores praticados foram abusivos. Assim, os empresários concorreram para a prática de atos previstos como crime de responsabilidade em coautoria com o Prefeito, incidindo a norma de extensão pessoal do art. 29 do Estatuto Penalista. Na página da ANVISA18, há definição das siglas PF e PMC, o que se reproduz para melhor elucidação da matéria: O que é Preço Fábrica (PF)? O Preço Fábrica ou Preço Fabricante é o preço praticado pelas empresas produtoras ou importadoras do produto e pelas empresas distribuidoras. O PF é o preço máximo permitido para venda a farmácias, drogarias e para entes da Administração Pública. A Orientação Interpretativa nº 2, de 13 de novembro de 2006, da CMED, estabelece que em qualquer operação de venda efetivada pelas empresas produtoras de medicamentos ou pelas distribuidoras, destinada tanto ao setor público como ao setor privado, deverá ser respeitado, para venda, o limite do Preço Fabricante. Esse preço inclui os impostos incidentes. Observação: As vendas de medicamentos efetuadas para entes da Administração Pública também devem respeitar o Preço Máximo de Venda ao Governo – PMVG, nos casos de obrigatoriedade de aplicação do Coeficiente de Adequação de Preço – CAP (ver itens “Produtos Sujeitos ao Desconto e Fornecedores)

18 – Disponível em: . Acesso em: 26 maio 2016. 154

Controle penal da corrupção – dispensa ou inexigibilidade de licitação, com apropriação ou desvio de rendas públicas – estudo de caso

O que é Preço Máximo ao Consumidor (PMC)? O Preço Máximo ao Consumidor é aquele praticado pelas farmácias e Drogarias. O PMC é o preço máximo permitido para venda ao consumidor e inclui os impostos incidentes. Observação: as farmácias e drogarias, ao realizarem vendas a entes da Administração Pública, deverão respeitar o limite do Preço Fabricante, conforme Orientação Interpretativa nº 2, de 2006, ou o Preço Máximo de Venda ao Governo – PMVG, nos casos de obrigatoriedade de aplicação do Coeficiente de Adequação de Preço – CAP (ver itens “Produtos Sujeitos ao Desconto e Fornecedores) Ademais, pelos demonstrativos das empresas, a maior receita advinha dos subsídios do Poder Público, o que não poderia ser diferente, considerando que a população local gira em torno de 2.300 habitantes e que todos os munícipes poderiam auferir o auxílio financeiro, independente da condição econômica, e lançavam mão desse expediente, gerando lucro às empresas privadas em detrimento do patrimônio coletivo. Ressalte-se que sequer as compras diretas feitas em estabelecimentos da cidade seguiram o critério do menor preço, e, sim, em diversas oportunidades, compras pelo preço maior, em evidente prejuízo ao Erário municipal, inclusive, em drogaria pertencente ao sobrinho do Chefe do Executivo, e a outra farmácia, da sobrinha do ex-Prefeito Municipal. O fato de ter havido a efetiva compra de medicamentos não afasta a possibilidade do delito de desvio de rendas públicas. Entretanto, no caso, aplica-se o princípio da consunção, já que a dispensa de licitação e a contratação direta das farmácias F. e JM D. foi meio necessário para a realização do desvio de rendas públicas. Sendo assim, ocorre a absorção do crime-meio do art. 89, caput e parágrafo único, da Lei n. 8.666/93, pelo crime-fim previsto no art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67, afastando o concurso material de crimes. Sobre o tema, o entendimento deste Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: AÇÃO PENAL. PREFEITO MUNICIPAL. ART. 1º, INCISO I, DO DECRETO -LEI Nº 201/67. DESVIO DE GÊNEROS ALIMENTÍCIOS. DISTRIBUIÇÃO A PESSOAS CARENTES. TESE NÃO ACOLHIDA. ART. 89 DA LEI Nº 8.666/93. AQUISIÇÃO DE BENS EM CARÁTER

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EMERGENCIAL. VENDAVAL NO MUNICÍPIO. DANOS CAUSADOS. ABSOLVIÇÃO. AQUISIÇÃO DE MEDICAMENTOS. MAIS DE UM ESTABELECIMENTO FARMACÊUTICO NO MUNICÍPIO. LICITAÇÃO. a) A distribuição de gêneros alimentícios a pessoas carentes cadastradas, quando ausente lei municipal regulamentando tal situação, bem como a adoção de um programa com critérios objetivos para escolha das pessoas a serem beneficiadas, caracteriza o delito previsto no art. 1º, inciso I, do Decreto-lei 201/67. b) A aquisição de bens em caráter emergencial, em virtude de danos causados no município, por um vendaval, é hipótese excepcional, que dispensa a realização de procedimento licitatório. c) A compra de medicamentos, quando há mais de um estabelecimento farmacêutico no município, é situação que exige a realização de licitação, para escolha daquela que oferecer menor preço, sendo incabível a alternatividade entre as farmácias existentes no local. Ação penal parcialmente procedente. (Ação Penal – Procedimento Ordinário N. 70036148344, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Gaspar Marques Batista, Julgado em 17-11-11) (grifei).

APELAÇÃO-CRIME. EX-PREFEITO. ART. 89, CAPUT, LEIN° 8.666/93. DISPENSA DE LICITAÇÃO. ART. 1°, INCISO I, DO DECRETO-LEI N° 201/67. DESVIO DE VERBA PÚBLICA. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. INABILITAÇÃO PARA O EXERCÍCIO DE CARGO OU FUNÇÃO PÚBLICA. 1. Ocorre a consunção quando a conduta definida por norma incriminadora constitui meio necessário para a preparação ou execução de delito diverso, restando o `crime-meio absorvido pelo `crime-fim, sob pena de violação ao princípio do non bis idem. 2. A inabilitação para o exercício de cargo ou função pública pelo prazo de 05 anos, está fundamentada no § 2° do art. 1°, do Decreto-Lei 201/67. Trata-se de conseqüência da condenação expressamente prevista em lei, portanto de aplicação obrigatória. Pena alterada. Apelos parcialmente providos. Unânime. (Apelação-Crime N. 70020816708, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, Julgado em 13-12-07) (grifei).

APELAÇÃO CRIME. EX-PREFEITO MUNICIPAL. FRAUDE À LICITAÇÃO E PECULATO (ART. 96, INCS. I E V, LF 8666/93, E ART. 1º,

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INC. I, DL 201/67). PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. APLICAÇÃO. PROVA. INSUFICIÊNCIA. APELO DO MP IMPROVIDO. Se a fraude à licitação é praticada como forma de desviar renda pública, tal conduta, por ser necessária à consecução do delito previsto no art. 1, I, DL 201/67, é por este absorvida em face do princípio da consunção. Incomprovado, modo estreme de dúvidas, que os denunciados, ao superfaturar os valores de bens adquiridos pelo Município, agiram com o propósito específico de desviar renda pública em proveito próprio ou alheio, impõe-se a manutenção da decisão absolutória. Apelo do MP improvido. (Apelação-Crime N. 70023195316, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Eugênio Tedesco, Julgado em 17-04-08) (grifei). A dispensa ilegal de licitação realizada somente com a finalidade de propiciar o instrumental necessário para o desvio de verbas públicas é impunível, visto que se trata de crime-meio para a consecução do crime-fim, o peculato. Aliás, a denúncia refere expressamente: [...] R. R., Prefeito Municipal, [...] E. C. W. R., Secretária da Saúde, [...] J. S. B. H e G. D. [...] concorreram comprovadamente para a consumação da ilegalidade, beneficiando-se da dispensa ilegal para firmar contrato com o poder público, uma vez que a primeira é proprietária da farmácia “Janete S Both” (JM Drogaria) e o segundo da farmácia “Guilherme Dertzbacher e Cia Ltda.” (Farmagui Medicamentos). Nas mesmas circunstâncias de tempo e de local, os denunciados acima nominados, em comunhão de esforços e em conjunção de vontades, desviaram verbas públicas em proveito próprio e das empresas “J. S. B.” e “G. D. e Cia Ltda.”. Isso porque as farmácias do Município de Travesseiro, valendo-se dos descontos concedidos aos munícipes (conforme se discorrerá em seguida), venderam a sua medicação por valor muito maior do que os preços praticados no mercado, de forma que o Município de Travesseiro, pagou um valor altíssimo pela medicação adquirida sem licitação junto às farmácias locais, as quais são de propriedade de familiares do atual e do ex-administrador, do Município de Travesseiro. Demonstrado, portanto, que a dispensa se tratou do meio utilizado para a efetivação do peculato, este absorve aquela, impondo-se a condenação dos réus somente pelo delito de peculato – desvio (art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67). 157

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TRÁFICO

DE DROGAS E MEIOS OCULTOS DE INVESTIGAÇÃO: APONTAMENTOS INICIAIS Jayme Weingartner Neto Desembargador do TJRS, Doutor em Direito

(1) Atos policiais de investigação, em delitos graves e de perfil insidioso e sub-reptício, demandam meios de elucidação (e capacidade de neutralização) diferenciados e eventualmente mais invasivos do que o arsenal tradicional disponibilizado para a atuação policial, plasmado que foi – no imaginário jurídico-social da redação original do Código de Processo Penal – num Brasil de escassa urbanização, de vida predominantemente agrária, pré-industrial, cuja criminalidade de feitio clássico-individual nenhum influxo sofrera da tecnociência que marcaria o desenrolar do breve século XX; um País que ainda desconhecia a intensificação de delitos com características epidêmicas e a necessidade de tutela de bens jurídico-penais (com refração constitucional) difusos e coletivos, meio ambiente e saúde pública – o bem jurídico protegido pela Lei de Drogas, por exemplo. No contexto de investigações criminais e meios de obtenção de provas bitolados pelas Leis n. 11.343/06 e n. 12.850/13, observa-se, com os olhos do 2º Grau, que vêm aumentando pedidos defensivos de nulidade de decisões judiciais que autorizaram infiltração policial, captação ambiental e, até, de aquisição de drogas, ao argumento primeiro de que carecem de fundamentação ou amparamse em denúncias anônimas (2). Também há alegações de que os policiais agem muitas vezes como agentes provocadores da venda de drogas, a redundar em crime impossível, nos termos da Súmula STF n. 145 (3). O presente texto, sem qualquer pretensão de esgotar a matéria, que desfia maior reflexão e pesquisa, procura problematizar os dois tópicos e

Jayme Weingartner Neto

sistematizar algumas soluções razoáveis, percorrendo decisões do TJRS no escopo de desenvolver e aperfeiçoar distinções em busca de coerência jurisprudencial e do quadro analítico mais preciso ao alcance para obter justiça tópica (4). (2) Não raras vezes, consoante observação empírica no 2º Grau, a defesa pede o reconhecimento de nulidade das decisões que, em 1º Grau, autorizaram infiltração policial, captação ambiental e, inclusive, a aquisição de drogas por policiais (para obter prova da materialidade de crimes de tráfico), referindo que carecem de fundamentação. Sobre a infiltração policial, como meio de obtenção de prova nos crimes previstos na Lei n. 11.343/06, a necessidade de autorização decorre do seu art. 53, caput, e inc. I. Também a Lei n. 12.850/13, que define organização criminosa (§ 1º do art. 1º) e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal, regula a infiltração, nos arts. 10 e 11, que “será precedida de circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial, que estabelecerá seus limites”. A par da infiltração, existe, tanto no art. 53, inc. II, da Lei de Drogas, quanto nos arts. 8º e 9º da Lei n. 12.850/13 a figura da “ação controlada” (“não atuação policial”, na dicção da Lei n. 11.343/06). Ainda acerca dos meios de obtenção de prova, a Lei n. 12.850/13 (art. 3º, inc. II) incluiu a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos, medida que não constava, expressamente, na Lei n. 11.343/06. Como se vê, a necessidade de autorização judicial para a infiltração policial vem consignada em ambas as leis, na especial de drogas e na das organizações criminosas. Em relação à ação controlada, o § 1º do art. 8º da Lei n. 12.850/13 menciona prévia “comunicação”, pela autoridade policial ou administrativa à autoridade judicial, ficando em aberto a harmonização do dispositivo com a expressa previsão (“mediante autorização judicial”), no caput do art. 53 da Lei n. 11.343/06, para a não atuação policial. Embora a Lei n. 12.850/13 não estabeleça o mesmo para a captação ambiental, a meu sentir, a autorização, além de decorrer de interpretação sistemática, é indispensável em observância aos direitos fundamentais de proteção da intimidade e da vida privada, bem como, eventualmente, da inviolabilidade de domicílio dos investigados, além de garantias processuais. Tenho presente precedente do TJRS no sentido de que autorizada a infiltração, nos termos da Lei n. 11.343/06, em consequência e ipso facto, possível 160

Tráfico de drogas e meios ocultos de investigação: apontamentos iniciais

a captação ambiental (imagens e conversas) por um dos interlocutores, até mesmo sem autorização judicial.1 Sobre a captação mantida em lugar privado, Renato Brasileiro de Lima afirma: “se produzida sem prévia autorização judicial, constitui invasão de privacidade, pois não está autorizado o ingresso em casa alheia, cuja inviolabilidade é constitucionalmente assegurada (CF, art. 5º, XI), razão pela qual a coleta de dados resultante de conversa mantida dentro de domicílio alheio é prova ilícita. Se a interceptação ambiental em locais públicos é considerada válida pela doutrina e pela jurisprudência, o mesmo não se pode dizer em relação a uma interceptação ambiental efetuada no interior de domicílio. Nessa hipótese, além de violar o direito à intimidade, seja no tocante ao direito ao segredo, seja em relação ao direito de reserva, haverá evidente afronta à inviolabilidade domiciliar prevista no art. 5º, inc. XI, da Constituição Federal”.2 Não desconheço, noutra nuance, precedentes deste Tribunal no sentido de que, autorizada a infiltração nos termos da Lei n. 11.343/06, desnecessária fundamentação, uma vez que, instrumento meramente investigativo, a infiltração não violaria qualquer direito individual do investigado, sendo necessária para evitar a responsabilização criminal dos agentes infiltrados.3 Entendo, contudo, com a devida vênia, em observância ao art. 93, IX, da Constituição Federal, em suma, que as decisões autorizadoras das técnicas de investigação mencionadas devem estar devidamente fundamentadas, mormente ao (i) implicarem indisfarçável restrição de direitos fundamentais e (ii) para legitimar provas que são obtidas mediante disfarce/ocultação estatal.4 Em síntese, sempre no escopo de diálogo com as colendas Câmaras Criminais competentes para julgar os delitos em apreço, cogito que, tangente à captação de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos, há três diferentes cenários

1 – Neste sentido: TJRS, Apelação-Crime n. 70066994229, 2ª Câmara Criminal, Relator: Victor Luiz Barcellos Lima, julgado em 10-03-16. 2 – LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. Salvador: Editora JusPODIVM, 2016, p. 513. 3 – TJRS, Apelação-Crime n. 70062455613, 2ª Câmara Criminal, Relator: Luiz Mello Guimarães, julgado em 18-12-14. 4 – No que tange à infiltração prevista na Lei de Drogas, “imperiosa a prévia e fundamentada decisão judicial” (THUMS, Gilberto; PACHECO, Vilomar. Nova lei de drogas: crimes, investigação e processo. 3ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 164). 161

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a distinguir:5 (i) captação de conversa alheia mantida em local público, a configurar, a priori, prova lícita mesmo que produzida sem prévia autorização judicial: “Afinal de contas, quem comete um crime em via pública não tem qualquer expectativa de proteção à intimidade”; (ii) captação de conversa mantida em lugar público, porém em caráter sigiloso (expressamente admitido pelos interlocutores), constitui invasão de privacidade, “pois o interceptador não pode imiscuir-se em segredo de terceiros sem permissão legal; (iii) captação de conversa mantida em lugar privado (caso dos autos), a necessitar de prévia autorização judicial: “havendo prévia e fundamentada autorização judicial, toda e qualquer gravação e interceptação ambiental será considerada prova lícita, nos exatos termos do art. 3º, II, da Lei n. 12.850/13”. Por outro lado, mesmo gravação ambiental clandestina poderá ser considerada prova lícita, para demonstrar a inocência do acusado ou quando houver investida criminosa de um dos interlocutores contra o outro (incidência do princípio da proporcionalidade). Fora deste eixo pacífico, grassa forte controvérsia doutrinária e jurisprudencial.6 Para ilustrar, na Apelação Criminal TJRS n. 70068262138 (1a Câmara Criminal, j. em 10-08-16, Rel. o autor do texto. Preliminares afastadas, à unanimidade), a partir de representação da autoridade policial, a requerida “infiltração” e a captação ambiental de sinais acústicos e ópticos foram autorizadas pelo Poder Judiciário. Ainda, houve expressa autorização para aquisição de drogas ilícitas pelos policiais que iriam realizar as diligências. Embora a defesa tenha alegado que tal decisão não guardou suficiente fundamentação, a Câmara concluiu que, pese efetiva e notoriamente sucinta, a decisão encontrava-se fundamentada. O requerimento policial solicitou investigação sobre 24 pessoas em pelo menos 7 locais diversos – se tal procedimento reveste-se da melhor técnica, fica em aberto. Certo que a autoridade policial referiu expressamente que se encontrava “em andamento uma operação de inteligência”; e a nominata fornecida ao juiz era o resultado parcial, até aquele momento, da atividade policial. Mencionavam-se as crescentes dificuldades para comprovar os delitos, em face dos cuidados tomados pelos autores e inovações na ocultação das drogas, além de “temor de represálias” por parte das testemunhas. Instruído o pedido com relatórios de serviço, baseados “em denúncias anônimas e no trabalho próprio da delegacia”.7

5 – Sigo LIMA, op. cit., p. 512-4. 6 – LIMA, idem, p. 514-7. A polêmica não vai resenhada por falta de espaço. 7 – Não se tratou, pois, ao menos em princípio, de atuação arbitrária ou aleatória. E a magistrada, ao apoiar-se em tal requerimento, sinteticamente relatado e obviamente manuseado, acrescido de parecer 162

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De igual forma, a Câmara não reconheceu nulidade do feito porque supostamente deflagrado a partir de denúncias anônimas, pois tais notícias embasaram prévia investigação, a qual legitimou a atuação policial, como expressamente anotei – uma operação, em maior ou menor grau, de inteligência, com reunião de informes pretéritos, seleção de dados relevantes e análise global, de modo a tornar inteligível a narrativa policial.8 Portanto, no caso referido, os meios de obtenção de prova foram autorizados judicialmente, nos moldes do art. 53, I e II, da Lei n. 11.343/06, e do art. 3º, II, III e VII, da Lei n. 12.850/13,9 com base em indícios da participação dos réus em

favorável do Ministério Público, não cinzelou decisão nula – autorizou, inclusive, levantamento de fundos para financiar a investigação e delimitou-a temporalmente, sendo que a parte dispositiva foi redigida articuladamente. 8 – Não considero, a priori, denúncia anônima como suficiente para diligência policial de busca domiciliar, necessário o prévio mandado judicial. Recente decisão monocrática do STJ (REsp n. 1542553, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 02-12-15), embora reformando decisão desse Relator (interpretando diversamente a premissa fática), consignou: “É oportuno anotar que, hodiernamente, há certas reservas para permitir o acesso em domicílio alheio pela polícia, mesmo no caso de tráfico de drogas. Tem-se entendido na mesma ordem de idéias do acórdão recorrido não ser permitido o ingresso das autoridades na casa alheia de maneira arbitrária, sem verificar previamente o flagrante delito, para legitimar a operação somente em momento posterior, se eventualmente constatada a prática do crime permanente. Assim, para a licitude da prova, a fundada suspeita de cometimento do crime não poderia ser imaginada, mas deveria estar visível, em momento anterior à violação do domicílio, não podendo eventual constatação posterior do crime permanente convalidar a abusiva entrada na casa alheia, por mero acaso”. Também o STF, ao fixar tese em repercussão geral (tema controverso 280): “(...) 6. Fixada a interpretação de que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados.” (RE 603.616/RO, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 05-11-15). Do voto do Relator: “Por outro lado, provas ilícitas, informações de inteligência policial – denúncias anônimas, afirmações de “informantes policiais” (pessoas ligadas ao crime que repassam informações aos policiais, mediante compromisso de não serem identificadas), por exemplo – e, em geral, elementos que não têm força probatória em juízo não servem para demonstrar a justa causa.” (grifou-se) 9 – Parece adequado realizar a integração hermenêutica de ambas as leis, no que tange à investigação criminal e aos meios de obtenção de prova, de modo que, por exemplo, as (reclamadas) lacunas da Lei n. 11.343/06 encontrem-se reguladas pela Lei n. 12.850/13. Neste contexto, fica claro que a ressalva do parágrafo único do art. 53 da Lei de Drogas, quanto ao “itinerário provável”, aplica-se apenas para os casos de transporte e transposição de fronteira, “de modo a reduzir os riscos de fuga e extravio do produto, objeto, instrumento ou proveito do crime” (art. 9º, in fine, da Lei das Organizações Criminosas). Por outro lado, fica em aberto o 163

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organização que se beneficiava da prática ilícita. Assim, ainda que a conclusão da investigação tenha sido diversa (não apurando, ao cabo, organização criminosa aos moldes da Lei n. 12.850/13), não houve ilegalidade no meio de prova e afastaram-se as nulidades ventiladas. (3) Outra celeuma recorrente, conforme argumentações defensivas, é que a autoridade policial, “ao formular pedido de agente infiltrado e autorização para a aquisição de drogas por parte desses agentes”, acaba por confundir os conceitos de agente infiltrado e agente provocador, nomeadamente na modalidade de tráfico “vender” droga. Aqui, é preciso distinguir, sempre com olhos no caso concreto. Uma resposta padrão observa que, no mais das vezes, aos acusados imputada-se a prática do crime de tráfico de drogas na modalidade “ter em depósito” e “guardar”. Tais condutas, preexistentes, não seriam estimuladas pelos policiais, não se tratando, portanto, de flagrante preparado, pois o crime se consumou já com a realização dos verbos nucleares “ter em depósito” e “guardar”. O crime de tráfico de drogas, tipificado no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06, é daqueles denominados, dogmaticamente, como de tipo misto alternativo, ao apresentar multiplicidade de verbos nucleares. Assim, a simples configuração de uma das ações expressas por um verbo, rectius, de qualquer uma das condutas descritas por quaisquer dos plúrimos verbos nucleares elencados previamente pelo legislador, perfectibiliza a infração. Tratando-se de crime de mera conduta, na maioria das modalidades, encontra-se consumado apenas com a posse da substância para entrega a terceiro. Nesse sentido, o ato de vender a droga caracteriza mero exaurimento do crime. Destaco, também, que a Lei n. 12.850/13, ao tratar da infiltração policial, determina, em seu art. 11, seja delimitado o alcance das tarefas dos agentes na infiltração. Logo, em princípio, é possível que a autoridade policial inclua a aquisição de drogas pelos agentes “infiltrados”. Reconheço, neste passo, uma zona grísea, que bem vale o esforço de aclaramento, na confluência da Súmula n. 145 do STF, versando sobre crime impossível em face de flagrante provocado (alegação defensiva, diante do ato de venda ilusória) e flagrante prorrogado (ou retardado, ou diferido), no bojo de ação alcance e melhor interpretação do § 1º do art. 8º da Lei n. 12.850/13, ao mencionar prévia comunicação, ao juiz competente, do retardamento da intervenção policial, isto é, até que ponto significaria desnecessidade de prévia autorização judicial, nomeadamente nas hipóteses de organização criminosa. 164

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controlada, sendo ainda de distinguir entre agente infiltrado, agente provocador e agente encoberto. Na tradição jurídico-penal brasileira, o flagrante provocado ocorre quando o sujeito ativo é induzido a praticar o crime (terceiro faz surgir nele a resolução criminosa, que até então não se manifestara em qualquer ato de execução), cuja consumação é previamente inviabilizada (pela disposição e vigilância das forças de segurança). Trata-se, numa expressão consagrada, de uma pantomima dirigida, modo ardiloso (para constituir prova condenatória na persecução penal), por demiurgo estatal que, insidiosamente, domina a cena do crime (e bem poderia considerar-se seu coautor, ao dispor do domínio do fato, isto é, da decisão acerca do “se” e do “como” do crime). Como exemplo, a 1ª Câmara Criminal não reconheceu, nem de longe, tal atuação policial na investigação descortinada na referida ACr. n. 70068262138. Penso, ademais, que a jurisprudência, na sua maioria, tampouco aceitaria a alegação defensiva, ainda que as respostas possam variar de estilo. Certo, há precedente10 considerando a aquisição de drogas por parte dos agentes policiais como prova inválida, mesmo com prévia autorização judicial, ao afirmar a atipicidade da conduta dos réus, num paralelo com o flagrante preparado. Pondero, com a devida vênia aos cuidadosos argumentos exposados naquele acórdão, que a decisão, por maioria, tendencialmente permanece isolada mesmo na 3ª Câmara Criminal desta Corte, como se vê de outros arestos, anteriores e posteriores.11 Em suma, ainda que vender droga, neste contexto, possa ser atípico,12 as condutas guardar 10 – Apelação-Crime n. 70063044218, 3ª Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Batista Marques Tovo, julgado em 01-10-15. Redator para o Acórdão Des. Diógenes V. Hassan Ribeiro. O Des. Sérgio M. Achutti Blattes, ao acompanhar a divergência, registrou que o fazia “por fundamentos pouco diversos”. 11 – Apelação-Crime n. 70063917843, j. em 14-05-15; Apelação-Crime n. 70067919936, 3ª Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Batista Marques Tovo, julgado em 23-03-16. No mesmo sentido da posição jurisprudencial majoritária: Apelação-Crime n. 70041855735, 3ª Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, julgado em 21-07-11. 12 – Imperiosa a cuidadosa análise do caso concreto, do suporte fático, já que o crime de tráfico de drogas (na maioria das vezes trata-se de crime único) apresenta-se ora como fenômeno instantâneo (vender) ora permanente (ter em depósito, guardar, trazer consigo), um poliedro multifacetado, raramente concretizando-se num único e isolado verbo (unissubsistente). Pelo que, diante da extensa tessitura típica, rara a tentativa (numa das condutas) que não traga, imbricada, outra ação consumada. Nesta linha: “Quem traz consigo a droga já consumou a infração, logo, é muito difícil pensar em tentativa de venda, afinal, para vender é preciso ter consigo.” (NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 249). Adiante, ao discorrer sobre o flagrante preparado e o crime impossível: “Ilustrando: se um policial se passa por usuário e, dirigindo-se a outro usuário, pede para comprar parte da droga que este utiliza, ao tentar vender não pode haver válida prisão em flagrante. Trata-se 165

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e trazer consigo são ínsitas à modalidade de tráfico perpetrada, substanciam crime permanente e em geral não são influenciadas pelo agir do agente estatal.

de delito impossível. Afinal, não era traficante, mas, insista-se, usuário. Somente resolveu vender, pois foi induzido por terceiro, com o fito exclusivo de lhe causar a prisão em flagrante. No entanto, não é essa a situação cotidiana. O autêntico traficante possui droga ilícita em depósito ou traz consigo para a finalidade de vender. Nesse caso, se o policial solicitar o entorpecente e houver a tentativa de venda, não se trata de flagrante preparado, logo, crime impossível. A prisão é legitimamente efetuada, levando-se em conta os demais verbos constantes do art. 33 da Lei de Drogas, como ‘ter em depósito’, ‘trazer consigo’, ‘guardar’ etc.” (NUCCI, idem, p. 256). Registro, aqui, dissonância doutrinária. LIMA, pese, na leitura que faço, comungar, em linhas gerais, da noção de que se o agente foi induzido a vender droga, nesta modalidade o tráfico seria impossível, mas subsiste o flagrante pela conduta anterior (trazer consigo, guardar, oferecer, ter em depósito), consigna: “Nesses casos de venda simulada de drogas, é importante que seja demonstrado que a posse da droga preexistia à aquisição pela autoridade policial”, porém, “se restar demonstrado que somente a quantidade vendida à autoridade policial estava com o agente, há de se concluir pela presença de crime impossível, pois não há crime anterior pelo qual ele possa responder. Ex.: o agente policial induz ou instiga o acusado a fornecer-lhe a droga que, no momento, não a possuía. Porém, saindo do local, e retornando minutos depois apenas com a quantidade de entorpecente pedida pelo policial, ocorre a prisão em flagrante.” (LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Criminal Especial Comentada. Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 742-3). Se com a primeira afirmação concorda-se tout court, a segunda merece reserva, inclusive pelo exemplo, pois, no caso figurado, ao retornar com a quantidade de entorpecente, o acusado, inexoravelmente, trouxe consigo a droga. Penso que, de fato, o bem jurídico saúde pública, no aspecto “venda”, não é seriamente ameaçado, pois o destino do entorpecente está previamente traçado pelo agente policial e não será consumido ou reposto em circulação. Mas não se trata, a rigor, de inviabilidade dogmática, pois, dado um contrato sinalagmático (a compra e venda, por excelência), o vendedor realizou tudo que estava ao seu alcance, inclusive a tradição, frustrando-se o ato jurídico complexo pela simulação do comprador. E teria havido, restrita e parcial (por circunstância alheia ao vendedor) circulabilidade, apenas que a droga será objeto (como suporte material) da devida persecução penal. Mesmo ab ovo inválido, diante do objeto ilícito (art. 104, II, do Código Civil), alguma analogia entre os negócios jurídicos em geral e a compra e venda de drogas talvez gere rendimento. No contrato padrão de compra e venda, um dos contratantes [o vendedor] se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro [o adquirente] a pagar-lhe certo preço em dinheiro (art. 481 do Código Civil) – e o negócio se considera obrigatório e perfeito “desde que as partes acordarem no objeto e no preço” (art. 482 do Código Civil). A bilateralidade do negócio resplandece no substrato de vida recortado da experiência antropológica, nada obstante, por sólidas razões de política criminal, o legislador tenha fracionado a conduta no sinalagma vender drogas (sujeito ativo do crime de tráfico, art. 33 da Lei n. 11.343/06) e adquirir drogas (sujeito ativo do delito previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/06 [adquirir para recolocar em circulação, consabido, configura tráfico, um dos 18 verbos recortados pelo legislador]). Veja-se que, no direito privado, os defeitos do negócio jurídico elencam-se nos arts. 138 a 165 (erro ou ignorância, dolo, coação, estado de perigo, lesão e fraude contra credores). Quanto ao negócio jurídico simulado, é nulo, “mas subsistirá o que se dissimulou, na substância e na forma” – e a simulação ocorre, dentre outras hipóteses, quando o negócio aparentar “conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem” (Código Civil, art. 167, caput, e § 1º, inc. I). Venda houve, poder-se-ia aventar, mas nulo o contrato de compra e venda, pela simulação identitária do adquirente. De toda sorte, voltando à seara penal, as condutas anteriores, como já referi, perfectibilizam, nalguma outra das modalidades, o delito de tráfico, salvo peculiaridades, que não prescindem das referências concretas. 166

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A jurisprudência mencionada ecoa doutrina: “Situação que tem sido considerada como exceção válida às hipóteses de flagrante preparado é aquela em que o agente provocador induz sujeito ativo à prática do crime visando a descobrir e autuá-lo por delito preexistente ou contemporâneo ao que foi induzido a cometer”.13 Logicamente, um flagrante preparado/provocado tem como causa um agente provocador, que atua geralmente sem prévia autorização judicial e induz alguém à prática criminosa (sendo que o sujeito induzido não tinha previamente tal propósito), campo de incidência da Súmula n. 145 do STF (“Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”), também pela violação ao direito fundamental de não se autoacusar e o da amplitude de defesa, para além da ineficácia absoluta dos meios para consumar o delito. Distinta, entretanto, a figura do agente encoberto. O policial, que se faz passar por usuário (ocultando sua real condição de agente da lei) e adquire entorpecente para produzir prova da materialidade e colher informações úteis ou imprescindíveis no consequente processo penal, não age de forma a induzir o tráfico de drogas (que preexiste nas modalidades referidas), evidenciando-se, no suporte fático, que a droga seria vendida para todo e qualquer usuário que, preenchendo as mesmas condições de tempo, lugar, hora e modo, solicitasse ou manifestasse interesse na transação. Essa a figura que a 1ª Câmara identificou na citada ACr. n. 70068262138. Nesse sentido: “Em síntese, para serem válidas em juízo, ‘as provas colhidas’ pelo undercover agent devem derivar de atos preparatórios iniciados espontaneamente pelo investigado, ou devem resultar de iter criminis por ele percorrido também espontaneamente (...).”.14 Pese entendimento de que haveria coincidência conceitual entre o agente encoberto e o agente infiltrado, penso melhor distingui-los. Certo que, nalgumas situações, o agente infiltrado (nos termos dos arts. 10 a 14 da Lei n. 12.850/2013) poderá, no desempenho das tarefas de investigação, ver-se forçado (para ganhar a confiança, nas primeiras aproximações) a adquirir drogas quando investiga organização criminosa atinente a tráfico de drogas (o art. 11 da referida lei prevê

13 – AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. 7ª ed. São Paulo: Editora Método, 2015, p. 864-5. 14 – LIMA, op. cit., p. 575. A rigor, o autor está citando Vladimir Aras (nota de rodapé 168), para quem: “há provocação quando a conduta do infiltrado ou do agente encoberto é decisiva para a consumação do crime. Não há provocação quando o dolo é latente e antecede o induzimento policial, não havendo ardil ou persuasão dos investigadores para viciar a vontade do suspeito ou fazer surgir a intenção criminosa”. 167

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a delimitação do “alcance das tarefas dos agentes”). Evidente, ainda, que o agente infiltrado, por definição, não revela sua real identidade (o que explica os direitos delineados no art. 14, incs. II a IV), o que implicaria “risco iminente” e sustação da operação (§ 3º do art. 12), bem como, no limite, pode envolver-se na eventual prática de crime, se inexigível conduta diversa (parágrafo único do art. 13 da Lei n. 12.850/13). Mas, o núcleo definitório há de inserir-se numa organização criminosa, parecendo ser um de seus integrantes,15 situação léguas distante de “parecer ser um usuário”, que é apenas o destinatário final (cliente) do tráfico de drogas. No caso que se vem examinando, portanto, não se reconheceu infiltração,16 mas atuação de agente encoberto para investigação, ao abrigo da “ação controlada” – prevista no art. 8º da Lei n. 12.850/13 para retardar flagrante que, do contrário, seria seu dever realizar incontinente (art. 302 do Código de Processo Penal), e, com isso, utilizar-se de meio de obtenção de provas mais amplas, subjetiva e objetivamente, no que tange ao escopo da organização.17 A figura do undercover agent é amplamente utilizada, há tempos, nos países da Common Law. Trata-se de comprar drogas e prender o vendedor (denominada buy-and-bust operation) – o que é aceito, todavia, com fundamental ressalva, isto é, desde que não se caracterize o entrapment.18 Há um leading case no Canadá, uma decisão

15 – Introduzir-se, ingressar no ambiente criminoso, desvendar sua estrutura, “com a única finalidade de colher informações sobre o seu efetivo funcionamento”. Difere da “penetração” [diria de outros atos investigativos pontuais], pois, na infiltração, “a permanência dos agentes é prolongada, mais duradoura e as informações, embora possam ser obtidas por meios mecânicos, eletrônicos ou informatizados, normalmente são colhidas pessoalmente, uma vez que o infiltrado passa a fazer parte da associação, atuando da mesma forma que todos os demais componentes”. (THUMS, Gilberto; PACHECO, Vilomar. Nova lei de drogas: crimes, investigação e processo. 3ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 162-3) 16 – Percebo, retrospectivamente, que já afirmara algo similar na Apelação Criminal n. 70052638772, julgada em 27 de fevereiro de 2013. 17 – Duvidoso, para dizer o mínimo, diante da tipicidade subjetiva (pois a aquisição não se orientava “para consumo pessoal”), que o agente encoberto precisasse da autorização judicial para imunizar-se da incidência do art. 28 da Lei n. 11.343/06. Não se tratou, assim, no caso em comento, de autorização para cometer crimes. 18 – A “armadilha”, lavrada por um agent provocateur, não é reconhecida, como alegação defensiva, pelas Cortes inglesas, quando a situação indica que o réu (que, ao vender drogas para um policial, é preso em flagrante) ainda tinha liberdade de escolha para conduzir seus atos – por outro lado, a presença do undercover agent pode mitigar a pena. Já o “agente provocador” define-se como a pessoa que ativamente seduz (atrai, alicia), encoraja ou persuade alguém a cometer um crime que, de outra forma, não teria ocorrido, com o propósito de assegurar a respectiva condenação (Oxford dictionary of Law, 4ª ed, edited by Elizabeth A. Martin, Oxford/New York: Oxford University Press, p. 164 e 19). 168

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da Suprema Corte (R. v. Mack)19 que fornece diretrizes para substanciar uma prática policial ilegal como entrapment (aplicando a doctrine of abuse of process). Não se trata, a rigor, de uma exceção substancial (a desfazer o injusto ou a culpabilidade), mas de preservar a regular administração da justiça e prevenir abusos. O abuso ocorre quando a polícia excede limites aceitáveis, como fornecer meios para oportunizar a ofensa a uma pessoa que não se comportava de maneira a fazer recair sobre si suspeita razoável de que já estivesse engajada em atividades criminais ou não fosse previamente objeto de regular investigação (a bona fide inquiry); ou, mesmo no curso de inquérito ou diante de suspeitas razoáveis, se a polícia ultrapassa a conduta de fornecer a oportunidade e induz o cometimento do crime. A barreira posta procura evitar/minorar o risco de que a polícia acabe atraindo para o ilícito pessoas que, de outra forma, não cometeriam crimes; e porque, no fim das contas, não é função estatal usar o poder de polícia para sair aleatoriamente pelas ruas testando a virtude das pessoas. Há uma série (não exaustiva) de dez fatores a considerar na apreciação dos casos concretos.20 A Suprema Corte do Canadá assentou que a alegação de entrapment é muito grave, pelo que significa em termos de desvio estatal, sendo certo que a efetiva persecução penal (e o desenvolvimento de correlatas técnicas investigativas) é dever do Estado na proteção da sociedade, mormente em crimes de tráfico de drogas.21 Daí que a exceção só deva reconhecer-se em casos claríssimos, nos quais a conduta policial tenha violado valores básicos da comunidade. Ainda que noutro viés e com variação terminológica, a doutrina portuguesa pode socorrer. Para reconhecer-se o flagrante provocado esgrimido pela 19 – (1988) 44 C.C.C (3d) 513 (S.C.C), cfe. https://scc-csc.lexum.com/scc-csc/scc-csc/en/item/391/index. do, acesso em 14-06-16: Criminal law – Defences – Entrapment – Trafficking conviction – Accused once an addict but had given up narcotics – Police informer persistently requesting accused to sell drugs over lengthy period of time – Informer threatening accused and offering large monetary inducement – Whether or not stay of proceedings should issue on basis of entrapment – Manner in which entrapment claim should be dealt with by the Courts. Trilho o caminho do “diálogo judicial internacional”, fenômeno derivado das tradições constitucionais compartilhadas pelos países democráticos, inspirado em RAMIRES, Maurício. Diálogo judicial internacional: a influência recíproca das jurisprudências constitucionais como fator de consolidação do Estado de direito e dos princípios democráticos. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Tese de doutoramento, 2013. 20 – A prévia autorização judicial, penso, acarreta presunção de que havia razoável suspeita pesando contra o réu. 21 – O paralelo com o quadro brasileiro parece bastante possível, inclusive pela especial reprovação constitucional ao tráfico de drogas (CF, art. 5º, inc. XLIII), sem falar dos tratados internacionais e compromissos assumidos pelo Brasil. 169

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defesa, no contexto de delitos de tráfico de drogas e diante da ação controlada autorizada judicialmente, seria inexorável a presença de um instigador [indutor] que dolosamente determinasse outra pessoa à prática de um crime. “Instigador não é, para estes efeitos, aquele que incentiva, aconselha, meramente sugere ou reforça o propósito de outrem de cometer um ilícito típico; tão-pouco aquele que simplesmente o induz àquele cometimento, ajudando-o a vencer as resistências, físicas, intelectuais ou morais, ou mesmo afastando os últimos obstáculos que o separam do crime; em suma, todo aquele que, com a sua conduta, influencia a motivação do executor na direcção da realização típica. Este não é autor, mas só, se disso for caso, participante sob uma forma alargada de cumplicidade. § 46 Instigador no sentido do artigo 26º é unicamente quem produz ou cria de forma cabal – podia talvez dizer-se, pedindo ajuda à língua francesa: quem fabrica ‘de toutes piéces’ – no executor a decisão de atentar contra um certo bem jurídico-penal através da comissão de um concreto ilícito típico; se necessário inculcando-lhe a idéia, revelando-lhe a sua possibilidade, as suas vantagens ou o seu interesse, ou aproveitando a sua plena disponibilidade e acompanhamento de perto e ao pormenor a tomada de decisão definitiva pelo executor.” Adiante, agora pela negativa: “Só quem já está determinado à realização de um facto concreto (o chamado omnimodo facturus) é insusceptível de ser instigado: tal constitui doutrina unânime”.22 Por tudo isso, na ACr n. 70068262138, a 1ª Câmara identificou a figura do agente encoberto, que ademais atuou em ação controlada e nos lindes de investigação razoável. Nem houve infiltração e tampouco flagrante provocado, de modo que as provas correlatas (testemunhal e audiovisual) foram consideradas lícitas.23 (4) Em conclusão, ciente do estágio provisório da reflexão e da necessidade de maior e mais completa sistematização: a atuação de agentes policiais encobertos, neste horizonte e no atual quadro normativo, não ultrapassado o linde da Súmula 22 – DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral, Tomo I, 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 799 e 800, respectivamente. 23 – Poderia até dizer, em paráfrase (o autor refere-se a infiltração policial), que, uma vez admitida a licitude do meio de investigação e, consequentemente, de prova, o depoimento do agente encoberto (reforçado em fidedignidade pela gravação ambiental das cenas que serão narradas em juízo) constitui “testemunho qualificado”, pelo ângulo de visão (é, mais ou menos, um insider): “Chamam-se testemunhas da coroa porque representam o poder estatal. Também o depoimento desse policial infiltrado é relativo. Não existe prova absoluta no processo penal.” (GOMES, Luiz Flávio. Lei de Drogas Comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 239) 170

Tráfico de drogas e meios ocultos de investigação: apontamentos iniciais

n. 145 – consideradas as peculiaridades da intervenção concreta, especialmente em delitos de tráfico/associação, nomeadamente operações de aquisição de drogas de sujeito sobre o qual recai anterior e razoável suspeita de inserção criminosa, e no curso de investigação de boa-fé – prescinde de autorização judicial, quando manifestada em fenômeno pontual, mas submete-se (ausente controle jurisdicional prévio) à estreita verificação a posteriori em termos de legitimidade e utilidade das informações e provas eventualmente obtidas. Em distinção, investigação de maior porte, estruturada em etapas, planejada com inteligência, a alongar-se temporalmente, há de beneficiar-se dos procedimentos investigatórios e meios de obtenção de prova legalmente previstos (infiltração, captação ambiental, ação controlada, etc.), com a devida autorização judicial (ressalvada, no direito positivo brasileiro, a “comunicação” já referida, nos termos do § 1º do art. 8º da Lei n. 12.850/13), inclusive para escoimar qualquer suspeita em relação à atuação dos agentes estatais e tornar incontroverso o ambiente de coleta de provas. Certo que enfrentar algumas manifestações da criminalidade contemporânea impõe a adoção, em maior ou menor medida, de métodos ocultos de investigação, do que se têm ocupado, em maior ou menor grau, as ciências criminais do mundo globalizado e hiperconectado. Inegável, à partida, que tais métodos “representam uma intromissão nos processos de ação, interação e comunicação das pessoas concretamente visadas, sem que estas tenham conhecimento do fato nem dele se apercebam. (...) levam as pessoas atingidas – normalmente o suspeito – a ‘ditar’ inconscientemente para o processo ‘confissões’ não esclarecidas nem livres”.24 Por outro lado, indisputável que os meios ocultos de investigação “vieram para ficar”; dada a força normativa dos fatos serem imprescindíveis, “sendo, como são, insubstituíveis na perseguição e repressão de uma nova fenomenologia criminal – criminalidade organizada, transnacional, transacional, consensual, victimless – acoitada em santuários imunes à devassa dos meios tradicionais e ‘abertos’ de investigação”. Certo que restringem/sacrificam direitos fundamentais substanciais e processuais, representam, em si, “um momento irredutível de danosidade”, levando à balança da ponderação “para efeitos de cumprimento do imperativo da proporcionalidade”.25

24 – ANDRADE, Manuel da Costa. “Bruscamente no Verão Passado”, a reforma do Código de Processo Penal – observações críticas sobre uma Lei que podia e devia ter sido diferente. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 105-6. 25 – Idem, p. 106-8. Sistematicamente, é preciso positivá-los, ressaltar sua subsidiariedade e preservar as 171

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Apenas para gizar a importância do tema, verifica-se que o Projeto de Lei n. 4.850/16, que tramita na Câmara dos Deputados a partir do movimento “10 medidas contra a corrupção”, prevê, nos seus arts. 49 e 50, a submissão de agentes públicos a testes de integridade, cujos resultados poderão ser usados para instrução criminal, com o objetivo de testar a conduta moral e a predisposição dos agentes públicos para cometer ilícitos contra a administração.26 Ainda que ancorados na defesa da moralidade pública, testes de integridade aleatórios, a priori, parecem desproprocionais, configurando tortuosos testes de virtude, na fronteira da indução. Trata-se, ao cabo, de encontrar, ao menos na ótica do Estado-Juiz, o equilíbrio entre a “carta branca” e a “camisa de força” que não devem, nas antípodas, demarcar a atuação dos órgãos de persecução penal (Polícia e Ministério Público), mormente no contexto desafiador e (um tanto) exasperado das “guerras” hodiernas (war on terrorism, war on drugs). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Manuel da Costa. “Bruscamente no Verão Passado”, a reforma do Código de Processo Penal – observações críticas sobre uma Lei que podia e devia ter sido diferente. Coimbra: Coimbra Editora, 2009. AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. 7ª ed. São Paulo: Editora Método, 2015. esferas de reserva e segredo nucleares (p. 110-2). Tudo a recomendar, no atual estágio da experiência jurídica, um paradigma com algumas traves mestras, tais como reserva de lei (p. 112-3), um catálogo de infrações, a verificação em concreto de suspeita fundada, consistente aferição da proporcionalidade, proibições de valoração da prova e, finalmente, uma reserva de juiz (tutela preventiva, ressalvadas as situações de “perigo na demora”, com controle posterior) – p. 114-7. Adverte Costa Andrade: “o juiz corre o risco de figurar aqui reduzido ao estatuto de longa manus do Ministério Público, assumindo a sua versão dos fatos e chancelando as suas pretensões. (...) [pois] os dados empíricos recolhidos deixam a descoberto o mimetismo sistemático dos juízes de instrução quanto ao pedido da acusação” (p. 118-9). 26 – Confiram-se os artigos: art. 49. A Administração Pública poderá, e os órgãos policiais deverão, submeter os agentes públicos a testes de integridade aleatórios ou dirigidos, cujos resultados poderão ser usados para fins disciplinares, bem como para a instrução de ações cíveis, inclusive a de improbidade administrativa, e criminais; art. 50. Os testes de integridade consistirão na simulação de situações sem o conhecimento do agente público, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer ilícitos contra a Administração Pública. Notícia do Valor Econômico, 05-08-16, A7, refere: “A proposta leva para o campo da administração pública dispositivo já usado para o combate ao tráfico de drogas, por exemplo, quando a polícia põe um agente infiltrado para frequentar uma boca de fumo”. 172

Tráfico de drogas e meios ocultos de investigação: apontamentos iniciais

DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral, Tomo I, 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. GOMES, Luiz Flávio. Lei de Drogas Comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 239. LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. Salvador: Editora JusPODIVM, 2016. NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. Oxford dictionary of Law, 4ª ed., edited by Elizabeth A. Martin, Oxford/New York: Oxford University Press. RAMIRES, Maurício. Diálogo judicial internacional: a influência recíproca das jurisprudências constitucionais como fator de consolidação do Estado de direito e dos princípios democráticos. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Tese de doutoramento, 2013. THUMS, Gilberto; PACHECO, Vilomar. Nova lei de drogas: crimes, investigação e processo. 3ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010.

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A POSSIBILIDADE DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE POR PARTE DO TRIBUNAL DE CONTAS: UM ESTUDO DA SÚMULA N. 347 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A POSIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL1 Caroline Müller Bitencourt2 Janriê Rodrigues Reck3

RESUMO O trabalho versa sobre as possibilidades de controle de constitucionalidade do Tribunal de Contas em relação à sua extensão e limites, e da postura do Tribunal de

1 – O presente artigo é fruto do projeto de pesquisa “Projeto Interinstitucional de redes de grupos de pesquisa sobre o tema Patologias Corruptivas nas relações entre Estado, Administração Pública e Sociedade: Causas, Consequências e Tratamentos – PARTE II: discutindo formas de enfrentamento do fenômeno”, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal, e também do projeto de pesquisa “Controle social e administrativo de políticas públicas”, coordenado pela Dra. Caroline Müller Bitencourt, sendo as pesquisas desenvolvidas junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas – CIEPPP e do Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado em Direito. 2 – Doutora em Direito. Professora do Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul. Advogada. Pesquisadora vinculada ao Centro de Estudos e Pesquisa em Políticas Públicas. E-mail: [email protected]. 3 – Doutor em Direito. Professor do Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul. Procurador Federal. Pesquisador vinculado ao Centro de Estudos e Pesquisa em Políticas Públicas. E-mail: [email protected].

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Justiça do Rio Grande do Sul frente à Súmula n. 347 do Supremo Tribunal Federal. O problema proposto é: quais as possibilidades de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas com fundamento na Súmula n. 347 e como a mesma tem sido aplicada na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul? Visando à resposta do problema, dividiu-se a investigação nos seguintes tópicos: primeiro, discute-se brevemente o controle de constitucionalidade no direito brasileiro com ênfase nas especificidades do controle difuso, haja vista parte da doutrina interpretar que caberia controle do Tribunal de Contas nesta modalidade; em segundo, busca-se discutir a natureza das decisões emanadas pelo Tribunal de Contas; em um terceiro momento, a interpretação atribuída à Súmula n. 347 pelo Supremo Tribunal Federal; e, por fim, analisa-se a postura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no bojo da matéria. O método de investigação é o hipotético-dedutivo. Conclui-se que o Tribunal de Justiça nas suas decisões apenas reforça a validade da Súmula n. 347 e a invoca para legitimar as decisões proferidas pelo Tribunal de Contas, contudo, não há uma reflexão crítica acerca de conteúdo e das possibilidades, inclusive, não resta cristalina se a postura do Tribunal é por reconhecer a competência do Tribunal de Contas para afastar a aplicação de norma que considere inconstitucional ou se para exercer o controle de constitucionalidade pela via incidental, contrariando inclusive, na última hipótese, interpretação recente do Supremo Tribunal Federal no MS n. 31.439. 1 INTRODUÇÃO O presente artigo perpassa por duas grandes discussões do direito constitucional e administrativo atualmente. Em primeiro, trata-se do controle de constitucionalidade das normas no direito brasileiro e da difícil arquitetura do controle em decorrência da adoção de diferentes modelos e mecanismos ao longo da história constitucional brasileira, e, em segundo, do papel do Tribunal de Contas, especialmente acerca da possibilidade e dos limites de ação no que se refere à função de controle de constitucionalidade. O tema objetiva a reflexão sobre a adequação da Súmula n. 347 aos dias atuais, abordando-se pontos divergentes a respeito do tema “controle de constitucionalidade e as condições em que o Tribunal de Contas exerce seu controle de constitucionalidade”. Para além do estudo doutrinário e jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, objetiva-se também compreender a postura adotada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em relação à aplicação da Súmula n. 347 do STF. 176

A possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas: um estudo da Súmula n. 347 do STF e a posição do Tribunal de Justiça do RS

Tal tema reflete a importância acadêmica, pois enseja uma série de discussões sobre a temática da competência, mas também possui um apelo social ante o fato de que serão os administrados que sofrerão os reflexos dessas decisões. O problema no qual se centrou a investigação é: quais as possibilidades de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas com fundamento na Súmula n. 347 e qual a postura adotada pelo Tribunal de Justiça do Rio grande do Sul referente a tal matéria? A hipótese é que o Tribunal de Justiça adota o entendimento majoritário do Supremo Tribunal Federal de que caberia controle de constitucionalidade pelo Tribunal de Contas, mas que não discute as minúcias da decisão ignorando as implicações de reconhecer tal possibilidade de controle. Dividiu-se a abordagem em quatro tópicos, visando a enfrentar o problema proposto: primeiramente, será discutido o modelo de constitucionalidade brasileiro para indagar qual o espaço do Tribunal de Contas como órgão também incumbido do controle; em seguida, discute-se a natureza do Tribunal de Contas e suas competências, dentre as quais a averiguação da constitucionalidade das normas, destacando-se o contexto da criação dessa competência em relação ao conteúdo da Constituição de 1988; para, ao final, analisar os precedentes da Súmula n. 347 do Supremo Tribunal Federal e seus fundamentos sob um viés crítico, apontando qual a diretriz que tem sido adotada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no que toca a essa matéria. O método será o hipotético-dedutivo, em que se busca levantar as diversas hipóteses de aplicação da Súmula n. 347 para após se chegar a uma conclusão e apreciação crítica de qual a leitura adequada do verbete: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público.” 2 ASPECTOS RELEVANTES SOBRE O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE PARA INTERPRETAÇÃO DA SÚMULA N. 347: UM OLHAR ACERCA DAS ESPECIFICIDADES DA VIA INCIDENTAL O enunciado da Súmula n. 347, em si, quando invocado pelos julgadores quando da sua aplicação, não supre a necessidade de fundamentar e cristalizar a sua incidência. Dizer que o enunciado sumular não foi revogado e, portanto, mantém plena vigência no ordenamento não esclarece os termos de sua aplicação, haja vista que mera redação do texto não resolve por si os possíveis limites e 177

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conflitos oriundos dessa autorização de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas. Ou seja: quais os limites da declaração de constitucionalidade pelo Tribunal de Contas? Como interpretar tal disposição sem afrontar a Constituição no que toca o papel de Guardião da Constituição ao Supremo Tribunal Federal? Como ler tais dispositivos à luz da máxima que cabe exclusivamente ao Poder Judiciário a aferição de constitucionalidade das normas no direito brasileiro? Seria esse um controle difuso ou concentrado? Enfim, essas são algumas indagações que se pretende responder. Para tanto, parte-se da revisão de algumas nuances do controle de constitucionalidade que possuem reflexos nas respostas das questões suscitadas. a verificação da adequação de um ato jurídico (particularmente da lei) à Constituição. Envolve a verificação tanto dos requisitos formais – subjetivos, como a competência do órgão que o editou – objetivos, como a forma, os prazos, o rito, observados em sua edição – quanto dos requisitos substanciais – respeito aos direitos e às garantias consagrados na Constituição – de constitucionalidade do ato jurídico (MENDES, G. F.; COELHO, I. M.; BRANCO, P. G. G., 2008). O reconhecimento da supremacia da Constituição e de sua força vinculante em relação aos Poderes Públicos torna inevitável a discussão sobre formas e modos de defesa da Constituição e sobre a necessidade de controle de constitucionalidade dos atos do Poder Público, especialmente das leis e atos normativos. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, para boa parte da doutrina pátria, é conhecido como misto, pois estaria inspirado tanto no controle concentrado/abstrato, modelo austríaco, bem como no sistema norte-americano, chamado também de concreto e incidental. Nesse aspecto seria misto, pois comportaria ações com competência originária ao Supremo Tribunal Federal para apreciar a constitucionalidade e a competência recursal em se tratando de controle difuso/incidental em que a constitucionalidade é arguida de forma secundária (SARLET, I. W.; MARINONI, L. G.; MITIDIERO, D., 2012). O presente trabalho vai tecer observações em relação ao controle difuso, pois pacífico tem sido o entendimento que, pós-Constituição de 1988, o controle abstrato pertence exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal por intermédio das ações originárias destinadas à preservação da constitucionalidade. Dúvidas têm pairado se o controle do Tribunal de Contas poderia ser compreendido como um controle concreto, incidental. 178

A possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas: um estudo da Súmula n. 347 do STF e a posição do Tribunal de Justiça do RS

O controle difuso é caracterizado por permitir que todo e qualquer juiz ou tribunal possa realizar no caso concreto a análise sobre a compatibilidade da norma infraconstitucional com a Constituição Federal. Nesse caso, o objeto principal da ação não é a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, sendo a mesma analisada incidentalmente ao julgamento de mérito. A declaração de inconstitucionalidade torna-se necessária para a solução do caso concreto em questão, ou seja, a apreciação de inconstitucionalidade tem o condão de decidir determinada relação jurídica, objeto principal da ação, daí sua nomenclatura de incidental. Na via de exceção, a pronúncia do Judiciário, sobre a inconstitucionalidade, não é feita enquanto manifestação sobre o objeto principal da lide, mas sim, sobre questão prévia, indispensável ao julgamento do mérito. Nesta via, o que é outorgado ao interessado é obter a declaração de inconstitucionalidade somente para efeito de isentá-lo, no caso concreto, do cumprimento da lei ou ato, produzidos em desacordo com a Lei maior. Entretanto, este ato ou lei permanecem válidos no que se refere à sua força obrigatória com relação a terceiros (MORAES, 2009, p. 709). Se, como fora dito, a inconstitucionalidade não é o aspecto principal, mas, sim, secundário da demanda, a alegação de (in)constitucionalidade da norma se daria de forma incidental ou prejudicial, pois a centralidade da demanda é o que ensejou o pedido no caso concreto (seja como inicial, como contestação, como recurso, etc.), sendo a discussão sobre a declaração de (in)constitucionalidade apenas um elemento para apreciação do caso concreto – fundamental para a decisão da lide. Ressalta-se que, em havendo declaração de inconstitucionalidade da norma a ser aplicada no caso concreto pela via difusa, a norma contestada não será excluída do sistema jurídico, surtindo seus efeitos apenas às partes envolvidas na lide em questão. Sendo assim, em “tese”, a decisão que afasta o ato inconstitucional não beneficia a quem não for parte da demanda em que se reconhecer a inconstitucionalidade. A repercussão dos seus efeitos será, assim como no controle concentrado ex tunc4, salvo a aplicação do art. 27 da Lei n. 9.868/99, conforme 4 – Porém, a Lei n. 9.868/99 contém disposição (art. 27) que autoriza o Supremo Tribunal Federal, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, a restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou a estabelecer que ela tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado, desde que tal deliberação seja tomada pela maioria de dois terços de seus membros. 179

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entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal (TAVARES, 2012). A jurisprudência e a doutrina brasileira vêm se desenvolvendo no sentido de buscar a base para um controle difuso abstratizado. Basicamente o fundamento desse fenômeno é a busca de que as decisões do plenário do STF venham a ter eficácia geral5, sob o argumento de aprimorar a concretização da Constituição e garantir que a efetivação de decisão judicial realize os valores de segurança jurídica e da razoável duração do processo declarados pela própria CF/88. O processo de abstratização do controle difuso evidencia uma mudança paradigmática, abrangente e efetiva no que tange à atuação jurisdicional e legislativa, corolário lógico do processo de uniformização e objetivação da ordem normativa constitucional. Basicamente a mudança propiciou uma verdadeira redefinição do papel do STF em sede de controle difuso de constitucionalidade, assumindo feição de estabilizador definitivo da ordem constitucional, na medida que seu entendimento se estenda para além das partes envolvidas no processo em comento (MORAIS, 2010). A mudança significativa que propiciou verdadeira aproximação em relação ao controle concentrado, como exemplo, um recurso extraordinário, ao ser apreciado pelo plenário da casa, este último irá emitir decisão sobre lei ou ato normativo em tese, desvinculado do próprio caso concreto, tal como faz nas hipóteses de controle abstrato, logo, a decisão transcende as partes. A doutrina tem se divido na crítica do tema, entre os que defendem que, ao abstrativizar o controle concreto/difuso, este perde sua principal característica, qual seja, a análise do caso concreto que, em sua essência, é único e teria peculiaridades que envolvem o caso concreto. Já os defensores do fenômeno tratam da necessidade da atuação objetiva do Supremo Tribunal Federal, construção que parece estar relacionada com a caracterização da natureza objetiva ao recurso extraordinário, para que o mesmo não fique adstrito à perseguição de direitos subjetivos, mas como um meio de constitucionalidade estipulado para a preservação objetiva da própria Constituição. Para tal corrente, seria a forma de se levar a decisão do Supremo a todas as instâncias judicializadas, por meio da forma recursal6. 5 – A EC n. 45/2004 acrescentou ao art. 102 da CF o § 3º, que possui a seguinte redação: “No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”. 6 – O papel recursal do Supremo Tribunal Federal: Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...) III - julgar, mediante recurso extraordinário, as 180

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A repercussão geral situou-se como um dos principais e mais difíceis dos requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário que tem por objetivo restringir o acesso ao STF, permitindo-o analisar os casos de flagrante cunho constitucional e que tenham a relevância econômica, jurídica e social com transcendência da matéria: Perceba-se, ainda, que a relevância da questão debatida tem de ser aquilatada do ponto de vista econômico, social, político, ou jurídico. Não se tire daí, como é evidente, a exigência que a controvérsia seja importante sob todos esses ângulos de análise: basta que reste caracterizada a relevância do problema debatido em uma dessas perspectivas. Impõe-se que a questão debatida, além de se caracterizar como de relevante importe econômico, social, político ou jurídico, ultrapasse o âmbito de interesse das partes. Vale dizer: tem de ser transcendente. Também aqui o legislador infraconstitucional alça mão de linguagem propositadamente vaga, consentindo ao STF a aferição de transcendência da questão debatida a partir do caso concreto. A transcendência da controvérsia constitucional levada ao conhecimento do STF pode ser caracterizada tanto em uma perspectiva qualitativa como quantitativa. Na primeira, sobreleva para individualização da transcendência o importe da questão debatida para a sistematização e desenvolvimento do direito; na segunda, o número de pessoas susceptíveis de alcance, atual ou futuro, pela decisão daquela questão pelo Supremo, e, bem assim, a natureza do direito posto em causa (notadamente, coletivo ou difuso). (SARLET, MARINONI e MITIDIERO, 2012) A questão constitucional levada a julgamento por meio do recurso extraordinário terá seu conhecimento subordinado à alegação de questões relevantes sob o ponto de vista econômico, social, político ou jurídico. Além disso, a questão deve ultrapassar o âmbito do interesse subjetivo das partes, ou seja, deve ser transcendente. Basicamente aqueles que se pronunciam favoravelmente à repercussão geral, o fazem com base nos seguintes argumentos: i) diminuição dos números

causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. 181

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de recurso extraordinário; ii) ampliar seus efeitos em nome da concretização constitucional; iii) reservar a atuação da Corte apenas para os casos que detenham relevância para a ordem constitucional. Já os críticos, concentram seus esforços no sentido de: i) não há critérios e nem controle do que é declarado como repercussão geral, permitindo uma discricionariedade à beira de uma arbitrariedade do Supremo; ii) descaracterização do controle difuso, o caso concreto perde sua importância; iii) propicia uma jurisprudência defensiva, no sentido de o STF decidir o que ele quer julgar. Na realidade fática, sendo admitida como juízo de admissibilidade recursal, não haverá recurso extraordinário sem a existência da repercussão geral. A rigor, é também dizer: toda manifestação do Supremo Tribunal Federal terá efeitos panprocessuais em sede de controle difuso. Logo, às questões de ordem concreta, fática, os efeitos interpartes acabaram restritos às instâncias inferiores e, nesses casos, havendo matéria de repercussão geral, os mesmos estarão obrigados a aderir à compreensão emanada do Supremo. 3 A NATUREZA JURÍDICA DO TRIBUNAL DE CONTAS E DE SUAS DECISÕES: OBSERVAÇÕES SOBRE O SEU PAPEL DE CONTROLE Discutir a natureza jurídica do Tribunal de Contas e de suas decisões é fundamental para saber a extensão dos efeitos de suas manifestações acerca da inconstitucionalidade e ilegalidade da norma, bem como do possível controle de constitucionalidade de suas próprias decisões. Assim, a redação da Súmula n. 347 deve ser lida à luz das implicações constitucionais de se reconhecer o Tribunal de Contas como órgão capaz de verificação de constitucionalidade, que se verá a seguir: [...] o Tribunal de Contas da União não é órgão do Congresso Nacional, não é órgão do Poder Legislativo. Quem assim me autoriza a falar é a Constituição Federal, com todas as letras do seu art. 44, litteris: “O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal” (negrito à parte). Logo, o Parlamento brasileiro não se compõe do Tribunal de Contas da União. Da sua estrutura orgânica ou formal deixa de fazer parte a Corte Federal de Contas e o mesmo é de se dizer para a dualidade Poder Legislativo/ Tribunal de Contas, no âmbito das demais pessoas estatais de base territorial e natureza federada (BRITTO, 2001). 182

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Da redação do caput do art. 71 da Constituição de 1988: “O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete (...)7” depreende-se a tentativa do Constituinte em determinar a natureza deste Tribunal. Talvez um critério interessante para a leitura de sua caracterização jurídica seja a função que o mesmo exerce, haja vista ter como missão constitucional o controle externo, motivo pelo qual, internamente, não integra nenhum dos Poderes tipicamente constituídos, Legislativo, Executivo e Judiciário. Ou seja, é pacífico o reconhecimento da independência em relação aos demais Poderes e, portanto, sem qualquer subordinação, apesar de ser financiado pelo Congresso Nacional conforme redação dada pelo art. 90 da Lei n. 8.493 (BANDEIRA DE MELLO, 2014). Interessante pensar, duas denominações: órgão e Tribunal. Enquanto órgão autônomo, como integrante da Administração Pública, cumpre uma função administrativa, possui capacidade de exarar atos administrativos em nome dessa função (GORDILLO, 1998). A primeira atribuição de sentido do termo de função pública no contexto do papel do Tribunal de Contas é determinar os termos de sua função, que, conforme dito constitucional, é uma técnica, mas uma decisão técnica sem atributos jurisdicionais, vez que o Tribunal de Contas não integra a estrutura do Poder Judiciário. Note-se que a tecnicidade da figura do Tribunal está relacionada à sua função do Legislativo, de fiscalização e julgamento em relação ao dever de prestar contas que cabe a todo aquele que arrecade, guarde, utilize, gerencie ou administre bens e valores públicos. Não sendo sua função de natureza jurisdicional e não sendo legislativa, haja vista sua incompetência como órgão típico de produção normativa, não resta outra conclusão senão dizer que estamos diante de um Tribunal que exerce função de

7 – II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público; III - apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório; IX - assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade; X - sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal. 183

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natureza administrativa: “a Corte de Contas não julga, não tem funções judicantes, não é órgão integrante do Poder Judiciário, pois todas as suas funções, sem exceção, são de natureza administrativa” (GORDILLO, 1998). Nos dizeres de Justin Filho: No entanto e mais do que qualquer outro caso, seria possível aludir, a propósito do Tribunal de Contas, a uma atuação quase jurisdicional. Se tal expressão puder merecer algum significado próprio, isso reside na forma processual dos atos e na estrutura autônoma e independente para produzir a instrução e o julgamento. A fórmula quase jurisdicional é interessante não para induzir o leitor a imaginar que a atuação do Tribunal de Contas é idêntica à do Poder Judiciário, mas para destacar como se diferencia do restante das atividades administrativas e legislativas. Nenhum outro órgão integrante do Poder Executivo e do Poder Legislativo recebeu da Constituição poderes de julgamento equivalentes, inclusive no tocante à relevância e eficácia, aos assegurados ao Tribunal de Contas (JUSTIN FILHO, 2013, p. 1206). Daí enseja a discussão acerca da outra terminologia anteriormente referida, a atribuição de Tribunal. Ao analisar os Tribunais, Canotilho em sua obra de direito constitucional alude à figura de existir órgãos constitucionais de soberania, atribuindo-lhes determinadas características, tais como: I – suas competências tendem a estar determinadas na Constituição; II – poder de auto-organização (via de regra por meio de regimentos internos; III – não possuem dever de hierarquia dito não serem subordinados a outros órgãos; IV – travam relações de interdependência no tocante a outros órgãos descritos pela e na Constituição; V – missão exaurida diretamente do texto constitucional, daí o termo mediata (CANOTILHO, 2003, p. 564). Dadas as referidas características dos dizeres de Canotilho, estamos diante de um órgão de Soberania, contudo no que toca ao controle de constitucionalidade, há de se retomar o quão soberana será a decisão emanada pelo Tribunal de Contas. Retomando então o raciocínio: como Tribunal que é, possui independência das suas funções que são diretamente extraídas de forma mediata pela Constituição, não se subordinando aos demais órgãos, haja vista gozarem de uma relação de interdependência com os demais órgãos igualmente constituídos; como órgão que é, cumpre funções, e tais funções indiscutivelmente são de natureza administrativa. Dito isso, passa-se à análise das possibilidades interpretativas decorrentes da Súmula n. 347 do Supremo Tribunal Federal.

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A possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas: um estudo da Súmula n. 347 do STF e a posição do Tribunal de Justiça do RS

4 A SÚMULA N. 347 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O DEVER DE ENFRENTAMENTO DAS DIVERSAS POSSIBILIDADES INTERPRETATIVAS Retomando-se o conteúdo da Súmula, tem-se a seguinte redação: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público”8. Também a competência é extraída de norma infraconstitucional na Lei Orgânica e no Regimento Interno do Tribunal de Contas da União, conforme art. 66 da Lei n. 8.443/92 – Lei Orgânica do TCU –, combinado com o art. 15, inc. I, alínea e, do regimento interno: “Art. 15. Compete privativamente ao Plenário, dirigido pelo Presidente do Tribunal: I – deliberar originariamente sobre: [...]. e) conflito de lei ou de ato normativo do poder público com a Constituição Federal, em matéria da competência do Tribunal.” Não apenas a compreensão sumular e do regimento afirmavam a competência do Tribunal de Contas na apreciação da constitucionalidade, mas também pacífica era então a jurisprudência do Tribunal de Contas ao reconhecer de sua competência para declaração de inconstitucionalidade9. Pois bem, tal conteúdo pode-se dizer que possui como processo paradigma no tocante à legitimidade do Tribunal de Contas o MS n. 25.288, de relatoria do Min. Gilmar Ferreira Mendes, em que houve manifestação do Tribunal de Contas que determinou à impetrante (no caso Petrobrás) a não aplicação do Decreto n. 2.745/98, que estabelece o procedimento licitatório simplificado por afrontar os procedimentos determinados pela Lei n. 8.666/93 das licitações:

8 – Vale ressaltar que a redação sumular tem por base a apreciação do Recurso de Mandado de Segurança n. 8.372 – CE de abril de 1962, sob relatoria do Ministro Pedro Chaves, ainda sob a égide da Constituição de 1946, que enunciava: Art. 77. Compete ao Tribunal de Contas: I – acompanhar e fiscalizar, diretamente, ou por delegações criadas em lei, a execução do orçamento; II – julgar as contas dos responsáveis por dinheiros e outros bens públicos, e a dos administradores das entidades autárquicas; III – julgar da legalidade dos contratos e das aposentadorias, reformas e pensões. § 1º. Os contratos, que, por qualquer modo, interessarem à receita ou à despesa só se reputarão perfeitos depois de registrados pelo Tribunal de Contas. A recusa do registro suspenderá a execução do contrato até que se pronuncie o Congresso Nacional. 9 – Vide: BRASIL. Tribunal de Contas da União. Pedido de Reexame. Representação. TC 016.126/2001-1. Acórdão 913/2005. Segunda Câmara. Órgão: Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região. Relator: Ministro Ubiratan Aguiar, Brasília, DF, 7 de junho de 2005. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 15 jun. 2005. 185

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“Assim, a declaração de inconstitucionalidade, pelo Tribunal de Contas da União, do art. 67 da Lei n° 9.478/97, e do Decreto n° 2.745/98, obrigando a Petrobrás, conseqüentemente, a cumprir as exigências da Lei n° 8.666/93, parece estar em confronto com normas constitucionais, mormente as que traduzem o princípio da legalidade, as que delimitam as competências do TCU (art. 71), assim como aquelas que conformam o regime de exploração da atividade econômica do petróleo (art. 177). Não me impressiona o teor da Súmula n° 347 desta Corte, (...). A referida regra sumular foi aprovada na Sessão Plenária de 13.12.1963, num contexto constitucional totalmente diferente do atual. Até o advento da Emenda Constitucional n° 16, de 1965, que introduziu em nosso sistema o controle abstrato de normas, admitia-se como legítima a recusa, por parte de órgãos não-jurisdicionais, à aplicação da lei considerada inconstitucional. No entanto, é preciso levar em conta que o texto constitucional de 1988 introduziu uma mudança radical no nosso sistema de controle de constitucionalidade. Em escritos doutrinários, tenho enfatizado que a ampla legitimação conferida ao controle abstrato, com a inevitável possibilidade de se submeter qualquer questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, operou uma mudança substancial no modelo de controle de constitucionalidade até então vigente no Brasil. Parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. A amplitude do direito de propositura faz com que até mesmo pleitos tipicamente individuais sejam submetidos ao Supremo Tribunal Federal mediante ação direta de inconstitucionalidade. Assim, o processo de controle abstrato de normas cumpre entre nós uma dupla função: atua tanto como instrumento de defesa da ordem objetiva, quanto como instrumento de defesa de posições subjetivas. Assim, a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, verificada desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula 347 em face da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 198810.” 10 – BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n. 25.888, Relator Gilmar Ferreira Mendes. Julgamento em 22-03-06, DJ de 29-03-06. Disponível em: . Acesso em: 22 de junho de 2016. 186

A possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas: um estudo da Súmula n. 347 do STF e a posição do Tribunal de Justiça do RS

Note-se que apesar de não revogada a Súmula n. 347, a mesma tem sido interpretada no sentido da impossibilidade de desconectá-la do contexto da Constituição de 1988, ante a atribuição ao Supremo Tribunal Federal do papel de Guardião da Constituição, especialmente com o estabelecimento do controle abstrato de constitucionalidade. Posições doutrinárias como a exemplo de Bullos11 compreendem a redação sumular como uma autorização para o exercício de constitucionalidade pela via difusa, ou seja, poderia o Tribunal de contas no caso concreto afastar a incidência da norma declarando sua inconstitucionalidade. Contudo, vale lembrar que, como discorrido no primeiro tópico desse trabalho, tratar de controle difuso implica uma série de enunciados decorrentes da espécie adotada, bem como suas implicações. A primeira que poderia ser referida toca a necessidade de observação do art. 97 da Constituição, quando a manifestação sobre a constitucionalidade não se der por juiz singular. Segundo a redação do dispositivo, a apreciação da inconstitucionalidade deverá se dar pela maioria absoluta dos membros do Tribunal ou do Órgão Especial. Sendo assim, estaria também o Tribunal de Contas obrigado nesse caso a respeitar a chamada cláusula de reserva de plenário ao emanar suas decisões (SODRÉ, 2006). Tal conteúdo constitucional também objeto de redação sumular, por meio da Súmula Vinculante n. 10, diz: “Viola a cláusula de reserva de plenário (Constituição Federal, art. 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de norma, afasta a sua incidência no todo ou em parte12”. Ou seja, afastar a incidência de norma que considera inconstitucional, apesar de não proferir a declaração de inconstitucionalidade, também seria uma conduta violadora do art. 97 da Constituição. A natureza dessa manifestação do Tribunal de Contas na linha de argumentação do MS 31.43913 do DF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio,

11 – Significa que os Tribunais de Contas, embora não detenham competência para declarar a inconstitucionalidade das leis ou dos atos normativos em abstrato, pois essa prerrogativa é do Supremo Tribunal Federal, podem, no caso concreto, reconhecer a desconformidade formal ou material de normas jurídicas, incompatíveis com a manifestação constituinte originária. Sendo assim, os Tribunais de Contas podem deixar de aplicar ato por considerá-lo inconstitucional, bem como sustar outros atos praticados com base em leis vulneradoras da Constituição (CF, art. 71, X). Reitere-se que essa faculdade é na via de exceção, no caso concreto, e não em abstrato, mediante controle concentrado de normas. 12 – BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante n. 10. Disponível em: . Acesso em: 19 de junho de 2016. 13 – BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n. 31.439. Relator Min. Marco 187

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que, ao reafirmar a posição de Mendes no caso paradigma, foi além ao não reconhecer que tal competência do Tribunal de Contas poderia ser qualificada como controle de constitucionalidade pela via incidental ao dizer: “O TCU, no exercício de suas atribuições constitucionais, pode determinar a não-aplicação de lei manifestamente inconstitucional, não consubstanciando tal determinação controle repressivo de constitucionalidade de lei, cuja competência é exclusiva do Poder Judiciário”14 (grifo nosso). Essa “não aplicação” não deixa de afastar a incidência da norma, ou seja, continua sendo uma forma de declarar a inconstitucionalidade por uma via obscura e mais silenciosa. Os argumentos no sentido de por ser um Tribunal auxiliar e não integrante da estrutura Jurisdicional, e por não declarar, mas apenas não aplicar, estaria o Tribunal de Contas dispensado na regra do art. 97. O art. 71 da Constituição prevê o exercício pelo Tribunal de Contas da verificação da legalidade de qualquer despesa, inclusive as decorrentes de contratos, etc.; e a legalidade das concessões iniciais de aposentadoria, reformas e pensões. Em face desses preceitos basilares, cabe à Corte de Contas o exame das exigências legais nos casos enunciados e em geral a ela submetidos, colocando o seu exame em confronto com a Constituição, não procedendo o argumento da privatividade da interpretação das leis pelo Poder Judiciário. Se os atos submetidos ao Tribunal de Contas

Aurélio. Disponível em: . Acesso em: 18 de junho de 2016: EMENTA “MANDADO DE SEGURANÇA. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. DETERMINAÇÃO DE NÃO APLICAÇÃO DE LEI INCONSTITUCIONAL: POSSIBILIDADE. PETROBRAS. REGIME LICITATÓRIO: LEI Nº 8.666/93 OU DECRETO Nº 2.745/98. REGIME SIMPLIFICADO DE LICITAÇÃO INSTITUÍDO POR DECRETO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA COM BASE EM PERMISSÃO LEGAL (LEI Nº 9.478/97, ART. 67). DELEGAÇÃO LEGISLATIVA DE MATÉRIA RESERVADA CONSTITUCIONALMENTE À LEI: IMPOSSIBILIDADE. Descabe a atuação precária e efêmera afastando do cenário jurídico o que assentado pelo Tribunal de Contas da União. A questão alusiva à possibilidade de este último deixar de observar, ante a óptica da inconstitucionalidade, certo ato normativo há de ser apreciada em definitivo pelo Colegiado, prevalecendo, até aqui, porque não revogado, o Verbete nº 347 da Súmula do Supremo. De início, a atuação do Tribunal de Contas se fez considerado o arcabouço normativo constitucional. 14 – BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n. 31.439. Relator Min. Marco Aurélio. Disponível em: . Acesso em: 18 de junho de 2016. 188

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não estão conforme a Constituição, logo, são atos contra a lei, portanto inconstitucionais. Ao Tribunal de Contas não compete a declaração de inconstitucionalidade de lei, nos termos do art. 97, que dá essa competência aos Tribunais enumerados no art. 92 […]. Caso o ato esteja fundado em lei divergente da Constituição, o Tribunal de Contas pode negar-se à aplicação, porque ‘há que distinguir entre declaração de inconstitucionalidade e não aplicação de leis inconstitucionais, pois esta é obrigação de qualquer tribunal ou órgão de qualquer dos poderes do Estado (ROSAS, 2006, p. 151-152). Posição essa não é novidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que na ADI-MC 221 reconhece a possibilidade de não cumprimento pela administração pública de leis que considere inconstitucionais: O controle de constitucionalidade da lei ou dos atos normativos é da competência exclusiva do Poder Judiciário. Os Poderes Executivo e Legislativo, por sua Chefia – e isso mesmo tem sido questionado com o alargamento da legitimação ativa na ação direta de inconstitucionalidade –, podem tão só determinar aos seus órgãos subordinados que deixem de aplicar administrativamente as leis ou atos com força de lei que considerem inconstitucionais.15 Questionaria se não seria uma decisão um pouco simplista considerando os efeitos das decisões prolatadas pelo Tribunal de Contas em relação ao agir da administração pública. Explica-se: a decisão prolatada pelo Tribunal sobre o afastamento da lei inconstitucional possui um efeito também peculiar face à natureza do Tribunal, ou seja, a decisão proferida não faz apenas um efeito “interpartes”, na medida que a natureza de seu órgão é justamente emanar decisões técnicas no intuito de orientar a gestão dos recursos públicos por meio da fiscalização de sua regularização orçamentária, contábil, etc. Parece óbvio que uma manifestação do Tribunal de Contas transcende a mera análise do caso concreto em que foi provocado, agindo como um aguilhão para a tomada de decisão de outros gestores públicos. Seria incoerente com a natureza e função do órgão pensar que sua 15 – BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade. Relator Min. Moreira Alvez. Disponível em: . Acesso em: 20 de junho de 2016. 189

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apreciação seria tão somente o caso concreto, a natureza da regularidade das leis orçamentárias, fiscais, e a conduta dos gestores no que toca as mesmas serão objeto de enfrentamento no Tribunal. Simplesmente ao dizer que é compatível com o Tribunal de Contas apenas o afastamento da lei que considere inconstitucional e não a declaração de constitucionalidade ainda que de forma incidental por não ser órgão jurisdicional, parece uma tentativa de retirar os efeitos e a importância que tais decisões possuem, especialmente dos efeitos gerados para o exercício do Poder Executivo no que toca a sua regularidade. Outro argumento a ser refletido é a própria discricionariedade da compreensão do Tribunal acerca das questões de constitucionalidade ou inconstitucionalidade. Quando se tratar de uma manifestação do STF via controle concentrado parece não haver muitas discussões teóricas, mas, em se tratando de manifestação via controle difuso por meio de recurso extraordinário que produz efeitos panprocessuais, qual seria o limite da discricionariedade interpretativa do Tribunal de Contas para decidir? Se os efeitos panprocessuais atingem os processos dos jurisdicionados e não sendo o Tribunal de Contas dessa natureza, indaga-se se poderia ele decidir pela não aplicação de uma lei que considerada constitucional pelo STF em apreciação/decisão via recurso extraordinário? Enfim, ao que parece, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não tem sido densa no enfrentamento das consequências dos proferimentos em sede de interpretação no conteúdo da Súmula n. 347, quiçá o próprio Tribunal de Contas. Dito isso, busca-se analisar se e como tais questões têm sido enfrentadas na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 5 A COMPREENSÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL ACERCA DO CONTEÚDO E APLICAÇÃO DA SÚMULA N. 347 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Na pesquisa de jurisprudência realizada no sítio do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, selecionaram-se inúmeras variantes das quais não se obteve resultado. A combinação “Súmula n. 347” “Tribunal de Contas” no sítio pesquisa de jurisprudência avançada e selecionando-se a opção “todas”, obteve como resultado apenas três jurisprudências que guardavam relação com o objeto da pesquisa.

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A primeira, trata-se da Apelação Cível n. 7005237557316 de relatoria de Agathe Schmidt da Silva de recurso de apelação interposto por Maria Fatima Rebello Felizzola, nos autos do processo de rito comum ordinário movido contra o Estado do Rio Grande do Sul e o PREVIMPA – Departamento Municipal de Previdência dos Servidores Públicos do Município de Porto Alegre, em face da sentença de improcedência da demanda, em que busca a declaração de nulidade do ato de retificação de sua aposentadoria. Dentre suas argumentações, o trabalho se detém apenas na invocação da incompetência do Tribunal de Contas para declarar a inconstitucionalidade de leis. Eis o único trecho em que a relatora enfrenta a questão da aplicação da Súmula n. 347: A autora foi aposentada por invalidez permanente a contar de 08.04.2008, com proventos proporcionais mensais, com base no art. 34, §§ 2º e 4º da Lei Municipal nº 478/2002. Porém, o Tribunal de Contas declarou inconstitucional o mencionado dispositivo da legislação municipal, deixando de registrar a aposentadoria da ora apelante, ocorrendo a conseqüente modificação do cálculo da proporcionalidade dos proventos da autora. Em relação à legitimidade do Tribunal de Contas para declarar a inconstitucionalidade de leis/ atos normativos no exercício de suas atribuições, não há falar em ilegalidade, diante da redação da Súmula nº. 347 do Supremo Tribunal Federal: O TRIBUNAL DE CONTAS, NO EXERCÍCIO DE SUAS ATRIBUIÇÕES, PODE APRECIAR A CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS E DOS ATOS DO PODER PÚBLICO17. (grifos no original) Note-se que o Tribunal apenas reiterou a existência da Súmula n. 347, como se a atual interpretação do STF fosse justamente no sentido de reforçar a

16 – EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. SERVIDOR PÚBLICO. LEGITIMIDADE DO TRIBUNAL DE CONTAS PARA DECLARAR A INCONSTITUCIONALIDADE DE LEIS/ ATOS NORMATIVOS NO EXERCÍCIO DE SUAS ATRIBUIÇÕES. SÚMULA Nº. 347 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CONCESSÃO INICIAL DE APOSENTADORIA. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA NO ÂMBITO DO TRIBUNAL DE CONTAS, DIANTE DA SÚMULA VINCULANTE Nº. 3 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 17 – BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação 70051980720. Data de julgamento 15-05-13 e data de publicação 23-05-13. Disponível: . Acesso em: 23 de junho de 2016. 191

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possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas, quando na verdade a posição atual é a de que compete a ele apenas deixar de aplicar norma considerada inconstitucional. A forma como o argumento é exposto, reforça a antiga compreensão que vem sendo criticada desde o MS n. 25.288 na fundamentação do Min. Gilmar Mendes. Não houve qualquer enfrentamento das possíveis consequências de reforçar tal compreensão, demonstrando apenas uma aplicação mecânica da Súmula sem a reflexão de seu conteúdo e da própria “instabilidade” que paira sobre ela ainda em sede de Supremo Tribunal Federal. Reprodução literal ocorreu na segunda decisão analisada, no julgamento da apelação. Trata-se de recurso da Apelação Cível n. 7005237557318 interposto por Vera Maria Peres dos Santos em face da sentença que julgou improcedentes os pedidos formulados contra o Município de Sapucaia do Sul e contra o Estado do Rio Grande do Sul, almejando a declaração de nulidade de processo administrativo do Tribunal de Contas que negou executoriedade à Lei Municipal n. 1.968/97, o que suprimiu gratificação incorporada a sua remuneração19. Reiterou a relatora nos moldes da decisão anterior: “em relação à legitimidade do Tribunal de Contas para declarar a inconstitucionalidade de leis/ atos normativos no exercício de suas atribuições, não há falar em ilegalidade, diante da redação da Súmula nº. 347 do Supremo Tribunal Federal”. Novamente, sem nenhum enfrentamento acerca da configuração de controle de constitucionalidade e suas consequências. Não foi diferente no julgamento do Agravo de Instrumento n. 7005910859720 de relatório do Desembargador Antonio Vinicius Amaro da Silveira, constando a seguinte ementa, novamente discorrendo sobre a declaração de inconstitucionalidade de lei pelo Tribunal de Contas:

18 – BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação n. 70052375573. Data de julgamento 18-12-13 e data de publicação 30-01-14. Disponível em: . Acesso em: 23 de junho 2016. 19 – APELAÇÃO CÍVEL. SERVIDOR PÚBLICO. LEGITIMIDADE DO TRIBUNAL DE CONTAS PARA DECLARAR A INCONSTITUCIONALIDADE DE LEIS/ ATOS NORMATIVOS NO EXERCÍCIO DE SUAS ATRIBUIÇÕES. SÚMULA Nº. 347 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. SUPRESSÃO DE VANTAGEM. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA NO ÂMBITO DO TRIBUNAL DE CONTAS, PORQUANTO ESTE ALCANÇA SOMENTE OS ENTES JURISDICIONADOS E NÃO OS SERVIDORES A ESTES VINCULADOS. NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO DE APELAÇÃO. UNÂNIME. 20 – BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Agravo de Instrumento n. 70059108597. 192

A possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas: um estudo da Súmula n. 347 do STF e a posição do Tribunal de Justiça do RS

“INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI. TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO. No exercício de suas atribuições pode o Tribunal de Contas do Estado apreciar a constitucionalidade de lei ou ato do Poder Público, nos termos da Súmula 347 do Supremo Tribunal Federal”. Nas alegações do agravante, argumentou que está prestes a ser exonerado por decisão ilegal do Tribunal de Contas do Estado, que declarou a inconstitucionalidade da Lei Municipal de criação de quotas para afrodescendentes. Pediu em favor do reconhecimento da incompetência do Tribunal de Contas para declaração de inconstitucionalidade de lei. No enfrentamento da questão suscitada o relator apenas aduziu que: “(...) não constato a ilegalidade manifesta na decisão proferida pelo Tribunal de Contas na esteira do disposto na Súmula 347 do STF, que autoriza o Tribunal a aferir a constitucionalidade de leis e atos do Poder Público”21. Da forma como foi enfrentada a questão no TJRS, sequer pode-se afirmar que está seguindo a linha de orientação do STF, ou seja, além de não enfrentar a problemática sobre o conteúdo, na compreensão da Súmula n. 347, não restou claro se a postura do Tribunal é por reconhecer a competência do Tribunal de Contas para afastar a aplicação de norma que considere inconstitucional ou se para exercer o controle de constitucionalidade pela via incidental. Diante da literalidade das manifestações, inclina-se a pensar que reconhece a legitimidade do Tribunal de Contas para o exercício de controle de constitucionalidade de forma incidental. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em relação ao problema proposto, é possível afirmar que a hipótese se confirmou em certa medida. O Supremo Tribunal Federal não revogou o verbete da Súmula n. 347 que reconhece a competência para declaração de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas. Contudo, as manifestações em decisões via Mandado de Segurança têm ressaltado a impossibilidade de um

21 – BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante n. 347. O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público, Brasília, DF. Disponível em: . 193

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Tribunal não jurisdicional declarar a inconstitucionalidade de lei, isso porque é incompetente para o exercício do controle repressivo de constitucionalidade. Tais compreensões estão também relacionadas à natureza do órgão, concluindo-se que sua função é de natureza administrativa no auxílio técnico do Poder Legislativo, na função fiscalizadora e julgadora das Contas do Executivo. Para exercer tal função é que haveria o reconhecimento da possibilidade da declaração de constitucionalidade. Demonstrou que tal redação que autorizava o agir do Tribunal, bem como o contexto da redação sumular, é anterior à Constituição de 1988 e, portanto, deve ser relida à luz da nova ordem jurídica. Não pairam dúvidas quanto à impossibilidade de essa declaração ser compreendida sob a ótica do controle abstrato, pois haveria uma usurpação de competência originária do Supremo Tribunal Federal. Parte da doutrina e dos julgados tratam de uma possível declaração de constitucionalidade pela via incidental, o que não restou pacífico. Isso, pois há também a compreensão de que a natureza não jurisdicional do órgão impede falar em controle de constitucionalidade e sim em não aplicação de lei inconstitucional. Advertese no texto que, independentemente da postura adotada, reconhecer a força das manifestações prolatadas pelo Tribunal de Contas, quando afasta a incidência de uma norma ou quando declara sua inconstitucionalidade, é fundamental para se discutir outras questões decorrentes, tais como a necessidade ou não de se observar a cláusula de reserva de plenário, a transcendência da decisão para casos concretos, a vinculação do Tribunal de Contas caso já exista a manifestação sobre a alegação de inconstitucionalidade em comento em sede de recurso extraordinário. No que se refere à postura do Tribunal de Justiça, os escassos julgados que puderam ser analisados demonstram uma falta de clareza sobre a compreensão do conteúdo e extensão da Súmula n. 347, limitando-se a reproduzir seu texto e reafirmar a sua vigência, sem maiores enfrentamentos teóricos e práticos. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 2015. _______. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2016. 194

A possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas: um estudo da Súmula n. 347 do STF e a posição do Tribunal de Justiça do RS

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CONDIÇÕES E POSSIBILIDADES DE CUMULAÇÃO DAS SANÇÕES PARLAMENTARES EM FACE DAS ESTABELECIDAS PELA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E O SEU TRATAMENTO NA JURISPRUDÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO1 Eduarda Simonetti Pase2

RESUMO Com este trabalho objetiva-se identificar se ocorre cumulação de sanções quando se tratar de punir agentes que pratiquem atos que violem mais de uma ordem jurídica, especialmente atos que configurem improbidade administrativa por parte de parlamentares e também autorizem o processamento do fato pela Casa Legislativa respectiva, culminando, assim, com a perda do mandato do parlamentar e, consequentemente, a suspensão dos direitos políticos. Para isso, num primeiro momento, faz-se uma breve exposição acerca das sanções que podem ser aplicadas 1 – O presente artigo é fruto dos debates realizados no bojo do “Projeto Interinstitucional de redes de grupos de pesquisa sobre o tema Patologias Corruptivas nas relações entre Estado, Administração Pública e Sociedade: Causas, Consequências e Tratamentos – Parte II: discutindo formas de enfrentamento do fenômeno”, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal, sendo as pesquisas desenvolvidas junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas – CIEPPP. 2 – Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul/Rio Grande do Sul, com bolsa PROSUP/CAPES, modalidade Taxa, na linha de pesquisa sobre Constitucionalismo Contemporâneo. Graduada em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Advogada. E-mail: [email protected].

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pelo Poder Legislativo aos seus membros, identificando os atos que configuram quebra de decoro parlamentar, desde a Constituição Federal até os atos em espécie elencados em cada Código de Ética e Decoro Parlamentar (Câmara dos Deputados Federais, Senado Federal e Assembleia Legislativa gaúcha). Da mesma forma são expostas as sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa, momento em que é feita uma breve exposição sobre as naturezas jurídicas das sanções previstas na lei e que também podem ser aplicadas pelas Casas Legislativas para ao final abordar e identificar a (não) cumulação das sanções. Assim, parte-se da hipótese de que o sancionamento de um parlamentar que tenha infringido tanto a ordem jurídica protegida pela Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.492/92) como a ordem disciplinar da honra do Poder Legislativo não configura bis in idem, no caso da suspensão dos direitos políticos, que na LIA pode ou não ser aplicada e na quebra de decoro é decorrência da perda (cassação) do mandato. 1 INTRODUÇÃO A pesquisa que se pretende desenvolver no presente trabalho buscará analisar as consequências dos fatos que importam em improbidade administrativa, comparando-as e diferenciando-as das sanções aplicáveis pelo Poder Legislativo a seus membros, em processos que visem a investigar a quebra de decoro parlamentar. O estudo justifica-se para que a sanção não se configure, nunca, em bis in idem, mas apenas no correto sancionamento de ilícitos administrativos, da forma preconizada pelo legislador. A crise de representação parlamentar tem se tornado comum no atual cenário político mundial e parece ter se instalado sistematicamente no Brasil. Entretanto, a preocupação com o tema se justifica, na medida em que o estudo dos processos de julgamento de quebra de decoro revela, além de uma forma essencial de proteção da Instituição Poder Legislativo, desigualdades no tratamento dos casos e vulnerabilidade dos mandatos a interesses políticos. Ao se falar em suspensão dos direitos políticos, o cuidado na aplicação de tal sanção deve sempre estar amparado por uma das hipóteses constitucionalmente autorizadas. Quando se fala em suspensão de direitos políticos de um membro do Poder Legislativo, o cuidado deve ser ainda mais alto, tendo em vista que significa a ruptura da vontade popular e deve ocorrer em caráter de excepcionalidade, proibindo-se a sua utilização como espécie de instrumento de constrangimento.

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Assim, para buscar responder à proposta inicial, qual seja, identificar se ocorre cumulação de sanções quando se tratar de punir agentes que pratiquem atos que violem mais de uma ordem jurídica, especialmente atos que configurem improbidade administrativa por parte de parlamentares e também autorizem o processamento do fato pela Casa Legislativa respectiva por quebra de decoro, culminando, assim, com a perda do mandato do parlamentar e, consequentemente, a suspensão dos direitos políticos. Parte-se da hipótese (que poderá ser refutada ou, no caso, confirmada) de que a aplicação da sanção de perda do mandato em julgamento por quebra de decoro parlamentar não configura bis in idem para com a sanção de perda da função pública e suspensão dos direitos políticos aplicada em sede de ação de improbidade administrativa, tendo, em ambos os casos, o mesmo fato gerador. Isso porque as esferas de responsabilização são distintas e uma possui caráter disciplinar e a outra caráter civil-administrativo, em que pese a sanção de perda da função e suspensão dos direitos políticos tenha caráter eminentemente político. Para isso, num primeiro momento, faz-se uma breve exposição acerca das sanções que podem ser aplicadas pelo Poder Legislativo aos seus membros, identificando os atos que configuram quebra de decoro parlamentar desde a Constituição Federal até os atos em espécie elencados em cada Código de Ética e Decoro Parlamentar (Câmara dos Deputados Federais, Senado Federal e Assembleia Legislativa gaúcha). Da mesma forma são expostas as sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa, momento em que é feita uma breve exposição sobre as naturezas jurídicas das sanções previstas na lei e que também podem ser aplicadas pelas Casas Legislativas para ao final abordar e identificar a (não) cumulação das sanções. 2 AS SANÇÕES PARLAMENTARES E AS SANÇÕES DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: BREVE EXPOSIÇÃO Em várias legislaturas vê-se os membros do Poder Legislativo questionando o seu mandato por possível prática de atos que violem o decoro parlamentar, fazendo surgir diversas questões jurídicas em torno do tema. Tais questões ganham importância porque os parlamentares, quando vencidos na esfera política, geralmente tentam a manutenção do seu mandato por meio da intervenção do Poder Judiciário, trazendo a lume razões jurídicas para contrapor o julgamento, tido como político, realizado por seus pares parlamentares.

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Entretanto, também é importante depositar atenção quando a sanção imposta pelo próprio parlamento também puder ser processada na esfera judicial, para tratar, por exemplo, das consequências de uma imposição de sanção em seara parlamentar (no exercício do seu poder disciplinar) e a imposição de sanção pelo mesmo fato na esfera judicial. Em se tratando, especificamente, de sanções aplicadas a agentes nos casos de improbidade administrativa que também configurem atos a serem analisados pelas Casas Legislativas, primeiramente é necessário analisar quais das sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa também podem ser aplicadas em sede de Poder Legislativo aos seus pares. Assim, primeiramente precisa-se estabelecer os tipos e espécies de sanções aplicáveis pelo Poder Legislativo aos seus membros, para depois catalogar as sanções aplicáveis no caso de condenações por atos de improbidade administrativa que também possam ser tratados e sancionados pelo próprio Poder Legislativo, quando tais atos forem praticados por membro seu. Uma vez feita essa identificação, será necessário estabelecer também a natureza jurídica dessas sanções para que ao final seja possível construir um panorama sobre a possibilidade ou não de cumulação de sanções parlamentares em face das estabelecidas pela Lei de Improbidade Administrativa, sendo o que se passa a construir nos tópicos a seguir. 2.1 ESPÉCIES DE SANÇÕES APLICADAS AOS PARLAMENTARES EM SUAS CASAS LEGISLATIVAS Aqui serão catalogadas as sanções aplicáveis a parlamentares por suas respectivas Casas Legislativas, a partir do que estabelece a Constituição Federal de 1988. Especialmente serão analisadas as sanções e as condutas previstas nos Regimentos Internos das Casas do Congresso Nacional e, de formal supletiva, a disposição da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, visto que todos possuem como parâmetro as disposições constitucionais. Antes de entrar ao tema propriamente dito, é válido retomar alguns aspectos que permeiam a noção de decoro parlamentar. Ainda que o conceito possa parecer fluido ou indeterminado, a Constituição Federal oferece um indicativo em que seja possível pautar o ato de interpretação. Veja-se quando a Constituição trata das imunidades de Deputados ou Senadores no art. 53, § 8º, ela refere que as imunidades são prerrogativas exercidas e titularizadas pelos parlamentares enquanto tais. Contudo, quando trata do decoro, a própria Constituição expressa-se com decoro

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parlamentar, em seu art. 55, inc. II, e não com decoro do parlamentar. Esse esforço é feito para sinalizar que o real titular do comportamento decoroso que se espera de um titular de mandato eletivo no Poder Legislativo, isto é, o destinatário dessa norma constitucional, não é o parlamentar em si, o Deputado, Senador, Vereador, mas sim a própria Instituição do Parlamento, isto é, o Poder Legislativo propriamente dito. Ou seja, “é ele, Parlamento, Congresso Nacional, quem tem o direito a que se preserve, através do comportamento digno de seus membros, sua imagem, sua reputação e sua dignidade. Saímos do exercício do mandato parlamentar (objeto de proteção pelas imunidades) e chegamos à honra objetiva do Parlamento, que deve ser protegida de comportamentos reprováveis por parte de seus membros” (PINHEIRO, 2006). Daí porque se dizer que o bem jurídico tutelado pela norma do art. 55, II, da Constituição Federal é a confiabilidade, a honorabilidade, do Poder Legislativo. Ainda nesse aspecto, Pinheiro (2006) esclarece que é exatamente por isso, também, que só ele, Parlamento, no exercício de típico poder censório, tem competência para decidir qual conduta considera ofensiva à sua honra objetiva e qual conduta reputa admissível, tolerável. Este juízo, portanto, em cada caso concreto, daquilo que seja ou não incompatível com o decoro parlamentar, é exclusivo de cada Casa do Poder Legislativo, sem nenhuma interferência de qualquer outro poder, incluindo-se, aí, o Poder Judiciário. Porque não cabe ao Poder Judiciário interferir no Parlamento a ponto de substituir-lhe no julgamento e na preservação de sua própria imagem, ditando-lhe determinado padrão moral. (Grifos no original)3 Não se busca defender a não intervenção ou controle do Poder Judiciário sobre determinados atos que são inerentes ao procedimento de apuração de quebra de decoro pelas Casas Legislativas. Mas, sim, reforçar que o Poder Judiciário só está autorizado a controlar esse procedimento nos seus aspectos legais e formais, como será demonstrado adiante. Isso, pois, quanto ao mérito das questões, isso é, no que tange à específica definição do que seja o decoro parlamentar, a Constituição limita-se a exemplificar duas hipóteses (abuso das prerrogativas e percepção de vantagens indevidas – § 1º do art. 55 da CF), reservando ao Regimento Interno das 3 – Outro não é o entendimento do Supremo Tribunal Federal que, desde sua primeira manifestação sobre o tema (RMS n. 4.241, Rel. Min. Luiz Gallotti) até sua recente jurisprudência (RE n. 113.314; MS n. 21.443; MS n. 23.529), não tem admitido revisão judicial de julgamento político atinente à cassação de mandato parlamentar por quebra de decoro. 201

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Casas Legislativas a definição de outras situações em que se verificará este desvio de procedimento (PINHEIRO, 2006). Esse aspecto será relevante para o trabalho, tendo em vista que duas das formas previstas como quebra de decoro já na própria CF são as que configuram também improbidade administrativa. Assim, a Constituição Federal estabelece, em seu art. 55, § 1º, que são três (duas já definidas no texto constitucional e uma aberta para definição pelo próprio Poder Legislativo) as hipóteses constitucionais de quebra de decoro parlamentar, I – os casos previstos no regimento (a mais ampla de todas e onde o Constituinte deu margem de atuação ao próprio Poder Legislativo); II – o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados Federais e Senado Federal), Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores e III – percepção de vantagens indevidas (onde ocorrerá com maior frequência a possibilidade de o ato configurar afronta ao decoro parlamentar e também configurar ato de improbidade administrativa). No caso do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, essa regra vem disposta no seu art. 4º, incs. I e II. O Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados Federais trata as sanções previstas e aplicáveis aos Deputados Federais como sanções disciplinares. Isto é, para o Código de Ética e Decoro Parlamentar a natureza jurídica das sanções é disciplinar. Isso se extrai do parágrafo único do art. 1º da Resolução n. 25/2001 (que institui o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara), exemplificadamente dos arts. 1º, parágrafo único, 2º e 10, § 1º, todos do Código de Ética da Câmara dos Deputados Federais. O Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados Federais prevê, em seu art. 10, quatro espécies de sanção disciplinar, a saber: I – censura, verbal ou escrita; II – suspensão de prerrogativas regimentais por até 6 (seis) meses; III – suspensão do exercício do mandato por até 6 (seis) meses; IV – perda de mandato. A Constituição Federal de 1988, contudo, em seu art. 55 prevê somente a perda do mandato, deixando aberta a regulamentação do artigo, a qual foi feita pelo Código de Ética e Decoro Parlamentar, no caso da Câmara dos Deputados Federais, o qual ampliou o rol de atos passíveis de ferirem o decoro parlamentar, pois a própria Constituição Federal atribuiu essa prerrogativa às Casas Legislativas, tendo em vista que esse aspecto de sanções serve para preservar a imagem e honra do próprio Poder Legislativo enquanto instituição pública, sendo portanto (no entender do Constituinte Originário) a melhor figura a definir o que fere a instituição ou não, já que tais instrumentos são institutos destinados à garantia do exercício do mandato popular e à defesa do Poder Legislativo. As previsões desses regimentos devem estar amparadas pelas bases fixadas na Constituição, e o que

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exorbitar a margem de atuação fica, sem dúvida, submetida à apreciação do Poder Judiciário para o controle de constitucionalidade concentrado. Assim, no que tange à Câmara dos Deputados, as hipóteses de ofensa ao decoro parlamentar são assim punidas: Câmara dos Deputados Federais Censura verbal

Art. 11. A censura verbal será aplicada pelo Presidente da Câmara dos Deputados, em sessão, ou de Comissão, durante suas reuniões, ao Deputado que incidir nas condutas descritas nos incs. I e II do art. 5º. Art. 5º. Atentam, ainda, contra o decoro parlamentar as seguintes condutas, puníveis na forma deste código: I – perturbar a ordem das sessões da Câmara dos Deputados ou das reuniões de Comissão; II – praticar atos que infrinjam as regras de boa conduta nas dependências da Casa;

Censura escrita

Art. 12. A censura escrita será aplicada pela Mesa, por provocação do ofendido, nos casos de incidência nas condutas previstas no inc. III do art. 5º ou, por solicitação do Presidente da Câmara dos Deputados ou de Comissão, nos casos de reincidência nas condutas referidas no art. 11. Art. 5º, III – praticar ofensas físicas ou morais nas dependências da Câmara dos Deputados ou desacatar, por atos ou palavras, outro parlamentar, a Mesa ou Comissão ou os respectivos Presidentes;

Suspensão das prerrogativas regimentais por até 6 meses

Art. 13. O projeto de resolução oferecido pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar que proponha a suspensão de prerrogativas regimentais, aplicável ao Deputado que incidir nas condutas previstas nos incs. VI a VIII do art. 5º deste Código, será apreciado pelo Plenário da Câmara dos Deputados, em votação ostensiva e por maioria absoluta de seus membros, observado o seguinte: Art. 5º, VI – revelar informações e documentos oficiais de caráter sigiloso, de que tenha tido conhecimento na forma regimental;

Suspensão das prerrogativas regimentais por até 6 meses

VII – usar verbas de gabinete ou qualquer outra inerente ao exercício do cargo em desacordo com os princípios fixados no caput do art. 37 da Constituição Federal; VIII – relatar matéria submetida à apreciação da Câmara dos Deputados, de interesse específico de pessoa física ou jurídica que tenha contribuído para o financiamento de sua campanha eleitoral;

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Suspensão do exercício do mandato por até 6 meses

Art. 14, § 1º – Será punido com a suspensão do exercício do mandato e de todas as suas prerrogativas regimentais o Deputado que incidir nas condutas previstas nos incs. IV, V, IX e X do art. 5º. IV – usar os poderes e prerrogativas do cargo para constranger ou aliciar servidor, colega ou qualquer pessoa sobre a qual exerça ascendência hierárquica, com o fim de obter qualquer espécie de favorecimento; V – revelar conteúdo de debates ou deliberações que a Câmara dos Deputados ou Comissão hajam resolvido que devam ficar secretos; IX – fraudar, por qualquer meio ou forma, o registro de presença às sessões ou às reuniões de Comissão; X – deixar de observar intencionalmente os deveres fundamentais do Deputado, previstos no art. 3º deste código.

Perda do mandato

Art. 14, § 3º – Será punido com a perda do mandato o Deputado que incidir nas condutas previstas no art. 4º. Art. 4º. Constituem procedimentos incompatíveis com o decoro parlamentar, puníveis com a perda do mandato: I – abusar das prerrogativas constitucionais asseguradas aos membros do Congresso Nacional (Constituição Federal, art. 55, § 1º); II – perceber, a qualquer título, em proveito próprio ou de outrem, no exercício da atividade parlamentar, vantagens indevidas (Constituição Federal, art. 55, § 1º); III – celebrar acordo que tenha por objeto a posse do suplente, condicionando-a à contraprestação financeira ou à prática de atos contrários aos deveres éticos ou regimentais dos Deputados; IV – fraudar, por qualquer meio ou forma, o regular andamento dos trabalhos legislativos para alterar o resultado de deliberação; V – omitir intencionalmente informação relevante ou, nas mesmas condições, prestar informação falsa nas declarações de que trata o art. 18; VI – praticar irregularidades graves no desempenho do mandato ou de encargos decorrentes, que afetem a dignidade da representação popular.

No que se refere ao Senado Federal, as sanções aplicáveis pelo próprio Senado aos parlamentares Senadores, quando da quebra de decoro parlamentar, que é quando tanto a Constituição como o Regimento Interno das Casas, por meio 204

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dos seus Códigos de Ética e Decoro Parlamentar permitem que o Poder Legislativo sancione os seus membros. Assim, no Senado, as sanções previstas são, conforme o art. 7º do seu Código de Ética e Decoro Parlamentar, I – advertência; II – censura (verbal ou escrita); III – perda temporária do exercício do mandato e IV – perda do mandato. Essas sanções também possuem caráter disciplinar, como estabelecido na Câmara dos Deputados. Dessa forma, no Senado, os atos que violam o decoro parlamentar têm definidas as sanções na seguinte disposição: Senado Federal Advertência

Art. 8º. A advertência é medida disciplinar de competência dos Presidentes do Senado, do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar ou de Comissão.

Censura

Art. 9º. A censura será verbal ou escrita. § 1° – A censura verbal será aplicada pelos Presidentes do Senado, do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar ou de Comissão, no âmbito desta, quando não couber penalidade mais grave, ao Senador que: I – deixar de observar, salvo motivo justificado, os deveres inerentes ao mandato ou os preceitos do Regimento Interno; II – praticar atos que infrinjam as regras da boa conduta nas dependências da Casa; III – perturbar a ordem das sessões ou das reuniões. § 2° – A censura escrita será imposta pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar e homologada pela Mesa, se outra cominação mais grave não couber, ao Senador que: I – usar, em discurso ou proposição, de expressões atentatórias ao decoro parlamentar; II – praticar ofensas físicas ou morais a qualquer pessoa, no edifício do Senado, ou desacatar, por atos ou palavras, outro parlamentar, a Mesa ou Comissão, ou os respectivos Presidentes.

Perda temporária do exercício do mandato

Art. 10. Considera-se incurso na sanção de perda temporária do exercício do mandato, quando não for aplicável penalidade mais grave, o Senador que: I – reincidir nas hipóteses do artigo antecedente; II – praticar transgressão grave ou reiterada aos preceitos do Regimento Interno ou deste Código, especialmente quanto à observância do disposto no art. 6º;

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Perda temporária do exercício do mandato

III – revelar conteúdo de debates ou deliberações que o Senado ou Comissão haja resolvido devam ficar secretos; IV – revelar informações e documentos oficiais de caráter reservado, de que tenha tido conhecimento na forma regimental; V – faltar, sem motivo justificado, a dez sessões ordinárias consecutivas ou a quarenta e cinco intercaladas, dentro da sessão legislativa ordinária ou extraordinária.

Perda do mandato

Art. 11. Serão punidas com a perda do mandato: I – a infração de qualquer das proibições constitucionais referidas no art. 3º (Constituição Federal, art. 55); II – a prática de qualquer dos atos contrários à ética e ao decoro parlamentar capitulados nos arts. 4º e 5º (Constituição Federal, art. 55); III – a infração do disposto nos incisos III, IV, V e VI do art. 55 da Constituição*.

*Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador: III - que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada; IV - que perder ou tiver suspensos os direitos políticos; V - quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição; VI - que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.

Em comparativo com o que estabelece o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, nesse acontece a suspensão do exercício do mandato por até 6 meses, enquanto no Senado é a perda temporária sem prazo máximo fixado. Também, outra diferença é que no Senado não há previsão da suspensão das prerrogativas do mandato, enquanto que na Câmara dos Deputados há. Ainda em termos comparativos, no Senado Federal existe a possibilidade de aplicação de advertência como sanção, enquanto que na Câmara dos Deputados Federais a sanção mais branda é representada pela censura (verbal ou escrita). No que se refere às sanções aplicadas pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul aos Deputados Estaduais que ferirem o decoro parlamentar, o Regimento Interno da Assembleia prevê, em seu art. 41, como sanções a serem aplicadas: I – censura (verbal ou escrita); II – suspensão do exercício do mandato; ou III – perda do mandato. Nestes termos, no âmbito do Poder Legislativo gaúcho, a perda do mandato poderá ser aplicada ao Deputado Estadual I – que infringir qualquer das proibições do art. 33 do Código de Ética Parlamentar; II – que reincidir, por 03 (três) vezes na mesma legislatura, em conduta ofensiva à imagem da Assembleia Legislativa, na forma do art. 34; III – que tiver declarado 206

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o excesso de faltas, na forma do art. 42; IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos; V – quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos na Constituição Federal; VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado. Observe-se que nos casos das hipóteses I, II e VI, a perda do mandato será decidida pelo Plenário da Assembleia Legislativa, por voto aberto e maioria absoluta, mediante provocação da Mesa ou de partido político com representação na Casa, em processo disciplinar instruído pela Comissão de Ética Parlamentar. E, nos casos previstos nas hipóteses III, IV e V, a perda será declarada pela Mesa da Assembleia Legislativa. Não obstante, o Código de Ética Parlamentar gaúcho mantém a ordem constitucional do art. 56 da Constituição Federal. Um aspecto importante que também pode ser pensado, antes de se debater os aspectos centrais do decoro e posteriormente da improbidade em si, é se seria possível submeter um parlamentar a procedimento de quebra de decoro sobre atos praticados quando este não estiver exercendo a função de parlamentar, nos casos previstos no art. 56, incs. I e II4, da Constituição Federal, por exemplo. Não obstante, ainda sobre esse cenário surge outro questionamento, se esse parlamentar que está afastado das funções de parlamentar e que exerce função de pessoa que está submetido a incidência de crimes de responsabilidade, a partir da posição do Supremo Tribunal Federal sobre o caso, poderá este parlamentar afastado de suas funções (de parlamentar) ser processado por improbidade estando sujeito ao processamento por crime de responsabilidade? Ainda, altera-se o cenário sobre o aspecto do decoro parlamentar? Para responder a tais questionamentos, parte-se das hipóteses em que parlamentar seja investido em cargos de Ministro de Estado ou Secretário de Estado. Ademais, a resposta passa pelos incisos do art. 56 da Constituição Federal, que, com o auxílio de Pinheiro (2006), extrai-se que a licença por motivos pessoais (por prazo limitado) ou por motivos de saúde, além da investidura nos cargos de Ministro de Estado, Secretário 4 – Art. 56. Não perderá o mandato o Deputado ou Senador: I - investido no cargo de Ministro de Estado, Governador de Território, Secretário de Estado, do Distrito Federal, de Território, de Prefeitura de Capital ou chefe de missão diplomática temporária; II - licenciado pela respectiva Casa por motivo de doença, ou para tratar, sem remuneração, de interesse particular, desde que, neste caso, o afastamento não ultrapasse cento e vinte dias por sessão legislativa.

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de Estado ou chefe de missão diplomática, entre outros,  não gera a perda do mandato parlamentar. É dizer: muito embora o congressista esteja investido no cargo de Ministro, não exercendo, portanto, suas funções congressuais, ele, deputado/senador, continua titular de seu mandato. Ou seja, há a titularidade do mandato, muito embora não haja o efetivo exercício. Com esse cenário, tem-se que é possível a cassação do mandato, por quebra de decoro parlamentar, de congressista que esteja afastado do exercício das funções de representante eleito, ou seja, os atos praticados por parlamentares no exercício do cargo de Ministro ou Secretário de Estado, podem dar ensejo a perda do mandato por quebra de decoro, tendo em vista ainda titularizar o mandato de representante e, que diante da potencial possibilidade de este parlamentar reassumir a sua vaga no Poder Legislativo, este possui a prerrogativa de processar membro seu, buscando proteger a honra objetiva do próprio Poder Legislativo, que é o que move a ideia de decoro parlamentar. Até porque as situações do art. 56 da Constituição Federal preveem um afastamento eminentemente temporário do exercício das funções parlamentares, que pode cessar a qualquer tempo, inclusive por um ato de vontade do próprio titular do cargo. Ou seja, abre-se o processo para que seja aniquilado o direito do parlamentar de retornar à instituição. Porque seu retorno, que não pode ser impedido por nenhum outro parlamentar, pode trazer para a Casa efeitos maléficos em sua honra. É como se a Casa agisse preventivamente (se o congressista ainda estiver licenciado ou investido nos cargos elencados no inc. I do art. 56 da Carta Política) ou repressivamente, caso o parlamentar já tenha reassumido suas funções parlamentares (PINHEIRO, 2006). Exemplificando: imagine-se que um parlamentar esteja licenciado por motivos pessoais (hipótese do art. 56, II, da CRFB/88) e que, durante essa licença, cometa um crime de estupro, por exemplo. Nesta conjectura, possui todo o interesse a Casa Legislativa, na qual possui mandato este parlamentar, que este perca definitivamente o seu mandato, tendo também por consequência a perda do direito de, a qualquer momento, retornar para a Casa em que era titular de mandato. Isso, pois, esse retorno, pode comprometer de modo significativo a respeitabilidade da Instituição. Outro exemplo que ilustra este cenário e que se enquadra melhor na proposta aqui trabalhada é o caso de determinado parlamentar ser investido nas funções de Ministro de Estado ou Secretário de Estado e ser acusado de praticar atos que configurem improbidade administrativa. Esse congressista pode ter tolhido o seu 208

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direito de reassumir o exercício do mandato a qualquer momento que, no dizer de Pinheiro (2006), pode-se sugerir uma cassação preventiva desse direito, a ser motivada pelo fundado receio de que o indivíduo retorne à sua Casa Legislativa trazendo consigo toda pecha de imoralidade decorrente do exercício de outra função pública: a de Ministro ou Secretário de Estado, ou qualquer das outras elencadas no art. 56, inc. I, da Constituição Federal. Ainda neste exemplo, a saída não poderia ser diferente, tendo em vista que, caso o parlamentar já tenha retornado ao exercício do seu mandato com seus pares, pode esse Deputado/Senador/Vereador sofrer processo por quebra de decoro parlamentar como qualquer outro colega seu, desde que, obviamente, a prática desses atos comprometa a honorabilidade do Poder Legislativo. É por isso que existe o decoro parlamentar, isto é, para proteger a honra objetiva do Poder Legislativo. Esse fato levanta outro aspecto que é a inexigibilidade de que a prática do ato indecoroso seja contemporânea ou concomitante com o exercício ou a titularidade do mandato parlamentar. Sobre o aspecto da concomitância do exercício do mandato para com a prática do ato indecoroso, é preciso reforçar a alegação de que parlamentares investidos em outros cargos não poderiam ser cassados por quebra de decoro, tendo em vista que o princípio da separação dos poderes proíbe o exercício simultâneo de funções em mais de um poder (PINHEIRO, 2006). A dúvida surgiria nos casos do art. 56, inc. I, da CRFB/88, que é quando o afastamento do exercício do mandato eletivo se dá em razão do exercício de função em outro cargo, cargos estes pertencentes ao Poder Executivo. Nesse caso há o exercício efetivo de funções em um Poder, por pessoa que é titular (embora não exerça) de mandato parlamentar. Nesses casos a figura do titular se destaca da figura daquele que exerce a função de parlamentar. O parlamentar continua sendo titular do mandato, mas afastado do exercício. Nesse sentido tem-se uma importante decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal: O membro do Congresso Nacional que se licencia do mandato para investir-se no cargo de ministro de Estado não perde os laços que o unem, organicamente, ao Parlamento (CF, art. 56, I). (...). (...) ainda que licenciado, cumpre-lhe guardar estrita observância às vedações e incompatibilidades inerentes ao estatuto constitucional do congressista, assim como às exigências ético-jurídicas que a Constituição (CF, art. 55, § 1º) e os regimentos internos das casas legislativas estabelecem como elementos caracterizadores do decoro parlamentar.” (MS 25.579-MC, 209

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rel. p/ o ac. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 19-10-05, Plenário, DJ de 24-08-07). Ou seja, para o primeiro questionamento a resposta deve ser positiva, isto é, pode um parlamentar sofrer processo por quebra de decoro parlamentar e, eventualmente, ter declarada a perda do seu mandato, quando praticar atos indecorosos nas hipóteses do art. 56, incs. I e II, da Constituição Federal. O que este dispositivo constitucional veda é a perda do mandato do Deputado ou Senador que se afastar do exercício das funções de parlamentar para assumir o exercício das funções ali elencadas. Mas, as ações que este parlamentar praticar enquanto titular da função de Ministro de Estado, por exemplo, pode ter reflexos diretos na manutenção da titularidade do seu mandato enquanto parlamentar. Quanto ao segundo questionamento, sobre a possibilidade de este parlamentar ser processado por improbidade administrativa ou por crime de responsabilidade, a discussão é bastante densa e, nesse caso, essa proposta se restringirá a realizar uma breve reflexão, indicando a existência da discussão sem pretender esgotá-la. O que importa para este estudo é saber se, independentemente de o parlamentar estar submetido ao regime de responsabilização dos crimes de responsabilidade (por exercer função que tenha esta prerrogativa fixada constitucionalmente, como é o caso de Ministro de Estado, por exemplo) ou se submetido ao regime de responsabilização da Lei de Improbidade Administrativa. O que importa saber é se a possível alteração do regime de responsabilização influencia na possibilidade de processamento do parlamentar por quebra de decoro. Ou seja, independentemente de o parlamentar ser juridicamente responsabilizado pelo regime de responsabilização dos crimes de responsabilidade ou da Lei de Improbidade Administrativa, este parlamentar, que, eventualmente, praticar um ato desonroso quando afastado do exercício da função parlamentar, poderá ser processado por quebra de decoro e perder o seu mandato, por meio de julgamento pela própria Casa Legislativa de que for membro. Assim, visto quais são as condutas que podem gerar a instauração de processo para apuração de quebra de decoro parlamentar, a partir da Constituição Federal e dos institutos jurídicos internos às Casas do Congresso Nacional, bem como da Assembleia Legislativa gaúcha, busca-se explorar as espécies de sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa para que, ao final, seja possível identificar, portanto, quais sanções da Lei de Improbidade se identificam com a consequência mais grave do processamento de um parlamentar por quebra de decoro, que é a 210

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perda do mandato, para, então, mais uma vez identificar a existência de um duplo grau sancionatório. 2.2 ESPÉCIES DE SANÇÕES IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

PREVISTAS

DA

LEI

DE

Apresentadas as hipóteses que, uma vez realizadas, podem configurar a instauração de processo por quebra de decoro parlamentar contra membro do Poder Legislativo, passa-se a verificar as condutas configuradoras de improbidade administrativa que poderão também gerar a instauração de processo por quebra de decoro nos casos praticados por parlamentares. Outrossim, passa-se a verificar as sanções previstas pela Lei de Improbidade Administrativa para identificar se existem sanções comuns entre as aplicadas nos casos de processamento do parlamentar pela sua Casa Legislativa e se também punido judicialmente por prática de improbidade administrativa. Assim, ao final, será possível confirmar ou não a hipótese levantada, isto é, de que não há cumulatividade de sanções nesses casos, ou seja, não se configura bis in idem, tendo em vista que, se o fato violar mais de uma ordem jurídica, ensejará a aplicação das sanções previstas para cada ordem, sem que isso acarrete, necessariamente, um bis in idem. Tal afirmação é possível de se sustentar no momento em que se considera a sanção de perda do mandato e suspensão dos direitos políticos aplicada em processo que investigue quebra de decoro parlamentar, uma sanção disciplinar. Nesse sentido, Borin e Lemes (2013) auxiliam o entendimento sustentando que “essas sanções [as aplicadas em sede de improbidade administrativa] têm natureza, em regra, administrativa; mas diferentemente das demais sanções administrativas, apenas pode ser imposta por meio da via jurisdicional. E elas, em princípio, não excluem as demais esferas jurídicas de sanções, administrativas ou não”. A Lei de Improbidade Administrativa ressaltou a necessidade de honestidade no trato público, criando novas sanções de natureza administrativa e, materializando a intenção constitucional do art. 37, § 4º, da Constituição Federal, previu também sanções políticas e novos instrumentos para a recomposição civil dos prejuízos causados à Administração e a anulação de atos de enriquecimento ilícito, ou seja, estando alheia a sanções disciplinares (BORIN; LEMES, 2013). Assim, observando a disposição sistemática da Lei de Improbidade, tem-se que ela contempla três espécies de atos de improbidade, quais sejam: i) aqueles que 211

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importam o enriquecimento ilícito (art. 9º); ii) os que causam prejuízo ao Erário (art. 10) e iii) aqueles que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11). Essas “espécies” de improbidade podem ocorrer isoladamente ou até mesmo combinando-se, por exemplo, um sujeito pode, com um mesmo ato, incorrer em enriquecimento ilícito (art. 9º) e causar prejuízo ao Erário (art. 10). Observa-se que a última espécie de improbidade, a do art. 115, violação aos princípios da Administração Pública, é a única espécie que pode ser considerada isoladamente, pois, uma vez praticada qualquer uma das outras duas espécies, através de uma correta interpretação do sistema de sanções da LIA, esse a considera absorvida dentro das demais. Decorrente dessa divisão dos atos que impliquem, notadamente, em improbidade administrativa, a LIA cuidou de separar também em três grupos as sanções aplicáveis às espécies de improbidade, sem estabelecer previamente a qual ilícito aplicar-se-iam. Será o art. 12 da Lei de Improbidade que irá estabelecer as sanções aplicáveis a cada espécie de ato ilícito, tendo estabelecido, para os atos que impliquem em enriquecimento ilítico (art. 9º), a sujeição do sujeito i) à perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ii) ao ressarcimento integral do dano, iii) perda da função pública, iv) suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos, v) pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e vi) a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos (art. 12, inc. I). Não obstante, para os atos que impliquem em prejuízo ao Erário (art. 10), a LIA estabeleceu que o agente está sujeito i) ao ressarcimento do dano, ii) à perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, iii) à perda da função pública, iv) suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, v) pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e vi) a proibição de contratar com 5 – A título de complementação informativa, interessante olhar a análise feita nos artigos “Quais as modalidades mais incidentes de condenação pela Lei de Improbidade Administrativa: enriquecimento ilícito, dano ao Erário ou inobservância dos Princípios da Administração Pública? Possíveis conclusões”, de autoria de Cynthia Juruena e Denise Friedrich, e “Os princípios que fundamentam as condenações por improbidade administrativa pelo artigo 11/LIA: uma análise a partir da jurisprudência do TJRS”, dos autores Karine Santos e Ricardo Hermany. Ambos disponíveis na obra: LEAL, R. G. BITENCOURT, C. M. Temas polêmicos da jurisdição do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: dos crimes aos ilícitos de natureza pública incondicionada. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2015. 212

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o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos (art. 12, inc. II). Por fim, para os atos que violem os princípios da Administração Pública (art. 11), as sanções poderão ser i) o ressarcimento integral do dano, ii) se houver a perda da função pública, iii) a suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, iv) pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e v) a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos (art. 12, inc. III). Acerca das sanções da LIA, imprescindível, para o trabalho, abordar as questões sobre a sua natureza jurídica. Descarta-se de antemão a possibilidade de natureza penal, a partir da própria interpretação do dispositivo constitucional que autoriza a proteção da probidade administrativa. Isso, pois, prescreve o art. 37, § 4º, da Constituição que os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao Erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. A parte final do dispositivo reflete que as sanções ali previstas não possuem caráter penal. Ademais, caso um ato de improbidade também configurar em um ilícito penal, as suas consequências serão apuradas em processo penal próprio, distinto, portanto, da apuração de improbidade da Lei n. 8.429/92 (BORIN; LEMES, 2013). Ainda sobre a natureza jurídica da LIA, não é possível confundi-la com as sanções funcionais, por exemplo, tendo em vista que estas possuem natureza estritamente administrativa, uma decorrência do princípio da hierarquia que rege o serviço público, as quais, no mais das vezes, consistem em advertência, suspensão e demissão. Ou seja, “as faltas funcionais, além de violar os estatutos, podem configurar-se, concomitantemente, em atos de improbidade administrativa, quando haverá a necessidade da apuração dos fatos (e aplicação das sanções cabíveis) tanto na esfera administrativo-funcional” (BORIN; LEMES, 2013, p. 18) – por meio do processo administrativo disciplinar ou da sindicância ou, no caso deste estudo, do processo por quebra de decoro parlamentar – quanto na esfera da Lei de Improbidade (por meio de ação judicial). Assim, “caso o ato realmente configure-se falta funcional e ato de improbidade administrativa, dever-se-á aplicar tanto as sanções previstas na Lei n° 8.112/90 (na esfera federal, repita-se) quanto àquelas previstas na Lei n° 8.429/92” (BORIN; LEMES, 2013, p.18). 213

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Nesse sentido, Maria Silvia Zanella di Pietro (2009) conclui que as sanções têm natureza eminentemente civil e explica que a Lei n. 8.429/92 ampliou o espectro sancionatório para além do previsto na Constituição (a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao Erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível), para então inserir, também como sanções (art. 12): a) a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio; b) a multa civil e c) a proibição de contratar com o Poder Público ou receber incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário. Contudo, há algumas leituras sobre as sanções da LIA que ultrapassam o seu caráter puramente civil, destacando-se o seu caráter político, como no caso da suspensão dos direitos políticos, principal sanção que interessa a este estudo. Por exemplo, em Borin e Lemes (2013, p. 19), quando afirmam que a perda ou a suspensão dos direitos políticos é uma consequência grave, a que o ordenamento constitucional apenas prevê em situações peculiaríssimas (cancelamento da naturalização – artigos 15, I, e 12, § 4.º, I; perda da nacionalidade brasileira em razão de aquisição voluntária de outra nacionalidade – art. 12, § 4.º, II; recusa de cumprimento de obrigação legal a todos imposta ou de satisfação de prestação alternativa – artigos 15, IV, e 5.º, VIII; incapacidade civil absoluta – art. 15, II; condenação criminal transitada em julgado – art. 15, III; e condenação irrecorrível em ação de improbidade administrativa (artigos 15, V, e 37, § 4.º). Entretanto, não se pode falar que a sanção de suspensão dos direitos políticos em sede de condenação por improbidade administrativa tem caráter político. O seu caráter é jurídico, que terá reflexos, inevitavelmente, na esfera da vida política do sujeito. Os seus reflexos são políticos, mas, na sua aplicação, os critérios devem ser jurídicos. Se fosse admitido o contrário, estar-se-ia admitindo e legitimando a politização do Poder Judiciário. Não há que se olvidar que essa sanção é aplicada em sede de processo judicial. Já é possível perceber que as sanções aplicáveis no caso de quebra de decoro parlamentar avaliado pela Casa Legislativa de determinado parlamentar nem previsão exata possui na Lei de Improbidade. Os Códigos de Ética e Decoro

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Parlamentar preveem a perda do mandato (cassação), que tem como decorrência a suspensão dos direitos políticos. O que permanece em discussão é se a suspensão dos direitos políticos aplicáveis em sede de improbidade administrativa configurariam, portanto, um bis in idem para com a suspensão decorrente da perda do mandato por quebra de decoro parlamentar. A elementaridade de tal discussão tem como pano de fundo o fato de os direitos políticos consistirem em um conjunto de regras constitucionais e infraconstitucionais que regulam e autorizam o pleno exercício da soberania popular, sobretudo em regimes democráticos representativos, por intermédio do sufrágio universal, expressado principalmente por meio do voto secreto, direto e igual para todos, tendo em vista que, em se tratando do ordenamento jurídico brasileiro, conferem ao sujeito os atributos da cidadania plena. Não obstante, “a suspensão dos direitos políticos, decorrente de ato de improbidade administrativa, é autônoma, e imposta no juízo cível na sentença que julgar procedente a ação civil de improbidade administrativa. A imposição decorre do juízo cível e é executada pela Justiça Eleitoral, depois da ciência do trânsito em julgado da decisão” (BORIN; LEMES, 2013, p. 19). Assim, as condutas tipificadas como configuradoras de improbidade administrativa pela Lei n. 8.429/92, em regra, abrirão a possibilidade de sanção por parte da Casa Legislativa da qual o parlamentar é titular. Como compete ao Poder Legislativo, na maior parte dos casos, decidir o que irá ser conduta apta a quebrar o decoro e a submeter o parlamentar à determinada sanção, pode haver casos em que haja o processamento do sujeito por improbidade administrativa, mas que, na esfera disciplinar, entenda-se o contrário (ainda que raro). A sanção de perda do mandato por quebra de decoro é disciplinar, mas o entorno do cenário em que ela será aplicada é político. 3 A SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS DECORRENTE DE PERDA DE MANDATO EM SEDE DE SANÇÃO PARLAMENTAR EM FACE DA SUSPENSÃO ESTABELECIDA PELA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: A PROBLEMÁTICA SOB A ÓTICA DA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA A discussão em torno do sancionamento de membros do Poder Legislativo que tenham seus direitos políticos suspensos, seja por condenação direta em ação de improbidade administrativa, seja por consequência decorrente da perda de

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mandato em sede de processo por quebra de decoro parlamentar, tem como pano de fundo a necessidade inerente à ideia de democracia representativa, na qual a responsabilização dos detentores do poder visa a alcançar uma maior qualidade na atuação das instituições democráticas, por exemplo e especialmente, a instituição do Poder Legislativo. A necessidade de investigação e responsabilização com as sanções previstas no ordenamento jurídico fazem-se ainda mais necessárias quando o cenário de uma nação política é marcado pela descrença do cidadão ao corpo de sujeitos que o representam no cenário político. Assim, “a responsabilidade, portanto, é um mecanismo inerente ao sistema representativo, que procede do pensamento político liberal presente nas revoluções burguesas, através do qual o povo elege integrantes do seu meio para representá-lo, sendo que tais representantes estariam aptos a efetuar uma apreciação mais prudente da vontade popular, melhor protegendo os interesses da coletividade” (SANSON; JUNQUEIRA, 2013, p. 114). Conforme as lições de Giorgio Berti (1994, p. 68), Anche in queste più moderne prospettive, sembra che il senso dela rappresentanza o della rapprentatività, a differenza della democrazia identitaria, si racchiuda nella controllabilità e prima ancora nella trasparenza di um rapporto basato sostanzialmente sulla responsabilità; che cioè la rappresentanza, al di là degli aspetti formali relativi all’investitura elettiva dei rappresentanti (parlamenti, governi, etc.), non sia politicamente troppo diversa dalla democrazia diretta, ma pur si differenzi da questa sotto um profilo que direi senz´altro giuridico. Quando il diritto è sapientemente manipolato, può persino fare dei miracoli! Assim, a necessidade de responsabilização decorre da antevisão constitucional de algumas hipóteses nas quais certos princípios constitucionais colocam-se em situação de antagonismo. Esse é o caso de a moralidade e a probidade entrarem em colisão com o direito à representação, por exemplo. Isto é, “a continuidade mesma no exercício de determinado mandato parlamentar, pelos desvios eventualmente registrados, pode configurar fator de corrosão da essência de valores fundamentais, afetando a própria ideia de Constituição” (PINHEIRO, 2016), sendo avesso, portanto, à noção de democracia e de um mandato que prime pela realização dos direitos fundamentais. Com essas questões no entorno, a Lei de Improbidade, no seu âmbito de responsabilidade e bem jurídico que pretende proteger, busca a responsabilização quando do atingimento desse bem protegido. Já em outro ramo de proteção, os Códigos de Ética e Decoro Parlamentar das Casas Legislativas previram, a partir da

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autorização constitucional, a possibilidade de responsabilização dos parlamentares quando da ofensa da honra objetiva do Poder Legislativo. Resta então entender a suspensão de direitos políticos decorrentes de perda de mandato por parlamentar que incorra na quebra de decoro. Nesse ponto, ajuda o texto na Lei Complementar n. 64/90, na sua alteração pela Lei Complementar n. 81/94. Esta última altera a redação da alínea “b” do inc. I do art. 1º da Lei Complementar n. 64, de 18 de maio de 1990, para elevar de três para oito anos o prazo de inelegibilidade para os parlamentares que perderem o mandato por falta de decoro parlamentar. Assim, tem-se que são inelegíveis os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa e das Câmaras Municipais que hajam perdido os respectivos mandatos por infringência do disposto nos incs. I e II do art. 55 da Constituição Federal (que trata do decoro parlamentar) dos dispositivos equivalentes sobre perda de mandato das Constituições Estaduais e Leis Orgânicas dos Municípios e do Distrito Federal, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos oito anos subsequentes ao término da legislatura. No que se refere à sanção de suspensão dos direitos políticos decorrente de condenação direta em ação de improbidade administrativa, devem preencher dois requisitos básicos, sendo o primeiro a necessidade de que “a decisão na ação de improbidade tenha sido prolatada de forma colegiada por maioria ou unanimidade, por exemplo, por uma das câmaras do Tribunal de Justiça do Estado, ou tenha ocorrido o trânsito em julgado da decisão monocrática ou colegiada” (RAMAYANA, 2012, p. 294). Ainda, essa suspensão pela LIA exige, como segundo requisito, que a condenação se dê em sede de decisão monocrática ou colegiada. A suspensão dos direitos políticos por meio de condenação em improbidade administrativa deve estar expressa na sentença, caso contrário não será causa da inelegibilidade do art. 1º, I, alínea l, da LC n. 64/90. No caso da inelegibilidade decorrente da LC n. 64/90, lembra-se que, com a alteração da LC n. 135/10, o ato de improbidade deve, necessariamente, ser um ato doloso que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, isto é, são as duas condutas em uma. A suspensão, nesses casos, ocorre desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de oito anos após o cumprimento da pena. Assim, a suspensão dos direitos políticos decorrente de condenação direta em improbidade administrativa, no caso da ofensa aos princípios da Administração Pública, decorrem da previsão constitucional do art. 15, inc. V, combinado com o art. 37, § 4º. Ou seja, o prazo de cumprimento da suspensão dos 217

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direitos políticos no caso de condenação em improbidade administrativa tem o seu decurso independente da suspensão decorrente de perda de mandato por quebra de decoro parlamentar. Nesse sentido, para os casos de improbidade o prazo deve ser contado de oito anos após o cumprimento das sanções impostas, por exemplo, na ação civil de improbidade administrativa. A jurisprudência do TSE é nesse sentido, pois está arrimada nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 29 e nº 30 e na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.578/DF, julgadas pelo Supremo Tribunal Federal, que declararam a constitucionalidade da Lei Complementar nº 135/2010, além de se reconhecer incidência da nova causa de inelegibilidade sobre fatos anteriores (RAMAYANA, 2012, p. 293)6. Veja-se no caso julgado pelo Tribunal de Justiça gaúcho em que se fraudou um processo seletivo para estagiários, no qual um Vereador teria se beneficiado dos serviços prestados por eles. Nesse caso, além da suspensão dos direitos políticos do Vereador, o Tribunal sentenciou com a perda da função pública, o que fez com que perdesse, portanto, o seu mandato junto à Câmara Municipal, sem a necessidade de processamento do Vereador pela Câmara de Vereadores por quebra de decoro parlamentar. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE IMPROBIDADE. CONTRATAÇÃO SIMULADA DE ESTAGIÁRIO. INEXISTÊNCIA DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS OU QUALQUER ATO QUE JUSTIFIQUE O

6 – 5. Veja-se ainda o entendimento exarado pelo STJ, no Recurso Especial n. 993.658, de relatoria do Ministro Francisco Falcão: A sanção de suspensão temporária dos direitos políticos, decorrente da procedência de ação civil de improbidade administrativa ajuizada perante o juízo cível estadual ou federal, somente perfectibiliza seus efeitos, para fins de cancelamento da inscrição eleitoral do agente público, após o trânsito em julgado do decisum, mediante instauração de procedimento administrativo-eleitoral na Justiça Eleitoral. 6. Consectariamente, o termo inicial para a contagem da pena de suspensão de direitos políticos, independente do número de condenações, é o trânsito em julgado da decisão, à luz do que dispõe o art. 20 da Lei 8.429/92, verbis: “a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória”. 7. A título de argumento obiter dictum, sobreleva notar, o entendimento sedimentado Tribunal Superior Eleitoral no sentido de que “sem o trânsito em julgado de ação penal, de improbidade administrativa ou de ação civil pública, nenhum pré-candidato pode ter seu registro de candidatura recusado pela Justiça Eleitoral”. Precedentes do TSE: REsp 29.028/MG, Rel. Min. Marcelo Ribeiro, publicado em sessão em 26-08-08 e CTA n. 1.607, Rel. e. Min. Caputo Bastos, DJ de 06-08-08. (Grifos no original) 218

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PERCEBIMENTO DA BOLSA ENSINO. DISTRIBUIÇÃO DO VALOR AOS DEMAIS PARTICIPANTES DO ATO. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E PREJUÍZO AO ERÁRIO. Conforme revela a prova dos autos, houve a simulação de contrato de estágio, nunca tendo havido o concurso do estagiário, que repassava parte da bolsa aos réus. Um, Vereador, suposto beneficiário do trabalho, outro, intermediário da falsa contratação. Ato doloso que se mostra atentatório aos princípios da Administração Pública (art. 11, I, da Lei de Improbidade) e causa prejuízo ao erário (art. 10, I, da Lei nº 8.429/1992), sujeitando todos os participantes às penas correspondentes previstas na Lei de Improbidade. Irrelevância da absolvição dos réus no processo criminal, haja vista a falta de identidade dos tipos e independência das sanções administrativas (art. 12 da Lei nº 8.429/1992). Apelação do réus desprovida. Apelação do Ministério provida. (Apelação Cível Nº 70034862912, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, julgado em 17/11/2010). Dessa decisão, em fase de cumprimento de sentença, o Vereador agravou e o Tribunal manteve a sua decisão, oportunidade em que expressou ser o entendimento daquele Órgão que a condenação em improbidade com perda da função e suspensão dos direitos políticos gera a perda do mandato automaticamente, sem a necessidade de processamento por quebra de decoro parlamentar, por parte da Câmara de Vereadores. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE IMPROBIDADE. CONDENAÇÃOÀ SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS. PERDA DO MANDATO. VEREADOR. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de improbidade administrativa (art. 15, V da CF). Perderá o mandato, o Deputado, Senador, e, pelo princípio de simetria, o Vereador, que perder ou tiver suspensos os direitos políticos (art. 55, IV da CF). O agravante foi condenado à suspensão dos seus direitos políticos e à perda da função pública, em razão da prática de ato de improbidade, por sentença transitada em julgado. A extinção do mandato de vereador decorre dessa punição, cumprindo à Mesa Diretora da Câmara de Vereadores, apenas declarar a perda do mandato do condenado. Precedente desta Corte. Agravo desprovido. (Agravo de Instrumento Nº 70053358784,

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Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, Julgado em 08/05/2013). (Grifos próprios). A partir desse entendimento, poder-se-ia pensar na hipótese de que o processamento de um parlamentar pela sua Casa Legislativa (quando já condenado em improbidade administrativa à perda da função e suspensão dos seus direitos políticos), no caso de quebra de decoro, teria como resultado proporcionar um retorno à sociedade que aquele corpo de parlamentares representa, tendo em vista que o objetivo máximo a ser alcançado com o processo por quebra de decoro é a perda (cassação) do mandato e a consequente suspensão dos direitos políticos que já o fora. Ocorre que nem em todos os casos a sanção de suspensão dos direitos políticos é aplicada em sede de ações de improbidade que tenha como réu um membro do Poder Legislativo, tendo em vista que na etapa de fixação das sanções, devido à regra de necessidade de graduação da sanção à gravidade do ato, a sanção de suspensão dos direitos políticos é tida como necessária de se graduar de acordo com a gravidade real do ato. A exemplo dessa afirmação, serve o seguinte acórdão do Tribunal de Justiça gaúcho, oportunidade na qual o Tribunal excluiu das sanções aplicadas ao caso a suspensão dos direitos políticos que haviam sido fixados em sede de sentença no 1º Grau: ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE. VEREADORES. DIÁRIAS E DESPESAS DE INSCRIÇÃO EM EVENTO. AUSÊNCIA DE FREQUÊNCIA. ART. 9º, CAPUT, E INCISO XI, LEI DE  IMPROBIDADE. Corresponde a inequívoco ato de improbidade, enquadrado em o art. 9º, caput, e inciso XI, Lei nº 8.429/92, o recebimento de diárias por vereadores, assim como o ressarcimento das despesas de inscrição, quanto a curso que não frequentaram efetivamente, como se confirma pela ausência das assinaturas na listagem de presença. IMPROBIDADE  E SANÇÕES. ART. 12, I, LEI Nº 8.429/92. APLICAÇÃO ISOLADA OU CUMULATIVA. PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE. EXCLUSÃO DAS PENAS DE PERDA DE FUNÇÃO PÚBLICA E SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS. MULTA CIVIL E PROPORCIONALIDADE. Não há cogente incidência, modo cumulativo, das sanções traçadas no art. 12, Lei de Improbidade, podendo se aplicar os apenamentos isolada ou cumulativamente, sob o enfoque dos princípios da proporcionalidade

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e razoabilidade, o que leva, no caso dos autos, à exclusão das sanções de perda de função pública e suspensão dos direitos políticos. Justifica-se, pela menor ofensa, a redução da multa civil para o mínimo previsto em o art. 12, I, Lei nº 8.429/92, parâmetro este adotado pela sentença, aliás, no que tange à suspensão dos direitos políticos. (Apelação e Reexame Necessário Nº 70058317900, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Armínio José Abreu Lima da Rosa, Julgado em 30/04/2014). (Grifos próprios). É por esse modo que determinada Casa Legislativa poderá entender pela necessidade de cassação do mandato de determinado parlamentar, membro seu, muito embora não tenha sido aplicada a sanção de suspensão dos direitos políticos em sede de ação de improbidade, por exemplo. Este proceder é absolutamente legítimo, e as questões meritórias não podem ser revistas pelo Poder Judiciário. Assim, muito embora em determinadas ações de improbidade administrativa, que tenham como réu um parlamentar, não seja aplicada a sanção de suspensão dos direitos políticos e perda da função pública, poderá esta Casa Legislativa, seja Câmara dos Deputados Federais, Senado, Assembleias Legislativas ou até mesmo Câmaras de Vereadores, processá-lo por quebra de decoro parlamentar, se for o caso, e ter aplicada a perda do mandato a este parlamentar. Isto, pois, como já destacado, o processamento por quebra de decoro visa a proteger a honra da instituição Poder Legislativo e a prática de determinado ato de improbidade, ainda que não sancionado na esfera judicial com a suspensão dos direitos políticos, pode, sim, dotar-se de um potencial altamente lesivo à imagem daquela Casa Legislativa. Legitimando, portanto, a cassação do mandato por quebra de decoro. Contudo, esse modo de extinção do mandato deve ser sempre visto e aplicado em caráter de excepcionalidade, para não se incorrer em rupturas habituais do mecanismo de representação popular. Com base nas lições de Canotilho (2003), a legitimidade dos órgãos representativos não decorre simplesmente da delegação da vontade do povo, mas também do conteúdo dos seus atos, que, quando justos, permitem aos cidadãos, mesmo com suas diferenças, se reencontrarem nos atos de seus representantes. Nesse sentido, indica Frota (2012, p. 18) que, em nível nacional, “o primeiro deputado a perder o mandato por ofensa ao decoro, desde a Constituição de 1946, foi Eduardo Barreto Pinto, por ter-se deixado fotografar de casaca e cuecas pela revista O Cruzeiro”. Não obstante, “em 1989 [já sob o ordenamento jurídico da Constituição de 1988], Felipe Cheidde e Mário Bouchardet também perderam o 221

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mandato não por falta de decoro, mas por não comparecerem a mais de um terço das sessões ordinárias na mesma sessão legislativa” (FROTA, 2012, p. 18). Ademais, apresenta que, “em 1991, o deputado Jabes Rabelo foi cassado por tráfico de drogas e, em 1993, os deputados Itsuo Takayama, Nobel Moura e Onaireves Moura, por compra e venda de filiações partidárias” (FROTA, 2012, p. 19), indicando, assim, a alteração nos sentidos de decoro parlamentar. Ao todo, desde a legislatura 1987-1991 até a legislatura 2015-2019, 23 Deputados Federais e três Senadores tiveram declarada a perda do seu mandato por quebra de decoro parlamentar. Luiz Estevão (sua cassação ocorreu em 2000, acusado de desviar R$ 170 milhões destinados à construção do Fórum Trabalhista de São Paulo, tendo sido o primeiro Senador cassado na história do Brasil). O segundo Senador a sofrer a perda do mandato foi Demóstenes Torres (em 2012, acusado de associação a Carlinhos Cachoeira, a partir de investigações decorrentes do escândalo do Mensalão). O terceiro e último Senador a perder o mandato foi Delcídio do Amaral (em 2016, acusado de utilizar o cargo para obstrução da justiça, a partir de investigações da Operação Lava-Jato). Em pesquisa preliminar junto à jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, foi possível firmar a posição dos Tribunais Superiores a respeito da limitação de intervenção do Poder Judiciário nas questões meritórias em processos que analisam a quebra de decoro parlamentar7. Exemplo disso pode-se ter na Apelação Cível n. 70009566043, de relatoria do Desembargador João Carlos Branco Cardoso, na qual se levou à análise do Tribunal a possível nulidade do processo por quebra de decoro do Vereador de Santa Vitória do Palmar Aluízio Alegre Machado. As questões a serem analisadas pelo Tribunal diziam respeito à regularidade do procedimento adotado pela Comissão Processante da Câmara de Vereadores, que extrapolou o prazo legal de 90 dias para encerrar o processo. Entendeu-se, então, que não houvera caracterizado irregularidade ou ilegalidade alegada pelo Vereador, pois “a Comissão processante só não concluiu seus trabalhos integralmente no prazo previsto, porque, corretamente, deferiu o pedido de realização de perícia grafotécnica formulado pelo autor, que, por sua vez, não 7 – Nesse sentido julgado paradigma do Supremo Tribunal Federal. “Ato da Mesa da Câmara dos Deputados, confirmado pela Comissão de Constituição e Justiça e Redação da referida Casa legislativa, sobre a cassação do mandato do impetrante por comportamento incompatível com o decoro parlamentar. (...) Não cabe, no âmbito do mandado de segurança, (...) discutir deliberação, interna corporis, da Casa Legislativa. Escapa ao controle do Judiciário, no que concerne a seu mérito, juízo sobre fatos que se reserva, privativamente, à Casa do Congresso Nacional formulá-lo”. (MS 23.388, rel. Min. Néri da Silveira, julgamento em 25-11-1999, Plenário, DJ de 20-04-2001. Grifos próprios). 222

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foi localizado para intimação da sessão de julgamento, dando ensejo à expiração do prazo, ocultando-se” (Apelação Cível n. 70009566043). No Agravo de Instrumento n. 70035870161, por sua vez, as questões levadas à análise dizem respeito a irregularidades na instauração da Comissão Processante pela Câmara de Vereadores de Erebango, a qual foi instalada para processar determinado Vereador por quebra de decoro, por suposta agressão física a um outro Vereador. No caso, irregularidade configurou-se devido ao fato de a Câmara não ter instalado a Comissão no prazo estabelecido pelo Regimento Interno e ter sido composta apenas depois da ocorrência do fato que seria processado. No reexame necessário (n. 70035792522) da sentença proferida nos autos do mandado de segurança impetrado por Francisco Tadeu Magnus contra ato do Presidente da Câmara de Vereadores de Xangri-lá, o Poder Judiciário foi instado a se manifestar em assunto decorrente de procedimento que apurava quebra de decoro parlamentar, quando o Vereador processado teceu críticas ao Secretário de Administração e Finanças do Município. Reconheceu-se que tais opiniões estão protegidas pela imunidade material do parlamentar. Afirmou-se que, em se tratando de manifestações proferidas por Vereador, no exercício de mandato eletivo, a Constituição Federal (art. 29, VIII) e a Lei Orgânica do Município (art. 39) asseguram a inviolabilidade por suas opiniões, palavras e votos, confirmando-se, portanto, a sentença. Em um segundo reexame necessário (n. 70067912113), desta vez, em sentença de mandado de segurança impetrado por Vilmar Soares contra o Presidente da Câmara de Vereadores de Caiçara, o Tribunal reformou a decisão de cassação do mandato do Vereador por entender que o trâmite do processamento feriu os dispositivos legais que regem a matéria. Destacou ainda que não é de competência do judiciário a análise do mérito do ato administrativo, sendo possível, apenas, o controle dos aspectos formais da legalidade do procedimento utilizado pela Câmara de Vereadores, em razão do princípio da separação dos poderes, previsto no artigo 2º da Constituição Federal. E, nessa perspectiva, destaco que o processo de cassação de mandato de vereador, dadas suas gravíssimas repercussões, deve obedecer às rígidas formalidades legais, não se admitindo o atropelo de regras legais expressas em nome da celeridade ou da instrumentalidade do processo de apuração das faltas imputadas ao vereador acusado. E, no caso, verifico que o processo não obedeceu aos ditames do Decreto-Lei nº 201/67 (Reexame Necessário nº 70067912113, p. 3. Grifos no original). 223

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Este foi um caso onde houve a reforma da decisão proferida pela Câmara de Vereadores (reintegração do Vereador à sua função) sem a necessidade de enfrentar o mérito dos fatos que levaram ao processamento por quebra de decoro parlamentar. Nesse sentido ainda, no julgamento do MS n. 21443, pelo STF, restou estabelecido que no caso de cassação de mandato de parlamentar (art. 55, II, da Constituição Federal), o ato disciplinar é da competência privativa da Câmara respectiva, situado em instância distinta da judiciária e dotado de natureza diversa da sanção penal, mesmo quando a conduta imputada ao Deputado coincida com tipo estabelecido no Código Penal, tendo sido denegada a segurança pleiteada no caso. Nesse aspecto, o entendimento expressado neste julgamento se adequa ao tema aqui trabalhado, quando, por exemplo, o relator explica que “a sanção disciplinar imposta pela Câmara dos Deputados difere da natureza da condenação criminal, é processada em outra instância que a do Poder Judiciário, cabendo privativamente à Câmara dos Deputados” (MS n. 21443) e continua “nem seria compreensível que, nas hipóteses presumivelmente as mais graves de quebra de decoro (as coincidentes com tipos delituosos), a ação de disciplina da Câmara ficasse tolhida pela dependência e a espera não só da deliberação do Poder Judiciário, como da própria iniciativa do órgão do Ministério Público” (MS n. 21443). Por fim, o relator ressaltou que “é certo que condenação criminal transitada em julgado acarreta necessariamente a perda do mandato (art. 55, VI, da Constituição), mas essa previsão não impede que a Câmara, qualificando um procedimento (criminoso ou não) como incompatível com o decoro, imponha a sanção disciplinar correspondente (perda do mandato)” (MS n. 21443). Ou seja, as instâncias de aplicação de sanções (responsabilização em improbidade administrativa e quebra de decoro parlamentar) são instâncias distintas e não podem se confundir. No caso da instância penal, há que se lembrar que esta vinculará as demais quando restar sentenciada a inexistência do fato ou negativa de autoria. Mas, nas demais instâncias, improbidade administrativa, por exemplo, por serem instâncias diversas e com naturezas jurídicas também diversas, as sanções aplicadas em cada seara não poderão ser tidas como passíveis de ocorrência de bis in idem, sob pena de se aniquilar uma das formas de se responsabilizar um indivíduo que tenha infringido tais ordens. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir das premissas expostas no decorrer deste estudo, pode-se perceber que a responsabilização de indivíduos que transgridam regras de ordem jurídica 224

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pré-estabelecidas é inerente à democracia representativa, sobretudo quando a transgressão ocorre no trato para com a coisa pública, que é o caso da improbidade administrativa. Não obstante a isso, foi possível perceber que, em um Estado Democrático de Direito, no qual predomina o exercício da democracia por intermédio da representação política, se faz essencial manter determinado comportamento moral e ético por parte daqueles que ocupam os postos de representantes da vontade popular e que, caso violada essa honra, passível de sancionamento para se resguardar a imagem de uma das instituições mais essenciais no processo de representação política democrática, o Poder Legislativo. Fala-se aqui do decoro parlamentar. Para isso, apresentaram-se as condutas que, de acordo com a Constituição Federal de 1988 e conforme os Códigos de Ética e Decoro Parlamentar tanto das Casas do Congresso Nacional como da Assembleia Legislativa gaúcha, configuram como condutas indecorosas e passíveis de sanção. A partir disso, adentrou-se especialmente na sanção da perda do mandato (cassação) por quebra de decoro parlamentar e tentou-se analisar se a suspensão dos direitos políticos decorrente de cassação de mandato eletivo por quebra de decoro configuraria uma espécie de bis in idem quando analisada com a sanção de suspensão dos direitos políticos aplicável em sede de ação de improbidade administrativa. Tudo isso sob o enfoque da atividade legislativa. Sobre esse ponto, com o auxílio da jurisprudência dos Tribunais Superiores e verificando também a partir da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, foi possível concluir e confirmar a hipótese levantada, isto é, de que a aplicação da sanção de suspensão dos direitos políticos em sede de ação de improbidade administrativa não configura bis in idem para com a suspensão dos direitos políticos decorrentes de perda (cassação) do mandato eletivo por quebra de decoro parlamentar, sanção esta aplicada em sede de procedimento interno das Casas Legislativas. Isso porque as esferas de responsabilização são distintas e uma possui caráter disciplinar e a outra caráter civil-administrativo, em que pese a sanção de perda da função e suspensão dos direitos políticos tenha caráter eminentemente político. Por fim, foi possível identificar ainda a posição do Poder Judiciário no que tange ao dever de não intervenção nas questões meritórias de procedimentos que tratem da quebra de decoro parlamentar pelas Casas Legislativas, reservando-se, sim, o dever de intervenção e análise quando solicitado, em questões formais e de regularidade legal de tais processos. 225

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REFERÊNCIAS BERTI, Giorgio. La responsabilità pubblica: costituzione e amministrazione. Milano: Cedam, 1994. BORIN, Roseli; LEMES, Alexandre Barbosa. As sanções da lei de improbidade administrativa. In: Direito e Administração Pública [Recurso eletrônico on-line]. Organização: CONPEDI/UNICURITIBA. Curitiba, 2013. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2016. BRASIL. Câmara dos Deputados Federais. Resolução n. 25, de 2001, que institui o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2016. ______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. ______. Senado Federal. Resolução n. 20, de 1993. Institui o Código de Ética e Decoro Parlamentar. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2016. ______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 993.658-SC. Relator: Ministro Francisco Falcão. Disponível em: . Acesso em: 05 jun. 2016. ______. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar em Mandado de Segurança n. 25.579-MC. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Data de julgamento: 19-10-2005. Data de publicação: 24-08-2007. Disponível em: . Acesso em: 05 jun. 2016. ______.______. Mandado de Segurança n. 23.388/DF: Relator Ministro Néri da Silveira. Data de julgamento: 25-11-1999. Data de publicação: 20-04-2001. Disponível em: . Acesso em: 05 jun. 2016. ______.______. Mandado de Segurança n. 21443. Relator: Ministro Octavio Gallotti. Disponível em: . Acesso em: 05 jun. 2016. RIO GRANDE DO SUL. Assembleia Legislativa. Resolução n. 2.514, de 30 de novembro de 1993 (atualizada até a Resolução n. 3.156, de 27 de abril de 2016). Institui o código de ética parlamentar. Disponível em: . Acesso em: 15 jun. 2016. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado. Apelação Cível n. 70034862912. Relator: Marco Aurélio Heinz. Data de julgamento: 10-11-2010. Data de publicação: 17-01-2011. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2016. ______.______. Agravo de Instrumento n. 70035870161. Relatora: Rejane Maria Dias de Castro Bins. Data de julgamento: 17-06-2010. Data de publicação: 25-06-2010. Disponível em: . Acesso em: 05 jun. 2016. ______.______. Agravo de Instrumento n. 70053358784. Relator: Marco Aurélio Heinz. Data de julgamento: 08-05-2013. Data de publicação: 24-05-2013. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2016. ______.______. Apelação Cível n. 70009566043. Relator: João Carlos Branco Cardoso. Data de julgamento: 24-11-2004. Disponível em: . Acesso em: 05 jun. 2016. ______.______. Apelação e Reexame Necessário n. 70058317900. Relator: Arminio José Abreu Lima da Rosa. Data de julgamento: 30-04-2014. Data de publicação: 12-05-2014. Disponível em: . Acesso em: 05 jun. 2016. ______.______. Reexame Necessário n. 70035792522. Relator: Francisco José Moesch. Data de julgamento: 06-10-2010. Data de publicação: 20-10-2010. Disponível em: . Acesso em: 05 jun. 2016. 227

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______.______. Reexame Necessário n. 70067912113. Relatora: Marilene Bonzanini. Data de julgamento: 29-01-2016. Data de publicação: 04-02-2016. Disponível em: . Acesso em: 05 jun. 2016. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 7ª ed., 2003. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 825. FROTA, Getúlio Soares Novaes. Implicações da quebra de ética e decoro parlamentar na 4ª e 5ª legislaturas da Câmara Legislativa do Distrito Federal. Brasília: Biblioteca digital da Câmara dos Deputados, 2012. PINHEIRO, Maria Cláudia Bucchianeri. Reflexões sobre cassação de mandato por quebra de decoro. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. RAMAYANA, Marcos. A inelegibilidade que decorre da improbidade administrativa sancionada como causa de suspensão dos direitos políticos. In: Paraná Eleitoral: revista brasileira de direito eleitoral e ciência política. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2016. SANSON, Alexandre; JUNQUEIRA, Michelle Asato. Análise da responsabilidade política no âmbito da democracia representativa. In: Direito e Administração Pública [Recurso eletrônico on-line]. Organização: CONPEDI/ UNICURITIBA. Curitiba, 2013. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2016.

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UM ESTUDO DE CASO DA AÇÃO POPULAR N. 70056129380 CONTRA O MUNICÍPIO DE VIAMÃO: O CONTROLE SOCIAL DA TARIFA DOS TRANSPORTES PÚBLICOS1 Augusto Carlos de Menezes Beber2 Resumo: o presente artigo visa a discutir a possibilidade de controle social da tarifa dos transportes públicos, tendo por escopo um estudo de caso da Ação Popular n. 70056129380 contra o Município de Viamão. Para tanto, reconstruiu-se o conceito de controle social a partir de uma vertente procedimentalista, passando-se à leitura de alguns institutos do direito administrativo que regem o tema das tarifas de transporte público. Ao cabo, analisou-se o caso da referida ação popular, pugnando-se pela aderência à decisão do Tribunal de Justiça, e, ao fim, a partir do conceito encontrado, identificou-se positivamente a possibilidade de controle social em relação às tarifas, ressalvando-se o instrumento processual adequado para tanto. 1 INTRODUÇÃO Em 1984, George Orwell demonstrou os riscos do totalitarismo por meio de um universo fictício, em que todos os sujeitos de um país se submetiam ao 1 – O presente artigo é fruto dos debates realizados no bojo do “Projeto Interinstitucional de redes de grupos de pesquisa sobre o tema Patologias Corruptivas nas relações entre Estado, Administração Pública e Sociedade: Causas, Consequências e Tratamentos – PARTE II: discutindo formas de enfrentamento do fenômeno”, coordenado pelo Professor Doutor Rogério Gesta Leal, sendo as pesquisas desenvolvidas junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas – CIEPPP. 2 – Graduando do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, com bolsa de iniciação científica institucional, modalidade PUIC, sob a orientação do Professor Doutor Janriê Rodrigues Reck. E-mail: [email protected]

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controle realizado pela figura do Grande Irmão, mentor e estruturador da ordem estatal. Desde estudos que datam do século XIX, a Sociologia tem se inclinado a chamar esse fenômeno de controle social, pois nele, por intermédio de institutos repressivos (como o direito penal), o Estado assumiria o poder de definir como deve ser o agir dos sujeitos, regulando suas ações, omissões e expectativas de vida. Hodiernamente, e especialmente no meio jurídico, o controle social possui uma conotação muito diferente: trata-se, sobretudo, de uma forma de preservar o interesse público por meio do exercício de virtudes cívicas. Com isso, grandes nomes do direito público, com destaque para o direito administrativo, têm colocado com frequência o controle social ao lado das demais modalidades de controle da Administração, evidenciando assim uma tendência de participação e inclusão social nas estruturas burocráticas do Estado. A partir desse cenário, intui-se com o presente trabalho realizar uma análise crítica da Ação Popular n. 70056129380, na qual se discutiu a possibilidade de controle sobre o valor da tarifa dos transportes públicos no Município de Viamão. Com isso, pretende-se discorrer também sobre o conceito de controle social, verificando-se a sua incidência ou não no caso concreto sub judice. Nestes termos, a pesquisa se dividirá em três pontos: no primeiro, trar-se-á uma perspectiva procedimentalista para o conceito de controle social; no segundo, abordar-se-á a dogmática do direito administrativo, especificamente no que tange ao tema das tarifas dos transportes públicos; e, no terceiro, far-se-á uma análise do referido julgado, buscando-se trabalhar as categorias estudadas à luz do caso prático. 2 AS DIMENSÕES DO CONTROLE SOCIAL E SEU ENFOQUE JURÍDICO 2.1 O CONCEITO DE CONTROLE SOCIAL A PARTIR DE UMA VERTENTE PROCEDIMENTALISTA A despeito de muito se falar sobre controle social, sua temática ainda se encontra permeada por uma intensa vagueza, sendo seu conceito rotineiramente confundido com o de participação social ou com o de democracia participativa. Em nível semântico, os dicionários de língua portuguesa fornecem múltiplas definições para o vocábulo controle. Segundo Houaiss (2010, p. 197), controle

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Um estudo de caso da Ação Popular n. 70056129380 contra o Município de Viamão: o controle social da tarifa dos transportes públicos

significa tanto “monitoração ou fiscalização minuciosa de acordo, padrões, normas, etc.” quanto “poder, domínio ou autoridade sobre alguém ou algo”. Para Ferreira (2010, p. 576), controle tem por definição “ato, efeito ou poder de controlar; domínio, governo” ou “fiscalização exercida sobre as atividades de pessoas, órgãos, departamentos, ou sobre produtos, etc., para que tais atividades, ou produtos, não se desviem das normas preestabelecidas”. Em nível doutrinário, Pereira (2010) defende que controle corresponde à adequação ou ao redirecionamento de certo comportamento ou decisão, sempre relacionado a um critério reformador ou padrão referencial. Por sua vez, Domingos Poubel de Castro vaticina que controle vem do latim rotulum, que significa “relação de contribuintes”. Para Castro (2008), historicamente o vocábulo controle está vinculado a finanças, pois, em sua origem francesa, a palavra contre-rôle significa “registro efetuado em confronto com o documento original, com a finalidade de verificação da fidedignidade dos dados” (CASTRO, 2008, p. 27). Ainda, conforme sustenta o autor, foi com a transposição do termo controle para a língua portuguesa que este se corrompeu e assumiu também o atual sentido de dominação. A palavra social, adjetivo do substantivo controle, vem do latim sociale, e significa aquilo que pertence ou é relativo à sociedade. Logo, somado ao exposto, o controle social pode ser entendido semanticamente como “processo pelo qual uma sociedade ou grupo procura assegurar a obediência de seus membros por meio dos padrões de comportamento existentes”. (MICHAELIS, 2000, p. 578) A produção dos sentidos do controle social, contudo, ultrapassa também a semântica e encontra respaldo na Sociologia, a qual tem o controle por objeto de estudo desde o final do século XIX. De forma geral, o viés sociológico analisa os meios aplicados pela sociedade a determinado sujeito para fazer com que este adote um comportamento alinhado com valores sociais preestabelecidos. (SABADELL, 2013, p. 127) Para Sabadell (2013), quando uma professora ministra uma aula, quando celebridades na televisão se posicionam ou mesmo quando pais educam seus filhos, todos estão, de certo modo, exercendo uma espécie de controle social. (SABADELL, 2013, p. 127) Logo, para a socióloga, o controle social está imbricado com os processos que inserem o indivíduo dentro de valores e práticas sociais. Por essa razão, o “controle social está intimamente relacionado com os conceitos de ‘poder’ e de ‘dominação política’, que criam determinada ordem social e integram os indivíduos nela”. (SABADELL, 2013, p. 128, grifos no original) 231

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Portanto, por meio de um juízo sumário, pode-se conceber o conceito de controle social como uma orientação coercitiva a uma direção preestabelecida, marcada por aspectos de normatividade e de executoriedade. Assim, afere-se que, tanto semântica, sociológica ou doutrinariamente defende-se que o controle é exercido com base em acordos – leia-se normas – estabelecidos socialmente, e posto em prática por intermédio de meios como reprimendas, calotes, exclusão, pressão pública ou pela simples expressão de ideias. Assevera-se, contudo, que os sentidos do controle social também assumem uma dimensão diferenciada quando este é considerado a partir de uma perspectiva jurídica. Nesse sentido, Carlos Ayres Britto (1992), então Ministro do Supremo Tribunal Federal, vaticina que controle social é direito público subjetivo, e não poder, pois quando um cidadão exerce o direito ao controle social, está, na realidade, interferindo nos negócios políticos por meio da interpretação da Constituição. Notadamente, o primeiro pensamento que surge em relação à função do controle social enquanto direito é o dever de o Estado acatar a conduta do particular. Porém, lembra-se que essa é uma conduta preestabelecida, pois é pressuposto do controle a existência anterior de uma norma pactuada e compartilhada socialmente. “Em realidade, a regra condutora do direito subjetivo ao controle preexiste à manifestação da vontade individual e não aporta consigo uma autorização para o seu titular agir enquanto editor normativo.” (BRITTO, 1992, p. 4) Por isso, Britto (1992) afirma que aquele que aciona as vias de controle do Poder Público não produz nova regra de direito, ou seja, não participa do processo de elaboração jurídica. Nisso reside a diferença primordial entre controle e participação: nesta, existe manifestação do poder político – notadamente, nos limites da abertura constitucional – e naquele há aplicação de norma constitucional preexistente. Dessa maneira, o controle social enquanto processo não se configura em um momento estanque, mas necessita de diversos atos engatados comunicativamente. A partir disso, a participação social integra o processo de controle, do mesmo modo como a democracia deliberativa revela o melhor cenário para o seu exercício. Robert Alexy (2013), em sua teoria argumentativa, classifica o discurso jurídico como um caso especial do discurso prático. Como consequência, o autor defende que discurso jurídico sofre declinação a outras regras, além das impostas pela racionalidade comunicativa, pelo fato de estar necessariamente vinculado ao direito vigente. 232

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Em decorrência disso, o discurso jurídico deve estar necessariamente pautado por argumentos referentes à lei, à dogmática e aos precedentes do direito positivo. Logo, o campo do discursivamente possível é mais restrito, tendo em vista as formas e as regras das quais os falantes devem partir para construir um argumento jurídico (ALEXY, 2013). Nisso, ao analisar o controle social na dimensão do discurso prático, os agentes têm o dever de observar tão somente as regras da racionalidade discursiva. Por outro lado, ao acionar o controle social na dimensão do discurso jurídico, aos agentes cabe relacionar seus argumentos aos condicionantes que o próprio direito enquanto instituição determina. 2.2 OS SUJEITOS DO CONTROLE SOCIAL A PARTIR DA SEPARAÇÃO ENTRE ESTADO E SOCIEDADE De acordo com a linha de pensamento exposta, falar em discurso jurídico implica discorrer sobre o local em que este é produzido: o Estado. Nisso, para Habermas (2003, p. 171), o Estado é necessário como poder de organização, de sanção e de execução, porque os direitos têm que ser implantados, porque a comunidade de direito necessita de uma jurisdição organizada e de uma força para estabilizar a identidade, e porque a formação da vontade política cria programas que têm que ser implementados. O princípio da separação entre Estado e sociedade também serve para ilustrar o fato de que os atores do controle social dos atos estatais só podem ser agentes não estatais, membros da sociedade civil. Na dicção de Siraque (2004, p. 112), “o controle social é realizado por um particular, por pessoa estranha ao Estado, individualmente, em grupo de pessoas ou através de entidades juridicamente constituídas”. Nesse diapasão, Habermas (2003) assevera que o princípio da separação entre Estado e sociedade exige uma cultura política desacoplada das estruturas de classe, de forma que se possam amortecer as divisões sociais que existem e seus efeitos redutores da livre comunicação entre os pares, para que se possa assim exercer o poder social de maneira desembaraçada e genuinamente democrática. “Se o direito deve ser normativamente fonte de legitimação e não simples meio fático 233

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da organização do poder, então o poder administrativo tem que ser retroligado ao poder produzido comunicativamente.” (HABERMAS, 2003, p. 235) A partir disso, pode-se verificar que poder social e poder administrativo não se confundem, refletindo assim a dependência do controle social em relação aos processos institucionais que permitem o seu exercício. Se poder social e poder administrativo se confundissem, não haveria necessidade de um agente estatal processar e executar os casos de desvio das normas, pois qualquer membro da comunidade faria esse papel independentemente da ação dos demais. Ainda que parcela da população acredite que algum agente político rompeu com as normas constitucionais as quais ele deve obediência, a retirada de seu cargo somente ocorre por meio de um processo regularmente formado, pautado pelas regras que os próprios membros da comunidade pactuaram anteriormente. O direito forma o meio pelo qual o poder comunicativo é filtrado e transformado em poder administrativo, o qual o Estado faz uso para manter a ordem instituída normativamente. Assim, identifica-se um ciclo jurídico-político autofágico: enquanto o poder dá suporte ao direito, o direito, por sua vez, garante o exercício do poder. E, nesse sentido, “o direito funciona como meio de organização do poder do Estado. Inversamente, o poder, na medida em que reforça as decisões judiciais, serve para a constituição de um código jurídico binário”. (HABERMAS, 2003, p. 182) À guisa desse entendimento, retoma-se a ideia de que o controle social não é um fenômeno que ocorre somente à luz do direito, mas que nele adquire um sentido latente de manutenção e promoção da integridade social. Consequentemente, o controle social dos atos estatais, no medium jurídico, torna-se assim um instituto regrado pelo direito em prol da atuação da sociedade sobre ela mesma. Diante disso, admite-se que nem sempre é fácil reconhecer a diferença entre participação e controle social. Uma manifestação contra a corrupção pode ser entendida como controle na medida em que exige o cumprimento dos princípios do art. 37 da Constituição, que obrigatoriamente devem ser observados pela Administração Pública. Entretanto, normalmente os protestos têm uma roupagem muito difusa, e raramente visam a produzir efeitos em um ato concreto. Assim, as manifestações, ao tempo em que não visam a produzir norma nova – portanto, não se caracterizando como participação – na qualidade de controle não conseguem estabelecer espaços comunicativos sólidos que proporcionem ao Poder Público contra-arrazoar ou até mudar sua posição. 234

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Para resolver esse problema, o medium do direito cria canais institucionalizados de exercício do controle social que permitem a formação discursiva de consensos. Por intermédio desses canais, a pretensão corretiva associa-se à pretensão de retidão, fazendo valer os pactos firmados. “A institucionalização jurídica do código de direito exige, finalmente, a garantia dos caminhos jurídicos, pelos quais a pessoa que se sentir prejudicada em seus direitos possa valer suas pretensões.” (HABERMAS, 2003, p. 162) Por exemplo, no ordenamento jurídico brasileiro encontram-se diversos meios de controle social institucionalizados em relação às ações do Estado, como são a Ação Popular, a Ação Civil Pública, as denúncias aos Tribunais de Contas, entre tantos outros instrumentos espalhados pela legislação infraconstitucional. Logo, o controle social (como processo) tem seus contornos jurídicos realizados pelo direito positivo ao qual se vincula. Este, por sua vez, irá determinar quando, em que termos, e por quem o controle social poderá ser exercido. 3 AS TARIFAS DE TRANSPORTE A PARTIR DA DOGMÁTICA CONTEMPORÂNEA DO DIREITO ADMINISTRATIVO 3.1 BREVES REGULADOR

NOTAS

SOBRE

O

MODELO

DE

ESTADO

Exposto o conceito de controle social com o qual se trabalhará, mostra-se necessário elucidar o pano de fundo que rege a temática da decisão a ser analisada. Assim, para o correto deslinde da presente pesquisa, é mister que se aborde, ainda que brevemente, o cenário jurídico perpassado pela decisão, a saber, o modelo estatal regulatório. Inicialmente, destaca-se que o referido modelo exsurge como uma contrapartida ao Welfare State, no qual se encontra uma orientação positiva da função estatal, marcada pelo ativismo socioeconômico dos organismos políticos. (JUSTEN FILHO, 2002) O modelo regulatório, como a própria nomenclatura indica, encerra em si o propósito de distribuição das tarefas públicas essenciais, as quais, no modelo do Welfare State, o Poder Público não teve condições de efetivar sozinho. Assim, aos particulares, sob a regulação do Estado, coube a prestação de atividades antes de trato exclusivamente estatal.

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Desse modo, mormente não haja uma substituição do modelo prestacional do Estado em favor do modelo regulador, hodiernamente aceita-se o papel do particular no provimento dos serviços públicos, devendo o Estado fiscalizar sua prestação, mantendo sob atuação direta apenas as atividades que a organização econômica representar um risco para a coletividade em razão da lógica de mercado aplicada. (JUSTEN FILHO, 2002) Logo, a regulação estatal das atividades desempenhadas pelos particulares, a título de serviço público, submete-se aos fins e aos meios de execução determinados ou determináveis pelo ente público, consistindo em uma espécie de supressão da autonomia privada. (JUSTEN FILHO, 2002) Neste cenário encontram-se as agências reguladoras, marco de um novo perfil de atuação do Estado nas atividades econômicas. Conforme Menezello (2002, p. 58): muda-se, com isso, a maneira de agir do Estado brasileiro na condução de algumas atividades para anunciar uma nova ordem, em que este se abstém de prestar serviços públicos, reforçando, como dissemos, sua atuação na esfera da regulação e da fiscalização, a fim de desenvolver maior razão e eficácia. Por consequência, são atribuídas às agências reguladoras as funções de fiscalizar o cumprimento da legislação por parte do prestador da atividade regulada, a fim de que os interesses da sociedade como um todo sejam preservados (MENEZELLO, 2002). Na lição de Justen Filho (2002, p. 321), cabe ao Estado fiscalizar a atividade do particular, se a ele tiver sido atribuído o encargo de prestar serviço público. Isso significa impossibilidade de o particular invocar sigilo de negócio ou interesse privado como argumento jurídico, manter indevassados seus livros, documentos ou condições negociais. O particular que presta serviço público encontra-se em situação de transparência perante a entidade concedente. Assim, no modelo de Estado regulador, esvazia-se o monopólio da prestação direta dos serviços públicos por parte do Estado, entretanto, sem este deixar de exercer o seu papel de mantenedor e fiscalizador das atividades essenciais ao interesse público.

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Para o tema dos transportes públicos, tal contextualização mostra-se deveras necessária, eis que tal segmento refere-se a serviço público prestado por particulares sob a supervisão do Estado. Nesse sentido, salienta-se que no Rio Grande do Sul cabe à Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados – AGERGS a fiscalização de atividades de transporte público, tendo como uma de suas competências institucionais a promoção de audiências públicas para o debate sobre as condições de uso e sobre o dispêndio financeiro relativo aos meios de locomoção. Assim, o tema das tarifas dos transportes públicos deve ser pensado à luz do modelo regulador de Estado, tendo em vista que as atividades prestadas pelos particulares enquanto serviço público submetem-se a especial fiscalização. Deste modo, firmados os pontos estruturais, mostra-se necessário entender como o valor das tarifas de transporte é fixado, vez que, quando este é prestado na qualidade de serviço público, a sua variação no mercado deve obedecer necessariamente às normas de direito público, como se verá a seguir. 3.2 O PROCESSO DE CONTRATAÇÃO E AS NORMAS RELATIVAS ÀS TARIFAS NAS CONCESSÕES DE SERVIÇOS PÚBLICOS DE TRANSPORTE Sabidamente, a Administração Pública, ao contratar, deve buscar o melhor atendimento ao interesse público, observados os princípios constitucionais do art. 37, somados aos princípios setoriais do direito administrativo. Com isso, o processo (ou procedimento) licitatório exsurge como uma etapa necessária para a contratação menos onerosa ao erário, razão pela qual suas modalidades e tipos são delineados na Lei Federal n. 8.666/93 e nas leis administrativas paralelas a esta. Uma vez finalizado o certame e definido o vencedor, homologa-se o feito e opera-se a contratação com o particular, conforme minuta contratual fornecida pela Administração, a qual deve ser aderida pelo contratado. Na minuta contratual, devem estar dispostas as cláusulas que irão reger a relação jurídica entre as partes, dentre as quais menciona-se o valor cobrado pelos serviços prestados, bem como as formas de reajuste tarifário para manutenção do equilíbrio econômico-financeiro contratual, conforme dispõe o art. 23, VI, da Lei n. 8.987/95. Nesse sentido, Granziera (2002, p. 165, grifos no original) afirma que

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a cláusula de reajuste deve indicar o índice ou a fórmula mais adequada para manter o valor de execução do objeto do contrato. Se se trata da prestação de serviços de limpeza, por exemplo, um percentual importante de seu valor deve ser reajustado de acordo com o dissídio coletivo anual. Já os materiais utilizados nos serviços podem ser reajustados por índices mais genéricos, como o Índice Geral de Preços (IGP). Naturalmente, no universo econômico das sociedades empresárias encontram-se diversos fatores que influenciam na definição do preço dos serviços. Encargos trabalhistas, variações de câmbio e modificação no custo dos insumos são apenas alguns exemplos de variáveis que podem ter impacto direto nas despesas da atividade. Por certo que, diferentemente do que opera em relações puramente privadas, em razão do caráter público da contratação, não é uma simples mudança nos ventos empresariais que irá ensejar a possibilidade de alteração do contrato. A Lei n. 8.666/93, no art. 65, § 1º, obriga o suporte pela contratada de variações que podem ir de 25 a 50% em relação ao valor inicial pactuado. Acrescenta-se ainda que os encargos de natureza tributária, via de regra, são inclusos ao preço, portanto, sendo repassados ao consumidor na prestação dos serviços. Nesse sentido, em decisão proferida no Recurso Especial n. 1.185.070/RS, o Min. Teori Zavascki, à época membro da referida Corte Especial, discorreu que dada a natureza onerosa e sinalagmática da prestação dos serviços concedidos, é inafastável que a contraprestação a cargo do consumidor (tarifa) seja suficiente para retribuir, pelo menos, os custos suportados pelo prestador, razão pela qual é também inafastável que, na fixação do seu valor, sejam considerados, em regra, os encargos de natureza tributária. É também decorrência natural do caráter oneroso e sinalagmático do contrato de concessão a manutenção, durante toda a sua vigência, da equação econômico-financeira original. (BRASIL 2010) Por isso, as concessões públicas contêm em seus respectivos contratos fórmulas que equacionam as variáveis que integram os custos para a prestação dos serviços. A título de exemplo, pode-se mencionar a minuta contratual das concessões de transporte público do Município de Pelotas – RS, a qual consta o seguinte termo: 238

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2. O reajuste anual da TARIFA BASE e das tarifas diferenciadas dela decorrentes será realizado mediante a aplicação da seguinte fórmula: TR = TP * (1 + ((( PRDi / PRDo )* P1) + ( VINPC * P2 ) + ( VIGP-DI * P3 ))) (BRASIL, 2016) Como se pode verificar, as incógnitas da equação incluem os custos com combustível, lubrificantes, pessoal, além da variação inflacionária dos preços. Logo, o fundamento para o controle das tarifas não é o valor em si, mas a legalidade da aplicação da cláusula contratual que estipula a forma de cálculo tarifário. Assim, em termos práticos, o controle incide sobre a tarifa apenas de forma transversa, na medida em que é o próprio contrato que deve ser questionado juridicamente. 4 O CASO DA AÇÃO POPULAR N. 70056129380 4.1 BREVE RELATO DO OCORRIDO Em conformidade com as ideias até então desenvolvidas, a premissa básica para a existência de controle social sobre a tarifa dos transportes públicos é a possibilidade de haver mecanismos institucionais que incidam sobre o preço fixado. Conforme discorrido, o atual modelo de gestão do Estado brasileiro delegou aos particulares, mediante concessão ou permissão, a prestação da atividade de transporte, com a ressalva de que os contratos devem ser celebrados sob o regime da Lei de Licitações, estando sujeitos, quando for o caso, ao controle por parte das agências reguladoras. Nesta senda, encontra-se o caso da Ação Popular n. 70056129380. Os autores do pleito buscaram judicialmente a redução das tarifas de transporte urbano do Município de Viamão, face à redução dos encargos tributários que incidiriam sobre o valor do serviço. Além disso, os autores populares alegaram como vício a ausência de prévio procedimento licitatório. Pela análise do caso, o juízo de 1º grau extinguiu sumariamente o feito em razão da impossibilidade jurídica do pedido, tomando por fundamento o fato de que a ação popular não seria meio adequado para atender a pretensão dos autores, diante da ausência do prejuízo ao Erário. 239

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Entendeu o juízo singular que, ainda que tenha havido uma redução do PIS e PASEP, assim como da COFINS, não incorre em ilegalidade a omissão da Administração municipal em rever o contrato para reduzir o valor da tarifa dos transportes. No mesmo sentido, negou a pretensão relativa à ausência de licitação, pois não havia nos autos comprovação de efetivo dano ao Erário. Insatisfeitos, os autores apelaram ao Tribunal de Justiça, cujos fundamentos passa-se à análise a seguir. 4.2 DA ANÁLISE CRÍTICA DO CASO Em concordância com o juízo singular, o Tribunal por unanimidade confirmou as razões da sentença, mantendo-a nos termos em que extinguiu o feito sem julgamento de mérito. Nisto, o principal argumento a ser enfrentado, o qual justificou o decisum, é a inadequação do instrumento da ação popular para a redução das tarifas de transportes, pois estas, em tese, são custeadas por consumidores, e não pelo Erário. Normativamente, pode-se verificar que a ação popular tem como viés a proteção do patrimônio público, compreendido como os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico, conforme dicção do § 1º do art. 1º da Lei n. 4.717/65. Assim, tomando-se por base a premissa legal, a arguição relativa à possibilidade do cabimento do pleito popular deve ter, necessariamente, uma vinculação à lesão ao Erário, objeto de proteção da Lei. Logo, correto o posicionamento do Tribunal de Justiça, eis que seria ônus dos autores demonstrarem (no mínimo) o caráter patrocinado da concessão – ou seja, o caráter de uma concessão em que há subsídio do Poder Público ao lado dos particulares para justificar a ação. Em recente julgado, a Justiça Estadual de Mato Grosso proferiu a seguinte sentença nos autos de ação popular, também sobre o tema da tarifa dos transportes públicos: Contudo, o autor popular deduziu a pretensão de anular atos administrativos que estariam a causar lesão ao patrimônio e aos interesses particulares, ou seja, da população usuária do serviço de transporte coletivo municipal. O ato que se pretende a nulidade, qual seja, a Deliberação n.º 03/2016-ARSEC não encerra ato lesivo ao patrimônio público, mas sim, dos particulares que pagam o aumento da tarifa de transporte sem que haja a necessária melhoria do referido serviço (BRASIL, 2016).  240

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Sustentam ambos os tribunais que a eficácia da ação popular é desconstitutiva e condenatória, não sendo instrumento hábil para constituir obrigações ao Poder Público, como, por exemplo, a de construir rodovias. Ademais, a tutela buscada pelos autores do pleito em análise é a proteção do interesse difuso dos consumidores, usuários de transporte, e não a proteção ao Erário, razão pela qual o instrumento eleito mostra-se inadequado. Repita-se, o lesionado pela situação narrada na inicial é o consumidor, a população usuária do transporte urbano coletivo, que paga caro e vem se sujeitando, há muito tempo, a um serviço de péssima qualidade, insuficiente e que não oferece condições de segurança e comodidade (BRASIL, 2016). Outrossim, houve o impedimento do reajuste das tarifas de transporte público, circunstância ocorrida por meio do ajuizamento de ação civil pública pelo órgão de defesa do consumidor do Estado de Goiás.3 Logo, a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul mostra-se alinhada com o entendimento das demais cortes de justiça do País, vez que confirmou a sentença que extinguiu o feito sem resolução de mérito. Veja-se o que levantou o Des. Marco Aurélio Heinz, relator do acórdão gaúcho: Os autores não apontam qual a lesividade aos cofres públicos da não redução da tarifa que é suportada, não pelo erário, mas pelo passageiros do serviço concedido. De fato, a ação popular visa a proteção dos direitos difusos dos usuários do transporte coletivo, cujo bem jurídico não é alcançado pela ação popular (BRASIL, 2016). Por conseguinte, entende-se que, para os autores lograrem sucesso em sua pretensão, os mesmos teriam que ter demonstrado o prejuízo ao Erário (para legitimar o instrumento da ação popular). De outra banda, na hipótese de ser viável a ação civil pública (instrumento correto para defesa do interesse dos consumidores), deveria ter sido demonstrada 3 – Para mais informações sobre o caso, ver Acórdão n. 201593928220, julgado pela 5ª Câmara Cível do TJGO em 10-03-2016, relator Des. Delitro Belo de Almeida Filho, publicado no Diário da Justiça em 18-03-2016. Disponível em: . 241

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a ilicitude da tarifa dos transportes públicos, pois a mesma, conforme discorrido, é construída por meio de uma minuta contratual já pactuada no momento da licitação. O Des. Francisco José Moesch, na mesma linha do relator, assim asseverou: No caso, não restou demonstrada a lesividade ao patrimônio público. A ação popular foi proposta objetivando a redução da tarifa do transporte coletivo, o que viria em benefício, exclusivamente, dos usuários do serviço. Desse modo, concorda-se com a decisão proferida pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no sentido de que, na forma proposta, a ação popular não corresponde ao pleito intentado pelos autores. Por outro lado, acrescenta-se que o enfoque demasiado na perda patrimonial dos cofres públicos não deve ser o fundamento maior do decisum, principalmente quando enfrentada a questão da não ocorrência do certame licitatório. Assim se manifestou o relator em relação ao tema: Mesmo a alegação de violação do princípio da licitação para a delegação do serviço a particular, não pode ser examinada pela via da ação popular em razão da ausência de alegação de prejuízo do erário (BRASIL, 2016). Veja-se que, conforme o raciocínio exposto, a ausência de alegação de prejuízo ao Erário seria o óbice para o não enfrentamento da questão da licitação nos autos da ação popular ajuizada. Entretanto, esse enfoque não tem sido aplicado pela doutrina moderna, eis que, com o advento da Constituição Federal de 1988, ampliou-se o âmbito de proteção da ação popular, abarcando não somente o Erário, mas a moralidade administrativa, o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural. Nesse sentido posiciona-se Rodolfo de Camargo Mancuso (2001, p. 100, grifos no original): Presente a ampliação do objeto da ação popular, a partir do novo conceito inserto no art. 5º, LXXIII, da Constituição Federal, impende destacar um aspecto muito importante: se a causa da ação popular for um ato que o autor reputa ofensivo à moralidade administrativa, sem outra conotação de palpável lesão ao erário, cremos que em princípio a ação poderá vir a ser acolhida, em restando provada tal pretensão, porque a atual CF erigiu a “moralidade administrativa” em fundamento autônomo para a ação popular. 242

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Por conseguinte, não diga o Tribunal que a ausência ou a não alegação de prejuízo ao Erário seja fundamento para afastar a análise do pleito popular, pois a tutela do referido instrumento jurídico não se restringe ao patrimônio público em sentido econômico-financeiro. Nesse diapasão, o Superior Tribunal de Justiça, na análise do Recurso Especial n. 1.559.292/ES, conforme acórdão lavrado pelo Min. Relator Herman Benjamin, exarou a seguinte decisão: Sobre a necessidade de comprovação de dano em Ação Popular, é possível aferir que a lesividade ao patrimônio público é in re ipsa. Sendo cabível para a proteção da moralidade administrativa, ainda que inexistente o dano material ao patrimônio público, a Lei 4.717/65 estabelece casos de presunção de lesividade, bastando a prova da prática do ato nas hipóteses descritas para considerá-lo nulo de pleno direito (BRASIL, 2016). Sendo assim, embora a ação popular não tenha sido o instrumento jurídico adequado para a revisão das tarifas de transporte público no caso em apreço, de acordo com as razões já expostas, a ausência de licitação, procedimento que tem como fim cabal o melhor atendimento ao interesse público, é mácula que deve ser imperativamente analisada, independentemente de lesão patrimonial do Erário, em razão dos fundamentos da tutela administrativa. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao fim e ao cabo, desenvolvidas as considerações acerca do tema ao longo do presente trabalho, pode-se então tecer algumas notas provisórias sobre a proposta realizada. Primeiramente, sendo o controle social, por intermédio de uma vertente procedimentalista, um processo pelo qual se assegura o cumprimento dos padrões normativos instituídos socialmente, a primeira pergunta que se sobressai é: existe um padrão normativo que justifique a sua exigibilidade pelo medium do direito em relação ao tema das tarifas dos transportes públicos? A resposta é positiva. O ordenamento jurídico brasileiro protege os usuários de transporte coletivo, elegendo, desde o processo de contratação pública, as melhores condições para prestação do serviço. 243

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A segunda pergunta é: a exigibilidade sobre a qual recai o controle depende de caracteres unicamente econômicos? Ou seja: o alto custo das tarifas dos transportes por si só justifica algo em direito? Não. Conforme visto, o valor das tarifas é calculado mediante uma fórmula que está presente nos contratos públicos. Ademais, no contexto do Estado Regulador, havendo agências que versem sobre os temas, as mesmas estarão aptas a fiscalizar as condições de oferta do serviço. Prosseguindo: na ausência de fiscalização, o ordenamento jurídico brasileiro prevê a incidência de mecanismos instrumentais de defesa dos usuários contra o aumento injustificado das tarifas, dentre os quais podem ser acionados por membros da sociedade civil? Sim. Há canais institucionalizados que permitem a discussão da legitimidade do valor das tarifas, tendo como parâmetro as dimensões contratuais pactuadas e os demais fatores legais incidentes. Entretanto, conforme exposto ao longo do trabalho, a via da ação popular somente pode ser acionada quando há lesão ao Erário ou a matéria a este relacionada diretamente, situação em que somente incorrem as concessões em que há dispêndio do patrimônio público ao lado do particular (por exemplo, as concessões patrocinadas). Logo, a forma mais comum de discussão do valor das tarifas de transporte público tem sido por meio da ação civil pública, a qual, embora admita como legitimada “popular” a associação constituída há pelo menos um ano, tem, na prática, sido manejada pelo Ministério Público em defesa dos consumidores. Diante do exposto, pode-se concluir que é possível haver o controle social das tarifas dos transportes públicos, mas que, no direito brasileiro, conforme decidiu o Tribunal de Justiça, a ação popular em regra não é o instrumento hábil para tanto. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. BRASIL, Rio Grande do Sul, Município de Pelotas. Minuta do contrato de concessão. Disponível em: . Acesso em: 14 jul. 2016.

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Um estudo de caso da Ação Popular n. 70056129380 contra o Município de Viamão: o controle social da tarifa dos transportes públicos

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1185070. Relator: Teori Albino Zavascki. Data de julgamento: 22-09-2010. Data de publicação: 27-09-2010. Disponível em: . Acesso em: 14 jul. 2016. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1559292. Relator: Herman Benjamin. Data de julgamento: 02-02-2016. Data de publicação: 23-05-2016. Disponível em: . Acesso em: 14 jul. 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70056129380. Relator: Marco Aurélio Heinz. Data de julgamento: 02-10-2013. Data de publicação: 09-10-2013. Disponível em: . Acesso em: 14 jul. 2016. BRITTO, Carlos Ayres. Distinção entre controle social do poder e participação popular. Aracaju, 1992. Disponível em: . Acesso em: 17 mar. 2016. CASTRO, Domingos Poubel de. Auditoria e controle interno na Administração Pública: evolução de controle interno no Brasil: do Código de Contabilidade de 1922 até a criação da CGU em 2003. São Paulo: Atlas, 2008. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 5ª ed. Curitiba: Positivo, 2010. GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Contratos administrativos: gestão, teoria e prática. São Paulo: Atlas, 2002. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. V. 1. São Paulo: Tempo Brasileiro, 2003. HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. 4ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação popular: proteção do erário, do patrimônio público, da moralidade administrativa e do meio ambiente. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

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Augusto Carlos de Menezes Beber

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UMA ANÁLISE DA SÚMULA VINCULANTE N. 13 NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA A PARTIR DA JURISPRUDÊNCIA DO TJRS: LIMITES E POSSIBILIDADES DE SUA APLICABILIDADE PARA A NOMEAÇÃO DE CARGO POLÍTICO1 Cynthia Gruendling Juruena2 Ricardo Hermany3

RESUMO O presente capítulo teve por escopo analisar a Súmula Vinculante n. 13, a qual trata da vedação ao nepotismo na Administração Pública direta e indireta.

1 – Este capítulo foi desenvolvido a partir de pesquisas realizadas no Projeto de Pesquisa Internacional “Patologias Corruptivas”, e se refere ao eixo 2, no qual vêm sendo trabalhadas as (in)tensas relações entre governança, governabilidade e corrupção. 2 – Mestranda em Direito do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, com bolsa Capes (PROSUP) tipo II. Pós-graduanda em Direito Público pela Verbo Jurídico. Integrante do Grupo de Pesquisa “Espaço local e inclusão social”, coordenado pelo Professor Pós-Doutor Ricardo Hermany. Integra o Projeto de Pesquisa Internacional “Patologias Corruptivas”, coordenado pelo Professor Doutor Rogério Gesta Leal e o Grupo de Pesquisa “Direito, Cidadania e Políticas Públicas”, sob coordenação da Profa. Pós-Doutora Marli Marlene Moraes da Costa. E-mail: [email protected]. 3 – Pós-Doutor pela Universidade de Lisboa. Doutor pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito, Mestrado e Doutorado – da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Professor da Graduação da UNISC e da FEMA – Fundação Educacional Machado de Assis. Advogado. E-mail: [email protected].

Cynthia Gruendling Juruena e Ricardo Hermany

Após verificar os precedentes do Supremo Tribunal Federal que embasaram a edição da Súmula, efetuou-se uma análise na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, acerca de sua aplicabilidade. A partir da análise jurisprudencial, investigaram-se, com base nos argumentos das decisões, os limites e possibilidades de extensão da Súmula Vinculante n. 13 para a nomeação de cargo político. Os resultados preliminares obtidos indicam que é possível a aplicação da Súmula, devendo ser analisado o caso em comento. A metodologia utilizada no presente trabalho, em sua pesquisa jurisprudencial, foi quantitativa para a seleção dos acórdãos e qualitativa para sua análise. O método de procedimento utilizado foi uma abordagem bibliográfica para investigar o tema com sua fundamentação teórica, justificando seus limites e contribuições. Palavras-chave: administração pública; cargo político; jurisprudência; nomeação; súmula vinculante. 1 INTRODUÇÃO O presente capítulo tratará acerca da Súmula Vinculante n. 13 (Súmula do Nepotismo) e como vem ocorrendo a sua aplicação na Administração Pública direta e indireta, a partir de pesquisa jurisprudencial realizada no sítio do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Nesse sentido, primeiramente será explanado acerca da Súmula Vinculante n. 13 e de seu surgimento, em que será realizada a análise em sede dos argumentos utilizados pelo Supremo Tribunal Federal nos precedentes que lhe deram origem. No segundo ponto, será verificada a jurisprudência do TJRS com relação ao tema do nepotismo, a partir de pesquisa desenvolvida no sítio eletrônico do Órgão. Será verificado quando o Tribunal acolhe e rechaça a aplicação da Súmula Vinculante, observando os argumentos utilizados pelos desembargadores. No terceiro momento, a partir dos precedentes do STF e da análise jurisprudencial realizada no TJRS, com base nos argumentos utilizados pelos magistrados, analisar-se-á quanto aos limites e possibilidades de extensão da Súmula Vinculante n. 13 para a nomeação de cargo político. 2 A SÚMULA VINCULANTE N. 13 NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA A Súmula Vinculante n. 13, conhecida como a Súmula Vinculante do Nepotismo, foi aprovada pelo STF, por unanimidade, em 21 de agosto de 2008. 248

Uma análise da Súmula Vinculante n. 13 na Administração Pública a partir da jurisprudência do TJRS: limites e possibilidades de sua aplicabilidade para a nomeação de cargo político

Essa veda o nepotismo no âmbito dos três Poderes, nas esferas da União, Estados e Municípios. Conforme o enunciado da Súmula Vinculante, tem-se que: a nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Súmula Vinculante n. 13, 2008). Dessa feita, a Administração Pública direta e indireta, em todos os órgãos, deve cumprir com a Súmula acima enunciada, tendo em vista que está em consonância com a Constituição Federal de 1988 e com os princípios que regem a Administração Pública. Em um primeiro momento, é importante verificar a origem etimológica do termo nepotismo, visto que a decisão ora analisada proíbe essa prática. Remetendo-se ao latim, o radical nepos significa sobrinho ou descendente. Já o sufixo “ismo”, que advém do grego ismos, exprime “a prática de”. Unindo-se o radical e o sufixo, nepotismo significaria a “prática de sobrinho/descendente”. Nesse sentido, conforme o dicionário Houaiss (2001, p. 2011), nepotismo revela ser “sobrinho do sumo pontífice; Conselheiro papal; por extensão de sentido, indivíduo especialmente protegido ou predileto; favorito”. A partir da origem terminológica e de suas definições, resta claro que o nepotismo se caracteriza na concessão de privilégios a seus familiares. Diante disso, o STF, com a edição da Súmula Vinculante n. 13, teve por escopo o de coibir a concessão de privilégios a familiares, visto que essa prática em muitos casos está atrelada à imoralidade. Isto pois a relação entre parentes se afigura em uma relação de lealdade e confiança, podendo ocorrer, em muitos casos, que o favorecido irá resguardar os interesses de seu hierárquico e não os interesses da Administração Pública (que, por sua vez, deve agir conforme o interesse público). A Súmula Vinculante n. 13 prevê, em sua vedação ao nepotismo, o alcance do parentesco por afinidade até o terceiro grau.

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O nepotismo possui relação com a administração pública patrimonialista, sendo essa prática de concessão de privilégios a familiares um dos legados deixados por um longo período em que o Brasil teve esse modelo organizacional. Segundo Faoro (2008, p. 26-30), nesse modelo havia um jogo de influências e pressões recíprocas, e as instituições públicas estavam subordinadas ao poder do soberano. No modelo patrimonialista, benefícios e privilégios são concedidos a uma minoria da sociedade, e cargos públicos não são conferidos de acordo com o profissionalismo e meritocracia de quem o ocupa, e, sim, conforme as relações pessoais que possuem com quem detinha o poder. Nesse sentido, o Estado, no modelo patrimonialista, se aparelha segundo suas necessidades, e não visando a atender as necessidades do povo (ARAÚJO, 2011, p. 68). Dessa forma, as práticas de nepotismo coadunam-se com o patrimonialismo, modelo esse que, no entanto, é incompatível com a Constituição Federal de 1988, haja vista que atualmente adota-se o modelo gerencial, com a reforma4 realizada no governo federal no ano 2005. No modelo gerencial, há valores e princípios que devem nortear a gestão pública, como a profissionalização da alta burocracia (na qual houve a universalização de concursos para ingresso em serviço público), descentralização e desconcentração, orientação dos serviços para os cidadãos, eficiência, novas formas de controle e de prestação dos serviços, accountability e transparência (ABRUCIO, 2007, p. 79-84). Diante disso e em decorrência dos princípios que regem a Administração Pública, do modelo de Estado Democrático de Direito consagrado na Constituição, da Constituição Federal de 1988 e da ideia de construção de uma boa administração pública, instaurou-se a necessidade de repensar as práticas de nepotismo – que são de cunho patrimonialista, o que vai de encontro ao que preceitua a Constituição de 1988. Nesta senda, dois precedentes do STF ensejaram a edição da Súmula Vinculante n. 13, que serão aqui analisados. A começar pela Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC, tendo como relator o Min. Carlos Britto, e ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, em que o requerido foi o Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Essa Ação Declaratória de Constitucionalidade, datada de 18 de maio de 2005,

4 – É intitulado também “reforma Bresser” por ter sido Luiz Carlos Bresser Pereira – o Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado à época – que orientou a reforma. Ainda, os termos “nova gestão pública” e “reforma administrativa gerencial” também são utilizados como sinônimos para reforma gerencial. 250

Uma análise da Súmula Vinculante n. 13 na Administração Pública a partir da jurisprudência do TJRS: limites e possibilidades de sua aplicabilidade para a nomeação de cargo político

trata da Resolução n. 07/05 do CNJ. Primeiramente será analisada a medida cautelar, em que se fará a análise dos pedidos e da decisão dos ministros. Preenchidos os requisitos de legitimidade, importa, em primeiro plano, tratar do que dispõe a Resolução n. 07 do CNJ. A Associação dos Magistrados Brasileiros, na ação, expressa que o CNJ, no uso de seus atributos conferidos pela Emenda n. 45/045 e de acordo com o os princípios da Administração Pública, dispostos no art. 37 da Constituição Federal, fez adequado uso de sua competência na edição dessa resolução. Ainda, ressaltam na decisão que os condicionamentos impostos pela Resolução n. 07 não atentam contra os incs. II e V do art. 37 da Constituição Federal de 1988 (liberdade de nomeação e exoneração dos cargos em comissão e funções de confiança), isto pois a interpretação desses incisos deve estar em consonância com o que preceitua o caput do artigo em comento. A Resolução n. 07/05 do CNJ, de acordo com os princípios da moralidade e da impessoalidade que se encontram consagrados no art. 37 da Constituição Federal de 1988, disciplinou que: Art. 1º É vedada a prática de nepotismo no âmbito de todos os órgãos do Poder Judiciário, sendo nulos os atos assim caracterizados. Art. 2º Constituem práticas de nepotismo, dentre outras: I - o exercício de cargo de provimento em comissão ou de função gratificada, no âmbito da jurisdição de cada Tribunal ou Juízo, por cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados (BRASIL, 2005) (grifo próprio). Cabe registrar que o CNJ, nessa resolução, dispôs acerca da vedação do nepotismo no âmbito do Poder Judiciário, constituindo-se essa Ação Declaratória 5 – A Emenda Constitucional n. 45/04 trouxe importantes alterações no ordenamento jurídico brasileiro. Cabe ressaltar que, referente a esta Ação Declaratória de Constitucionalidade, que é um dos precedentes da Súmula Vinculante n. 13, a EC n. 45/05 dispõe que: “§ 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura: [...] II zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União” (grifo próprio). 251

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de Constitucionalidade em precedente para a extensão dessa proibição para os demais Poderes. Nesse sentido, foi deferida a medida liminar, por maioria de votos, em fevereiro de 2006, requerida pela Associação dos Magistrados Brasileiros para, dentre outros, suspender o julgamento de processos que tenham por escopo o de questionar a constitucionalidade da resolução, até que seja realizado o exame de mérito da ADC; impedir que juízes e tribunais venham a proferir decisões no sentido de afastar a aplicabilidade da Resolução n. 07/05; e suspender, com eficácia ex tunc, os efeitos de decisões que tenham determinado o afastamento da aplicação. Superada a menção à medida cautelar, passa-se para a análise da Ação Declaratória de Constitucionalidade, julgada em 20 de agosto de 2008, iniciando-se com os pedidos e fundamentos da Associação dos Magistrados Brasileiros. Estes foram: a) o Conselho Nacional de Justiça tem competência constitucional para zelar pela observância do art. 37 da Constituição Federal de 1988; b) a vedação ao nepotismo é regra constitucional, visto que essa decorre dos princípios da impessoalidade, moralidade, igualdade e eficiência administrativa; c) além de estar subordinado à legalidade formal, o Poder Público fica adstrito à juridicidade, conceito mais abrangente que inclui os comandos diretamente veiculados pela Constituição Federal; d) a Resolução n. 07/05 do CNJ não prejudica o necessário equilíbrio entre os Poderes do Estado — por não subordinar nenhum deles a outro —, nem vulnera o princípio federativo, dado que também não estabelece vínculo de sujeição entre as pessoas estatais de base territorial. Após ter sido deferido o pedido de medida liminar, foi determinada a remessa dos autos ao Procurador-Geral da República, que, em seu parecer, opinou pela procedência da ação. Por unanimidade, assim como foi o deferimento da medida liminar, foi julgada procedente a Ação Declaratória de Constitucionalidade, sendo essa decisão dotada de efeito vinculante. O STF entendeu ser a edição da Resolução n. 07/05 ato apropriado e dentro do exercício de poder do CNJ, isso porque, dentre suas atribuições, está a incumbência de zelar pela observância do art. 37 da Constituição Federal de 1988. O segundo precedente trata de uma repercussão geral em recurso extraordinário (n. 579.951-4, Rio Grande do Norte), tendo como Relator o Min. Ricardo Lewandowski, como recorrente o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte e como recorrido o Município de Água Nova e outro (a/s). O Tribunal reconheceu a repercussão geral da questão suscitada. Tal recurso 252

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extraordinário foi interposto contra acórdão que entendeu pela inaplicabilidade da Resolução n. 07/05 do CNJ (objeto de discussão do precedente da ADC acima analisado) para os Poderes Executivo e Legislativo. Sustentou-se nesse acórdão – objeto de recurso extraordinário – que havia a necessidade de lei expressa para a vedação do nepotismo nos demais Poderes. Além disso, foi aduzido que a nomeação de parentes de agentes de poder e ocupantes de cargos em comissão para o exercício desses mesmos cargos ou de função de confiança não viola os princípios expressos no art. 37 da Constituição Federal de 1988. No recurso extraordinário, abrigado pelo dispositivo 102, inc. III, alínea a, da Constituição Federal de 1988, alegou-se a ofensa ao Princípio da Moralidade e ao art. 37, II, da mesma Carta. Sustentou-se que a proibição do nepotismo nos demais Poderes decorre desse princípio constitucional, não sendo necessária lei expressa. Além disso, o art. 37, inc. II, da Constituição Federal de 1988 autoriza a livre nomeação para cargo em comissão e função de confiança apenas para atribuições de chefia, direção e assessoramento, situação esta que não se compatibiliza com a nomeação para o cargo de motorista, como é o caso de um dos litisconsortes desse recurso extraordinário que ora se examina. Houve o conhecimento e provimento do recurso extraordinário, entendendose que o princípio constitucional que ampara a vedação ao nepotismo se dirige a toda a Administração Pública, nas esferas federal, estadual e municipal, sendo reformado o acórdão e determinada pelo STF a exoneração dos ocupantes de cargo em comissão. Ademais, foi decidido que o Município de Água Nova se abstenha de contratar ou nomear qualquer pessoa física ou jurídica (na pessoa do sócio) que seja parente daquele ocupante de mandato eletivo ou cargo em comissão. Como visto, esse recurso extraordinário possui repercussão geral. Verificada a origem do nepotismo e a Súmula Vinculante n. 13, bem como os precedentes do STF que alicerçaram a sua edição, passa-se para a análise da jurisprudência do TJRS acerca desse tema central para a administração pública contemporânea. 3 A JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL ACERCA DA SÚMULA VINCULANTE N. 13 Após a abordagem da Súmula Vinculante n. 13, sua origem e os precedentes do STF que embasaram a sua edição, serão analisados os dados resultantes de uma pesquisa jurisprudencial no sítio do TJRS sobre a temática em comento. 253

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Cabe, antes da abordagem em si, explanar acerca da metodologia utilizada para a realização da análise jurisprudencial no sítio eletrônico do TJRS. Após, serão trazidos os resultados encontrados com tal investigação. Para análise dos julgados do TJRS, algumas balizas utilizadas necessitam ser explicitadas a fim de evidenciar a metodologia de análise; ou seja, demonstrar o padrão de busca que resultou nos julgados que aqui serão analisados numericamente e em seu conteúdo decisório. Primeiramente, elucida-se que para a pesquisa não foi necessário o preenchimento do campo de data de publicação e data de julgamento, tendo em vista ser a Súmula Vinculante n. 13 do ano 2008, o que se demonstra não ser um grande espaço temporal. Passa-se agora a simplesmente elucidar o preenchimento dos campos para realizar a pesquisa quantitativa. No espaço destinado a palavras-chave digitou-se, entre aspas, Súmula Vinculante 13; Órgão Julgador: Todos; Relator: Todos; pesquisa por Ementa; Seção: não foi selecionada, sendo a busca realizada no cível e no crime; Tipo de Processo: Todos (porque ao selecionar um tipo de processo específico, o filtro não corresponde com o número real de ações, muitas vezes zerando a busca); Número: nenhum; Comarca de Origem: nenhuma. Com a realização da metodologia de análise acima descrita, obteve-se apenas 11 resultados, o que verifica ser um número restrito. Dessa forma, quantitativamente, esse é o resultado da pesquisa. Tendo em vista que cada acórdão será analisado isoladamente, passa-se para a análise qualitativa. Desses 11 acórdãos, 7 são apelações cíveis e 4 são agravos de instrumento. Dessa forma, tendo em vista que há um maior número de apelações cíveis, primeiramente analisar-se-á os fundamentos das apelações e, após, dos agravos de instrumento. A começar pela Apelação Cível n. 70039472683, que tramitou na 3ª Câmara Cível, tendo sido julgada em 16 de dezembro de 2010, sendo relator do presente recurso o Des. Rogério Gesta Leal. Essa objetivava a reintegração do apelante João Carlos Félix de Oliveira, que foi exonerado do cargo em comissão de Chefe de Setor, após denúncia de prática de nepotismo. A sentença ora atacada denegou o que está sendo pleiteado, sob o fundamento da inexistência de ilegalidade no ato que o exonerou do cargo, eis que decorrente do poder discricionário da administração. Ainda, foi indicada a existência de nepotismo, pois a configuração de parentesco alcança os casos de parentesco por afinidade, conforme a Súmula Vinculante n. 13 do STF. Foi negado o provimento ao recurso, tendo em vista que as nomeações para cargo em comissão são de caráter precário, passível de exoneração do servidor a 254

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qualquer tempo, nos termos do art. 37, inc. II, da Constituição Federal, dispensando o processo administrativo. Ademais, a observância à Súmula Vinculante n. 13 deve se sobrepor às demais normas secundárias, o que é o caso das nomeações para cargo em comissão. A Apelação Cível n. 70043654508, também tramitada na 3ª Câmara Cível, tendo o julgamento ocorrido em 29 de março de 2012, sendo relator do recurso o Des. Eduardo Delgado. Esse recurso de apelação foi interposto contra a sentença denegatória proferida nos autos do mandado de segurança. A impetrante postula a reforma da sentença, para que seja concedida a sua nomeação para o cargo de vice-diretora. Sustenta que houve eleição para diretoria de Escola Pública Municipal, a qual concorreu à função de vice-diretora, mediante a formação de uma chapa, registrada na Ata n. 11/10 da Comissão Eleitoral. No entanto, ocorreu o indeferimento de sua nomeação pelo Secretário Municipal da Administração, em razão do grau de parentesco de irmã com a servidora eleita para o cargo de Diretora. O recurso foi desprovido, e os fundamentos que embasaram o deferimento foram: no caso concreto, a recorrente é irmã de servidora municipal eleita e nomeada para o cargo de direção da mesma escola municipal onde pretende ela exercer o cargo de Vice-Diretora, de modo que, configurado o parentesco consanguíneo, em linha colateral, de 2º grau, tratou a Administração de, em cumprimento à disposição contida na Súmula Vinculante n.º 13, indeferir sua indicação ao cargo pretendido, a ser exercido com função gratificada, não se verificando no ato qualquer irregularidade. Oportuno salientar que, ainda que o acesso ao cargo de Vice-Diretora ocorra mediante eleição, por parte da comunidade escolar, sua assunção depende de ato do administrador (BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível n. 70043654508, 2012) (grifo próprio). Nesse sentido, ainda que a impetrante houvesse sido eleita para assumir a função de vice-diretora, a Administração entendeu pela aplicação da Súmula Vinculante n. 13 (por tratar-se de vínculo de parentesco com a diretora da mesma escola). O TJRS decidiu nesse mesmo sentido. A Apelação Cível n. 70056735103, que tramitou na 2ª Câmara Cível, teve o seu julgamento na data de 20 de novembro de 2013, tendo como relator o

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Des. João Barcelos de Souza Júnior. O apelante, Município de Senador Salgado Filho, interpôs o recurso em virtude de sentença de parcial procedência de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público, que declarou a nulidade do ato de nomeação de Décio Dutra de Oliveira para o cargo de Secretário Municipal de Educação, determinando a sua exoneração. A Ação Civil Pública foi ajuizada por ser Décio Dutra de Oliveira sobrinho de Fernando Vanderlei Dutra, Secretário Municipal de Obras, Habitação, Trânsito e Transportes, o que configura nepotismo. Entretanto, o Município alega que a vedação de contratação de parentes até o terceiro grau não se aplica aos cargos de natureza política, tais como o de Secretário Municipal. Ademais, foi sustentado que os Secretários não são parentes do Prefeito Municipal, responsável pelas nomeações, não havendo qualquer relação de hierarquia ou influência funcional entre eles. O relator, valendo-se das razões quando do julgamento do Agravo de Instrumento n. 70051067338 apresentado pela recorrente, aduz que a jurisprudência está pacificando o entendimento de que a vedação contida na referida Súmula também é aplicável aos dirigentes superiores da Administração Pública. Ademais, assevera que na referida Súmula Vinculante n. 13 não há taxativamente a exceção de afastamento de sua aplicação para os agentes políticos. Nesse sentido e com base nesses fundamentos, a apelação cível foi desprovida, por maioria dos votos. A Apelação Cível n. 70057212482, que foi processada perante a 2ª Câmara Cível, julgada em 26 de março de 2014, teve como relatora a Desa. Laura Louzada Jaccottet. Trata-se de recurso de apelação interposto em face de sentença que, nos autos da Ação Civil Pública, por ato de improbidade administrativa, ajuizada pelo Ministério Público, julgou procedente e confirmou a medida liminar no sentido de: a) reconhecer a prática de ato de improbidade administrativa pelo demandado em razão da nomeação indevida de seu sobrinho, por infração ao art. 11 da Lei n. 8.429/92 e à Súmula Vinculante n. 13 do STF; b) determinar a suspensão dos direitos políticos do demandado pelo período de 3 anos, bem como condená-lo ao pagamento de multa civil correspondente a 12 meses da remuneração por ele recebida como Prefeito Municipal quando da nomeação indevida, com atualização monetária pelo IGP-M desde então e juros moratórios mensais de 1% a partir da citação. Em suas razões, o apelante sustenta que o servidor nomeado possui curso técnico em contabilidade, e que a função por ele desempenhada se equiparava a de Secretário Municipal, o que se constitui em função política. Dessa forma, não se 256

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constituindo em prática de nepotismo e devendo ser afastado o ato de improbidade. Houve provimento do recurso, por unanimidade, merecendo destaque os fundamentos dessa jurisprudência, que foram no sentido de que: a Súmula Vinculante 13 do Supremo Tribunal Federal proíbe o nepotismo; todavia, a própria Corte Suprema tem entendimento no sentido de que cargos de natureza política afastam, no caso concreto e dependendo das circunstâncias, a incidência da referida Súmula Vinculante, por ele editada (BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível n. 70057212482, 2014) (grifo próprio). No próximo ponto, retornar-se-á à discussão sobre os limites e possibilidades de extensão da Súmula Vinculante n. 13 para a nomeação de cargo político, sendo de extrema relevância para o presente trabalho as últimas duas jurisprudências acima analisadas. Dando prosseguimento à análise jurisprudencial, a Apelação Cível n. 70061772356, julgada pela 21ª Câmara Cível em 29 de outubro de 2014, teve como relator o Des. Arminio José Abreu Lima da Rosa. O apelante recorre da sentença que julgou parcialmente procedente o pedido formulado na Ação Civil Pública por ato de improbidade administrativa proposta pelo Ministério Público, sendo a sentença no sentido de: a) reconhecer a prática de atos de improbidade administrativa pelo réu, na concessão de função gratificada à cunhada do réu e ao cunhado do Secretário de Finanças, por se configurar em infração ao art. 11 da Lei n. 8.429/92 e à Súmula Vinculante n. 13 do STF, devendo ser declaradas nulas tais nomeações e determinando a imediata exoneração da função gratificada, tornando definitiva a liminar; b) determinar a suspensão dos direitos políticos do requerido pelo período de 3 anos, bem como condená-lo ao pagamento de multa civil consistente em 12 meses da remuneração que percebia como prefeito quando do apontamento da irregularidade, com atualização monetária pelo IGP-M desde então e juros moratórios mensais de 1% a partir da citação; c) julgar improcedente o pedido de declaração de nulidade de outras nomeações e/ou contratações que possam configurar nepotismo. Nas razões recursais, o apelante defende a inexistência de ato ímprobo, discorrendo sobre os conceitos de função gratificada e gratificação de função. Dispõe que a gratificação de função, paga aos servidores por desempenharem atividades junto ao controle interno, não corresponde ao exercício de funções

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de direção, chefia e assessoramento. Diante disso, afasta-se a configuração de nepotismo, na esteira de decisão do TCE. A apelação foi, em parte, provida por unanimidade. Os desembargadores entenderam que, quanto aos itens “a” e “c”, não há nada a ser reparado na sentença, devendo ser mantido o reconhecimento da prática de atos de improbidade administrativa pelo réu, bem como devendo ser julgado improcedente o pedido de declaração de nulidade de outras nomeações e/ou contratações que possam configurar nepotismo. Portanto, houve revisão da sentença no que tange ao item “b”, qual seja, da penalização relativa à suspensão dos direitos políticos. Assim, com base na incidência dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, reduziu-se a multa de 12 meses de remuneração para 1 vez. Ainda, não se justifica a penalidade de suspensão dos direitos políticos. A Apelação Cível n. 70065759789, processada na 22ª Câmara Cível e com o seu julgamento em 20 de agosto de 2014, teve como relatora a Desa. Maria Isabel de Azevedo Souza. O Ministério Público ajuizou ação de improbidade administrativa para a condenação nas sanções do art. 12, incs. I, II e III, da Lei n. 8.429/92, bem como a restituição dos valores indevidamente percebidos dos cofres públicos. No caso em tela, o Prefeito Municipal nomeava para cargos em comissão e função gratificada esposa, nora, genro e filha do Presidente da Câmara Municipal em troca de favores políticos. Na instância de 1º Grau, foi julgada procedente a ação e reconhecida a prática de ato de improbidade administrativa pelo requerido, por afronta aos arts. 9º, XI; 10, I e XII; e 11, caput e inc. I, da Lei n. 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa – LIA). Como eram diversos réus, as penas culminadas foram distintas. No entanto, as condenações se caracterizavam em suspensão dos direitos políticos, pagamento de multa civil, ressarcimento integral do dano e perda dos cargos em comissão que exerciam. Os recursos foram providos em parte, isto pois o Egrégio Tribunal de Justiça entendeu que o Prefeito Municipal e o Presidente da Câmara Municipal praticaram ato de improbidade administrativa, no dispositivo 11 da referida LIA. No entanto, em razão da ausência de provas de que os parentes favorecidos não tenham trabalhado, não respondem pelos atos ímprobos que os beneficiaram. A última Apelação Cível que será referida, de n. 70065994352, com a análise na 2ª Câmara Cível, teve o julgamento na data de 25 de novembro de 2015, sendo relator o Des. João Barcelos de Souza Júnior. Trata-se de recurso de apelação, interposto pelo Ministério Público, em face da sentença que julgou 258

Uma análise da Súmula Vinculante n. 13 na Administração Pública a partir da jurisprudência do TJRS: limites e possibilidades de sua aplicabilidade para a nomeação de cargo político

improcedente ação civil pública ajuizada pela prática de atos de improbidade administrativa. O Ministério Público baseou sua pretensão de condenação dos réus por ato de improbidade administrativa em razão da contratação de Maria Elisete Kuver de Araújo e Andrelise Kuver de Araújo para realização de trabalhos em prol da Secretaria do Turismo do Município de Caxias do Sul. Segundo o órgão ministerial, a contratação dessas pessoas deu-se de forma irregular, tendo em vista que elas são ligadas por laços de parentesco com o assessor da Secretaria. No entanto, inexistem provas de que essas contratações se deram a pedido ou por influência de Saulo, evidenciando, em vez disso, que as prestadoras dos serviços foram contratadas diretamente pelo réu Jaison Barbosa dos Santos, na qualidade de Secretário do Turismo, o qual não mantém laço de parentesco com nenhuma delas. Diante disso, foi julgada improcedente a Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público. A apelação cível foi parcialmente provida, na qual houve o entendimento de que a contratação pelos demandados – quais sejam, Secretário Municipal de Turismo e assessor (cargo de confiança) da Secretaria Municipal de Turismo –, da demandada Maria Elisete Kuver de Araújo, companheira de Saulo, para prestar serviços junto à referida secretaria, está permeada de irregularidades, pois afronta o art. 106 da Lei Orgânica do Município de Caxias do Sul e a Súmula Vinculante n. 13 do STF. A contratação importa em ato de improbidade administrativa, tipificado no art. 11, caput, culminado com o art. 3º da Lei n. 8.429/92. A contratação de Andrelise Kuver de Araújo, cunhada de Saulo, para prestar serviços junto à secretaria, também se configura em ato de improbidade administrativa, tipificado no art. 11, caput, da referida Lei. Dessa forma, analisadas as apelações cíveis que possuem vinculação com a vedação ao nepotismo, passa-se à exposição dos agravos de instrumento encontrados com a busca de jurisprudência no sítio eletrônico do TJRS. O primeiro Agravo de Instrumento que será analisado, de n. 70051067338, refere-se à Apelação Cível n. 70056735103 (já analisada no presente trabalho), o qual teve julgamento na data de 19 de dezembro de 2012. Foi mantida a antecipação de tutela deferida para a imediata exoneração de ocupante do cargo de Secretário Municipal de Educação, sendo desprovido, por maioria, o Agravo de Instrumento. Interessante aqui ressaltar que a Súmula Vinculante n. 13 foi aplicada pelo TJRS, nesse caso, em sede de nomeação de cargo político. O Agravo de Instrumento n. 70056422900 tramitou na 21ª Câmara Cível e foi julgado em 30 de outubro de 2013, sendo o Des. Marco Aurélio Heinz o 259

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relator da ação. O Prefeito do Município de Sagrada Família agrava da decisão que, em sede de liminar, determinou o afastamento do cargo em comissão de Secretária Municipal, sua esposa, sob o argumento de violação da Súmula Vinculante n. 13 do STF, na ação de improbidade movida pelo Ministério Público. O agravante sustenta a legalidade da nomeação por se tratar de cargo político, não incidindo a vedação prevista para os parentes até terceiro grau, conforme jurisprudência consonante. Os magistrados decidiram no sentido de que não se submete às hipóteses da Súmula Vinculante n. 13 a nomeação de agente político, afigurando-se o cargo de Secretário de Estado em agente político, segundo entendimento do próprio STF. Nesta senda, não se constitui em ilegalidade a nomeação da esposa do Prefeito para o desempenho do cargo de Secretária Municipal, tendo em vista tratar-se de cargo político. Assim, o TJRS deu provimento ao agravo. O Agravo de Instrumento n. 70061065603, julgado em 2 de outubro de 2014 na 2ª Câmara Cível teve como relator o Des. Ricardo Torres Hermann. Esse recurso foi interposto pelo Município de Piratini, em razão de ação proposta pelo Ministério Público que, em sede de pedido liminar, deferiu a exoneração das demandadas por serem, respectivamente, esposa e companheira de vereadores desse Município. Foi sustentada a inaplicabilidade da Súmula n. 13 do STF às contratações para cargos de natureza eminentemente política. Diante desse fundamento alegado pelo agravante, o relator – acompanhado pelos demais desembargadores – manifestou-se no sentido de que: basicamente porque ainda é controversa a aplicação da mencionada Súmula Vinculante 13 do STF em relação às nomeações políticas, afigurando-se, por isso, temerária a imediata determinação de exoneração das duas servidores (sic) nomeadas pelo executivo municipal para o exercício dos cargos de Diretora de Biblioteca e de Diretora de Telecentro. (BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Agravo de Instrumento n. 70061065603, 2014) (grifo próprio). Neste diapasão, foi dado provimento ao agravo de instrumento, entendendo-se que merece reforma a decisão que determinou a exoneração das demandadas. Nota-se que o TJRS vem se posicionando no sentido de não aplicar a Súmula Vinculante n. 13 para os casos de nomeações políticas. O último Agravo de Instrumento a ser analisado, de número 70057526907, teve o seu trâmite na 3ª Câmara Cível, atuando como relator o Des. Eduardo

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Delgado, e a data de julgamento foi 20 de novembro de 2014. Esse tratou de agravo de instrumento interposto pelo Ministério Público contra a decisão que negou a tutela provisória, proferida nos autos de ação civil pública, em desfavor do Município de São Pedro da Serra. Em sede de 1º Grau, o magistrado entendeu que: em atenção ao pedido de antecipação de tutela, ressalto que, não obstante a força imperativa da Súmula Vinculante n. 13 do STF, de observância obrigatória aos demais órgãos da administração pública, é fato que consoante o entendimento explicitado pela própria Corte Suprema, no sentido que a vedação ao nepotismo não alcança a nomeação para cargos políticos. Deste modo, o Prefeito Municipal não estaria impedido, por força da indigitada súmula, a nomear parente seu para exercício de cargo político de Secretário Municipal (BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Agravo de Instrumento n. 70057526907, 2014) (grifo próprio). No voto do desembargador-relator, o mesmo trouxe jurisprudências do TJRS, do STJ e do STF, no que tange à aplicação da Súmula Vinculante n. 13 para nomeações políticas. As jurisprudências não convergiam entre si, sendo que, como veremos no próximo ponto, em diversos momentos os ministros do STF asseveravam que a súmula vinculante do nepotismo não traz a exceção de não aplicação a cargo político. Isto pois deve ser analisado o caso e verificado se houve a prática de nepotismo, para que se aplique ou se afaste a incidência dessa Súmula Vinculante. Em seu voto, o relator ressaltou que, diante desse dissenso nos tribunais acerca da aplicação ou não da Súmula Vinculante às nomeações de cargo político, é necessário que haja a contextualização para que seja caracterizado. Dessa forma, o magistrado negou provimento ao recurso, com os demais desembargadores de acordo. Umas das desembargadoras desse agravo de instrumento expôs que o plenário do STF já se pronunciou acerca da inaplicabilidade do conteúdo da referida Súmula quanto a cargos de natureza política. Mais adiante, apontou que essa posição não era uníssona na Corte. Efetuada a abordagem jurisprudencial a partir do sítio eletrônico do TJRS, acerca da aplicabilidade da Súmula Vinculante n. 13, serão verificadas quais as possibilidades de extensão dessa Súmula para as nomeações políticas, a partir da jurisprudência ora analisada e de jurisprudência do STF.

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4 OS LIMITES E POSSIBILIDADES DE EXTENSÃO DA SÚMULA VINCULANTE N. 13 PARA A NOMEAÇÃO DE CARGO POLÍTICO Realizada a análise da jurisprudência do TJRS acerca da aplicabilidade da Súmula Vinculante n. 13, verificar-se-ão os limites e possibilidades de extensão dessa Súmula para a nomeação de cargo político. Essa abordagem será feita a partir do Egrégio Tribunal de Justiça e da forma com que o STF tem se posicionado acerca do tema. Primeiramente, importante se adentrar mais detidamente na análise da Apelação Cível n. 70056735103, que tramitou na 2ª Câmara Cível e teve o seu julgamento na data de 20 de novembro de 2013. O Município sustentou que a vedação de contratação de parentes até o terceiro grau não se aplica aos cargos de natureza política, tais como o de Secretário Municipal. O relator, valendo-se das razões quando do julgamento do Agravo de Instrumento n. 70051067338 (que também foi objeto de análise) apresentado pela recorrente, asseverou que a jurisprudência está pacificando o entendimento de que a vedação contida na referida Súmula também é aplicável aos dirigentes superiores da Administração Pública. O magistrado sustentou que, na referida Súmula Vinculante n. 13, não há taxativamente a exceção de afastamento de sua aplicação para os agentes políticos. Nesse sentido e com base nesses fundamentos, a apelação cível foi desprovida, por maioria dos votos. Dessa forma, nota-se que no caso em comento o TJRS decidiu no sentido de aplicar a Súmula Vinculante n. 13 para a nomeação de cargo político, isto porque na Súmula não consta a exceção de ser inaplicável às nomeações políticas. No entanto, como vimos em outros julgamentos6 do próprio TJRS, os fundamentos utilizados pelos magistrados para aplicar ou afastar a Súmula Vinculante para as nomeações políticas possuem importantes e respeitáveis divergências. Isto porque há decisões no sentido de que é aplicável – como visto acima – e outras que suscitam ser inaplicável, em que os magistrados decidiram – em sede de agravo de instrumento – no sentido de que a nomeação de agente político não se submete às hipóteses da Súmula Vinculante n. 13. Cabe registrar que há jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça sustentando que o STF entende ser Secretário Municipal cargo de natureza política, não devendo, então, ser aplicada a Súmula Vinculante n. 13. No entanto, o tema não está pacificado no STF, cabendo trazer posição divergente: 6 – Como na Apelação Cível n. 70057212482, Agravo de Instrumento n. 70056422900 e Agravo de Instrumento n. 70061065603. 262

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A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal. O teor do Verbete não contém exceção quanto ao cargo de secretário municipal. 3. Indefiro a liminar. 4. Solicitem informações ao reclamado. 5. Vindo a manifestação ao processo, colham o parecer da Procuradoria Geral da República. 6. Publiquem. (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Medida Cautelar na Reclamação n. 15571/RS, 2013) (grifo próprio) Dessa forma, o posicionamento adotado pelo Min. Marco Aurélio vai de encontro ao que foi sustentado em uma das jurisprudências analisadas no presente trabalho, de que a Corte Suprema entende ser secretário municipal cargo político. Importa salientar ainda que a Mina. Cármen Lúcia suscita questões importantes nos autos de medida cautelar, como: (...) O texto da Súmula Vinculante n. 13 deste Supremo Tribunal Federal não excepciona a nomeação de parentes para cargos políticos e, conforme ficou assentado na Reclamação n. 6.650-MC-AgR, a caracterização de nepotismo deverá ser feita em cada caso. Isso porque, como salientei no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 12/DF, o princípio constitucional da moralidade administrativa não autoriza o parentesco como critério de admissão no serviço público, nem mesmo para cargos de confiança, pois confiança se avalia pela qualificação do candidato e não na qualidade do nome por ele ostentado (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Medida Cautelar na Reclamação nº 16402/SC, 2015) (grifo próprio).

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A partir desse trecho supracitado, tem-se o que é trazido em diversos momentos pelo STF, de que a Súmula Vinculante n. 13 em momento nenhum excepciona a sua aplicação para nomeação de cargos políticos. Ademais, a caracterização de nepotismo para nomeações políticas deverá ser feita de acordo com o caso concreto. Dessa forma, caso haja comprovação de qualificação técnica e/ou profissional para a ocupação do cargo, será possível afastar a incidência da Súmula Vinculante n. 13 e manter quem está em exercício no cargo. E, ainda, tem-se o entendimento de que a confiança se avalia pela qualificação do candidato, e não pela qualidade do nome por ele ostentado. Verificou-se, em muitos argumentos dos apelantes ou agravantes, que a nomeação de alguém que possua vínculo parental se dá em razão da relação de confiança que é estabelecida entre eles. Entretanto, esse entendimento é de cunho patrimonial, no qual a relação de confiança entre os administradores estaria acima da necessidade de atender ao interesse público. No entanto, foi visto que as práticas que se remetem ao modelo patrimonialista devem ser combatidas, pois o mesmo não possui consonância com a Constituição Federal de 1988 e com os preceitos que devem ser observados pela Administração Pública. Por essa razão, a Mina. Cármen Lúcia aduz que a confiança deve ser avaliada pela qualificação do candidato, por estar o interesse público e a busca por uma boa administração pública acima das relações mantidas pelos administradores. Nesta senda, a relação de confiança não pode se sobrepor à qualificação técnica ou profissional do ocupante do cargo em comissão. Nesse sentido, tem-se que o STF entende ser possível a aplicação da Súmula Vinculante n. 13 para a nomeação de cargos políticos, devendo ser analisado o caso concreto, buscando avaliar se o ocupante do cargo possui qualificação técnica, pois a mera relação de parentesco não cumpre com o atendimento ao interesse público. No entanto, em certas jurisprudências, como visto, o TJRS entende sumariamente pela inaplicabilidade da Súmula Vinculante n. 13 para nomeação de cargos políticos, sem, muitas vezes, fazer a análise do caso concreto – que é a forma como o STF vem entendendo que deva ser realizado. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Com o presente capítulo, expôs-se a necessidade que houve em se editar a Súmula Vinculante n. 13, visto que as práticas de nepotismo não se coadunam com a Constituição Federal de 1988 e os princípios constitucionais 264

Uma análise da Súmula Vinculante n. 13 na Administração Pública a partir da jurisprudência do TJRS: limites e possibilidades de sua aplicabilidade para a nomeação de cargo político

que informam a Administração Pública. Para mais, o nepotismo possui estreita vinculação com um modelo patrimonialista, ultrapassado e cujas práticas devem ser combatidas. Dessa forma, fez-se necessário referir os precedentes do STF que ensejaram a edição da Súmula Vinculante n. 13, de 2008. A partir disso, realizou-se uma busca no sítio eletrônico do TJRS, para, com a análise jurisprudencial referente a essa Súmula, verificar como o Egrégio Tribunal vem decidindo. Sem delimitar os anos de busca, obteve-se quantitativamente somente 11 resultados acerca da Súmula Vinculante n. 13, sendo 7 apelações cíveis e 4 agravos de instrumento. Com esse resultado, realizou-se uma análise qualitativa a partir do inteiro teor dos acórdãos. Extraiu-se, com a análise jurisprudencial, que a aplicação da Súmula Vinculante n. 13 para os casos de nomeação de cargo político era diversa, dependendo do magistrado. Há jurisprudências no sentido de afastar sumariamente a aplicação da Súmula para esses casos, sob a fundamentação de que o STF possui o entendimento de que a nomeação de cargo político se constitui em uma exceção da Súmula de vedação do nepotismo. Ainda, houve entendimento do Tribunal para que o caso fosse analisado com maior rigor, não havendo arcabouço probatório suficiente, para que não houvesse exoneração sem indícios contundentes de que o ocupante do cargo não possuía qualificação (técnica e/ou profissional). No terceiro ponto do presente trabalho, verificaram-se então os limites e as possibilidades de aplicabilidade da Súmula Vinculante para os casos de nomeações políticas. Essa análise foi realizada a partir da jurisprudência do TJRS e do STF. Concluiu-se que a Suprema Corte tem o entendimento de que a Súmula Vinculante não excepciona a nomeação de cargo político, devendo ser analisado o caso concreto para verificar se o ocupante deste cargo efetivamente possui qualificação para exercê-lo em prol do interesse público. Nesta senda, há magistrados do Egrégio Tribunal de Justiça que decidem conforme o STF, ou seja, que cada caso deve ser analisado isoladamente e mediante arcabouço probatório, para evitar que haja prejuízos à sociedade. No entanto, também se verificaram decisões no sentido de afastar a Súmula Vinculante n. 13 para as nomeações de cargo político. Diante dessa análise realizada no TJRS e no Supremo Tribunal Federal, conclui-se que é possível estender a Súmula Vinculante n. 13 para os casos de nomeações de cargos políticos, com a análise concreta da qualificação, visto que o atendimento ao interesse público é primordial. 265

Cynthia Gruendling Juruena e Ricardo Hermany

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Uma análise da Súmula Vinculante n. 13 na Administração Pública a partir da jurisprudência do TJRS: limites e possibilidades de sua aplicabilidade para a nomeação de cargo político

______. ______. Agravo de Instrumento n. 70057526907, julgado em 20 de novembro de 2014. Des. Eduardo Delgado (relator). Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016. ______. ______. Apelação Cível n. 70039472683, julgada em 16 de dezembro de 2010. Des. Rogério Gesta Leal (relator). Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2016. ______. ______. Apelação Cível n. 70043654508, julgada em 29 de março de 2012. Des. Eduardo Delgado (relator). Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2016. ______. ______. Apelação Cível n. 70056735103, julgada em 20 de novembro de 2013. Des. João Barcelos de Souza Júnior (relator). Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2016. ______.______. Apelação Cível n. 70057212482, julgada em 26 de março de 2014. Desa. Laura Louzada Jaccottet (relatora). Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2016. ______.______. Apelação Cível n. 70061772356, julgada em 29 de outubro de 2014. Des. Arminio José Abreu Lima da Rosa (relator). Disponível em: . Acesso em: 11 jul. 2016. ______.______. Apelação Cível n. 70065759789, julgada em 20 de agosto de 2015. Desa. Maria Isabel de Azevedo Souza (relatora). Disponível em: . Acesso em: 11 jul. 2016. ______.______. Apelação Cível n. 70065994352, julgada em 25 de novembro de 2015. Des. João Barcelos de Souza Júnior (relator). Disponível em: . Acesso em: 11 jul. 2016. ______. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 12/DF, julgada em 20 de agosto de 2008. Min. Carlos Britto (relator). 267

Cynthia Gruendling Juruena e Ricardo Hermany

Disponível em: . Acesso em: 6 jul. 2016. ______.______. Medida Cautelar na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 12/DF, julgada em 16 de fevereiro de 2006. Min. Carlos Britto (relator). Disponível em: . Acesso em: 6 jul. 2016. ______.______. Medida Cautelar na Reclamação n. 15.571/RS, julgada em 24 de maio de 2013. Min. Marco Aurélio (relator). Disponível em: . Acesso em: 13 jul. 2016. ______.______. Medida Cautelar na Reclamação n. 16.402/SC, julgada em 1º de setembro de 2015. Mina. Cármen Lúcia (relatora). Disponível em: . Acesso em: 13 jul. 2016. ______.______. Recurso Extraordinário n. 579.951/RN, julgado em 20 de agosto de 2008. Min. Ricardo Lewandowski (relator). Disponível em: . Acesso em: 6 jul. 2016. ______.______. Súmula Vinculante n. 13. Veda o nepotismo nos três poderes, no âmbito da União, Estados e Municípios, aprovada em 2008. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2016. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Globo, 2008. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

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ANTIGOVERNABILIDADE E CORRUPÇÃO NA ESFERA MUNICIPAL: A JURISPRUDÊNCIA DO TJRS ENVOLVENDO CASOS DE REPASSE INDEVIDO DE REMUNERAÇÃO DE ASSESSORES PARLAMENTARES1 Luiz Felipe Nunes2

Ianaiê Simonelli da Silva3

RESUMO O presente trabalho tem por tema a antigovernabilidade e a corrupção na esfera municipal, sendo analisada, para tanto, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul acerca do repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares. Na busca por seu desenvolvimento, foram criados alguns títulos e em cada um são tratadas questões relevantes para o tema proposto, utilizando-se do método dedutivo e consulta bibliográfica e jurisprudencial. Com o trabalho verificou-se que a adoção de um sistema de coalizões na década de 90 permitiu novas formas de barganha política e fomentou atos de corrupção, clientelistas e patrimonialistas. Após o desenvolvimento necessário para a abordagem do tema, 1 – Este trabalho é fruto de estudos junto ao grupo de pesquisa em Patologias Corruptivas, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal e vinculado ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas – CIEPPP. 2 – Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Santa Cruz do Sul. Rio Grande do Sul. Brasil. Advogado. E-mail: [email protected]. 3 – Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Santa Cruz do Sul. Rio Grande do Sul. Brasil. Advogada. E-mail: [email protected].

Luiz Felipe Nunes e Ianaiê Simonelli da Silva

discute-se como o Tribunal tem se posicionado frente ao comprovado repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares. Conclui-se o trabalho apontando para a fragilidade dos cargos em comissão, cargos esses que, na busca por permitir a coalizão de interesses diversos por meio da colocação de aliados e indicados em cargos de livre nomeação e exoneração, muitas vezes, nesse intuito, acaba sendo desvirtuado e recai em atos ímprobos e atentatórios ao interesse público. Palavras-chave: Assessor parlamentar, cargo em comissão, presidencialismo de coalização, repasse indevido e corrupção. 1 INTRODUÇÃO O tema da antigovernabilidade e da corrupção na esfera municipal surge com fôlego renovado principalmente em decorrência de alguns escândalos veiculados amplamente pela mídia oficial e inoficial nos últimos anos. Nesse viés, o também ilícito repasse de remuneração dos assessores parlamentares para fins diversos ganhou algumas manchetes nacionais, sendo seus articuladores destituídos de seus cargos e sofrendo punição na esfera civil, criminal e eleitoral. Com a adoção do presidencialismo no Brasil, a partir da década de 90, o sistema de coalização, denominado de presidencialismo de coalização, ganha espaço no cenário político, condicionando as relações de poder entre o Executivo e o Legislativo e visando a oportunizar a governança. Esse mesmo sistema de coalizão tem seus reflexos nas esferas estaduais e municipais, nas quais as demandas regionais e locais necessitam de alianças, muitas vezes nada homogêneas, para concretizar seus interesses. Nas diversas esferas de poder, esse sistema de coalização, em que muitas vezes um dos poderes cede para o outro, acaba sendo necessário para a governança da esfera em questão; no entanto, tal quadro formado de negociatas acaba gerando espaço para corrupção, clientelismo e patrimonialismo no poder. Na esfera municipal, uma das formas de se permitir coalizões de interesses privados e públicos é por meio dos denominados cargos em comissão, que permitem à autoridade política – nos casos concretos analisados, prefeitos e vereadores – negociar com diversos interesses setoriais, concedendo cargos públicos a fim de coalizar interesses. Diante desse panorama posto, questiona-se como o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul tem se posicionado frente a casos

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Antigovernabilidade e corrupção na esfera municipal: a jurisprudência do TJRS envolvendo casos de repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares

de repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares. Na busca por responder a esse questionamento, utilizou-se do método de abordagem dedutivo e de uma consulta bibliográfica e jurisprudencial. 2 COMO SE DÁ A ANTIGOVERNABILIDADE E CORRUPÇÃO NA ESFERA MUNICIPAL A década de 80 foi marcada por um cenário de crescente desequilíbrio fiscal, agitação das contas públicas e inflação galopante. Somam-se a esse cenário as diversas tentativas de estabilização da economia, com a criação de diversos Planos a que a população é submetida, desencadeando uma extensa sequência de ensaios e erros. Por conseguinte, gerou-se um modelo de adaptação da economia dentro do marco neoliberal, produzindo agendas governamentais com pequena flexibilidade. Dessa forma, tais problemas de governo devem ser enfrentados em um contexto de redemocratização e quebra com a ordem social pregressa. Com a redemocratização resurge a figura do presidencialismo no Brasil, modelo conhecido como presidencialismo de coalizão. A união desses dois elementos explica o nosso sistema político, de modo que o presidencialismo é o sistema de governo no qual o chefe do Executivo é eleito diretamente pelo sufrágio popular e tem um mandato independente dos deputados e senadores. Para Schier (2014), no conjunto do acondicionamento institucional brasileiro, pode-se afirmar que, no que concerne às relações entre Poder Executivo e Legislativo, a despeito da adoção do sistema presidencialista, a dinâmica da chefia de governo acerca-se do modelo parlamentarista de coalizões governamentais. De modo que no modelo brasileiro, conhecido como presidencialismo de coalizão, contitui-se um Poder Executivo com muitos poderes, conhecido como hiperpresidencialismo ou presidencialismo bonapartista, que é estimulado a efetuar alianças uma vez que, ante a existência de um multipartidarismo, nenhuma legenda política consegue obter maioria mínima no Parlamento (SCHIER, 2014). O Brasil é uma federação, e as eleições para o Parlamento Nacional ocorrem em âmbito local, sendo que há necessidade de formação de alianças político-partidárias, regionais e de mercado, fundamentalmente em relação a financiadores privados de campanhas eleitorais, criando uma situação em que o Legislativo se torna refém do Executivo. Assim, como a governabilidade depende da renovação da aliança no decorrer do mandato, o aparelho burocrático do Executivo, por conta

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dessas demandas partidárias ou regionais, acaba cedendo às pressões da aliança. Ademais, como no caso brasileiro as alianças não são homogêneas, o Executivo necessita ceder, no plano de suas políticas e decisões, a interesses políticos e regionais que inúmeras vezes são contraditórios e favorecem tão somente interesses setoriais, tanto economicamente quanto territorialmente. E, por consequência, esse quadro fomenta a corrupção, o clientelismo e o patrimonialismo (SCHIER, 2014). Desde a entrada em vigor da ordem constitucional de 1988, a discussão sobre o funcionamento do Brasil em democracia tem discordado sobre aspectos pontuais da relação entre os Poderes e os seus conflitos. Abranches (1988) foi o propulsor dessa discussão que, antes mesmo da definição da forma final do texto constitucional, assinalava as correntes densas da história brasileira que teriam de ser consideradas em qualquer desenho institucional. Ou seja, qualquer que fosse o mecanismo de governança constituído pela Constituinte, teria de conviver com uma intensa heterogeneidade das demandas sociais (LIPJHART, 1999, p. 80-81), uma impetuosa acumulação de conflitos distributivos e de exigências formuladas a um Estado que estava, no final dos anos 80, esgotado em sua legitimidade, bem como em sua capacidade fiscal e de gestão. Eis então o dilema que se colocou para o constituinte no formato institucional, os mecanismos de governo teriam de combinar a eficácia decisória tradicionalmente integrada aos sistemas políticos descritos como majoritários4 com a representatividade dos modelos consensuais5, sendo que a distinção entre sistemas majoritários e consensuais foi operacionalizada em Lipjhart (1999, cap. 1 a 3, p. 1 a 47). Importa destacar que, no contexto de uma transição à democracia, a legitimidade das decisões emanadas do sistema político originário não poderia ser aceita como dada, posto que numa sociedade heterogênea, com interesses setoriais muito diversificados e rígidos, o revezamento no poder seria dificultado pela mesma severidade das linhas divisórias entre grupos, e a simples imposição do interesse da maioria poderia provocar reações mais intensas dos grupos minoritários que estivessem excluídos, esse contexto dentro de um quadro cuja adesão às novas regras ainda não se poderia ter como assegurada (BITTENCOURT, 2012). Abranches (1988, p. 21-22) enuncia a combinação que move o universo político nacional:

4 – Majoritários no sentido de que geram no aparelho estatal situações de maioria clara que conseguem formar governo e impor suas decisões dentro das regras vigentes. 5 – Consensuais no sentido de que o funcionamento permite a uma maioria de grupos distintos influir nas decisões, conquistando mais legitimidade para o resultado final e reduzindo os pontos de tensão. 272

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[...] o Brasil é o único país que, além de combinar a proporcionalidade, o multipartidarismo e o “presidencialismo imperial”, organiza o Executivo com base em grandes coalizões. A esse traço peculiar da institucionalidade concreta brasileira chamarei, à falta de melhor nome, “presidencialismo de coalizão” [...]. Já na República de 1946, era possível identificar a essência desse conceito, a coalizão para obtenção de maiorias e governabilidade fazia-se após as eleições, conforme eixos partidários e regionais. Entretanto, os riscos desse tipo de coalizão são muito intensos. Em um primeiro momento, atente-se à associação entre partidos que pode ser ad hoc, desconsiderando incompatibilidades programáticas ou, ainda, desconsiderando interesses divergentes quanto ao conteúdo das políticas a perseguir pela coalizão. (BORSONI, 2004, p. 107-108). Outro risco pode se dar quando da montagem da coalizão ou de parte dela, que se faz em bases clientelistas de distribuição de cargos e benesses governamentais; ocorre que as demandas por esse tipo de benefício podem sobrepujar a capacidade ou a disposição do presidente de serem concedidos (BITTENCOURT, 2012). Cumpre salientar que o Presidente da República está no centro de quaisquer conflitos ou crises, sendo o interlocutor para formação da coalizão, ocasionando uma agudização das divergências entre facções e, por conseguinte, fragiliza o próprio personagem que, supostamente, teria papel moderador (BITTENCOURT, 2012). O que se nota no decorrer dos anos é que a necessidade de constituir coalizões partidárias tornou estatais e órgãos públicos miras cruciais para a colocação de aliados e indicados, que na maioria das vezes estão alimentados pela corrupção. Consequência disso é o que foi desvelado pela Operação Lava Jato, que desde 2014 traz uma série de esquemas envolvendo indicações de cargos em órgãos públicos, propinas em obras públicas, além de pagamento de parte de salários de assessores parlamentares, acertos que servem como doações para campanhas eleitorais. A Lava Jato está em sua 32ª fase de acordo com o relatório da Justiça Federal, que apontou que as condenações da Operação somam 680 anos, 8 meses e 25 dias. A maior operação contra corrupção no Brasil desvendou conchavos, sobretudo alcançando nomes importantes da política brasileira que há muitos anos fazem parte dos governos, com negociatas que começaram há 30 anos. No Brasil são muitos os desafios e pressões dos fatores exógenos constatando-se uma falência do modelo desenvolvimentista, fundamentado na industrialização 273

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por substituição de importações, intensamente centralizado no Estado, com a consequente deterioração da ordem político-institucional que amparava esse modelo. Nesse sentido é o entendimento de Diniz (1996, p. 3): [...] em contraposição às interpretações dicotômicas, parece-me mais adequada uma perspectiva que integre os dois planos da análise, associando à dimensão externa os condicionamentos internos relacionados à corrosão da ordem pregressa. Por esta razão, o descompasso entre o Estado e a sociedade situa-se no cerne da presente crise. O hiato entre uma institucionalidade estatal rígida, dotada de fraco potencial de incorporação política, e uma estrutura social cada vez mais complexa e diferenciada exacerbou as tensões ligadas ao processo de modernização. Instaurou-se um sistema multifacetado e multipolar de representação de interesses, através do qual a sociedade extravasou do arcabouço institucional vigente, implodindo o antigo padrão corporativo do Estado sobre a sociedade. No que tange ao controle governamental, importa realizar algumas considerações acerca do presidencialismo de coalizão que trazem todas as modelagens do relacionamento Executivo-Legislativo apontando uma convergência de posições conseguida pelos mais diferentes caminhos: um deles é a imposição do poder de agenda, negociação e coparticipação. Isso demonstra, para a estabilização das relações políticas, minimização de riscos de rompimento com as instituições democráticas ou, mesmo que estas permanecessem mantidas, representavam grave instabilidade social (PEREZ-LIÑAN, 2009, p. 321). Entretanto, essa conquista sendo consequência da estabilização política fundamentada em negociata instrumental de objetivos comuns, ocasiona um aumento de riscos de diminuição da já limitada “accountablity horizontal”, que nada mais é do que o controle sobre o Executivo, exercido pelo Congresso e por outras instituições. Uma das formas de atração de parlamentares para a coalizão tem como resultado a cooptação, por meio de incentivos de grande intensidade, com a finalidade de o legislador deixar de desempenhar o papel de vigilância sobre eventuais abusos do poder concentrado nas mãos do Presidente (PEREZ-LIÑAN, 2009, p. 329), ações que os retiram do papel que lhes compete na disposição da divisão de poderes. Assim, com ambos os poderes compartilhando as mesmas metas, não há garantia de validade do pressuposto de que a divisão de poderes determina controle

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recíproco. Tal conclusão reforça o entendimento de alguns arrolamentos empíricos internacionais em direção a que a participação nas atividades de controle não é o enfoque do trabalho legislativo mais sedutor aos parlamentares (PELIZZO & SAPENHURST, 2007, p. 387). Contrário senso, se a constituição da maioria se dá numa coalizão de múltiplos interesses, aumenta a possibilidade de que apareçam, mesmo porque o resultado da coalizão em termos de políticas tende a ser diverso da preferência individual e de seus integrantes (LLANOS & MUSTAPIC, 2005A, p. 19-21). Nesse sentido, o fato de o mandato do Executivo não depender da maioria parlamentar deveria, em tese, ser um facilitador do controle, uma vez que [...] nos sistemas presidenciais não existe, a princípio, a mesma pressão institucional – que existe nos sistemas parlamentares – pela disciplina parlamentar para sustentar o governo, o que poderia liberar os deputados individualmente e as bancadas governistas para exercer um controle muito mais amplo sobre o governo (PALANZA, 2005, p. 83). Importante ressaltar que, apesar de os exemplos terem sido citados em nível de União, esses padrões de relações entre Poderes ocorrem também nos governos regionais e municipais, cujas consequências e riscos sejam similares (POWER & TAYLOR, 2011A, p. 264). Deveras, a Constituição Federal estabelece uma simetria institucional praticamente total para todos os entes federativos, consequentemente, as regras de ingresso e exercício do poder são as mesmas. Ademais, as regras eleitorais são uniformes, e o sistema partidário proporciona condições quase homogêneas entre regiões e no fluxo de candidatos entre objetivos eleitorais nas distintas esferas. De tal modo, os fenômenos e conclusões conseguidos para a União tendem a ser também proeminentes para a interpretação de Estados e Municípios. O fenômeno da corrupção é sem sombra de dúvidas uma das maiores preocupações do mundo contemporâneo, tanto na esfera pública como na esfera privada. Guarda relevância tal preocupação, fundamentalmente, devido ao momento de crise do Estado de Direito, sendo que a corrupção é apontada como um dos fatores mais lesivos para a democracia e para a racionalidade jurídica. Para Schier (2014), o modelo de democracia proporcional adotado no Brasil tem possibilitado, com frequência, o fenômeno da transferência de votos, destacando-se que a maioria desmedida dos parlamentares que alcançam vaga no parlamento, no País, é eleita com votos transferidos pelos partidos e pelos

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candidatos mais votados de sua agremiação. Portanto, poucos se elegem com os próprios votos, permanecendo devedores de favores às grandes lideranças da legenda. Entretanto, ao invés de o processo fortalecer e valorizar os partidos políticos, ele propicia a valorização dos próprios políticos de destaque no âmbito das agremiações. Problema esse que se agrava, igualmente, com a adoção do voto obrigatório dentro de um multipartidarismo, que gera a existência de projetos de governo muito próximos e sem identidade ideológica para que possam buscar a disputa de todos os votos, projeta-se para o plano federativo, provocando que planos e composições de governo se direcionem ao atendimento de demandas e financiadores locais de campanha política. Importa salientar que, como a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituindo-se em Estado Democrático de Direito, tanto os Estados quanto os Municípios obedecem à mesma regra do presidencialismo de coalizão, de modo que o prefeito é o chefe do Executivo, e o Legislativo é formado pela Câmara de Vereadores. Um assunto recorrente nas Câmaras de Vereadores é a questão do repasse de verbas salariais de assessores aos parlamentares. Em virtude disso, foi elaborada uma pesquisa de casos concretos ocorridos no Estado do Rio Grande do Sul julgados pelo Tribunal de Justiça nos quais se passa a analisar a jurisprudência encontrada acerca do tema. 3 A JURISPRUDÊNCIA DO TJRS ENVOLVENDO CASOS DE REPASSE INDEVIDO DE REMUNERAÇÃO DE ASSESSORES PARLAMENTARES A pesquisa foi realizada a partir da coleta de dados no site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por meio da pesquisa de jurisprudência, na qual, por intermédio da ferramenta de busca, pesquisou-se por palavras-chave, sendo considerados para a análise todos os resultados obtidos, sem delimitação temporal, haja vista a pouca incidência de resultados acerca do tema ainda no Tribunal. Assim, os resultados foram filtrados unicamente por palavras-chave, sendo que, nas demais ferramentas de pesquisa, não foram filtradas, utilizando-se para tanto a análise das decisões de “todos” os Tribunais (Alçada, Justiça e Turmas Recursais), “todos” os relatores, “todos” os tipos de processos existentes no Tribunal, e assim por diante.

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Muito embora a pesquisa incialmente tenha resultado em uma infinidade de decisões acerca do tema do “repasse indevido” de remuneração de assessores parlamentares, na leitura das decisões a maioria não tinha referência ao tema proposto pelo trabalho, mas dizia respeito à falta de repasse ou repasse indevido de contribuições previdenciárias obrigatórias ao INSS. Para efetuar a pesquisa nos moldes propostos, foi elaborada uma série de conjunções de palavras, lançadas na ferramenta de pesquisa para obter o resultado desejado, como: “cargo em comissão” + “repasse”; “cargo em comissão” + “divisão de vencimentos”; “cargo em comissão” + “concussão”; “assessor parlamentar” + “divisão”; “assessor parlamentar” + “repasse”; “assessor” + “divisão de vencimentos” e “assessor” + “dividir”. Assim, foram encontradas quinze decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul acerca do tema do repasse indevido de remuneração dos assessores parlamentares a terceiros analisados, o que configura, como já mencionado na parte discursiva inicial do presente trabalho, ato de antigovernabilidade, sendo manifestação da corrupção na esfera municipal. Dessas decisões, quatro são criminais, nas quais teria ocorrido o crime de concussão, e onze buscavam a responsabilização civil dos agentes políticos (vereadores e prefeitos municipais). Na esfera municipal, as funções de confiança e os cargos comissionados são aqueles descritos no art. 37, V, da Constituição Federal, que menciona: V - as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento. Ou seja, aqueles cargos – chefia, direção ou assessoramento –, para os quais o legislador não criou um cargo específico, são de livre nomeação e exoneração, sendo exercidos por pessoas de confiança, cargos de confiança, admitidos numa função pública de forma temporária. Os cargos em comissão são de ocupação transitória. Seus titulares são nomeados em função da relação de confiança que existe entre eles e a autoridade nomeante [...]. A natureza desses cargos impede que os

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titulares adquiram estabilidade. Por outro lado, assim como a nomeação para ocupá-los dispensa a aprovação prévia em concurso público, a exoneração do titular é despida de qualquer formalidade especial e fica a exclusivo critério da autoridade nomeante. (CARVALHO FILHO, 2005, p. 475). Por essa razão menciona o art. 37, II, da CF/88: II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração. Assim, as pessoas nomeadas para cargos em comissão não são funcionários públicos, pois a Constituição exige concurso para investidura em cargo ou emprego público, não lhes cabendo uma série de prerrogativas do funcionalismo público, como é o caso da estabilidade no cargo ou emprego público. APELAÇÃO CÍVEL. SERVIDOR PÚBLICO. MUNICÍPIO DE SÃO LEOPOLDO. REINTEGRAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. CARGO EM COMISSÃO DE LIVRE NOMEAÇÃO E EXONERAÇÃO. ART. 37, II, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PLEITOS CORRELATOS AFASTADOS. 1. Os cargos em comissão não se revestem de caráter de permanência, sendo exercidos de forma precária e passíveis de exoneração ad nutum pela Administração Pública. Precedentes. 2. Caso em que não há ilegalidade no ato de exoneração impugnado, ficando rechaçada a pretensão do recorrente de reintegração no cargo comissionado. Inexistente, ademais, comprovação de qualquer liame entre a doença ocupacional alegada e o ato de dispensa praticado pela Administração Municipal. 3. Afastada a ilegitimidade do ato exoneratório, naturalmente os pleitos de pagamento de salários com reflexos trabalhistas, pensionamento até os 60 anos de idade por redução da capacidade laborativa e indenização por dano moral devem ser rechaçados. 4. Sentença de improcedência da ação na origem (Apelação Cível Nº 70045646585, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eduardo Uhlein, Julgado em 27/02/2013). 278

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Em muitos dos casos analisados na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, verificou-se o receio dos ocupantes de cargos comissionados de perderem o emprego em razão desse poder de decisão – livre nomeação e exoneração – concentrado nas mãos da autoridade política. Assim, nos casos comprovados de repasse indevido, verificou-se uma efetiva coação, má-fé e desonestidade com a verba que cabia ao assessor parlamentar, por parte da autoridade nomeante: Aliás, como bem destacaram os agentes do Parquet que oficiaram no feito, é muita ingenuidade pensar que houve acordo da assessora com o parlamentar sobre a disposição dos vencimentos daquela. Veja: Fazer acordo dispondo dos vencimentos do outro. Esta afirmação, feita pelo apelado, fala por si, demonstrando não só a coação a que foi submetida a servidora, mas também a má-fé e desonestidade com que se houve o vereador. Não é honesto, nem age de boa-fé quem divide, em benefício próprio, o que é do outro, tendo consciência da ilegalidade dessa conduta, mormente considerando tratar-se o agente de vereador e o outro de seu próprio assessor parlamentar. Note-se que a divisão da remuneração da assessora contraria especialmente o disposto no art. 3º da Lei Municipal nº 4.259/99, que estabelece o valor devido à aludida servidora a título de remuneração. Registre-se, ainda, que é totalmente falaciosa a afirmação de que a assessora obteve vantagem com o acordo, aumentando o salário que possuía antes da assunção do cargo de R$ 180,00 para R$ 470,00, pois, na realidade, ela perdeu R$ 800,00, ganhando apenas R$ 470,00, quando, por lei deveria receber R$ 1.270,00. Evidente a coação, pois, como se vê, a servidora nada ganhou com o acordo, a não ser o emprego, e com ele concordava somente para garantir-se no emprego, sobre o qual tinha o apelado o poder decisório. (Apelação Cível Nº 70009264342, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Cláudio Augusto Rosa Lopes Nunes, Julgado em 05/07/2007). Assim, diante da possibilidade de vir a perder o emprego, os assessores parlamentares entregavam parcela de seus vencimentos a seus nomeadores para permanecerem em seus cargos. 279

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CABO ELEITORAL. ALEGACAO DE QUE, PARA NAO SER EXONERADO DE CARGO EM COMISSAO NO EXECUTIVO, ERA OBRIGADO A TRABALHAR, EM FINS DE SEMANA, PARA O VEREADOR QUE O INDICARA E, AINDA, A DIVIDIR PARTE DE SEUS VENCIMENTOS COM TERCEIROS. ACAO IMPROCEDENTE. APELO DESPROVIDO. (grifo nosso). (Apelação Cível Nº 596241836, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Maria Rosa Tesheiner, Julgado em 03/09/1997). Feita esta breve introdução, passamos aos critérios utilizados pelo Tribunal para condenação e absolvição nos casos, bem como análise crítica de como esse tema está sendo tratado pelos Desembargadores. Dos quinze casos envolvendo repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares encontrados no sítio do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: • Quatro diziam respeito à instância criminal, na qual teria ocorrido o crime de concussão. São eles: Ação Penal – Procedimento Ordinário n. 70028709574, 4ª Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marcelo Bandeira Pereira, julgado em 02-06-11; Apelação-Crime n. 70047882501, 4ª Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Gaspar Marques Batista, julgada em 02-08-12; Processo-Crime n. 70011510211, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ranolfo Vieira, julgado em 26-12-05; Ação Penal – Procedimento Ordinário n. 70028709574, 4ª Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Newton Brasil de Leão, julgado em 18-12-14. Dos onze sobressalentes: • Nove foram decididos em favor dos ex-detentores de cargo em comissão: Apelação Cível n. 70009264342, 18ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Cláudio Augusto Rosa Lopes Nunes, julgada em 05-07-07; Apelação Cível n. 70046160206, 2ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relatora: Sandra Brisolara Medeiros, julgada em 27-06-12; Apelação Cível n. 70039551676, 21ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Arminio José Abreu Lima da Rosa, julgada em 15-12-10; Apelação Cível n. 70044641462, 6ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sylvio José Costa da Silva Tavares, julgada em 21-05-15; Apelação Cível n. 70005239504, 9ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Adão Sérgio do Nascimento Cassiano, julgada em 17-12-03; Apelação Cível n. 70028990307, 21ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, julgada em 1º-07-09; Apelação Cível n. 70022986921, 280

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4ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Carlos Branco Cardoso, julgada em 17-12-08; Apelação Cível n. 70022986863, 4ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Carlos Branco Cardoso, julgada em 17-12-08; Apelação Cível n. 70009264342, 18ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Cláudio Augusto Rosa Lopes Nunes, julgada em 05-07-07; Apelação Cível n. 70010505154, 3ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, julgada em 24-03-05. • Dois em desfavor: Apelação Cível n. 596241836, 4ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Maria Rosa Tesheiner, julgada em 03-09-97; Apelação Cível n. 70048544290, 9ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relatora: Iris Helena Medeiros Nogueira, julgada em 18-07-12. Como todo processo, os casos envolvendo supostamente o repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares às autoridades nomeantes necessita ser comprovado nos autos. Muito embora a hipótese levantada pelos autores possa ser possível no mundo dos fatos, cabe a eles comprovar os fatos constitutivos de seu direito, conforme preconizava, na época das decisões, o antigo Código Civil, art. 333, I (art. 373, I, do novo CPC, com igual redação), sendo imprescindível para a responsabilização da parte demandada. Assim, tendo em vista que em dois casos não houve prova cabal para comprovação do fato alegado, restaram desprovidos ambos os apelos no Tribunal. APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MORAIS E MATERIAIS. ALEGADA COAÇÃO MORAL. REPASSE DE VENCIMENTOS. CARGO EM COMISSÃO. NÃO COMPROVAÇÃO DOS FATOS CONSTITUTIVOS. ART. 333, I, DO CPC. PRETENSÃO IMPROCEDENTE. 1. Caso em que a requerente não se desincumbiu do ônus de comprovar os fatos constitutivos de seu direito (art. 333, I, do CPC). Embora possível na hipótese examinada, não trouxe evidências de que havia o repasse de vencimento para a ré, elemento imprescindível para a responsabilização civil da parte demandada. 2. Ausência de prova cabal para comprovação do fato alegado. A agenda utilizada na campanha, as portarias de nomeação e exoneração e algumas movimentações bancárias (que não comprovam repasse de verbas) não servem como prova suficiente para comprovar a tese alegada na inicial. A prova testemunhal, no mesmo sentido, não corroborou a tese sustentada. APELO DESPROVIDO. UNÂNIME. 281

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(Apelação Cível Nº 70048544290, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Iris Helena Medeiros Nogueira, Julgado em 18/07/2012) Nesses casos, o substrato probatório não conseguiu alcançar a pretensão da parte autora, comprovando suas alegações. Assim, extratos bancários podem ser utilizados para comprovar eventuais transferências bancárias entre contas, bem como prova testemunhal. Ainda sobre a questão da prova e da relativização da vedação constante no art. 5º, LVI, da CF/88, tem-se admitido a gravação ambiental ou clandestina, quando se está em situação de legítima defesa (como no conhecido caso de sequestradores telefonando para a residência de vítimas, exigindo resgate, tendo os pais gravado tais conversas) ou quando não se poderia obter, de outra forma, prova indispensável ao resguardo de direitos mais expressivos, atuando, aqui, nitidamente, o princípio da proporcionalidade (70039551676). O Supremo Tribunal Federal, quando se trata de gravação efetuada por um dos locutores da conversa, tem seguido a seguinte posição: CONSTITUCIONAL. PROCESSO CIVIL AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. GRAVAÇÃO. CONVERSA TELEFÔNICA FEITA POR UM DOS INTERLOCUTORES, SEM CONHECIMENTO DO OUTRO. INEXISTÊNCIA DE CAUSA LEGAL DE SIGILO OU DE RESERVA DE CONVERSAÇÃO. LICITUDE DA PROVA. ART. 5º, XII e LVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. A gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, quando ausente causa legal de sigilo ou de reserva da conversação não é considerada prova ilícita. Precedentes. 2. Agravo regimental improvido. (AI n. 578858, AgR, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 04/08/2009).6 No entanto, muito embora os Tribunais tenham relativizado algumas questões quanto à produção probatória, nesses casos ainda é dificultada, pois 6 – Em posição semelhante ver: Apelação-Crime n. 70020255006, 8ª Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Roque Miguel Fank, julgada em 12-12-07; e AI n. 666459, AgRg, Relator: Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, julgado em 06-11-07. 282

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muitas vezes, conforme os relatos das decisões analisadas, o repasse indevido de valores acaba ocorrendo em espécie e em locais mais reclusos. Nos casos em que o autor conseguiu provar o fato constitutivo de seu direito, o Tribunal se manifestou favoravelmente ao pedido utilizando como fundamento para sua decisão as seguintes normativas: • Improbidade administrativa (Lei n. 8.429/92): Art. 1º = 70039551676 Art. 3º = 70039551676, 70022986921 Art. 9º = 70046160206, 70009264342 Art. 9º, I = 70046160206, 70010505154 Art. 11 = 70009264342, 70039551676, 70028990307, 70022986921, 70010505154 Art. 11, I = 70010505154, 70009264342 Art. 12 = 70028990307 Art. 12, I = 70046160206 Art. 12, II = 70010505154 Art. 12, III = 70010505154, 70009264342 Art. 12, parágrafo único = 70028990307 • Violação a princípios fundamentais de Direito Público: Legalidade = 70009264342, 70010505154 Moralidade = 70009264342, 70039551676, 70028990307 Impessoalidade, honestidade, imparcialidade, lealdade à instituição = 70039551676 Proporcionalidade e razoabilidade = 70046160206, 70010505154, 70028990307 Intimidade = 70022986921, 70022986863 • Violação à Constituição: Art. 37, § 4º = 70046160206, 70039551676 Art. 37, § 6º = 70039551676 • Código Penal: Art. 316 = 70044641462, 70005239504 Art. 71 = 70044641462 Art. 92, I, a e b = 70044641462 • Código Civil: Art. 935 = 70044641462, 70022986921 • Código de Processo Civil: Art. 333, II = 70044641462

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Uma vez que o conjunto probatório recolhido na instrução manifeste a existência de um ato ilícito, tem-se decidido que: 1) A absolvição na esfera criminal, com fulcro no art. 386, VII (não existir prova suficiente para a condenação), do CPC, não impede a responsabilidade por ato de improbidade administrativa, em face do princípio da independência das instâncias. 2) É cabível a aplicação da Lei de Improbidade para agentes políticos, pois equiparam-se, nos termos do art. 3º, a agentes públicos. 3) A coerção para a entrega da remuneração de assessor pago pelos cofres públicos demonstra o mau uso do dinheiro público, pois esse repasse não atende a interesse público, mas tão somente a interesse particular. 4) Muito embora o repasse indevido possa ser utilizado para subcontratação de outros funcionários “fantasmas”, configura-se ato irregular e fere princípios fundamentais do Direito Público. 5) Viola princípios básicos da Administração Pública, tais como legalidade do ato administrativo, impessoalidade, honestidade, imparcialidade, lealdade à instituição, entre outros. 6) O ato de improbidade ofende também a moralidade administrativa, sujeitando seu infrator às penas deste ato infracional. 7) Mesmo que não ocorra lesão ao patrimônio público, aplicam-se as disposições da Lei de Improbidade, pois o repasse indevido é uma grave irregularidade praticada no exercício da função pública. 8) O enriquecimento ilícito não é critério para aplicação da Lei de Improbidade, tão somente a violação aos princípios básicos de Direito Público. 9) Muito embora não haja vontade de prejudicar o Erário – dolo específico –, o dolo genérico basta para configurar a tipificação do art. 11 da Lei de Improbidade. 10) Ocorrendo o repasse, suspendem-se os direitos políticos, bem como proibição de contratar com o Poder Público. 11) A punição decorrente de ato ímprobo deve ser balizada pelos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, sendo que a sanção deve ser determinada com base na “extensão do dano causado”, bem como no “proveito patrimonial obtido pelo agente”.

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4 ANTIGOVERNABILIDADE E CORRUPÇÃO NA ESFERA MUNICIPAL: A JURISPRUDÊNCIA DO TJRS ENVOLVENDO CASOS DE REPASSE INDEVIDO DE REMUNERAÇÃO DE ASSESSORES PARLAMENTARES Por meio da análise das decisões envolvendo repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares, percebeu-se que o Tribunal entendeu que não houve prejuízo ao Erário, isso porque, independente dos repasses indevidos, o serviço era prestado pelo assessor. No entanto, muito embora não tenha ocorrido esse prejuízo, tal prática corresponde a um mau uso de dinheiro público, não beneficiando a Câmara Municipal, mas atendendo a interesse particular de vereador (70028990307). Os repasses analisados variavam de acordo com o caso concreto, chegando a até 70% do salário percebido. Nesse caso, o Tribunal entendeu que “[...] não se mostra crível que a servidora, por mera liberalidade, tenha consentido em abrir mão de mais da metade de seus vencimentos, restando cerceada no direito à remuneração a que fazia jus por força de lei, já que ocupante de cargo público” (70044641462). Em muitos dos casos analisados, na própria oitiva, os acusados não negavam a existência desse repasse indevido de remuneração. No entanto buscavam explicar o fato por meio de um suposto acordo entre vereador e assessor, bem como com o partido político ao qual o vereador era filiado (70028990307). “Então, por esse contexto probatório resta evidente que o réu, como líder da bancada, não só sabia mas comandava a nomeação dos cargos em comissão da bancada, pois essa era a orientação do partido” (70005239504). Em alguns casos o argumento do repasse era para cobrir despesas do Gabinete, tais como materiais de escritório, transporte, dentre outros materiais que a Câmara Municipal não fornecia, supostamente um ônus que não podia mais suportar. Uma “caixinha” do gabinete. Posteriormente, na investigação criminal, descobriu-se que era utilizado para planejamento de campanha do mandato do vereador e para auxílio de quem precisasse, para “ajudar” (70028709574). No caso que mais nos chamou a atenção de repasse indevido de remuneração, todos os detentores de cargos em comissão do Município de Erechim, por meio de ameaça implícita e às vezes explicita de exoneração imediata, foram obrigados a

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ter, em suas folhas de vencimentos, desconto, em percentual variável, em favor do Partido Democrático Trabalhista, com a finalidade de arrecadar R$ 190 mil para quitar dívidas oriundas do frustrado pleito municipal do ano 2000. Na investigação, os funcionários, questionados acerca do desconto e das autorizações para tal, mencionaram que estavam “cumprindo ordens” (70047882501). Noutros casos, o argumento era de que os acusados não obrigavam ou coagiam seus assessores a contratar ou dividir seus salários com terceiros, pois tais práticas eram comuns nas Câmaras Municipais (70022986921). Por meio da atuação do Tribunal, pode-se verificar a obtenção de ganho ilícito por parte dos acusados que, utilizando-se de sua superioridade hierárquica, exerciam indevidamente sobre os assessores o poder que lhes era inerente, sendo que estes viam-se obrigados a ceder a tais exigências, sob pena de amargar a demissão (70044641462). “O réu contestou asseverando que houve acordo entre a assessora e outros funcionários para que os valores fossem divididos em face da possibilidade da contratação pelo gabinete de apenas um assessor. Salientou que houve a concordância por parte de Carolina em dividir os seus vencimentos” (70010505154). Nos casos judicializados, vislumbra-se que, muito embora os assessores tenham se submetido a tais exigências, não concordaram com tal repasse. Independente de ser praxe ou costume, o fato é que tal prática é ilegal, pois viola uma série de regulamentos, e porque o servidor tem direito à integralidade de seu salário (70005239504). Em alguns casos, o repasse mostrou-se fonte para pagamento de assessores “frios”, assessores que não foram legalmente nomeados para algum cargo na Câmara Municipal: “Confirma que antes de ser assessor ‘oficial’ recebia o dinheiro do vereador” e “As testemunhas Edio e Paulo confirmam a prática feita pelos vereadores de utilizarem parte do dinheiro de um assessor para pagarem outros, ‘não oficiais’ ” (70005239504). Aponta o Tribunal que a divisão dos vencimentos por si só já constitui ato irregular, maior ainda é a irregularidade na contratação direta de outros “assessores” em razão do risco de indenizações trabalhistas em decorrência desse vínculo empregatício entre o “assessor” ilegalmente “contratado” e o Município, por meio da Câmara de Vereadores: “[...] fato é que a autora e os ‘assessores frios’

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são pagos com os recursos públicos retirados do povo através dos tributos. Por isso que o erário e o povo devem ser respeitados por todos, especialmente pelos políticos” (70005239504). Novamente, o que mostrou-se ser fonte de poder de coação em diversos julgados para o repasse indevido foi o caso de os servidores terem sido nomeados para assessores parlamentares de vereadores e prefeitos, sendo os cargos de livre nomeação e exoneração, e da autoridade nomeante o poder de decisão. Dito isso, passamos às considerações finais do trabalho. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Por meio da pesquisa jurisprudencial acerca do tema proposto e no intuito de responder ao questionamento que motivou o presente trabalho, verificou-se que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul tem entendido que o repasse de remuneração de assessor parlamentar, uma vez comprovado, é ato ilícito e viola uma série de prerrogativas legais, sendo resultado de ato ímprobo e de manifesto desvio corruptivo na esfera municipal. Os julgados mostraram a fonte do poder de coação das autoridades políticas no tocante ao repasse indevido, a saber, o poder de nomeação e exoneração das autoridades políticas para os cargos de livre nomeação e exoneração. Tais cargos, além de serem utilizados como forma de barganha política, fomentam atos corruptivos, clientelistas e patrimonialistas. A esfera municipal revelou ser fonte de coalizões partidárias por meio da colocação de aliados e indicados em cargos em comissão. Na maioria dos julgados, o repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares era utilizado com o propósito de inclusão de “assessores fantasmas” em gabinetes de vereadores, pessoas contratadas de forma não oficial e ilegal, mas que representam, devido ao risco desse empreendimento, uma forma de prefeitos e vereadores negociarem, com diversos interesses setoriais, concedendo cargos públicos a fim de coalizar interesses que os beneficiem. 6 REFERÊNCIAS ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados, 31 (31), 1988. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988.

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BITTENCOURT, Fernando Moutinho Ramalho. Relações Executivo-Legislativo no Presidencialismo de Coalizão: um quadro de referência para estudos de orçamento e controle. (Texto para Discussão n. 112 do Centro de Estudos da Consultoria Legislativa). Brasília: Senado Federal, 2012. BORSANI, Hugo. Relações entre política e economia. In: Biderman & Arvate, 2004. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Ação Penal – Procedimento Ordinário n. 70028709574, 4ª Câmara Criminal, Relator: Marcelo Bandeira Pereira, julgado em 02-06-11. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70045646585, 4ª Câmara Cível, Relator: Eduardo Uhlein, julgada em 27-02-13. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70009264342, 18ª Câmara Cível, Relator: Cláudio Augusto Rosa Lopes Nunes, julgada em 05-07-07. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 596241836, 4ª Câmara Cível, Relator: José Maria Rosa Tesheiner, julgada em 03-09-97. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70048544290, 9ª Câmara Cível, Relatora: Iris Helena Medeiros Nogueira, julgada em 18-07-12. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016.

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BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70039551676, 21ª Câmara Cível, Relator: Arminio José Abreu Lima da Rosa, julgada em 15-12-10. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação-Crime n. 70020255006, 8ª Câmara Criminal, Relator: Roque Miguel Fank, julgada em 12-12-07. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação-Crime n. 70047882501, 4ª Câmara Criminal, Relator: Gaspar Marques Batista, julgada em 02-08-12. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70044641462, 6ª Câmara Cível, Relator: Sylvio José Costa da Silva Tavares, julgada em 21-05-15. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70005239504, 9ª Câmara Cível, Relator: Adão Sérgio do Nascimento Cassiano, julgada em 17-12-03. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70028990307, 21ª Câmara Cível, Relator: Marco Aurélio Heinz, julgada em 1º-07-09. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70022986921, 4ª Câmara Cível, Relator: João Carlos Branco Cardoso, julgada em 17-12-08. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016.

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BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70010505154, 3ª Câmara Cível, Relator: Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, julgada em 24-03-05. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. DINIZ, Eli. Governabilidade, “Governance” e Reforma do Estado: considerações sobre o novo paradigma. Brasília: ENAP, 1996. LIJPHART, Arend. Patterns of democracy. London/New Haven, Mass.: Yale University Press, 1999. LLANOS, Mariana; MUSTAPÍC, Ana Maria (Org.). Introdução: o controle parlamentar na Alemanha, Argentina e Brasil. In: Llanos & Mustapíc, 2005a. PELIZZO, Ricardo; STAPENHURST, F. Rick. Strengthening public accounts committees by targeting regional and country-specific weaknesses. In: Shah, 2007. SANTOS, Maria Helena de Castro. Governabilidade, Governança e Democracia: Criação de Capacidade Governativa e Relações Executivo-Legislativo no Brasil Pós-Constituinte. Dados On-line version ISSN 1678-4588, Dados vol. 40, n. 3. Rio de Janeiro, 1997. SCHIER, Paulo Ricardo. Linhas gerais do presidencialismo de coalizão no Brasil e seu vínculo com a questão da corrupção. O texto é a transcrição de palestra proferida no IV Congresso Brasil – Polônia de Direito Constitucional, realizado em Wroclaw – Polônia, entre os dias 13 e 15 de outubro de 2014. Manifesta-se, aqui, a Fundação CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pelo apoio financeiro concedido para a participação no evento. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AI n. 578858 AgRg, Relatora: Mina. Ellen Gracie, 2ª Turma, julgado em 04-08-09. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AI n. 666459 AgRg, Relator: Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, julgado em 06-11-07. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016.

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É POSSÍVEL A UTILIZAÇÃO DO RITO PROCESSUAL DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA APLICAR A LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA? UM ESTUDO DA POSTURA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL COMPARADO AO STJ Juliana Machado Fraga1 Paulo José Dhiel2 Resumo: O presente trabalho tem como escopo abordar a questão da aplicabilidade da Lei de Improbidade Administrativa, Lei n. 8.429, pelo rito da Ação Civil Pública, a qual está devidamente prevista no art. 129, III, da Constituição Federal e regulamentada na Lei n. 7.347/85. Abordou-se a presente temática a partir de uma análise de decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul em comparativo com o Superior Tribunal de Justiça, em consonância com a legislação pátria, com o objetivo de verificar como estes Tribunais vêm

1 – Mestra em Direitos Sociais e Políticas Públicas da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Mestra em Direitos Humanos pela Universidade do Minho. Pós-Graduada em Direito e Processo do Trabalho e Direito Previdenciário. Integrante do grupo de pesquisa internacional “Estado, Administração Pública e Sociedade: Patologias Corruptivas”, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal. Integrante do grupo de pesquisa “Constitucionalismo Contemporâneo” coordenado pelo Prof. Pós-Doutor Clovis Gorczevski. Advogada. E-mail: [email protected]. 2 – Mestrando em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Integrante do grupo de pesquisa internacional “Estado, Administração Pública e Sociedade: Patologias Corruptivas”, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal. Integrante do grupo de pesquisa “Estado, Administração Pública e Sociedade” coordenado pela Profa. Dra. Denise Bittencourt Friedrich. Advogado. E-mail: [email protected].

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se posicionando quanto às questões referentes à possibilidade e embasamento da Ação Civil Pública por Improbidade Administrativa e como esta ação vem se delineando como meio de repressão aos atos corruptivos. Para a realização deste trabalho, utilizou-se o método dedutivo de abordagem de pesquisas e, como método auxiliar, valeu-se do método histórico. Utilizou-se, também, a pesquisa bibliográfica, visando a realizar o desenvolvimento do tema proposto a partir de referencial teórico. Palavras-chave: Ação civil pública. Corrupção. Improbidade administrativa. Tribunal de Justiça. Superior Tribunal de Justiça. Abstract: This work has the scope to address the issue of the applicability of the Administrative Misconduct Law, Law No 8429, the rite of Public Civil Action, which is properly provided for in Article 129, III of the Federal Constitution and regulated by Law 7.347/85 . Addressed to this theme from an analysis of decisions of the State Court of Rio Grande do Sul in comparison with the Superior Court of Justice, in accordance with Brazilian legislation, in order to see how these courts come to positioning on issues concerning the possibility and basis of public civil action by Administrative Misconduct and how this action is emerging as a means of repression of corruptive acts. For this work we used the deductive method research approach and as an auxiliary method took advantage of the historical method. It used also the literature, aiming carry out the development of the proposed topic from theoretical. Keywords: Public civil action. Corruption. Administrative dishonesty. Court of justice. Superior Justice Tribunal. INTRODUÇÃO É sabido que a Ação Civil Pública objetiva resguardar os direitos protegidos pela Constituição Federal brasileira, podendo ter por fundamento a inconstitucionalidade de lei, ato normativo ou ato lesivo à coletividade. Via de regra, os legitimados para a propositura da Ação Civil Pública são: Ministério Público, pessoas jurídicas de direito público interno e entidades paraestatais. A Ação Civil Pública demonstra-se como instrumento processual para o exercício do controle popular sobre os atos dos Poderes Públicos. Pode ser

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É possível a utilização do rito processual da ação civil pública para aplicar a lei de improbidade administrativa? Um estudo da postura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul comparado ao STJ

definida como meio de repressão aos danos à coletividade, sejam direitos de ordem ambiental, econômica, histórica, turística ou interesses difusos. Por meio da Ação Civil Pública pode-se exigir a reparação do dano causado ao patrimônio público por ato de improbidade, assim como a aplicação das sanções especificadas no art. 37 da Constituição Federal de 1988, quando decorrentes de conduta irregular de agente público. Por sua vez, a Lei de Improbidade Administrativa, Lei n. 8.429, de 02-06-92, veio por complementar o que foi definido pelo poder constituinte, estabelecendo as sanções aplicáveis aos agentes públicos, nos termos do art. 37, § 4º, da Constituição Federal, para os casos de enriquecimento ilícito por intermédio da prática de ato de improbidade administrativa. Nesse sentido, evidencia-se que estes dois institutos demonstram-se como mecanismos de controle popular das ações do Poder Público ao que tange à proteção de bens públicos, Erário, moralidade e probidade. Dessa forma, imprescindível que se verifique como essas ferramentas podem ser utilizadas conjuntamente para garantir interesses coletivos e difusos, bem como se realize uma análise contundente da jurisprudência dominante acerca do tema. Assim, pesquisou-se no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e no Superior Tribunal de Justiça com o verbete “ação civil pública lei improbidade” (sem aspas), acórdãos entre as datas de 01-01-15 a 31-12-15, a fim de verificar como tem sido decidida tal matéria no Superior Tribunal de Justiça. O presente trabalho é, em suma, uma verificação de como tem sido definido o tema em apreço nos nossos tribunais. 2 A LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA APLICABILIDADE NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA

E

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A conexão entre os atos de improbidade administrativa e a sua aplicabilidade na Ação Civil Pública é a Constituição de 1988 e está intimamente ligada à fundamentação de interesse público, do que decorrem questões centrais como os princípios da Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. A expressão improbidade administrativa no Direito Brasileiro teve sua inicial menção na Constituição Cidadã de 1988, notadamente em seus arts. 15, V, e 37, XXI, § 4º. Contudo, a legislação infraconstitucional decorrente (Lei n. 8.429/92)

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é quem veio a regulamentá-la. O Código Penal Brasileiro também faz referência (art. 29) ao tema no momento em que estende a responsabilidade a qualquer pessoa que venha a induzir, concorrer para a consumação do ato de improbidade ou dele se favorecer de qualquer maneira direta ou indiretamente, mesmo não sendo agente da Administração Pública. Não obstante, é o art. 37, § 4º, da CF, ao dispor sobre as sanções políticas, civis e administrativas aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na Administração Pública direta, indireta ou fundacional, que inaugura e impulsiona a legislação tendo como desígnio a probidade no trato com a coisa pública. A menção ao ato de improbidade administrativa remete invariavelmente à malversação de recurso público, à imoralidade e à ilegalidade. Consoante isso tem sido verdadeiro sinônimo para corrupção e desonestidade por quem está investido em cargo ou função pública ou por quem com ele mantém relações, seja por ação ou por contexto omissivo de falta de zelo (FERRACINI, 2001). Tem, portanto, a ver com deslealdade no desempenho da função pública com transgressão da legislação e dos princípios que norteiam a Administração Pública. A definição dos atos de improbidade administrativa tem sido um desafio atual consoante a sua comparação com o Direito Penal pelos efeitos das suas decisões. A legislação regulamentadora aponta uma série de situações a ensejarem a improbidade, mas resiste a uma tipificação encapsulada como ocorre no Direito Penal. Reside neste aspecto o maior debate tanto nos tribunais como na própria doutrina. De igual sorte, há uma dissimetria sobre a aplicabilidade da legislação sobre improbidade administrativa com a dos crimes de responsabilidade (LEAL, 2013). Existem verdadeiras antinomias e incompatibilidades na cominação de sanções entre a Lei de Crimes de Responsabilidade e a Lei de Improbidade Administrativa, ainda mais quando muito se discute a que nível de agentes nas funções públicas uma ou outra é aplicável. Os princípios norteadores da Administração Pública, já citados, têm na moralidade e probidade uma relação intrínseca e de relevância na análise dos atos ensejadores de punição no âmbito da Lei de Improbidade Administrativa. Na doutrina há alguma distinção identificando a moralidade como gênero e a probidade com uma espécie desta. Nesta linha, os atos atentatórios à probidade seriam ao mesmo tempo atentatórios à moralidade pública, conforme expõe Ferracini (2001). Porém, Di Pietro (2002) defende ser a moralidade e a probidade expressões que significam a mesma coisa, haja vista que se relacionam com a ideia de 294

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honestidade na Administração Pública. A probidade ou moralidade administrativa significam mais que a mera legalidade formal da atuação administrativa, devem ser observados, também, os princípios éticos de lealdade, de boa-fé e de regras que assegurem a boa administração pública. Já segundo Ferracini (2001), a probidade seria um mínimo da moral contida nessa, e não geral como pretende a minoria dos doutrinadores, esclarecendo-se que o próprio direito é parte da moral. O fato de o art. 37 da CF/88 prever expressamente a moralidade como um dos princípios da atividade estatal evidencia uma preocupação com a ética na administração pública de modo mais amplo do que até então, quando era restrita aos agentes políticos. A intenção do legislador era de atender aos demais princípios, como o da eficiência, mas com clara preocupação de combater a corrupção e instrumentalizar meios de evitar a impunidade e o enriquecimento ilícito (LEAL, 2013). É isso que se pode depreender do § 4º do art. 37: “os atos de improbidade administrativa importarão a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”. Incumbiu à Lei n. 8.429/92 regulamentar as disposições constitucionais e ela identifica três tipos de atos de improbidade administrativa: atos que representam enriquecimento ilícito; atos que causam prejuízo ao Erário e atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da Administração Pública. A partir disso fica clara a conexão direta entre probidade administrativa e moralidade administrativa. Assim, temos que toda conduta que atente contra a moralidade administrativa enseja ser, também, ato configurador de improbidade. Já o inverso nem sempre confirma a mesma lógica. Nem todo ato de improbidade administrativa atenta contra a moralidade administrativa. Por essa ótica, a probidade administrativa fica identificada como um mínimo da moral contida nessa. Assim, a improbidade revela a qualidade do homem que não procede bem, por não ser honesto, agindo indignamente, sem caráter, atuando com indecência, consoante descreve Silva (2003). Independente desta discussão quanto ao gênero ou espécie, a etimologia da palavra improbidade nos ajuda a entender este que é um dos maiores males que afetam a Administração Pública brasileira. Improbidade deriva do latim improbitas, que significa má qualidade, malícia. No caso da Administração Pública, rotineiramente representa sinônimo de desonestidade e corrupção (GONZÁLEZPÉREZ, 2000). 295

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Tendo em mente que um dos princípios da administração pública é a legalidade, temos que os atos dos agentes públicos devem se pautar a partir dessa premissa para atender, também, às demais, como moralidade e probidade. Essa é uma das razões de os atos ilícitos também serem considerados uma infração ensejadores de punição de seus autores. Não basta que os atos sejam honestos e morais, terão que atender aos princípios da legalidade (LEAL, 2013). De igual sorte, ainda que tenham respaldo legal, esse aspecto por si só não impede eventual responsabilização se foram imorais e desonestos. Previstos na CF/88, mas regulamentados pela Lei Federal n. 8.429/92, os atos de improbidade são conceituados e agrupados em três categorias: a) os do art. 9º, que versam sobre enriquecimento ilícito do agente público causando ou não prejuízo econômico ao Erário; b) os do art. 10, que são os concretamente lesivos ao Erário e c) os elencados no art. 11, que afrontam os princípios da Administração Pública e podem ou não causar prejuízo ao Erário ou enriquecimento ilícito. Em que pese que a descrição dos atos identificados nos arts. 9º e 10 seja mais precisa, o termo aberto dos atos de improbidade administrativa descritos no art. 11 tem sido tema de grande discussão acadêmica e doutrinária, não menos na jurisprudência. Um dos meios de controle da atividade administrativa recai sobre a atuação do Ministério Público, entidade constitucionalmente criada (art. 127 e seguintes da CF/88) para tutelar os valores e interesses da sociedade. Precisamente nesse contexto que ocorre a relação com a Ação Civil Pública. Trata-se de instrumento disponível ao Ministério Público (ainda que não exclusivamente a este) justamente para atuar na defesa dos interesses coletivos e difusos e buscar a sanção daqueles que lesam o patrimônio público (MEIRELLES, 2008). O instrumento da Ação Civil Pública surge para suprir uma lacuna até então existente, eis que não há, a rigor, um controle ministerial direto sobre a ação administrativa por parte do Ministério Público, considerando que a sua incumbência é demandar no Poder Judiciário. É a partir da Ação Civil Pública que o Ministério Público participa do controle jurisdicional, como guardião constitucional da probidade, conforme elucida Ferracini (2001). Nessa senda, a doutrina tem se posicionado no sentido de que incumbe ao Ministério Público o dever de promover a Ação Civil Pública na defesa de todo e qualquer direito difuso ou coletivo. Considera ser da essência do Ministério Público zelar pela res publica e a própria Lei n. 8.429 identifica o Ministério Público como um dos legitimados para a propositura da Ação Civil Pública, englobando todo ato potencial a caracterizar ato atentatório contra a probidade administrativa. 296

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Reside aqui uma questão importante que não está totalmente pacificada na doutrina. A Lei de Improbidade Administrativa não exige expressamente a anterior instauração de inquérito civil como requisito para propor uma ação de improbidade. Ainda assim, tem-se no inquérito civil um meio eficaz, a partir dos poderes requisitórios para a apuração e colhida de elementos comprobatórios da ocorrência de eventual ilícito, assim como a identificação quanto à sua autoria. A adequação da Ação Civil Pública como meio para responsabilizar agentes por atos de improbidade administrativa é o tema proposto nesta discussão. Nesse sentido, o Ministério Público tem a incumbência de fiscalizar a legalidade da conduta administrativa e sua razoabilidade, isto é, adequação entre os meios e fins, conforme aduz Meirelles (2008). Contudo, fica limitado quanto à análise de mérito dos atos administrativos, notadamente na dimensão de oportunidade e conveniência, estes aspectos intrínsecos da discricionariedade do administrador. E a Ação Civil Pública pode servir para responsabilizar por ato de improbidade? A Ação Civil Pública  é o instrumento processual, previsto na Constituição Federal brasileira e em leis infraconstitucionais, de que pode se valer o Ministério Público. De igual sorte, há outras entidades legitimadas para a defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos e, portanto, para a propositura da mesma ação. Muito embora não possa ser chamada de ação constitucional, a Ação Civil Pública tem um status constitucional, questão pacificada na doutrina, vez que a Constituição atribui ao Ministério Público tal função institucional (art. 129, II e III, da CF/88), assim como a outras entidades, notadamente associações civis (art. 129, § 1º, da Constituição Federal). Assim, não há exclusividade do Ministério Público em propor a Ação Civil Pública, mas legitimidade concorrente (Lei n. 7.347/85, art. 5º). É a Lei n. 7.347/85 que disciplina a Ação Civil Pública incutindo-lhe o propósito de prevenir e reprimir danos ao meio ambiente, ao consumidor, ao patrimônio público, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e turístico, por infração da ordem econômica e da economia popular, ou à ordem urbanística. Seu objeto pode ser tanto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer. Cabe aqui lembrar a disciplina constitucional sobre o Ministério Público: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, da CF/88). Tendo como um dos aspectos centrais servir como um importante canal de acesso à jurisdição, a Ação Civil Pública tem no Ministério Público um ator 297

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importante. Com certeza é o mais atuante na sua propositura e atuação, consoante evidencia-se da análise de jurisprudências do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e do Superior Tribunal de Justiça. Assim, caso não seja parte direta no processo, terá necessária intervenção na condição de fiscal da lei. Aliás, esta atuação está plenamente respaldada pela Constituição Federal, como se depreende do art. 129, da CF/88: Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; [...] III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. A doutrina, assim como a jurisprudência, tem se posicionado no sentido de que a Ação Civil Pública não deve limitar-se a buscar o ressarcimento de danos ao Erário público. Para Meirelles (2008), citando Luís Roberto Barroso, a Ação Civil Pública possui alternatividade. Isto não impede a cumulação de pedidos numa mesma ação como de indenização pecuniária ou de fazer ou não fazer. Além disso, os fins aos quais se destina a Ação Civil Pública constam em outras normas. Exemplo é o CDC – Código de Defesa do Consumidor – que a indica como meio para buscar a invalidação de cláusulas abusivas (Lei n. 8.078/90, art. 51, § 4°). Este aspecto deixa claro que além de sua premissa preventiva e repressiva, não deixa de possuir um caráter constitutivo, pois cria situação jurídica nova. Nesse diapasão, superadas as premissas iniciais deste tema, passar-se-á à análise de como o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul tem decidido acerca do cabimento da Ação Civil Pública para os casos de Improbidade Administrativa. 3 O POSICIONAMENTO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL ACERCA DA APLICABILIDADE DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA O tema da Ação Civil Pública por Improbidade Administrativa encontra-se pacificado no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul no que tange ao seu cabimento. Na pesquisa realizada para a feitura do presente trabalho encontrou-se 163 acórdãos no período de 01-01-2015 a 31-12-2015 por meio da 298

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busca pelo vocábulo “ação civil pública lei improbidade”. Estas decisões em 100% foram pelo cabimento do rito da Ação Civil Pública para casos de Improbidade Administrativa. Entretanto, somente algumas destas decisões se prestaram a uma análise criteriosa do cabimento do rito da Ação Civil Pública. Somente cerca de 8% dos acórdãos analisados especificaram a razão do cabimento da Ação de Improbidade Administrativa pelo rito da Ação Civil Pública, sendo que algumas apenas entraram no cerne desta questão quando suscitadas questões diversas como, por exemplo, arejada por uma das partes a possibilidade de ingresso de Ação Popular e não da Ação Civil Pública3 ou quando questionada a legitimidade da Defensoria Pública na propositura da Ação Civil Pública4. Pode-se verificar pelo gráfico que segue que as decisões deste tipo de ação, em modo geral, não têm o condão de elucidar o tema da Improbidade Administrativa, pois entende que há previsão expressa quanto ao cabimento da Ação Civil Pública na Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) quando menciona em seu art. 1º que cabe a esta demanda a proteção dos direitos coletivos e difusos, bem como a responsabilização por infrações de ordem econômica e por lesão ao patrimônio público e social. Ainda, apega-se à Constituição Federal em seu art. 37, § 4º, o qual menciona a possibilidade de sanções de cunho cível e administrativo sem prejuízo da ordem penal. Assim, refutando qualquer alegação de inviabilidade da Ação Civil Pública por coisa julgada em outra esfera. Nesse tocante, o gráfico demonstra que as decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul muito pouco servem como meio de elucidar acerca do tema da Improbidade Administrativa, pois, embora considere o cabimento ou não da demanda e julgue o caso concreto, pouco discute a possível utilização de ritos diversos para essas ações e quando seria possível a utilização desses mecanismos repressivos de atos ímprobos. Tem-se que esta atitude seria de grande valia para os operadores do direito, sejam eles integrantes do Ministério Público, Defensoria Pública ou juízes de 1º Grau, a fim de obterem mecanismos de combate à corrupção com uma possível interpretação e maior compreensão sobre como o Tribunal vem decidindo questões que abordem este assunto.

3 – Trata-se do julgado n. 70065844581 que discute o cabimento da Ação Popular e não da Ação Civil Pública para casos de improbidade administrativa. 4 – Caso dos julgados n. 70067061267 e 70065077406, nos quais se discute a possibilidade de ingresso da Ação Civil Pública pela Defensoria Pública. 299

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Análise das Decisões – Ação Civil Pública por Improbidade Administrativa TJRS

Pode-se perceber que, diante dos julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, a Ação Civil Pública é de fato o mecanismo utilizado para a proteção do patrimônio público, dos princípios constitucionais da Administração Pública, e, ainda, como método de repressão aos atos ímprobos, lesivos, imorais ou ilegais, conforme previsão do art. 12 da Lei n. 8.429/92 e art. 3º da Lei n. 7.347/85. Dos dados analisados somente 8% das decisões enfrentam o cabimento da Improbidade Administrativa por Ação Civil Pública sem suscitar questões diversas do processo. Esse percentual é muito baixo para que se possa analisar criteriosamente as possibilidades de enfrentamento da corrupção por intermédio da Lei de Improbidade Administrativa, Lei n. 8.429/92. Nesse sentido, Di Pietro (2013, p. 880) aduz que: [...] constitui pressuposto da ação civil pública o dano ou a ameaça de dano a interesse difuso ou coletivo abrangidos por essa expressão o dano ao patrimônio público e social, entendida a expressão no seu sentido mais amplo, de modo a abranger o dano material e o dano moral. Com a expressão direito difuso ou coletivo, constante no artigo 129, III da Constituição, foram abrangidos interesses públicos concernentes a grupos indeterminados de pessoas (interesse difuso) ou toda sociedade (interesse 300

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geral); a expressão interesse coletivo não está empregada, aí, em sentido restrito, como ocorre com o mandado de segurança coletivo, mas em sentido amplo, como sinônimo de interesse público ou geral. Moraes (2007) leciona também que o mecanismo para repressão dos atos ímprobos e todo e qualquer ato lesivo, ilegal ou imoral é de fato a Ação Civil Pública. Contudo, a caracterização do ato de improbidade é fundamental para a Ação Civil Pública por Improbidade Administrativa, ou seja, não cabe meramente a demonstração da ilegalidade, e sim a comprovação do dolo e a tentativa de iludir a boa-fé, a fim de obter proveito ilegítimo para si ou para terceiro. Improbidade Administrativa requesta como elemento subjetivo de sua configuração a voluntariedade do agente público, pois que na conduta livre e voluntária concebeu a realização de um plano eticamente reprovável preordenada à concessão de vantagem pessoal ou de terceiro em detrimento da Administração Pública, conforme elucida Costa (2005). Assim, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul tem decidido de acordo com a doutrina majoritária acerca da Improbidade Administrativa e da necessidade de comprovação da presença de dolo, como colaciona-se a seguir a ementa do acórdão n. 70063852149. Ementa: AGRAVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. DIREITO ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RECEBIMENTO DA AÇÃO. REQUISITOS CONFIGURADOS. 1. A ação proposta preenche todos os requisitos exigidos pelos artigos 295 do CPC, tendo sido relatado todos os fatos e a participação de cada réu nos alegados atos ímprobos, estando devidamente fundamentada a peça. 2. A exordial foi devidamente instruída com documentos que demonstram os indícios acerca da materialidade e autoria dos fatos, por intermédio do qual se caracteriza o ato ímprobo, cumprindo a exigência do art. 17, §§6º e 8º da Lei nº 8.429/92. Precedente deste Tribunal. 3. O Ministério Público é parte legítima para a propositura da ação civil pública, cuja competência lhe foi atribuída pela art. 129, §1º da Constituição Federal, artigo 5º da Lei nº 7.347/85 e art. 17 da Lei nº 8.429/92. 4. A ação civil pública é o meio adequado para recuperação dos valores indevidamente apropriados pelos réus, pois visa a proteção dos interesses difusos e coletivos, do patrimônio público e social. 5.

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Os argumentos trazidos no recurso não se mostram razoáveis para reformar a decisão monocrática. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO. (Agravo Nº 70063852149, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sergio Luiz Grassi Beck, Julgado em 15/04/2015) Pode-se observar no julgado supra que sendo a Ação Civil Pública o instrumento adequado para proteção dos direitos coletivos e difusos, incluindo a matéria de Improbidade Administrativa cabendo ao réu a comprovação de não enquadramento dos atos ímprobos, sendo esta por meio da descaracterização inequívoca da intenção do agente se desviar dos princípios basilares da Administração Pública, não bastando mera conduta irregular ou até mesmo ilegal para justificar a aplicação das sanções reservadas na LIA (Lei de Improbidade Administrativa). Cumpre destacar, ainda, que inúmeras decisões alertam para o in dubio pro societate5, ou seja, o dever de prosseguimento da demanda enquanto não houver certeza inequívoca da não caracterização do ato ímprobo. Assim, o objetivo maior desta ação é garantir o bem público e proteger a sociedade da corrupção e da improbidade. Logo, evidencia-se que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul tem decidido as questões relacionadas à Improbidade Administrativa com lucidez e apreço à legislação pátria. Embora haja ausência de explanação hermenêutica em seus julgados, demonstrando de forma contundente o cabimento do mecanismo da Ação Civil Pública para conter atos de Improbidade Administrativa, pode-se perceber que as decisões demonstram alinhamento com o cerne da Lei de Improbidade, tal sendo a punição daqueles que de forma comprovada obtiveram-se de cargos públicos para violar e lesar o patrimônio coletivo, cabendo a esses sanções mais duras do que as de mera conduta ilegal. Dessa forma, passará a analisar a aplicabilidade e habilidade da norma no Superior Tribunal de Justiça comparando suas decisões com as do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 4 COMPARATIVO DA APLICABILIDADE DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA QUANDO DA PROPOSITURA DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA NO TRIBUNAL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL AO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA O propósito do presente trabalho é analisar a aplicabilidade da Ação Civil Pública nas ações por atos de Improbidade Administrativa e traçar um comparativo 5 – A exemplo do julgado n. 70067243550. 302

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a respeito desse ponto nas decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – TJRS com as decisões do Superior Tribunal de Justiça – STJ. Em que pese a análise sobre a fundamentação nas suas decisões, incumbe aqui registrar alguns dados para melhor elucidação acerca do volume de ações versando sobre o tema. A pesquisa foi realizada no site do STJ delimitando a abrangência em “acórdãos” ao longo do ano 2015 com as seguintes palavras: “ação civil pública lei improbidade”. O retorno da pesquisa resultou em 192 acórdãos, dos quais apenas 6% são oriundos do TJRS. Levando-se em conta o número de ações apreciadas no TJRS em 2015, o número de demandas oriundas do Tribunal gaúcho e apreciadas em 2015 no STJ é bastante reduzido. Todavia, cabe aqui a ressalva de que não se está analisando as mesmas demandas em ambos os Tribunais. Por óbvio, apenas como exemplo, uma demanda julgada em dezembro de 2015 no TJRS dificilmente poderia ter nova apreciação no STJ ainda no mesmo ano.

Decisões do STJ – Ano 2015

Diante dessas ponderações, o recorte no presente artigo será feito na análise dos Recursos Especiais suscitados para apreciação do Superior Tribunal de Justiça. Dos 192 acórdãos publicados em 2015 pelo STJ envolvendo o tema “ação civil pública lei

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improbidade”, 51 são de Recursos Especiais, representando 26,56%, conforme tabela abaixo. Ainda no aspecto estatístico, o que se denota é certo “equilíbrio” entre os REsps providos e não providos.

Já em relação às demandas oriundas do TJRS, apenas quatro são acórdãos de Recursos Especiais relacionados especificamente à Ação Civil Pública e Improbidade Administrativa. Estes serão objeto de uma análise direta para identificar o posicionamento do STJ em relação à aplicabilidade da Ação Civil Pública como meio de responsabilização para atos de Improbidade Administrativa. Dos quatro Recursos Especiais julgados em 2015 e que tiveram como origem o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, três6 têm relação direta com o tema da Ação Civil Pública e Improbidade Administrativa. Contudo, nenhum deles ataca diretamente o tema do cabimento da Ação Civil Pública para responsabilidade em casos de Improbidade Administrativa. Já um dos Recursos Especiais versa sobre matéria processual civil. A sua inclusão no retorno da pesquisa jurisprudencial no STJ deu-se apenas por menção a precedentes similares, no REsp n. 1257058, no sentido de que [...] isso não impede que, a partir da sua realização, haja pertinente utilização como prova emprestada em Ações de Improbidade que 6 – REsp n. 1569324/RS, REsp n. 1380926/RS e REsp n. 1171503/RS. 304

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envolvem os mesmos fatos, assegurado o direito à ampla defesa e ao contraditório7. A análise deste recorte feito na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça permite identificar que resta superada qualquer discussão quanto ao cabimento da Ação Civil Pública em questões que envolvam atos de Improbidade Administrativa. Isso se evidencia tanto pela ausência de questionamento pelas partes quanto num debate específico nos votos dos ministros nos mencionados Recursos Especiais. Além disso, superada qualquer discussão quanto ao cabimento da Ação Civil Pública em ações de Improbidade Administrativa pelo próprio regular conhecimento e apreciação dos Recursos Especiais pelo STJ. Nesse sentido, pode-se perceber, pelas pesquisas realizadas para feitura deste trabalho, que ambos os Tribunais, tanto o Superior Tribunal de Justiça quanto o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, entendem pelo cabimento da Ação Civil Pública como instrumento de defesa em face dos atos de Improbidade Administrativa, motivo pelo qual há total recebimento dessas ações perante os Tribunais. Pode-se evidenciar que o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul demonstram afinidade em suas decisões, pois expõem o recebimento destas demandas de Ações Civis Públicas por Improbidade Administrativa, ainda que se limitem a pouca fundamentação e explanação quanto à motivação do recebimento e cabimento desta. De todo modo, importa salientar que estes Tribunais vêm servindo seu propósito quanto à aplicabilidade da norma Constitucional e infraconstitucional, ao passo que em seus julgados aplicam a proteção dos direitos difusos da coletividade e em apreço a probidade econômica no resguardo do princípio do in dubio pro societate, ou seja, na dúvida protege-se a sociedade frente aos indícios de Improbidade Administrativa. Nesse diapasão, são de grande valia os julgados abordados neste trabalho, pois demonstram o poder de controle social e dos mecanismos de defesa do patrimônio público na defesa dos direitos da coletividade e, principalmente, a forma coerente que nossos Tribunais têm abordado o assunto de tamanha complexidade, que é a Improbidade Administrativa, com ponderação, embora haja a relevância de proteger o bem público sem, no entanto, deixar de garantir os direitos constitucionais do réu.

7 – Trata-se do REsp n. 1257058/RS em que se dicute a licitude de dados obtidos em interceptações telefônicas e escutas ambientais em ação de execução fiscal. 305

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclui-se com a presente pesquisa que os Tribunais brasileiros, mais especificamente o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul, têm-se demonstrado como aliados à proteção do patrimônio público e direitos difusos da coletividade, haja vista que seu posicionamento de recebimento da Ação Civil Pública por Improbidade Administrativa evidencia o alinhamento destes Tribunais para com a necessidade de proteção do bem público. Tem-se, então, que o manejo do instituto da Ação Civil Pública na persecução dos interesses difusos, direitos coletivos e do patrimônio público, é primordial para que se alcancem os objetivos diante do Poder Judiciário. É nesse sentido que se tem firmado entendimento na jurisprudência, a fim de proteger o patrimônio público e a sociedade com o exercício da defesa coletiva. Os resultados do levantamento jurisprudencial vão ao encontro desse fato. O instrumento da Ação Civil Pública, como mecanismo de defesa e proteção ao bem público, consoante o art. 129, III, da CF/88 aliado à Lei n. 7.347/85, define a modalidade de controle da corrupção e atos ímprobos por intermédio do Poder Judiciário. Assim, este instrumento tem sido amplamente aceito pelos Tribunais e se evidencia como uma forma contundente de combate à corrupção, trazendo inúmeros benefícios às formas de controle social. 6 REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2016. _____. Lei n. 7.347. Senado Federal, 1985. Disponível em: . Acesso em: 11 jul. 2016. _____. Lei n. 8.429/92. Senado Federal, 1992. Disponível em: . Acesso em: 9 jul. 2016. _____. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: . Acesso em: 7 jul. 2016. _____. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: . Acesso em: 7 jul. 2016. _____. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: . Acesso em: 7 jul. 2016. _____. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: . Acesso em: 7 jul. 2016. COSTA, José Armando. Contorno Jurídico da Improbidade Administrativa. 3ª ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2005. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14ª ed. São Paulo: Atlas, 2002. _____. Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo: Atlas, 2013. FERRACINI, Luiz Alberto. Improbidade Administrativa. 3ª ed. São Paulo: Agá Júris Editora, 2001. MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção e habeas data. 18ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2007. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Disponível em: . Acesso em: 05 jul. 2016. _____. Tribunal de Justiça. Disponível em: . Acesso em: 05 jul. 2016. _____. Tribunal de Justiça. Disponível em: . Acesso em: 05 jul. 2016.

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_____. Tribunal de Justiça. Disponível em: . Acesso em: 05 jul. 2016. _____. Tribunal de Justiça. Disponível em: . Acesso em: 05 jul. 2016.

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OS ATOS CULPOSOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA À LUZ DO DIREITO FUNDAMENTAL À BOA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA1 Luiz Egon Richter2 Augusto Carlos de Menezes Beber3 Resumo: O presente artigo visa a discutir a necessidade da observância do direito à boa administração pública nas hipóteses de configuração de atos administrativos culposos. Considerando que a jurisprudência já se consolidou no sentido de exigir o elemento volitivo prejudicial ao Erário nos tipos puramente dolosos (arts. 9º e 10), sustenta-se que as hipóteses de culpa também devem abordar o rompimento do ato com o pano de fundo republicano, sob pena de se fazer uma interpretação desarrazoada da Lei n. 8.429/92. 1 INTRODUÇÃO A improbidade administrativa, conforme extraída do art. 37, § 4º, da Constituição Federal, constitui espécie jurídica que encerra atos que mitigam a 1 – O presente artigo é fruto dos debates realizados no bojo do “Projeto Interinstitucional de redes de grupos de pesquisa sobre o tema Patologias Corruptivas nas relações entre Estado, Administração Pública e Sociedade: Causas, Consequências e Tratamentos – Parte II: discutindo formas de enfrentamento do fenômeno”, coordenado pelo Professor Doutor Rogério Gesta Leal, sendo as pesquisas desenvolvidas junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas – CIEPPP. 2 – Doutorando em Direito, Mestre em Desenvolvimento Regional, Especialista em Direito Constitucional pela UNISC e Especialista em Direito das Coisas pela Unisinos. Professor da graduação da Universidade de Santa Cruz do Sul, titular da disciplina de Direito Administrativo e Registrador Público. E-mail: [email protected]. 3 – Graduando do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Rio Grande do Sul, Brasil, com bolsa de iniciação científica institucional, na modalidade PUIC, sob a orientação do Professor Doutor Janriê Rodrigues Reck. E-mail: [email protected].

Luiz Egon Richter e Augusto Carlos de Menezes Beber

atuação da Administração e o atendimento ao interesse público, razão pela qual pode ser enquadrada dentro do gênero corruptivo. Por sua vez, dando sequência ao referido comando constitucional, a Lei n. 8.429/92, conhecida como Lei de Improbidade Administrativa, classifica sumariamente e de forma exemplificativa os três grandes grupos de atos de improbidade, encontrados respectivamente nos arts. 9º (atos que importam em enriquecimento ilícito), 10 (atos que configuram dano ao Erário) e 11 (atos que violam os princípios da Administração). Após pesquisas realizadas anteriormente4, constatou-se que, por meio de interpretação gramatical e sistemática da Lei, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça5 inclinou-se no sentido de que somente os atos de improbidade que ensejam dano ao Erário podem ser configurados a título de culpa. Por consequência, para a tipificação de atos de improbidade que importem em enriquecimento ilícito ou em violação aos princípios da Administração Pública, é necessária a constatação da conduta dolosa do agente. Trata-se de um entendimento jurídico que se ampara no caráter violador e desonesto da improbidade, a qual não pode ser confundida com a mera ilegalidade, razão pela qual a sua configuração depende da comprovação da vontade do agente em prejudicar a Administração Pública. Por conseguinte, em continuidade aos estudos confeccionados, parte-se do entendimento jurídico exposto para, neste momento, investigar especificamente a forma com que os atos de improbidade são tipificados quando sua configuração ocorre a título de culpa. A tese aqui esposada é de que, se os atos de improbidade de conduta dolosa exigem uma vontade de malversação do patrimônio público, os atos culposos, por serem violações a deveres jurídicos, também devem estar retroligados ao desrespeito voluntário ao pano de fundo normativo que orienta a Administração Pública. Assim, no compasso da jurisprudência, advoga-se a necessidade de as ações culposas – sejam elas realizadas por negligência, imprudência ou imperícia – estarem combinadas com violações aos postulados republicanos para poderem ensejar as sanções por improbidade. 4 – Para tanto, ver o artigo intitulado “Dos argumentos/critérios preponderantes utilizados em acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul para a reforma/manutenção de decisões de 1º Grau em Ações Civis Públicas por improbidade administrativa”, publicado na obra “Temas Polêmicos da Jurisdição do Tribunal de Justiça: dos crimes aos ilícitos de natureza pública incondicionada”. 5 – Ver, por exemplo, os acórdãos paradigmáticos REsp n. 842.428/ES, Rel. Min. Eliana Calmon; e EResp n. 479.812/SP, Rel. Min. Teori Zavascki. 310

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Considerando-se ainda que o bem jurídico protegido pela Lei n. 8.429/92 não é o “numerário” administrativo em si, mas a probidade administrativa e os princípios que emergem da Constituição, não se mostra razoável exigir uma conduta altamente qualificada para as sanções dos arts. 9º e 11, e, no caso do art. 10, pelo fato de haver dano material, exigir-se apenas uma técnica jurídica mais simples. Notadamente, os incs. II, III, VII, XIV, XV, XVI, XVII e XVIII do art. 10 fazem menção expressa ao dever de observação das formalidades legais. Entretanto, a não observância de alguma formalidade pode acarretar de forma imediata as sanções por improbidade? A resposta para tanto é dúplice: se a ação culposa resultar de mero equívoco, não; por outro lado, se importar em violação ao pano de fundo jurídico que orienta e fundamenta o direito administrativo, sim. Logo, o ponto nevrálgico da presente problemática está no que o direito brasileiro vem assistindo irromper no direito internacional, especialmente no direito europeu, como direito fundamental à boa administração pública, que, por seu turno, corresponde a um plexo de direitos exigíveis subjetivamente. Conforme Juarez Freitas (2007), o direito fundamental à boa administração pública contém em si o direito a uma administração transparente, dialógica, imparcial, proba, respeitadora da legalidade temperada, eficiente, eficaz, econômica e teleologicamente responsável. De mais a mais, a boa administração pública é um direito de núcleo flexível, razão pela qual nele podem ser encontrados outros elementos, como o dever de moralidade, participação social e motivação e, como acrescenta Freitas (2007), a observância aos princípios da precaução e da prevenção. Logo, a atuação administrativa deve ser pautada por atos comedidos e bem planejados, tendo por base escolhas legítimas que privilegiem o interesse público. Por consequência, as medidas tomadas pela Administração em cumprimento ao seu dever constitucional precisam encontrar um termo médio entre o agir exacerbado e a falta de diligência, em consonância com o princípio da proporcionalidade. Voltando-se à improbidade administrativa, nota-se que a configuração de culpa tipificadora dos atos ímprobos requer necessariamente a observância das formas jurídicas culposas e dos elementos da boa administração pública. Nesse ponto, conforme se verá adiante, concorda-se com a jurisprudência, no sentido de que a culpa que tipifica a improbidade deve sofrer interpretação que a qualifique, de forma a uniformizar o entendimento sobre a matéria, vez que o direito, à luz da integridade, não pode ser contado aos pedaços. 311

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A partir dessas considerações, serão analisados acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, buscando-se questionar como a jurisprudência vem enfrentando as questões aqui levantadas, bem como se tem sido identificados atos culposos, e qual o tratamento jurídico dado a eles. 2 O DIREITO FUNDAMENTAL À BOA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA COMO PANO DE FUNDO DA ATIVIDADE ADMINISTRATIVA Ann Abraham (2009) sabiamente vaticina que a prática administrativa representa uma interface crítica entre o Estado e seus cidadãos, sendo mediadora das operações que transformam as aspirações jurídicas dos direitos humanos em realidade concreta. Nesses termos, a prática administrativa opera por intermédio de escolhas, as quais, segundo o magistério de Juarez Freitas, devem ser caracterizadas no Estado Constitucional como escolhas administrativas legítimas. Ademais, hodiernamente entende-se que no Estado Constitucional a Administração deve observar o plexo de princípios a que está vinculada, agindo nos limites do Direito, o qual confere a ela o dever de escolher bem, dentro de uma janela de possibilidades que não a torna escrava de programas legislativos pré-definidos, mas que lhe dá margem para traçar estratégias criativas de governança (FREITAS, 2007). A partir dessa ótica, Jaime Rodríguez-Arana Muñoz (2012), em tenaz leitura da Constituição Espanhola de 1978, anota como função precípua dos poderes públicos a promoção do exercício da liberdade e da igualdade dos indivíduos, de forma a integralizar e tornar pleno o acesso e a participação na vida política, econômica, cultural e social. Assim como Freitas, amparado no princípio da dignidade da pessoa humana, Arana Muñoz vê o indivíduo como finalidade da ação estatal e centro da vida pública, tornando o aperfeiçoamento das condições que permitem um exercício aprofundado e qualitativo das liberdades individuais um elemento inseparável dos objetivos da boa administração (MUÑOZ, 2012). No mesmo sentido, Ann Abraham (2009), em consonância com o exposto, levanta a necessidade de a Administração sofrer um processo de humanização, no qual resgata-se o propósito de atender às demandas do cidadão comum, esquecidas ou desvirtuadas pela burocracia. Para a autora, a importância de postulados da boa administração deve envolver uma discussão sobre os direitos humanos, tendo em vista o impacto que a qualidade da gestão pública causa diretamente no exercício dos direitos individuais e no desenvolvimento humano. 312

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Nesses termos, o pleno exercício da discricionariedade legítima requer o protagonismo da sociedade, verdadeira detentora e destinatária dos frutos do poder, invocada a participar das deliberações públicas (FREITAS, 2007). Arana Muñoz (2012) chega a destacar que a articulação entre as ações estatais e a opinião dos cidadãos é um elemento necessário para o sucesso dos bons governos e das boas administrações, vez que uma burocracia desvinculada da realidade não tende a promover as melhores políticas públicas, ainda que dotadas de perfeição técnica. Para o autor espanhol, a boa administração e o bom governo encontram-se em uma posição denominada reformista da Administração Pública. Arana Muñoz, em sua análise, afasta-se de uma posição imobilista, caracterizada pelo desejo de manutenção estática das estruturas sociais, econômicas e culturais, do mesmo modo como refuta a posição revolucionária, que busca subverter a ordem existente com base na rejeição total da situação presente (MUÑOZ, 2012). Para o autor, a posição reformista mostra-se adequada, portanto, por aceitar o que está posto sem cair em conformidade, mas produzindo alterações que visam a uma melhora autêntica das estruturas sociais. Além disso, a razão para adotar-se o reformismo como bandeira decorre igualmente na mutação constante a que o tecido social está submetido. As administrações não estão isentas de enfrentar fenômenos como a imigração, o desenvolvimento de novas tecnologias ou mesmo de reformas políticas. Logo, a modernização encontrada no bojo do reformismo torna-se mais um processo de atuação contínua, necessário ao bom desempenho da máquina pública (MUÑOZ, 2012). Nesse diapasão, impende também trazer à baila o princípio da dignidade da pessoa humana, estampado no art. 1º, III, da Constituição da República de 1988, o qual deve nortear toda atividade pública. Por conseguinte, adotando-se o reformismo de Muñoz, a função administrativa deve mostrar-se articulada com a realidade a qual pertence, de modo a buscar, em máximo grau, tornar efetivos os direitos que celebram a dignidade humana, tornando a função pública o medium jurídico necessário para concretizar os direitos humanos. Nesse cenário, notadamente integrador e de cunho marcadamente principiológico, consagra-se e concretiza-se o que Freitas (2007, p. 20) conceituou como direito fundamental à boa administração pública: [...] trata-se do direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à

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plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. a (sic) tal direito corresponde o dever de a administração pública observar, nas relações administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a regem. (Grifos do original) Observa-se, assim, que o direito à boa administração pública compreende um plexo de princípios jurídicos com força normativa, os quais constituem o pano de fundo sob o qual as administrações devem se orientar. Tal direito, em consonância com o exposto, privilegia os destinatários da atividade estatal, de modo que o seu cumprimento é medida necessária para legitimar a ação do Poder Público nas esferas pública e privada. Anota-se que o contexto do direito à boa administração vem de um movimento em que países membros da União Europeia aproximam-se em um ideal de aperfeiçoamento da gestão do interesse público compartilhado pelas comunidades nacionais. Para Vasilica Negrut (2011), a literatura especializada aponta para uma definição de boa administração que envolve necessariamente elementos como o direito de acesso à informação, proteção eficiente dos direitos fundamentais e do direito de defesa, e o dever de motivação dos atos estatais. Nesse sentido, o art. 41º, 1, da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia de Nice estampa o direito à imparcialidade no tratamento aos cidadãos, à equidade e à duração razoável das demandas. Em sequência, o art. 41º, 2, por seu turno, elenca o direito de qualquer pessoa ser ouvida antes de ser tomada decisão a seu respeito, bem como o do acesso aos processos que lhes refiram e o dever da Administração em fundamentar suas decisões. Ainda, conforme o art. 42º, deve ser resguardado o direito de acesso aos documentos públicos do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão. Ao cabo, o art. 43º estabelece o direito de apresentar petição ao Provedor de Justiça Europeu para apontar casos de má administração. Entretanto, destaca Negrut (2011) que ainda que haja referências ao direito à boa administração na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, ou mesmo no Código Europeu de Boa Conduta Administrativa, as considerações temáticas mais relevantes encontram-se nas decisões da Corte Europeia de Justiça e na Corte Europeia de Direitos Humanos. De mais a mais, a Carta de Direitos Fundamentais representou um avanço para os povos de países que não previam em suas Constituições um plexo de 314

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direitos como o direito à boa administração pública. Negrut (2011) destaca o caso da Romênia, que, em nível constitucional, reconhece o direito estrangeiro a ponto de suprir o direito nacional com as garantias estabelecidas com a referida Carta. No Brasil, hodiernamente ocorre o fenômeno da instrumentalização dos direitos encontrados na Constituição, semelhantes ao plexo de direitos articulados sob o manto da boa administração pública da Carta Europeia. Notadamente, a Carta Magna de 1988 também traz como garantias fundamentais o direito à razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII ), ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LV ), à impessoalidade e à isonomia (art. 37) e o direito à informação e o acesso aos documentos públicos (art. 5º, XXXIII). Ademais, conforme o relatório anual publicado pelo Provedor de Justiça Europeu, em 2014 cerca de 21,5% dos inquéritos encerrados tiveram como causa pedidos de informação e acesso a documentos; 19,3%, questões envolvendo a aplicação de tratados; 19,3%, concursos e processos de seleção; 16%, questões políticas e institucionais; 11,3%, Administração e Estatuto dos Funcionários; 8,3%, adjudicação de contratos ou atribuição de subvenções; e 6%, sobre a execução de contratos. Diante disso, mostra-se que a boa administração vem ganhando espaço como direito e como garantia dos indivíduos em ter um respaldo daqueles que exercem o poder em seu nome, o que ratifica o fato de que a atividade administrativa não pode ser vista ou tratada como um fim em si mesma, mas como um instrumento para a dignidade da pessoa humana. Por consequência, crê-se que as demandas da boa administração, por envolverem o cerne da atividade estatal, são o verdadeiro objeto a ser tutelado pelas leis do direito administrativo sancionador. Logo, em se tratando de improbidade administrativa, a maior – ou única violação – que pode ensejar a sua configuração é a violação ao pano de fundo que deve ser o norte da atividade estatal. Não se pode inverter os valores jurídicos da Lei – o que qualifica a improbidade não é tão somente a perda patrimonial do Erário – mas a atuação em desconformidade com as normas que regem a função administrativa do Estado. Tal entendimento, consubstanciado no que descreveu-se como sendo o argumento do interesse público, é adotado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, a qual entende ser a probidade administrativa o bem tutelado pela Lei n. 8.429/92, e não o patrimônio propriamente dito. 315

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A alta relevância da moralidade e da probidade administrativa são argumentos que os desembargadores usam para tomar decisões que, em um jogo de interesses e princípios eminentemente privados, não tomariam. Explica-se: com este argumento, entende-se que, não importando o valor ou o dano causado pelo ato dito ímprobo, o que se fere com a conduta desonesta não é o dinheiro, a moeda, mas a moralidade administrativa, de inestimável valor. (BEBER; RICHTER, 2015, p. 276) Do mesmo modo posiciona-se a doutrina, conforme se depreende da leitura das lições de Mateus Bertoncini (2010, p. 15), o qual consagra o direito à probidade como direito subjetivo fundamental: embora interesse ao homem individualmente considerado, o direito fundamental à probidade administrativa visa à proteção do povo e da Nação brasileira contra a corrupção administrativa, direito reconhecido na Constituição Federal em face dos diversos princípios e regras destinados a enfrenta-la, referidos inicialmente, da Lei de regência (LIA), e, no plano transnacional, das Convenções Interamericana (CICC) e da ONU Contra a Corrupção, internalizadas pelo nosso ordenamento jurídico. Nesse sentido, a jurisprudência se posicionou em afirmar que a mera ilegalidade não se confunde com a improbidade. Improbidade é deslealdade, má-fé. A problemática jurídica que surge em relação a tanto é: como então a patologia da improbidade se identifica? A resposta que se sustenta é a seguinte: para se identificar a improbidade, é preciso anteriormente identificar quais foram os bens jurídicos violados. Assim, uma vez que o pano de fundo da atividade estatal se encontra espelhado no plexo jurídico que é o direito à boa administração pública, a sua violação, somada ou não à subtração patrimonial do Estado, é que se mostra elementar à configuração da improbidade. Assim, nas ações de improbidade, o ônus do Estado não é provar somente a perda patrimonial do Erário (pois esta pode ser inclusive reavida com uma ação de ressarcimento, que é imprescritível), mas, sim, provar que o agente público atuou em desconformidade com o regime jurídico que deveria observar.

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3 O AGIR ADMINISTRATIVO ENTRE A VEDAÇÃO AO EXCESSO (ÜBERMASSVERBOT) E A PROIBIÇÃO À PROTEÇÃO INSUFICIENTE (UNTERMASSVERBOT) Em sequência ao presente estudo, discorrer-se-á brevemente sobre os parâmetros pelos quais se pode analisar a possível incidência da improbidade administrativa em razão de atos culposos, admissíveis nos termos do art. 10 da Lei n. 8.429/92. Abordar-se-á o assunto sob a perspectiva da boa administração pública, conforme exposto anteriormente, ratificando-se a tese de que o bem jurídico tutelado da Lei é a probidade no trato público, além do plexo de direitos que se reúne no pano de fundo da boa administração. Inicialmente, renova-se a fala exposta, no sentido de que a atuação administrativa se faz por meio de escolhas, as quais, sob o paradigma democrático, devem se caracterizar como escolhas administrativas legítimas. Nesse sentido, Freitas (2007) leciona que cabe à Administração, sob a égide do Estado constitucional, tecer suas ações de forma a respeitar o direito à participação, aos fundamentos da República e aos direitos fundamentais individuais. No entanto, não basta a Administração almejar a concretização de direitos. Ela deve fazê-lo na medida em que não cause desequilíbrio nas relações sociais e jurídicas do sistema. Dessa forma, percebe-se que a juridicidade dos atos estatais tem a necessidade de estar alinhavada com a vedação ao excesso (übermassverbot) e a proibição à proteção insuficiente (untermassverbot). Sobre o assunto, Gervasoni e Bolesina (2014, p. 49) asseveram que o Estado, ao atuar em prol dos direitos fundamentais, é limitado, de um lado, por meio dos limites superiores da proibição de excesso e, de outro, por meio de limites inferiores da proibição da não-suficiência. Tais parâmetros, associados à noção de proporcionalidade (também conhecidos como dupla face da proporcionalidade) referem-se, portanto, à proibição do excesso (Übermassverbot) e à proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot). Ambas exercem a função de parâmetro de avaliação da constitucionalidade das intervenções praticadas nos direitos fundamentais. A primeira dita que estas não podem ocorrer de modo excessivo; já a proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot) pode ser compreendida, de certa forma, como um imperativo de tutela, destinado a assegurar um “mínimo” de proteção em face de um padrão constitucionalmente estabelecido. 317

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Ou seja, tanto uma atuação administrativa que não dê efetividade ao princípio da dignidade da pessoa humana quanto uma atuação que exorbite seu poder de interferência social não encontram resguardo jurídico, podendo ensejar a configuração de improbidade, ainda que a título de culpa. Notadamente, no plano prático encontram-se muito mais situações de descaso e de proteção insuficiente com a coisa pública, o que acarreta uma verdadeira ilegalidade por omissão estatal. Nesse sentido, são válidas as contribuições de Pedro Roberto Decomain (2014, p. 122): [...] a improbidade marcada pela culpa em sentido estrito existirá, aqui, antes no terreno da negligência – conduta displicente – do que no terreno da imprudência – conduta afoita e com inobservância de regras de cautela. Isso resulta claro a partir da própria dicção do inciso X do artigo, que considera improbidade o agir negligente na conservação do patrimônio público. Ao cabo, convence-se que o debate sobre as insuficiências (e incongruências) do agir estatal deve ser enfrentado para a questão da improbidade. Por certo que, se todos os entes estão vinculados ao dever de boa administração pública, a má prestação dos serviços públicos, ou a não transformação das riquezas nacionais em benefícios à população pode ter por causa uma gestão que, por omissão ou incongruência, comete ato de improbidade. Segundo relatório anual da Receita Federal, em 2014, o Brasil registrou a maior carga tributária geral da América Latina. Paralelamente, a Organização das Nações Unidas apontou para o mesmo período a América Latina e a região do Caribe como as regiões com maior índice de desigualdade social do mundo.6 No caso brasileiro, a situação torna-se ainda mais grave por haver uma reversão à equação que diz que melhores arrecadações deveriam refletir em melhores serviços públicos, logo, em maior qualidade de vida. Notadamente, se é possível elencar variáveis que impedem a devida conversão, deve-se incluir, no mínimo, elementos como a corrupção e a má gestão dos recursos públicos.

6 – Apesar de nos últimos anos ter havido um avanço em relação a indicadores de desenvolvimento humano, o Brasil ainda carece dar um respaldo aos seus cidadãos, especialmente quanto ao desencontro que os dados estatísticos refletem. Pode-se observar que países como a Dinamarca, que está entre as nações com maiores índices de desenvolvimento humano do mundo, possuem uma tributação muito superior à brasileira, preferindo a incidência fiscal em relação à renda, lucro e ganho de capital do que sobre bens e serviços, que representam a maior parcela arrecadatória brasileira. 318

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Ann Abraham (2009) anota que, em geral, a noção que se tem de má administração é associada a termos como preconceito, negligência, desatenção, atraso, incompetência, inaptidão, perversão, arbitrariedade e torpeza. Ao lume do Estado Constitucional, a perda de qualidade das prestações públicas importa em grave violação aos preceitos básicos de uma boa administração pública, especialmente seu núcleo principal, a dignidade da pessoa humana. O exercício mal empregado do poder se revela em escolhas realizadas que não observam os padrões constitucionais de juridicidade e que não se confundem com a discricionariedade. Realizar obras novas quando há outras inacabadas, traçar projetos sem observância de normas básicas de engenharia, adquirir material desnecessário, são todos exemplos de atos empregados de forma contrária aos princípios contidos no direito fundamental à boa administração pública, o que torna a prática não apenas ineficiente no plano fático, mas ilícita no plano jurídico. À luz do direito fundamental à boa administração pública, trata-se de uma prerrogativa dos cidadãos e um dever do Estado de fazer as vezes de administrador negativo, contornando as mazelas de decisões além ou aquém dos limites desenhados pela Constituição. Assim, em termos de improbidade administrativa, advoga-se que não é a mera irregularidade que configura o ato ímprobo (conforme vem sustentando a jurisprudência), mas elementar à tipificação é a violação aos deveres constitucionais que são inerentes à atividade pública. Sabidamente, os atos culposos se caracterizam ordinariamente por resultados não volitivos do agente. Entretanto, ao contrário do que o senso comum pode esperar, tais atos podem ensejar a responsabilidade de quem os praticou, quando este assumiu o ônus da atividade, especialmente da atividade pública. Logo, o corpo social não pode arcar com os custos de uma má administração, como vem infelizmente ocorrendo no cenário brasileiro. Neste ponto, inarredável complementar: má administração, essa não caracterizada por meros equívocos administrativos, mas pela violação ao pano de fundo da atividade administrativa. Conforme Decomain (2014, p. 122): A ação descuidada, marcada pelo desinteresse na preservação daquilo que pertence à Administração Pública, é que configura a improbidade. E esse pouco caso pela coisa pública insere-se também no terreno da desonestidade. Não com a marca do propósito de produzir desfalque patrimonial (como acontece em relação a outros incisos), mas pelo menos com a marca da 319

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incúria no exercício da função, produzindo com isso o dano que, houvesse o agente atuado como deveria, realizando o esforço que o cargo lhe impunha para a preservação do patrimônio público, não teria tido lugar. Nesse diapasão, a arbitrariedade não se confunde com a discricionariedade. A arbitrariedade por ação e a arbitrariedade por omissão, no entendimento de Freitas (2007), são na verdade os dois principais vícios da discricionariedade administrativa. A arbitrariedade por ação resume-se na atuação do agente público fora do amparo de norma válida, ou mesmo quando há algum desvio abusivo das destinações legais ou constitucionais do ato praticado. A arbitrariedade por omissão, por outro lado, ocorre quando a atuação administrativa se dá de forma impotente ou inoperante, rompendo com o dever de diligência positiva e com os princípios da prevenção e da precaução (FREITAS, 2007). Conforme Gavião Filho (2011), a diligência exigível daquele que realiza a escolha pública restringe-se aos limites do desenvolvimento geral e científico conhecido, uma vez que afronta à razoabilidade a exigência de conhecimento global sobre todas as medidas alternativas possíveis. Face ao exposto, mesmo que após a tomada de decisão surjam alternativas mais favoráveis à Administração, o gestor público estará imune de sanções em relação à medida tomada, mesmo que ela não seja a que melhor atenda ao interesse público. O Tribunal de Contas da União, em observância ao princípio parcial da necessidade, atribui ao gestor a noção de homem médio, ou seja, daquele que possui a razoável diligência que de todos se espera, para analisar o cumprimento necessário ao dever de zelo na prática administrativa.7 Com isso, chega-se à conclusão de que, tratando-se de atos culposos de improbidade administrativa, a sua configuração, observado o pano de fundo da boa administração, vai depender da inobservância dos deveres constitucionais de vedação ao excesso (übermassverbot) e a proibição à proteção insuficiente (untermassverbot). 7 – Nesse sentido, ver AC n. 10642/2015 – 2ª Câmara, data da sessão: 17-11-15, Rela.: Ana Arraes; AC n. 1001/2015 – Plenário, data da sessão: 29-04-15, Rel.: Benjamin Zymler. Destaca-se o enunciado extraído do Acórdão n. 1275/2011 – Plenário, data da sessão: 18-05-11, Rel.: Raimundo Carreiro: A regra é o gestor agir de acordo com os pareceres técnicos e jurídicos. Somente nos casos em que o parecer contém erros perceptíveis aos olhos do homem médio, ou seja, aquele que age com a razoável diligência que de todos é esperada, é razoável exigir do gestor que aja de modo diverso do indicado no parecer. 320

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Nessa senda, a proteção jurídica dos administradores públicos repousa no agir diligente, no qual, empregando-se os meios adequados e acessíveis no espaço-tempo, garante-se uma proteção suficiente aos direitos fundamentais. 4 A TUTELA DA BOA ADMINISTRAÇÃO NA CONFIGURAÇÃO DOS ATOS CULPOSOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: UMA DISCUSSÃO NECESSÁRIA NA JURISPRUDÊNCIA Após as considerações tecidas anteriormente, importa discorrer sobre o instituto da improbidade administrativa configurada por atos culposos, conforme a leitura dada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Inicialmente, o art. 10 da Lei de Improbidade Administrativa elenca as espécies de atos de improbidade passíveis de sanção a título de culpa, dentre os quais pode-se citar, a título de exemplo, a realização de operações financeiras sem observância dos trâmites legais (inc. VI), permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro enriqueça ilicitamente (inc. XII), dentre outros. Assentadas as premissas teóricas, busca-se agora defender a tese de que a configuração da culpa ímproba, a qual depende de uma atuação negligente, imprudente ou imperita, deve estar relacionada a uma violação dos preceitos da boa administração pública, e não tão somente (ou primordialmente) ao prejuízo do Erário. Notadamente, para tanto deve ser realizada uma (re)interpretação do conceito de improbidade que a jurisprudência vem se amparando. Afinal, se o agente ímprobo é aquele que agiu de má-fé, como a culpa pode qualificar a improbidade, quando esta tem por escopo o descuido ou a desatenção? A partir dessa problemática, muitos julgados têm buscado qualificar a culpa que atende ao disposto na Lei, chamando-a por vezes de culpa grave ou culpa consciente.8 Em acórdão de 19 de maio de 2016, de lavra do Des. José Aquino Flôres de Camargo, teceram-se as seguintes considerações a respeito do tema:

8 – A respeito disso, veja-se o julgamento paradigmático do REsp n. 879.040/MG, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 21-10-08, DJe 13-11-08, de onde se extrai a seguinte premissa: “3. (...) Ora, o ato de improbidade administrativa pela própria articulação das expressões refere-se a condutas não apenas ilegais, pois ao ato ilegal é adicionado um plus que, no caso concreto, pode perfazer ou não um ato de improbidade. Daí que parte da doutrina bate-se pela perquirição do elemento subjetivo capaz de identificar não qualquer culpa praticada pelo agente público, mas necessariamente, um campo de culpa consciente, grave, denotando indícios de conduta dolosa”. 321

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Culpa grave. Art. 10 da Lei 8.429/92. Conduta do agente dolosa ou, pelo menos, eivada de culpa grave. Configura-se a conduta culposa quando, apesar de o agente não pretender o resultado, atua com negligência, imprudência ou imperícia, denotando imperdoável descuido com a coisa pública. Daí punir-se a má gestão administrativa, fruto de erro inescusável de diligência, denotativo de má-fé. (BRASIL, 2016, grifos nossos) Percebe-se pelo acórdão citado que, para adequar a hipótese de sanção por culpa ao conceito de improbidade construído, a jurisprudência entendeu por bem alicerçar uma categoria especial para os atos culposos, os quais, além dos elementos ordinários (negligência, imprudência ou imperícia), deve abranger um descuido com a coisa pública. Semelhantemente, na Apelação Cível n. 70063372346, julgada em 28 de maio de 2015, o Tribunal apreciou o caso de agentes políticos que deixaram disponíveis cheques em branco a servidor (o qual se apropriou de verbas públicas), não havendo qualquer controle dos valores despendidos. Na análise do caso, do qual foi relatora a Desa. Marilene Bonzanini, o Tribunal entendeu configurada a culpa grave dos agentes, tendo em vista que a sua ação omissiva permitiu a ocorrência do evento danoso ao Erário. Veja-se: tenho que, tendo em vista que foram deixados cheques em branco à disposição de servidores municipais, sem qualquer controle de sua destinação, e havendo apropriação particular de valores pertencentes ao ente público municipal em virtude dessa conduta desidiosa, resta configurada, de forma plena, a culpa grave que permite a condenação em improbidade administrativa com dano ao erário, nos termos do art. 10 da 8.429/92 (BRASIL, 2015, grifo nosso) Assim prossegue a relatora: O Prefeito e o Secretário da Fazenda assumiram a responsabilidade pela assinatura de cheque em branco colocado à disposição de servidor sem verificar, previamente, a existência de nota de empenho. E mais ainda no caso dos autos que sequer cuidaram de posterior fechamento e conciliação de contas, tanto que a apropriação indevida somente veio a ser detectada meses após.

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Os atos culposos de improbidade administrativa à luz do direto fundamental à boa Administração Pública

[...] E não se diga que é praxe administrativa e que, por isso, há justificativa: a administração da máquina pública não deve ser feita como a administração da própria casa, em que é natural deixar cheques ou valores para os filhos ou responsáveis pela guarda da casa para os gastos cotidianos. Na administração de verba pública deve-se atentar à legislação e ao dever dos gestores para com os administradores – fato notoriamente não observado no caso em tela. [...] Não se cuida também de mera ilegalidade, mas de culpa grave aferível objetivamente. O Prefeito e o Secretário da Fazenda, assinando cheque em branco sem controlar destinação, assumem os riscos desse proceder. (BRASIL, 2015, grifos nossos) Outrossim, na Apelação Cível n. 70062396577, julgada em 19 de agosto de 2015, também houve a configuração de culpa, sem menção ao adjetivo “grave”. O caso analisado pelo Tribunal era relativo à compra de fármacos sem a realização de procedimento licitatório, o que gerou um custo quase três vezes maior ao Município. De se registrar que o depoimento de Dionei Ruggeri, tesoureiro municipal no período de fevereiro de 2005 a agosto de 2009, fl. 1.696, foi no sentido de que o controle interno (do qual ele fazia parte) do Município, o setor jurídico, a assistência social e o demandado tinham conhecimento de que a compra direta dos fármacos ultrapassava o valor máximo para a dispensa de licitação, bem como que o procedimento licitatório via pregão eletrônico gerava economia ao erário, situação que evidencia o agir no mínimo culposo – pela desídia com o dinheiro público – do então Prefeito Municipal. Nesse contexto, prudente salientar que os atos de improbidade administrativa que causam prejuízo ao erário dispensam a prova do dolo, sendo suficiente para a sua caracterização a presença de culpa. (BRASIL, 2015) Analiticamente, observa-se que em ambos os casos, em que se entendeu configurada a improbidade, fundamentou-se a condenação dos réus com base na desídia e no prejuízo ao Erário.

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Luiz Egon Richter e Augusto Carlos de Menezes Beber

Considerando o exposto ao longo da presente narrativa, leva-se em conta que as decisões também deveriam ter enfrentado o rompimento com o pano de fundo da boa administração, a qual deve orientar a prática administrativa. Veja-se que, tratando-se de jurisdição, não basta apenas a sustentação argumentativa da relevância dos fatos (sob pena de tornar cada caso uma análise de gravidade pontual), mas deve-se construir e demonstrar a violação ao direito. No primeiro julgado, em que houve a cedência de cheques em branco a servidor que se apropriou de valores do Erário, entende-se que, para a configuração da improbidade na modalidade culposa, deve-se demonstrar que a negligência dos atores resultou no rompimento com o dever de boa administração, em especial com o dever de proteção e de zelo com a coisa pública. Lembra-se que, conforme exposto, a proibição à proteção insuficiente (untermassverbot) exige que os administradores tomem as medidas necessárias para evitar que um direito fundamental – no caso do acórdão, a probidade na administração – tenha seu núcleo mínimo violado. Uma vez que os agentes políticos trataram com descuido a coisa pública, violando o pano de fundo administrativo, a improbidade deve restar demonstrada, sendo o dano ao Erário apenas exaurimento da má conduta pública. Não se pode transferir o foco argumentativo à discussão da perda patrimonial. Se o dano ao Erário admite um maior alcance de tipificação do que a pura violação aos deveres de boa administração, estar-se-ia admitindo que a proteção ao patrimônio material – ainda que por vezes ínfimo – deve possuir guarda jurídica maior do que os princípios que norteiam a Administração no Estado brasileiro. Da mesma forma, no segundo caso indicado, o que se mostra imprescindível para a configuração da improbidade (culposa) é a ação que não buscou a aquisição mais econômica e eficiente para o interesse público, o que resultou em perda patrimonial. Com isso, sustenta-se que, à luz do Estado Constitucional, a tutela da boa administração é o bem protegido pela Lei de Improbidade Administrativa, razão pela qual a sua violação deve restar fundamentada para haver a incidência de qualquer espécie condenatória da norma. Por derradeiro, encerrando-se o discurso, mas não o debate, reitera-se o acórdão da lavra da Desa. Marilene Bonzanini: a culpa grave tem um revestimento que permite identificá-la objetivamente. A explicação para tanto, a qual ainda deve ser reconhecida pelo Poder Judiciário, é a seguinte: a tutela da boa administração é o escopo do espírito republicano, o qual deve ser preservado considerando-se a dimensão objetiva de seus postulados jurídicos, os quais não tomam por efeito a motivação interna dos agentes. 324

Os atos culposos de improbidade administrativa à luz do direto fundamental à boa Administração Pública

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao fim e ao cabo, é mister advogar, em sede de considerações finais, que, se o tema da improbidade administrativa resta cada vez mais atual, também o é o tema da boa administração pública. De origem europeia, o direito à boa administração pública compreende um plexo de direitos e garantias que devem orientar a atividade pública, a qual deve ser entendida em sua dimensão instrumental, com fundamento na realização da dignidade da pessoa humana. Por sua vez, a improbidade administrativa, disciplinada no Brasil pela Lei n. 8.429/92, tutela a probidade na Administração, sancionando uma série de atos que são qualificados pela desonestidade no trato público. Considerando-se que ambos os temas se preocupam com o mesmo objeto – ou ao menos com objetos muito próximos –, uma reflexão que agregue a boa administração e a improbidade deve somar esforços na tarefa de aperfeiçoamento da forma de gestão e de interpretação dos assuntos públicos. Por isso, defende-se que a violação à boa administração é um dos elementos principais que caracterizam o ato de improbidade administrativa. Sendo ela o pano de fundo da atividade estatal, é o seu rompimento que configura uma transgressão jurídica, o que pode ter como exaurimento a perda patrimonial. Tal posicionamento se reflete nos atos culposos, em que não há intenção de lesionar o Erário. Uma vez que a atuação administrativa deve se pautar entre a vedação ao excesso (übermassverbot) e a proibição à proteção insuficiente (untermassverbot), o descuido, ou o rompimento com o dever de zelo, que compõe o pano de fundo da boa administração, deve corroborar para a caracterização da improbidade. Ademais, entende-se que o cumprimento ao dever de boa administração é também garantia do gestor público. A ação diligente, pautada pela cautela nas atividades administrativas, tende a atender os pressupostos de legitimidade do Estado Constitucional, inclusive isentando de responsabilidade o agente de um eventual dano futuro, uma vez que as decisões públicas são tomadas em espaço e tempo finitos. As consequências da má administração já são muito bem conhecidas – até mesmo vivenciadas. Resta agora compreender os preceitos de uma boa administração – e incluí-los nos fundamentos que trabalham a improbidade – que, sem dúvida alguma, é uma das patologias mais inibidoras da melhor prática administrativa. 325

Luiz Egon Richter e Augusto Carlos de Menezes Beber

REFERÊNCIAS ABRAHAM, Ann. Good administration: why we need it more than ever. The Political Quarterly, v. 80, n. 1, p. 25-32, January/March 2009. Disponível em: . Acesso em: 2 fev. 2016. BERTONCINI, Mateus. Direito fundamental à probidade administrativa. In: OLIVEIRA, A. A.; CHAVES, C.; GHIGNONE, L. Estudos sobre improbidade administrativa em homenagem ao Prof. J. J. Calmon de Passos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 3-16. BRASIL. Receita Federal. Carga tributária no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 2 fev. 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70063372346. Relatora: Marilene Bonzanini. Data de julgamento: 28-05-15. Data de publicação: 01-06-15. Disponível em: . Acesso em: 14 jul. 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70062396577. Relatora: Laura Louzada Jaccottet. Data de julgamento: 19-08-15. Data de publicação: 01-09-15. Disponível em: . Acesso em: 14 jul. 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70067630418. Relator: José Aquino Flôres de Camargo. Data de julgamento: 19-05-16. Data de publicação: 25-05-16. Disponível em: . Acesso em: 14 jul. 2016. DECOMAIN, P. R. Improbidade administrativa. 2ª ed. São Paulo: Dialética, 2014. FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. São Paulo: Malheiros, 2007. GAVIÃO FILHO, A. P. Colisão de direitos fundamentais, argumentação e ponderação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. GERVASONI, T. A.; BOLESINA, I. O dever (constitucional) de proteção aos direitos fundamentais e o controle jurisdicional de políticas públicas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2014. 326

Os atos culposos de improbidade administrativa à luz do direto fundamental à boa Administração Pública

MUÑOZ, Jaime Rodríguez-Arana. Direito fundamental à boa administração pública. Trad. de Daniel Wunder Hachem. Belo Horizonte: Fórum, 2012. NEGRUT, Vasilica. The Europeanization of Public Administration through the General Principles of Good Administration. Acta Universitatis Danubius. Juridica, v. 7, n. 2, 2011. Disponível em: . Acesso em: 2 fev. 2016. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório de Desenvolvimento Humano. Disponível em: . Acesso em: 2 fev. 2016. PROVEDOR DE JUSTIÇA EUROPEU. Relatório anual. Disponível em: Acesso em: 31 jan. 2016.

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O SILÊNCIO DA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL FRENTE AOS PRINCÍPIOS CONSAGRADOS NO ART. 11 DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA Denise Bittencourt Friedrich1 Márcia Silveira Moreira2 Resumo: A abordagem feita no artigo referiu-se à forma como a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul faz do art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa – LIA (Lei n. 8.429/92), notadamente dos dispositivos de cargas axiológicas contidos no caput. A indagação que ensejou a pesquisa foi: no momento da aplicação do art. 11 da LIA, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul recepciona a sua complexidade diante das situações fáticas que se apresentam, preocupando-se em desvelar os significados dos princípios ali consagrados? Visando a construir uma resposta a esse problema, primeiro analisou-se a base teórica da teoria da argumentação de Klaus Günther, que serviu para apreciar se a aplicação do art. 11 pelo referido Tribunal tem sido adequada. Depois analisou-se a apresentação e a apreciação do mérito das decisões que aplicam o art. 11 da LIA. A hipótese que inicialmente foi traçada se confirmou, haja vista que, pela análise 1 – Doutora em Direito pelo PPGD da Universidade de Santa Cruz do Sul, professora permanente do PPGD da Universidade de Santa Cruz do Sul, professora de Direito Administrativo da graduação dessa mesma universidade, integrante do Projeto de Pesquisa Internacional sobre Patologias Corruptivas. E-mail: [email protected]. 2 – Pós-graduada em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Integrante do grupo de pesquisas “Patologias Corruptivas”, coordenado pelo Professor Doutor Rogério Gesta Leal. Advogada. E-mail: [email protected].

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da jurisprudência, a referência ao art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa figura nas decisões que visam à condenação de agentes administrativos pela prática de atos de improbidade. Porém o Tribunal gaúcho preocupa-se mais em debater a tipificação do dolo dos agentes e o princípio da legalidade, do que atribuir sentindo aos deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, que representam princípios dirigidos aos agentes administrativos. Além disso, muito pouco de apreciação e de contextualização se notou, representando um verdadeiro silêncio jurisprudencial. 1 INTRODUÇÃO O tema do presente artigo refere-se à apreciação feita pela jurisprudência do TJRS ao aplicar o art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa – LIA (Lei n. 8.429/92), que traz um rol de princípios cujo desrespeito por parte do agente público implica a incidência das sanções previstas na referida lei. O problema que se pretende investigar refere-se à seguinte situação: no momento da aplicação do art. 11 da LIA, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul recepciona a sua complexidade diante das situações fáticas que se apresentam, preocupando-se em desvelar o significado dos princípios ali consagrados? A hipótese que se tem é que a referência a estes princípios presta-se muito mais a uma questão retórica e menos a real compreensão dos valores consagrados pelo discurso de fundamentação (feito pelo legislador), acabando, assim, em limitar a complexidade da lei e reduzindo seu alcance. O trabalho estruturou-se primeiro em uma análise de temas epistemológicos vinculados à argumentação jurídica, especialmente na ideia de decisão de Luhmann e depois nos postulados teóricos de Klaus Günther ao tratar dos discursos de fundamentação e aplicação. Depois apresentar-se-á a pesquisa jurisprudencial realizada e, finalmente, a partir dos argumentos extraídos dos cases selecionados, pretende-se analisar se a aplicação do art. 11 da LIA atende às premissas epistemológicas eleitas aqui. Antes de iniciar o desenvolvimento, porém, cabe apresentar como foi feita a pesquisa jurisprudencial junto ao sítio do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (), sendo compilados os dados e transcritos em gráficos para ilustrar melhor os parâmetros das decisões adotadas. Buscou-se com a pesquisa apontar a presença do art. 11 da Lei n. 8.429/92 nas decisões judiciais do Tribunal gaúcho e o enfoque dado aos princípios que regem o referido artigo. 330

O silêncio da jurisprudência do Tribunal de Justiça do RS frente aos princípios consagrados no art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa

Os filtros utilizados para pesquisa foram: Tribunal: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; Órgão Julgador: nada; Relator/Redator: nada; Tipo de Processo: nada; Classe CNJ: nada; Assunto CNJ: nada; Referência Legislativa: nada; Jurisprudência: nada; Comarca de Origem: nada; Assunto: nada; Data de Julgamento: 01/01/2015 a 31/12/2015; Número: nada; Seção: nada; Tipo de Decisão: Acórdão; Procurar resultados com a expressão: improbidade administrativa (sem aspas). A pesquisa retornou 498 acórdãos com a expressão improbidade administrativa e deste total oito não se referiam à improbidade administrativa tratada pela Lei n. 8.429/92 sendo descartados; outros 124 julgados citavam o art. 11 em sua ementa e/ou fundamentação os quais foram analisados à luz do objetivo pesquisado, e que serão analisados adiante. 2 POSTULADOS TEÓRICOS FUNDAMENTAÇÃO E APLICAÇÃO

DO

DISCURSO

DE

Cabe ressaltar a ideia de decisão aqui adotada. Para tanto recorrer-se-á às lições de Luhmann (1997) acerca das decisões, haja vista sua peculiaridade. Importa aqui a forma peculiar com a qual Luhmann (1997, p. 10) percebe uma relação entre decisão e alternativas, ao afirmar que as alternativas não estão fora da decisão “las alternativas se obtenen mediante el retiro de valoraciones o puntos de comparación”. O mais importante dessa observação é que a própria eleição de alternativas é também uma decisão, e, enquanto tal, não é neutra, pois o sujeito/sistema que elege alternativas age influenciado por valores. Além disso, a decisão não se vincula apenas com as alternativas eleitas, mas relaciona-se com todo o horizonte de alternativas que não foram eleitas. Todas as alternativas (as eleitas e as não eleitas) fazem parte da decisão. Então, a decisão para Luhmann (1997, p. 10) é a forma pela qual “es transpasada la unidad de la diferencia de alternativas a la alternativa escogida, de tal manera que en el resultado de la decisión permanece como historia y contingencia”. Nota-se que, embora uma decisão, em sede de aplicação de uma norma, não contemple explicitamente elementos normativos, ainda assim, estarão presentes na decisão. Dessa forma, a não contemplação, por parte do aplicador, de alguns princípios elencados no art. 11 da LIA não os retira da decisão. Antes de fazer a análise dos argumentos apresentados pelo TJRS, cabe investigar o que informa o discurso de aplicação/adequação e o discurso de fundamentação/justificação da norma. Essa dicotomia implica a necessidade de 331

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distinguir entre o momento de fundamentação de uma norma e o momento da sua aplicação porque os sinais característicos componentes do momento aplicativo são imprevisíveis, razão pela qual ainda que uma norma seja válida, não significa que seja adequada ao caso concreto. A justificação/fundamentação da norma vincula-se à validade dos enunciados e visa a alcançar a universalidade de um princípio moral que seja imparcial, que implica, nos termos da teoria de Günther, alcançar o assentimento de todos os envolvidos e atingidos pelo princípio. Porém, como jamais poderá uma norma atingir a infinidade de situações devido a limitações cognitivas e temporais, a dimensão da aplicação irá fazer um juízo de adequabilidade, ou seja, para verificar se a norma é adequada à situação que se apresenta e, nesse ponto, deverão ser examinadas todas as características da situação e consideradas todas as normas que podem ser aplicadas. Nesse sentido: O discurso de aplicação se caracteriza pela tentativa de considerar todas as características de uma situação em relação a todas as normas que possam remeter-se a ela. Este desiderato é alcançado mediante o conceito de coerência e tem por finalidade a constituição de um sentido de imparcialidade à aplicação. A aplicação será imparcial quando coerentemente realizar a adequação entre todas as características e todas as normas envolvidas em cada caso (GÜNTHER, 2004, p. 17). A fundamentação leva em conta os motivos para que um enunciado seja observado por todos como uma regra. Porém, em sede de aplicação, cada uma das situações é relevante. Assim, a decisão a respeito da validade de uma norma (fundamentação) não reflete a respeito da sua adequação em uma situação, ou seja, dizer que uma norma seja válida não significa que ela seja adequada a uma determinada situação. Segundo Günther (2004), não é possível abdicar de uma razão prática, na qual se sustenta o ideal da equidade que se revela tanto em seguir princípios corretos como em aplicá-los de forma imparcial e considerando todas as situações, de forma que as razões das ações possuem uma dimensão de validade (fundamentação) e uma dimensão de aplicação (adequação). Assim, a fundamentação e a aplicação estão vinculadas, haja vista a afirmação que Günther (2004, p. 24-25) faz dizendo que “Quem souber avaliar corretamente a situação, também agirá de forma moralmente correta – e vice-versa”. Assim, “Ao ligar o julgamento de qualidade moral de uma ação a uma bem-sucedida

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avaliação da respectiva situação, precisamos desistir de isolar a fundamentação de uma norma e de submetê-la a um exame isento quanto à sua correção”. Com isso, o problema que Günther aponta é que as máximas universalistas, tidas em discurso de fundamentação, não consideram as situações excepcionais. Por tal razão, defende uma versão mais fraca do princípio “U” “que permite compreender a ideia da imparcialidade no sentido de um principio de fundamentação, motivo pelo qual precisa ser complementada por um principio da aplicação imparcial independente” (GÜNTHER, 2004, p, 37). Assim, sugere a seguinte versão mais fraca de “U”: “Uma norma é válida se as consequências e os efeitos colaterais de sua observância puderem ser aceitos por todos, sob as mesmas circunstâncias, conforme os interesses de cada um, individualmente.” (p. 67). Nesse ponto diverge de Habermas, para quem o princípio “U” depende da anuência de todos os atingidos (sentido forte do princípio “U”). No sentido fraco, o princípio “U” “parece que só conseguimos levar em consideração algumas possíveis situações de aplicação […]” (p. 57), consequentemente, a versão mais fraca de “U” (presente apenas na fundamentação) deve ser complementada pela aplicação, na qual todas as características da situação devem ser apreciadas. A versão fraca de “U” na fundamentação precisa ser reforçada na aplicação, momento em que serão realçadas as especificidades da situação e a relacionar as consequências da aplicação com os interesses dos outros como pessoas concretas. Já que no discurso de fundamentação, com vista à universalização de normas morais, não há como contemplar todas as situações, caberá a complementação no momento da aplicação, a fim de assegurar a razão prática. Então, no discurso de aplicação, deve figurar a apreciação de todas as características da situação, a fim de assegurar a aplicação imparcial. Conclui-se daí que a fundamentação é mais restrita que a aplicação3, pois, como aquela visa à universalização e é impossível (sentido fraco) prever todas as situações nas quais a norma poderá ser aplicada bem como alcançar o consentimento de todos os possíveis atingidos, será no momento da aplicação que as peculiaridades da situação poderão ser apreciadas.4 3 – Adverte Günther (p. 65) “Somente se o nosso saber abrangesse todos os casos de aplicação de uma norma é que faríamos coincidir o juízo sobre a validade da norma com o juízo sobre a adequação”. Porém, como isso apresenta-se impossível, a aplicação é que fará a adequação da norma à situação. 4 – Interessante que, na aplicação do art. 11 da LIA, ocorre a situação inversa: o legislador, na fundamentação, foi mais abrangente ao prever situação em que hoje não são aplicadas pelo TJRS no seu discurso de aplicação. 333

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Os discursos de aplicação “combinam a pretensão de validade de uma norma com o contexto determinado, dentro do qual, em dada situação, uma norma é aplicável” (GÜNTHER, 2004, p. 79). Desta forma, tais discursos fazem a recontextualização da norma até então apenas tida como válida a partir de juízos gerais. No momento da aplicação da norma, para assegurar sua adequação ao caso, deve-se levar em conta a orientação abaixo: A relação de uma norma com todos os demais aspectos de uma circunstancia precisa ser definida, de novo, em cada situação de aplicação, porque não é possível prever a alteração de constelações de sinais característicos. […] a seleção pode ser considerada adequada, se tiver sido precedida da consideração de todos os sinais característicos da situação de aplicação. (GÜNTHER, p. 114) De tal maneira, os discursos de aplicação apenas partem das normas prima facie estabelecidas, sem, contudo, a elas se limitarem, na medida em que fazem a recontextualização da norma às circunstâncias que envolvem a situação. Essa postura do aplicador também visa à aplicação coerente. Normas prima facie servem para o entendimento do que são os princípios, na medida em que estes correspondem mais “a regras prima facie do que decisões últimas irremovíveis, motivo pelo qual a sua observância exige um ‘refinamento e uma diferenciação’ constante” (p. 222). Eles devem ser sempre interpretados em situações concretas, para alcançar o ideal da adequada aplicação. Com isso cabe lembrar que a proposta desse artigo é analisar a aplicação que o TJRS faz dos princípios consagrados no art. 11 da LIA, o que demonstra a pertinência em apresentar a necessária apreciação situacional para a adequada aplicação de princípios (enquanto normas estabelecidas prima facie). Então, a correta aplicação demanda uma apreciação das características que envolvem o caso, a fim de levantar o significado dos princípios diante das singularidades do caso apresentado. Não basta, com isso, apenas a referência ou indicação genérica do enunciado do princípio. No que diz respeito aos argumentos de adequação no Direito, leciona Günther (2004, p. 369) que “argumentações de adequação somente possuem o valor de contribuir com recursos retóricos para se conseguir impor como decisão”. Diga-se que os argumentos que demonstram a adequação da decisão servem para impor não apenas como decisão, mas para que ela se imponha como uma decisão legítima, daí a necessária motivação das decisões, pois apenas assim é possível que

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os atingidos por ela possam reconstruir os laços históricos e identificar se há uma coerência nesse discurso de aplicação. Apresentado o postulado teórico do discurso de aplicação proposto por Günther que interessa a esse trabalho, no passo seguinte entende-se por bem analisar algumas jurisprudências colhidas na pesquisa, a fim de demonstrar se a recontextualização do discurso de fundamentação foi devidamente feita ante as características da situação. 3 OS RESULTADOS DA PESQUISA Apenas para relembrar, a pesquisa foi norteada pela expressão improbidade administrativa, que é uma expressão mais ampla do que o real objeto desse artigo em analisar apenas o art. 11 da LIA. Ocorre que, para se ter um cenário mais real dos casos que envolvem o referido artigo, optou-se por primeiro fazer uma pesquisa mais ampla, para depois fazer o recorte necessário. Mister aclarar que os julgados trazem temas recorrentes que apontam os princípios gerais da administração pública, notadamente os contemplados no art. 37 da Constituição Federal. Além dessa incidência, também percebeu-se a frequente discussão entre o elemento subjetivo que caracteriza o dolo nos atos de improbidade administrativa. Assim, a pesquisa dividiu-se em conformidade com a relação feita pelo julgador entre o art. 11 e os temas princípios da administração pública, dolo e improbidade administrativa. Observou-se que seis acórdãos que utilizaram o art. 11 em sua fundamentação se ativeram a citá-lo de forma mais genérica excluindo ou atribuindo aos atos praticados à característica da improbidade administrativa nos termos do artigo em comento, sem aprofundar o tema. Em outras 12 decisões, o art. 11 foi referido nas fundamentações juntamente com os arts. 9º, 10 e 12 sem individualizar a aplicação de cada artigo ao fato julgado, e em alguns momentos afastando a aplicação do art. 11 ao caso comentado por estar a conduta nele prevista abrangida pelos demais artigos. Nestes julgados específicos consideramos como não debatida a aplicação do art. 11 na fundamentação. Os princípios gerais da administração pública foram mencionados em 27 julgamentos, alguns faziam menção à Constituição Federal de 1988 e logo após ao art. 11. Em outros relacionavam os princípios gerais como sendo o preceito emanado da leitura do referido artigo.

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Outras 35 decisões utilizaram o argumento de que a improbidade administrativa é a ilegalidade qualificada pelo elemento subjetivo dolo tipificado no art. 11 da Lei n. 8.429/92. A caracterização do dolo nos termos do art. 11 é a presença mais forte no debate dos acórdãos estudados, que se alinham, em regra geral, à posição do Superior Tribunal de Justiça, citando os julgados os precedentes daquela Corte. De forma mais expressiva, em 35 julgados, estão os acórdãos que apontam o desrespeito ao art. 11 pela ofensa aos princípios gerais da administração pública e pela prática de ato doloso do agente. Destaca-se ainda que, entre os acórdãos que trataram dos princípios gerais da administração pública, previstos no art. 37 da Constituição Federal de 1988, 11 deles referiram ofensa aos deveres de honestidade, imparcialidade, lealdade e legalidade referenciados pelo art. 11. As figuras a seguir demonstram de forma gráfica os resultados da pesquisa. Do total de 498 acórdãos analisados que tratavam sobre o tema improbidade administrativa, em apenas 25% aplicou-se o art. 11 da Lei n. 8.429/92, no julgamento das demandas.

Deste total de acórdãos pesquisados 9% relacionaram como sendo preceito do art. 11 a observação dos princípios gerais da administração pública e a inexistência do dolo nos atos praticados pelos agentes públicos, para fundamentar o voto; e outros 6% apontaram a observação dos princípios gerais da administração pública como a orientação contida no artigo em comento. 336

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Analisando sob o prisma dos 124 julgados que utilizam o art. 11 da LIA para fundamentar seus votos, observa-se que pouco mais da metade destes (57%)relacionam o art. 11 à observação dos princípios gerais da administração pública (22%), em alguns casos aliados ao elemento subjetivo dolo (28%), como cerne norteador do referido artigo.

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Os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade, tratados pela LIA no art. 11, pouco ou quase nada são debatidos nos julgados, sendo que do total de 498 acórdãos, apenas 16 tratam deles, juntamente com os princípios constitucionais, representando 3% dos julgados emanados pela corte no ano 2015.

Passa-se agora à analise do art. 11 da LIA: Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência; II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício; III - revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo; IV - negar publicidade aos atos oficiais; 338

O silêncio da jurisprudência do Tribunal de Justiça do RS frente aos princípios consagrados no art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa

V - frustrar a licitude de concurso público; VI - deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo; VII - revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço. VIII - descumprir as normas relativas à celebração, fiscalização e aprovação de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas. IX - deixar de cumprir a exigência de requisitos de acessibilidade previstos na legislação. Para não se alongar, a análise da jurisprudência deter-se-á apenas no caput do artigo, ou seja, na presença, no discurso de aplicação, dos “deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”. A Apelação Cível n. 70063103261 apreciou o caso do prefeito do Município de Triunfo entendendo ter ele cometido ato de improbidade administrativa por “violação aos princípios republicanos insculpidos nos arts. 37, II, CF/88, e 20, CE/89, a mantença, durante todo o período em que o apelante esteve à frente do Executivo Municipal, de centenas de casos de irregular admissão de funcionários públicos”. A Corte gaúcha entendeu que por não ter ocorrido o locupletamento patrimonial, tampouco prejuízos ao Erário (já que os servidores indevidamente trabalharam), a improbidade se configura pela incidência do art. 11 da LIA. No voto do Desembargador-Relator Arminio José Abreu Lima da Rosa, ao final, de forma muito reduzida e pouco elucidativa, afirma que “não trata-se do caso do art. 9º da LIA, pois este cuida dos casos mais graves de improbidade, em que o agente público, de modo ilícito, locupleta-se com qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida”. Por isso, entende que o fato narrado enquadra-se no art. 11 da LIA com o seguinte argumento: “Mais corresponde ao caso dos autos à velha, e nefanda, práxis política de clientelismo, mais afeiçoada sua capitulação em o art. 11, Lei de Improbidade”. Porém, seu discurso de aplicação deste dispositivo encerra-se na frase aqui transcrita, sem fazer nenhum aponte às características da situação que convencem pela adequada aplicação do art. 11. Em outra situação, na Apelação Cível n. 70062504972, trata das sucessivas contratações da irmã do prefeito de Palmeira das Missões para o cargo de professora, entendendo o Tribunal que “A prova produzida nos autos demonstra a configuração de atos de improbidade administrativa que atentam contra 339

Denise Bittencourt Friedrich e Márcia Silveira Moreira

princípios da administração pública, notadamente da legalidade, impessoalidade e moralidade”. O Relator cita a definição dos princípios previstos no art. 11 referindo-se às lições de “Silvio Antônio Marques em sua obra Improbidade Administrativa, ação civil e cooperação jurídica internacional (São Paulo: Saraiva 2010, p. 111-112)”, apenas citando os princípios da legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativa, sem contemplar os demais princípios previstos no art. 11, tais como “deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”. Após, o relator passa a descrever o caso, sem, porém, demonstrar como que as peculiaridades da situação (contratação da irmã do prefeito por mais de três anos, afastando-se do dever de concurso público) infringem um ou outro princípio. Observa-se a falta de referência aos princípios diante da situação: Não há qualquer justificativa para as sucessivas contratações temporárias, com a dispensa da realização de concurso público ao longo de 03 anos. E causa estranheza a falta de referência aos critérios utilizados na avaliação de cada candidato, uma vez que consta nas atas tão-somente a respectiva colocação nos processos seletivos. Não há como saber por quais motivos cada concorrente foi classificado na posição a ele atribuída. [...] E outro fator que configura a improbidade é a falta de publicidade adequada das seleções, levando ao raciocínio de que havia intuito de privilegiar a irmã do prefeito. Interessante que, após esses argumentos, o relator passa a analisar o descumprimento ao princípio da publicidade, que sequer foi explicitado pelo art. 11. Não que não seja de extrema importância esse princípio, sendo um dos que mais se vincula ao ideal de bom governo e ao princípio republicano, mas como aqui se está analisando a adequada aplicação do Direito, a partir dos postulados teóricos de Günther, pode-se verificar que a referência ao art. 11 não é explorada diante das características da situação. Ao fim da decisão mais uma vez refere-se ao art. 11, sem desenvolver os princípios nele consagrados: A prova produzida revela o flagrante intuito do réu, ex-prefeito municipal, de não realizar concurso público para o magistério, com o nítido propósito de favorecer sua irmã, concretizando-se também a prática de

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nepotismo. Houve afronta aos princípios basilares da administração pública, notadamente os da legalidade, moralidade e impessoalidade. Configurada, assim, a prática de atos de improbidade praticados pelo réu, ex-prefeito municipal de São José das Missões, nos termos do art. 11, caput, e seu inciso I, da Lei nº 8.429/92, devendo ser mantida a sentença atacada em seu mérito. Situação semelhante a esta de nepotismo, ocorreu na Apelação Cível n. 70063038277, em que o Ministério Público Estadual atribui ao demandado a prática dos atos descritos nos arts. 10, I, II, IX, X e XII, e 11, I e II, da Lei n. 8.429/92, pois, na condição de Prefeito em exercício do Município de Horizontina, manteve sua irmã no cargo de Diretora do Departamento de Emprego, afrontando, assim, a vedação consagrada pela Súmula Vinculante n. 13 do STF. Ao analisar os artigos que descrevem as condutas ímprobas, o relator traz um elemento importante sobre o art. 11 da LIA: “O art. 11 da Lei n. 8.429/92 (atos de improbidade pela inobservância dos princípios da Administração Pública) é de aplicação subsidiária ou residual, caso inexista adequação típica da ação às hipóteses dos seus arts. 9º (atos de improbidade que importam em enriquecimento ilícito) e 10 (atos de improbidade que importam em prejuízo ao erário)”. Assim, a incidência dos artigos que descrevem os atos de improbidade se dá de forma isolada, sem que haja a tipificação conjugada de duas ou mais condutas. Então, só poderá ser condenado pela inobservância dos princípios administrativos, se não ocorrer o enriquecimento ilícito ou o prejuízo ao Erário, talvez por essa razão, a condenação pelo art. 11 seja tão frequente. Isso deixa ainda mais evidente a importância da exploração mais adequada dos princípios nela contemplados. Ao analisar essa última apelação, nota-se um maior cuidado por parte da relatora em apresentar os princípios ante as circunstâncias. Chama a atenção a preocupação da relatora em desmembrar o princípio da lealdade, que não aparece nas demais decisões, conforme observa-se do trecho abaixo: A deslealdade às instituições se insere no conceito de improbidade compreendido por conduta dolosa, com nota essencial da deslealdade, desonestidade, má-fé ou ausência de caráter. A parcialidade, como destaca o autor, é vislumbrada quando a conduta do autor não se pauta por critérios lógico-racionais, mas se deixa influenciar por interesses estranhos à totalidade dos interesses afetados por sua ação, situação

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em que deixa de ser conduta objetiva, desinteressada, isenta, neutra a independente. Ressalta, em referência à Fábio Medina Osório (Teoria da Improbidade Administrativa), que a afronta à imparcialidade que enseja a improbidade seria aquela em que o agente público marca sua atividade administrativa pela perseguição de fins particulares, motivações egoísticas, ambições pessoais que se sobreponham ao interesse público. Embora de forma muito sucinta, nota-se nessa jurisprudência uma breve análise da lealdade. Outra conclusão que se extrai de toda a casuística pesquisada é que a maior preocupação ainda está em desmembrar as características situacionais do elemento subjetivo, relegando a um segundo plano a análise dos princípios consagrados no art. 11. Tal situação fica muito bem evidenciada a partir da seguinte exposição da relatora, após apresentar os argumentos da sentença de 1º Grau: Como visto, a sentença guerreada analisou com percuciência o suporte fático que envolve a questão posta sob apreciação, sobretudo quanto à verificação do elemento subjetivo que permeia a conduta configuradora de ato de improbidade administrativa que importa em violação aos princípios regentes da atividade administrativa. (grifo nosso) Com isso, dá-se por encerrada a análise da jurisprudência, pois os demais casos que expressamente analisam o art. 11 da LIA, em certa medida, repetem os argumentos e reproduzem a prática de pouco se deter em um discurso de aplicação jurisprudencial que complemente o discurso de fundamentação. Ao contrário do que leciona Günther, para quem o discurso de aplicação, para assegurar a adequada aplicação das normas, deve trazer à baila as características da situação para assegurar a aplicação coerente e por sua vez imparcial. CONSIDERAÇÕES FINAIS Percebeu-se, pela análise da jurisprudência, que o art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa figura nas decisões que visam à condenação de agentes administrativos pela prática de atos de improbidade. Porém o Tribunal gaúcho preocupa-se mais em debater a tipificação do dolo dos agentes e o princípio da legalidade. Ao analisar os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, que representam princípios dirigidos aos agentes

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administrativos, muito pouco de apreciação e de contextualização se notou, representando um verdadeiro silêncio jurisprudencial. Assim, percebe-se que ocorre o inverso das lições de Günther, na medida em que defende a recontextualização feita pelo discurso de aplicação ao discurso de fundamentação, haja vista o princípio fraco de “U” que vigora nesse último. Nos casos analisados, porém, o discurso de aplicação feito pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul não aprecia as características da situação que lhe cabem investigar, deixando de fazer o uso da razão prática na aplicação, o que compromete a racionalidade vinculada ao contexto em que opera. Ocorre que a fundamentação foi mais abrangente do que a aplicação. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LUHMANN, Niklas. Organización y Decisión. Autopoiesis, acción y entendimiento comunicativo. Tradução de Darío Rodriguez Mansilla. México: Anthropos, 1997. GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no dirieto e na moral: justificação e aplicação. Tradução de Claudio Molz. São Paulo: Landy Editora, 2004. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Ação Civil Pública n. 70063103261. Relator: Des. Arminio José Abreu Lima da Rosa. Disponível em: . Acesso em: 2 jul. 2016. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Ação Civil Pública n. 70062504972. Relator: Des. Almir Porto da Rocha Filho. Disponível em: . Acesso em: 2 jul. 2016. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Ação Civil Pública n. 70063038277. Relatora: Desa. Marilene Bonzanini. Disponível em: . Acesso em: 3 jul. 2016.

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A APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL1 Brenda Catoi2 Bruna Henrique Hübner3 RESUMO No presente trabalho buscou-se averiguar de que forma o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul vem aplicando, no período compreendido entre julho de 2013 e julho de 2016, a responsabilidade penal às pessoas jurídicas. Em um primeiro momento, serão apresentados os métodos utilizados na ferramenta de pesquisa jurisprudencial do site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, bem como os resultados quantitativos, e depois serão analisadas as questões teóricas discutidas nos acórdãos obtidos, de forma a elucidar a aplicação pelo TJRS no tocante à responsabilidade penal da pessoa jurídica. O método de abordagem utilizado foi o hipotético-dedutivo e como técnica de pesquisa, a jurisprudencial e a bibliográfica (artigos e livros). 1 – Este trabalho é fruto de pesquisas desenvolvidas junto ao Grupo de Pesquisa “Estado, Administração Pública e Sociedade”, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal, que atua na linha de pesquisa: Patologias Corruptivas, do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da UNISC. As autoras são bolsistas de iniciação científica da modalidade PUIC-CNPq, sob orientação do Prof. Dr. Rogério Gesta Leal. 2 – Graduanda do Curso de Direito na Universidade de Santa Cruz do Sul. Bolsista de Iniciação Científica CNPq do Grupo de Pesquisa “Estado, Administração Pública e Sociedade”, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal, atuando na linha de pesquisa: Patologias Corruptivas, do Programa de PósGraduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da UNISC. E-mail: [email protected]. 3 – Aluna da UNISC e integrante do Grupo de Pesquisa Patologias Corruptivas, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal.

Brenda Catoi e Bruna Henrique Hübner

1 INTRODUÇÃO A responsabilidade penal da pessoa jurídica, embora muito discutida, não possui contornos claros, tal impressão é predominante entre os acadêmicos de direito, bem como de muitos docentes e estudiosos do assunto, que analisam a responsabilidade a partir da legislação alienígena (Alemanha, Espanha, França, etc.). O impacto das empresas na sociedade como um todo, mantém acesa a discussão acerca de sua possível penalização na seara penal, haja vista o emprego da pessoa jurídica para fins ilícitos. Considerando a importância que a pessoa coletiva possui hodiernamente, buscou-se analisar a forma como lhe é aplicada a responsabilidade penal pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. De pronto, deve-se atentar para o fato de no Brasil a pessoa jurídica somente ser responsabilizada penalmente na seara ambiental, o que restou confirmado pela análise dos julgados. 2 ANÁLISE DA APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL A pesquisa foi realizada no dia 11 de julho de 2016, tendo como padrão de busca o prazo de três anos (de 11 de julho de 2013 a 11 de julho de 2016) à data de publicação no site www.tjrs.jus.br. Selecionou-se a opção pesquisa de jurisprudência. Em relação ao preenchimento dos campos de busca, digitou-se: no campo destinado a palavras-chave: “responsabilidade penal” “pessoa jurídica”; Órgão Julgador: Todos; Relator: todos, pesquisa por Ementa; Seção: Todas; Tipo de Processo: Todos; Número: nenhum; Comarca de Origem: nenhuma; Data de julgamento: nenhuma; Data de Publicação: 11 de julho de 2013 a 11 de julho de 2016. Com esses termos, o filtro encontrou cinco acórdãos. Nova busca foi feita, na mesma data e selecionando as mesmas opções acima descritas, exceto as palavras-chave, sendo utilizadas: “pessoa jurídica” 9.605/98. O filtro obteve 18 acórdãos. Concluída a classificação quantitativa dos documentos encontrados, passou-se a análise qualitativa, observando a forma como o TJRS aplica nos casos concretos a responsabilidade penal às pessoas jurídicas.

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Obteve-se um total de 23 acórdãos, mas como foram usados dois filtros, três acórdãos repetiram-se, ou seja, trabalhou-se com o total de 20 acórdãos. Como já se aguardava, haja vista que o ordenamento jurídico brasileiro possibilita somente a responsabilização criminal da pessoa jurídica de direito privado pelo cometimento de crimes ambientais (art. 225, § 3º, Constituição da República, que dispõe: “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”), 14 ementas são a respeito da Lei de Crimes Ambientais e 6 tratam de crimes contra a honra. No caso dos crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria), todos os julgados apontaram para a ilegitimidade da pessoa jurídica para figurar no polo passivo das lides, explicando que, somente nos crimes contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular (art. 173, § 5º, da Constituição Federal) e nos crimes contra o meio ambiente, a pessoa jurídica é parte legítima para figurar no polo passivo de ação penal. BITENCOURT (2012), ao conceituar os sujeitos ativos dos crimes contra a honra, expressamente consigna que a pessoa jurídica não está legitimada para praticar tais tipos de crime. Corrobora com tal entendimento CAPEZ (2012), que defende que, no tocante aos crimes contra a honra, não existe a possibilidade de responsabilização penal de pessoa jurídica. Verifica-se que inexiste em nosso ordenamento a possibilidade de ser imputada à pessoa jurídica a prática de crime contra a honra, o que é confirmado pela doutrina nacional especializada. 3 A PREVISÃO DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA JURÍDICA NA LEI DOS CRIMES AMBIENTAIS Crime ambiental, grosso modo, é todo e qualquer dano ou prejuízo causado aos elementos que compõem o ambiente (fauna, flora, recursos naturais e o patrimônio cultural). Suas condutas estão previstas na Lei n. 9.605 de 12 de fevereiro de 1998 (Lei de Crimes Ambientais), que determina as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. A pessoa jurídica que incorre em alguma das condutas tipificadas na Lei de Crimes Ambientais, por óbvio, não pode ter sua liberdade restringida da mesma forma que a pessoa física, sendo penalizada com multa e/ou penas restritivas de direitos, que são:

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a suspensão parcial ou total das atividades; interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade; a proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações (art. 22 da Lei n. 9.605/98). Existe também a possibilidade de prestação de serviços à comunidade por meio de custeio de programas e de projetos ambientais; execução de obras de recuperação de áreas degradadas; contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas. Para fins de prescrição, aplica-se o prazo de dois anos, nos termos do art. 114, inc. I, do Código Penal. No caso de crime ambiental, o rito é o da ação civil pública, tendo por propósito a reparação do dano onde ocorreu a lesão dos recursos ambientais. Podem propor esta ação o Ministério Público, a Defensoria Pública, a União, os Estados, os Municípios, as empresas públicas, as fundações, as sociedades de economia mista e as associações com finalidade de proteção ao meio ambiente. A discussão doutrinária acerca do tema da responsabilização penal da pessoa coletiva prolonga-se com o passar do tempo, em que pese que sua aplicação à tutela ambiental já esteja indiscutivelmente firmada em nosso ordenamento jurídico – primeiramente, por meio do art. 225, § 3º, da Constituição Federal e, posteriormente, pelo advento da Lei n. 9.605/98, denominada Lei dos Crimes Ambientais –, tendo em vista principalmente o fato de que parte mais tradicional da doutrina tem-se apegado ao dogma romano-germânico do societas delinquere non potest, que, em conformidade com a chamada teoria da ficção legal de Savigny, prevê que a pessoa jurídica é totalmente destituída de uma personalidade e, logo, incapaz de manifestar vontade, ou seja, é impossível que este mesmo ente fictício viesse a praticar uma conduta que gerasse efeitos na esfera penal, pois, para isso, é necessário exatamente o atributo da vontade, requisito essencial para que haja, aliás, também a culpabilidade (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL). Em relação aos crimes ambientais, a doutrina favorável à responsabilização penal da pessoa jurídica entende que a natureza desta deve ser vista pela lente da teoria da realidade técnica, pela qual a noção de personalidade é própria do campo ideológico e jurídico. Processualmente falando, a denúncia, no caso da pessoa jurídica, deve obedecer ao previsto no parágrafo único do art. 3º da Lei n. 9.605/98, devendo a peça inicial acusatória especificar, como parte no polo passivo da ação, a pessoa jurídica infratora e as pessoas físicas que contribuíram para o delito ambiental. Contudo, quando não for possível a apuração dessas pessoas naturais, tal situação deve constar na peça portal acusatória, sob pena de ser considerada inepta. Em relação ao interrogatório, via de regra, o ente jurídico será interrogado por intermédio da pessoa física de seu representante legal. Todavia, é 348

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aceitável a indicação de um preposto, tanto quando este for um maior conhecedor dos fatos em questão quanto no caso do representante legal ser também réu no mesmo processo, podendo ocorrer colisão de defesa (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL). Seria, todavia, inviável que o ente coletivo viesse a ser cobrado sempre que se visse envolvido em uma ofensa ambiental, mesmo quando indiretamente. Por esse motivo, o próprio art. 3º da Lei dos Crimes Ambientais oferece dois requisitos essenciais para que haja a responsabilização da pessoa jurídica. Em primeiro lugar, a infração em questão deve ser cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, isto é, a decisão que provocou o dano ambiental deve ter se originado dos administradores da pessoa jurídica, sendo possível a responsabilidade penal também pela omissão destes. O segundo requisito para a responsabilização penal da pessoa jurídica, e talvez também o principal, consiste no aspecto de que o dano ambiental tenha sido praticado em prol do interesse ou benefício da pessoa corporativa. Desse modo, se o dirigente do ente coletivo tomar uma decisão que em nada interesse ou beneficie a empresa, ainda que a utilize para seus fins ilícitos, não haverá de se falar na responsabilização da pessoa jurídica. (www.mprs.mp.br). A aplicação do art. 3º da Lei dos Crimes Ambientais é matéria incontroversa na jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça gaúcho, a respeito, interessante o acórdão da Apelação-Crime n. 70065185530. Nesse julgado, os réus nas razões da apelação suscitaram, em relação à pessoa coletiva, preliminarmente, a inadequação da responsabilização criminal da pessoa jurídica, violação do devido processo legal pela ausência de interrogatório da pessoa jurídica e ausência de individualização das condutas da pessoa jurídica. Em relação à responsabilização criminal da pessoa jurídica de direito privado pelo cometimento dos crimes ambientais, o relator asseverou sua previsão constitucional, bem como discorreu acerca da previsão constante na Lei dos Crimes Ambientais. Ademais, ponderou que as Cortes Superiores reconhecem a constitucionalidade da responsabilidade penal das pessoas jurídicas pelo cometimento de crimes que tutelam o meio ambiente, bem jurídico de natureza coletiva4.

4 – Nesse sentido: (HC 92.921, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 19-08-08, DJe-182 DIVULG 25-09-08 PUBLIC 26-09-08 EMENT VOL-02334-03 349

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Por fim, observou não haver nenhuma irregularidade pela denúncia ter sido direcionada, também, contra a pessoa jurídica, tampouco quanto ao procedimento adotado nesta ação penal, observando que: No que se refere aos requisitos do art. 41, do CPP, foram atendidos na peça incoativa, com a suficiente descrição dos fatos delituosos, por meio da demonstração do interesse ou o benefício da pessoa jurídica com a obtenção dos ilícitos (delitos cometidos, em tese, por meio de decisões dos representantes legais da pessoa jurídica, alcançando facilidade de acesso náutico aos associados e aumento da sua área útil). Considerando o pedido expresso da defesa, dou por prequestionados os arts. 5º, inc. LIV, da CF; 185, 186, 187 e 188, todos do CPP; e 1º e 2º, do Pacto San José da Costa Rica (Decreto nº 678/92). Tal posicionamento é unânime nos acórdãos do período da presente pesquisa, tendo em vista a previsão constitucional e infraconstitucional da responsabilização coletiva dos entes na seara ambiental. Passa-se agora, nos subcapítulos, a analisar pontos específicos acerca da responsabilização penal da pessoa jurídica enfrentados pelos julgadores nos acórdãos analisados. 3.1 DA IMPUTAÇÃO ISOLADA DA PESSOA JURÍDICA A responsabilização da pessoa jurídica é direta e cumulativa com a pessoa física, sendo a cumulação exigência, haja vista que sem a anuência do ser humano se torna impossível afirmar a prática de um crime e especificar o enquadramento da responsabilidade da pessoa jurídica. A Constituição Federal de 1988 previu a responsabilidade penal da pessoa jurídica, por meio do que dispõem os arts. 173, § 5º e 225, § 3º, que têm, respectivamente, os seguintes conteúdos: Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando P-00439 RJSP v. 56, n. 372, 2008, p. 167-185); (RMS 39.173/BA, Rel. Min. REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 06-08-15, DJe 13-08-15) e (RHC 40.317/SP, Rel. Min. JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 22-10-2013, DJe 29-10-2013). 350

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necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. § 5º - A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular. Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. Decorrência da previsão constitucional é que a Lei Ambiental Penal (Lei n. 9.605/98) estabeleceu a responsabilidade penal da pessoa jurídica por crimes contra o meio ambiente: Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato. De enfatizar-se, no entanto, que a imputação isoladamente formalizada contra pessoa jurídica não vem sendo admitida. Isso porque a coautoria é sempre necessária nos delitos praticados pela pessoa jurídica. Segundo Luiz Régis Prado: Para se imputar a prática de um fato punível e o eventual elemento subjetivo (vontade) à pessoa jurídica é indispensável uma ação ou omissão do ser humano. Isso impõe que se lance mão de um artifício para atribuir à pessoa jurídica os atos de uma pessoa física: ‘um salto’ da pessoa física para a jurídica. O fundamento penal encontrado está na

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teoria da identificação (identification theory) – identificação do controlling mind – originário da jurisprudência cível (acórdão da House of Lords, 1915), que acabou por alcançar a área criminal, em 1944. O juiz ou tribunal deve procurar identificar a pessoa que ‘não seja um empregado ou agente, cuja sociedade seja responsável pelo fato em decorrência de uma relação hierárquica, mas qualquer um que a torne responsável porque o ato incriminado é o próprio ato da sociedade’ (PRADO, 2009, p. 129). Também nesse sentido é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:  RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE. ART. 38, DA LEI N.º 9.605/98. DENÚNCIA OFERECIDA SOMENTE CONTRA PESSOA JURÍDICA. ILEGALIDADE. RECURSO PROVIDO. PEDIDOS ALTERNATIVOS PREJUDICADOS. 1. Para a validade da tramitação de feito criminal em que se apura o cometimento de delito ambiental, na peça exordial devem ser denunciados tanto a pessoa jurídica como a pessoa física (sistema ou teoria da dupla imputação). Isso porque a responsabilização penal da pessoa jurídica não pode ser desassociada da pessoa física – quem pratica a conduta com elemento subjetivo próprio. 2. Oferecida denúncia somente contra a pessoa jurídica, falta pressuposto para que o processo-crime desenvolva-se corretamente. 3. Recurso ordinário provido, para declarar a inépcia da denúncia e trancar, consequentemente, o processo-crime instaurado contra a Empresa Recorrente, sem prejuízo de que seja oferecida outra exordial, válida. Pedidos alternativos prejudicados. RMS 37293 / SP, ROMS 2012/0049242-7, Rel. Min. Laurita Vaz, T5, j. 02/05/2013). Verifica-se, então, que devem ser denunciadas tanto a pessoa jurídica como a pessoa física – sistema ou teoria da dupla imputação, haja vista que a responsabilização penal da pessoa coletiva não pode ser desassociada da pessoa física, que é quem pratica a conduta com elemento subjetivo próprio. Caso a denúncia seja oferecida somente contra a pessoa jurídica, falta pressuposto para que o processo-crime desenvolva-se corretamente, devendo ela ser rejeitada.

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3.2 RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO Na Apelação-Crime n. 70057449340, de relatoria do Des. Rogério Gesta Leal, o Ministério Público denunciou o Município de Pinheiro Machado e o Secretário Municipal de Meio Ambiente, pelas condutas do art. 54 e do art. 60, respectivamente, da Lei n. 9.605/98. Para Vladimir Passos Freitas e Gilberto Passos Freitas (2010), a responsabilização da pessoa jurídica somente cabe às de direito privado, pois a pessoa jurídica de Direito Público (União, Estados, Distrito Federal, Municípios, autarquias e federações públicas) não pode cometer ilícito penal no seu interesse ou benefício; pois, ao contrário das pessoas de natureza privada, só podem perseguir fins que alcancem o interesse público. Contudo, há posicionamentos contrários: a lei brasileira não faz qualquer distinção, ao contrário, por exemplo, da expressa exclusão formulada no Código Penal Francês (art. 121-2, Título II, Capítulo I). Como já mencionamos na nota anterior, há previsão explicita em alguns Códigos Penais estaduais americanos, como é o caso do Alabama, em relação à possibilidade de se punir a empresa pública e até mesmo o governo. Não vemos nenhum óbice à responsabilização penal da pessoa jurídica de direito público (União, Estados, Distrito Federal, Municípios, autarquias e fundações públicas). (NUCCI, 2013, p. 214). No acórdão em comento, argumentou o relator: Veja-se que, sob este argumento, o ente público nunca poderia completar o requisito elencado no art. 3º, da Lei nº 9.605/98, que estabelece a necessidade de que o fato delituoso ocorra no interesse ou benefício da pessoa jurídica, isto porque, se a proteção do meio ambiente se encontra no rol de deveres do Estado conforme estabelece a Constituição Federal, em seu art. 225, caput, como poderia a violação desse bem representar algum interesse ou benefício para o Estado? Quando isso não acontece é porque o administrador público agiu com desvio de poder. Em tal hipótese só a pessoa natural pode ser

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responsabilizada penalmente, e os agentes públicos poderão ser responsabilizados pelos atos que tenham concorrido para que ocorressem. E estão corretos no ponto, sob pena de se permitir amplo exercício de subjetividades decisionais do Poder Judiciário sem controles mínimos de legitimidade democrática. O relator também destaca a impossibilidade de aplicação das penas restritivas de direito previstas pelo diploma ambiental às pessoas jurídicas de direito público: Outro argumento contrário à responsabilização da pessoa jurídica de direito público se encontra no âmbito das penas aplicáveis, eis que as penas restritivas de direitos previstas nos incisos I e II, do art. 22, da lei ambiental (suspensão parcial ou total de atividades e interdição do estabelecimento, obra ou atividade), não se aplicam ao Estado em razão do princípio da continuidade do serviço público. A proibição de contratar com o Poder Público (inciso III, do art. 22) também é inaplicável às pessoas de direito público por uma questão de lógica: a realização de contratos administrativos entre entes públicos não visa a obtenção de lucro por nenhuma das partes, mas tão somente uma maior eficiência na prestação de serviços pelo Estado. As penas de multa, por sua vez, e de prestação de serviços à comunidade, seriam, em tese, desprovidas de sentido, na medida em que não representariam propriamente uma punição. Como a multa é revertida ao próprio Estado, não se teria a aplicação de penalidade. Não bastasse, o Chefe do Departamento de Meio Ambiente, ainda que pudesse ser apontado como co-autor, não retira a legitimidade do ordenador da despesa pública municipal, que é o Prefeito Municipal, ao qual a Constituição Federal outorga a prerrogativa de função (art. 29, inc. X, da CF). A peça incoativa sequer aponta a responsabilidade ou ato praticado e em que circunstâncias aquele agente indicado por este teria praticado ou contribuído à realização do ato ilícito. Na ementa em análise, os desembargadores entenderam que somente cabe a responsabilização da pessoa jurídica de direito privado em delitos ambientais, haja vista que a pessoa jurídica de direito público não pode cometer ilícito penal no seu interesse ou benefício. Ao contrário das pessoas de natureza privada, as de direito

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público somente podem perseguir fins que alcancem o interesse público, não se completando os requisitos do art. 3º da Lei ambiental. 3.3 PRESCRIÇÃO Aplica-se à pessoa jurídica o prazo prescricional previsto no art. 114, inc. I, do CP, haja vista que à pessoa jurídica as penas aplicáveis são as disciplinadas no art. 22 da Lei n. 9.605/98, consistindo em: suspensão parcial ou total de atividades; interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade, além de proibição de contratar com o Poder Público, bem como obter subsídios, subvenções ou doações, aplicando-se, portanto, subsidiariamente o Código Penal quanto à prescrição da pena de multa, ausente regramento específico. Merece a transcrição o voto proferido pelo eminente Relator, Des. José Eugênio Tedesco, quando do julgamento do Recurso em Sentido Estrito n. 70026956300: conforme o disposto no artigo 21 da Lei nº 9.605/98, as penas aplicáveis isolada, cumulativamente ou alternativamente às pessoas jurídicas são: multa, restritiva de direitos e prestação de serviços à comunidade. Em relação à multa, é verdade que ela prescreve em 2 (dois) anos, quando imposta isoladamente, a teor do que prescreve o artigo 114, I, CP. Este lapso, no presente caso, já decorreu entre os dois marcos acima mencionados. Já quanto à restritiva de direitos e prestação de serviços à comunidade, a citada lei não traça qualquer parâmetro que possa servir de base ao cálculo da prescrição, isto porque, naquilo que concerne às pessoas jurídicas, as penas, à exceção do § 3º do art. 22, não apresentam extensão temporal. Aliás, atenta-se para que, na sistemática do CP, as penas restritivas de direitos substituem as penas privativas de liberdades, daí porque, sintomaticamente, a prescrição se calcula com base na pena corporal substituída. Na Lei Ambiental, ao contrário do CP, as penas restritivas são autônomas, e não meramente substitutivas. Logo, as regras do CP, aqui, caem no vazio. Portanto, esta inexistência de limites máximo e mínimo para as penas restritivas aplicáveis às pessoas jurídicas traz o problema relativo à prescrição. Máxime porque a Constituição Federal estabelece a 355

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prescrição como regra geral, enumerando as exceções de modo taxativo. Conclusivamente, porque sujeitas à prescrição, é decisivo que se estabeleça algum critério que oriente seu cálculo. De forma resumida, pode-se dizer que o TJRS entende que quando a ré é pessoa jurídica e a pena restritiva de direito de prestação pecuniária é aplicada de forma autônoma (art. 21, da Lei n. 9.605/98), para a qual não há definição de prazo prescricional, utiliza-se, por equiparação, o prazo aplicado à pena de multa, qual seja, de dois anos, como reza o art. 114, inc. I, do CP. 3.4 HABEAS CORPUS: PESSOA JURÍDICA COMO PACIENTE No Habeas Corpus n. 70056708431, o relator explanou que, em face da natureza híbrida que vem sendo reconhecida ao remédio constitucional e ampliada pelas decisões pretorianas, no sentido de servir para trancamento de ação penal, como medida excepcional, que somente pode ser concretizada quando o fato narrado evidentemente não constituir crime, estiver extinta a punibilidade, for manifesta a ilegitimidade de parte ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal, cabe a concessão de habeas corpus à pessoa jurídica. Em seu voto, o relator destacou que parte da doutrina também tem admitido esta hipótese: Pode-se, ainda, examinar a justa causa quando a pessoa jurídica está sendo perseguida por um fato atípico, que levará, seguramente a uma absolvição, conforme já asseveramos quando tratamos da sentença criminal, motivo pelo qual não seria de todo inconveniente a concessão da ordem de habeas corpus. Não podemos deixar de lado, também, que a persecução penal pode servir de abuso do poder de denunciar do Ministério Público, motivo pelo qual o Superior Tribunal de Justiça já concedeu a ordem de habeas corpus nesta situação: RSTJ, 29/113. É claro que em situações como a presente, quando se tem a nítida verificação da ausência do fumus boni juris, por um exame da prova dos autos e dos termos da investigação, icto occuli, palpável a inexistência de bom direito, argumentamos no sentido de que a concessão da ordem é necessária. Portanto, nesta hipótese, nos parece possível a ordem do habeas corpus ser interposta pela pessoa jurídica, mercê do exame do fumus boni juris, 356

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posto que, negar-se esse direito, é submeter o partícipe de um crime ao constrangimento ilegal, enquanto que o autor material da conduta poderá ser beneficiado da ordem, posto que pessoa física. Seria uma negativa do princípio da comunicabilidade dos recursos. Dessa forma, quando apenas a pessoa jurídica figura como paciente, admite-se, sob o argumento de que, no momento em que se a reconhece como ré (art. 225, § 3º, da CF), dar-se o direito ao remédio heroico contra perpetração de ilegalidades. O Superior Tribunal Federal já se posicionou, admitindo a concessão5. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Da análise dos acórdãos chegou-se à seguinte conclusão acerca da aplicação pelo TJRS da responsabilidade penal da pessoa jurídica: (a) não

5 – PENAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME AMBIENTAL. HABEAS CORPUS PARA TUTELAR PESSOA JURÍDICA ACUSADA EM AÇÃO PENAL. ADMISSIBILIDADE. INÉPCIA DA DENÚNCIA: INOCORRÊNCIA. DENÚNCIA QUE RELATOU a SUPOSTA AÇÃO CRIMINOSA DOS AGENTES, EM VÍNCULO DIRETO COM A PESSOA JURÍDICA CO-ACUSADA. CARACTERÍSTICA INTERESTADUAL DO RIO POLUÍDO QUE NÃO AFASTA DE TODO A COMPETÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA E BIS IN IDEM. INOCORRÊNCIA. EXCEPCIONALIDADE DA ORDEM DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ORDEM DENEGADA. I - Responsabilidade penal da pessoa jurídica, para ser aplicada, exige alargamento de alguns conceitos tradicionalmente empregados na seara criminal, a exemplo da culpabilidade, estendendo-se a elas também as medidas assecuratórias, como o habeas corpus. II - Writ que deve ser havido como instrumento hábil para proteger pessoa jurídica contra ilegalidades ou abuso de poder quando figurar como co-ré em ação penal que apura a prática de delitos ambientais, para os quais é cominada pena privativa de liberdade. III - Em crimes societários, a denúncia deve pormenorizar a ação dos denunciados no quanto possível. Não impede a ampla defesa, entretanto, quando se evidencia o vínculo dos denunciados com a ação da empresa denunciada. IV - Ministério Público Estadual que também é competente para desencadear ação penal por crime ambiental, mesmo no caso de curso d’água transfronteiriços. V - Em crimes ambientais, o cumprimento do Termo de Ajustamento de Conduta, com conseqüente extinção de punibilidade, não pode servir de salvo-conduto para que o agente volte a poluir. VI - O trancamento de ação penal, por via de habeas corpus, é medida excepcional, que somente pode ser concretizada quando o fato narrado evidentemente não constituir crime, estiver extinta a punibilidade, for manifesta a ilegitimidade de parte ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal. VII - Ordem denegada. (HC 92.921, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 19-08-08, DJe-182 DIVULG 25-09-08 PUBLIC 26-09-08 EMENT VOL-02334-03 P-00439 RJSP v. 56, n. 372, 2008, p. 167-185). 357

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há responsabilização penal da pessoa jurídica nos crimes contra a honra, haja vista a inexistência de previsão legal; (b) devem ser denunciadas tanto a pessoa jurídica como a pessoa física – sistema ou teoria da dupla imputação, tendo em vista que a responsabilização penal da pessoa coletiva não pode ser desassociada da pessoa física, que é quem pratica a conduta com elemento subjetivo próprio; (c) somente cabe a responsabilização da pessoa jurídica de direito privado em delitos ambientais, haja vista que a pessoa jurídica de direito público não pode cometer ilícito penal no seu interesse ou benefício, pois diversamente das pessoas de natureza privada, as de direito público, somente podem buscar fins que alcancem o interesse público, não se completando os requisitos do art. 3º da Lei Ambiental; (d) aplica-se à pessoa jurídica o prazo prescricional previsto no art. 114, inc. I, do CP, haja vista que à pessoa jurídica as penas aplicáveis são as disciplinadas no art. 22, da Lei n. 9.605/98 (suspensão parcial ou total de atividades; interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade, além de proibição de contratar com o Poder Público, bem como obter subsídios, subvenções ou doações), aplicando-se, portanto, subsidiariamente o Código Penal quanto à prescrição da pena de multa, ausente regramento específico; (e) a possibilidade de concessão de habeas corpus, considerando que, no momento em que se reconhece a pessoa coletiva como ré (art. 225, § 3º, da CF), dar-se o direito ao remédio heroico contra perpetração de ilegalidade. A partir do quadro doutrinário e jurisprudencial exposto no decorrer do presente trabalho, denota-se que o TJRS possui orientações firmadas no tocante à responsabilização penal da pessoa jurídica, tanto que os entendimentos se repetem nos acórdãos analisados, bem como que a construção petroriana do TJRS vai ao encontro da jurisprudência dos tribunais superiores. 5 REFERÊNCIAS BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. BRASIL. Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 21 abr. de 2016. BRASIL. Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Disponível em: .

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BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação-Crime n. 70065185530. Relator: Rogério Gesta Leal. Data de julgamento: 26-11-15. Data de publicação: 22-01-16. Disponível em: . _____._____. Apelação-Crime n. 70057449340. Relator: Rogério Gesta Leal. Data de julgamento: 29-05-14. Data de publicação: 16-07-14. Disponível em: . _____._____. Recurso em Sentido Estrito n. 70026956300. Relator: José Eugênio Tedesco. Data de julgamento: 25-06-09. Data de publicação: 03-08-09. Disponível em: . 359

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_____._____. Recurso-Crime n. 71005463344. Relator: Edson Jorge Cechet. Data de julgamento: 10-08-15. Data de publicação: 12-08-15. Disponível em: . _____._____. Hábeas-Córpus n. 70056708431. Relator: Rogério Gesta Leal. Data de julgamento: 17-10-13. Data de publicação: 13-11-15. Disponível em: . CAPEZ, Fernando. Código Penal Comentado. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 7ª ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. A Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica nos Crimes Ambientais. Disponível em: . Acesso em: 6 jul. 2016. PRADO, Luiz Régis. Direito Penal do Ambiente. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

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A LEI ANTICORRUPÇÃO E A CRIAÇÃO DO CADASTRO DE EMPRESAS PUNIDAS: A IMAGEM EMPRESARIAL FRENTE À MORAL PÚBLICA Ramônia Schmidt1 Rogério Gesta Leal2 RESUMO O presente artigo busca, por meio de uma abordagem dedutiva e pesquisas doutrinária e jurisprudencial, investigar o impacto da criação de cadastros de empresas punidas pela prática de atos corruptos à imagem e à reputação empresarial. PALAVRAS-CHAVE: Corrupção. Lei Anticorrupção. Responsabilização Empresarial. Transparência. Reputação Empresarial. 1 – Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da UNISC. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Graduada em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Integrante do Grupo de Pesquisas “Estado, Administração Pública e Sociedade – Patologias Corruptivas”, vinculado ao PPGD da UNISC, coordenado pelo Professor Doutor Rogério Gesta Leal. Advogada. E-mail: [email protected]. 2 – Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Doutor em Direito. Professor Titular da UNISC. Professor da UNOESC. Professor Visitante da Università Túlio Ascarelli – Roma Trè, Universidad de La Coruña – Espanha, e Universidad de Buenos Aires. Professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura – ENFAM. Membro da Rede de Direitos Fundamentais – REDIR, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, Brasília. Coordenador Científico do Núcleo de Pesquisa Judiciária, da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura – ENFAM, Brasília. Membro do Conselho Científico do Observatório da Justiça Brasileira. Coordenador da Rede de Observatórios do Direito à Verdade, Memória e Justiça nas Universidades brasileiras – Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. E-mail: [email protected].

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1 INTRODUÇÃO O tema da corrupção tem ganhado destaque junto aos meios de comunicação nos últimos anos, revelando ao público cifras inimagináveis de desvio de recursos públicos no Estado Brasileiro, seja em nível nacional, estadual ou municipal. Os dados apresentados pela organização Transparency International no ano 2015 revelam um Brasil em posição de vulnerabilidade junto ao mundo e à própria América do Sul, alertando para o necessário trabalho de combate à corrupção a ser desenvolvido de forma urgente. (TRANSPARENCY INTERNATIONAL, 2015) Embora de difícil conceituação, a corrupção sempre está ligada a uma conduta de desvio da moralidade coletiva, em que o egoísmo guia as ações de determinados indivíduos em busca da satisfação de interesses privados em detrimento dos interesses de todos. Quando praticada junto à esfera pública, os efeitos da corrupção revelam-se na insuficiência de recursos do Estado para assegurar a vida digna de seus cidadãos, impossibilitando, em termos práticos, a garantia de direitos fundamentais. As formas e os meios empregados em tais desmandos, via de regra, consubstanciam-se no desvio de recursos ou na obtenção de vantagens e favorecimentos, de modo que as atividades de prevenção dos atos corruptivos e as sanções a serem aplicadas pela sua prática devem ter por objeto tanto órgãos e agentes públicos como organizações e pessoas da esfera privada. Na pesquisa a ser aqui desenvolvida, pretende-se primeiramente analisar, de forma rápida, a consciência e o comprometimento ético que deve pautar as ações de todos os indivíduos, em todas as esferas da vida – social, empresarial e pública. Em um segundo momento, discorrer-se-á acerca da evolução normativa brasileira no combate à corrupção, que culmina com a promulgação da Lei n. 12.846/13, mais conhecida por “Lei Anticorrupção”, que inovou ao tratar da responsabilização das pessoas jurídicas pela prática de atos corruptos e a previsão de disponibilização de listas de empresas punidas por tais atos. 2 ÉTICA E MORAL: DA SOCIEDADE À EMPRESA A opção do homem por viver em sociedade trouxe consigo a necessária convivência e a busca constante pela pacificação dessa convivência. Elegeram-se regras de condutas próprias a cada grupo social e que definem as diretrizes

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comportamentais a serem seguidas por aqueles que se encontram nele inseridos, como forma de garantir a unidade do grupo. Entretanto, por mais justos e honrosos que possam ser os valores morais defendidos por cada comunidade, a verdade é que não se alcançou êxito em converter todos os indivíduos à prática de uma vida que busca a satisfação do interesse coletivo em detrimento dos interesses pessoais. Esse desvio comportamental caracteriza a corrupção. É a incapacidade do homem de respeitar a regra coletiva no intuito da obtenção de alguma vantagem, seja ela representada em ganho financeiro ou outro benefício qualquer, em favor próprio ou de terceiros. Na seara pública, a corrupção do agente público redunda na desvinculação da atividade estatal da finalidade da própria existência do Estado. Olvidam-se os princípios democráticos e de boa administração, fere-se o escopo da preservação e promoção do bem comum. (RICHTER, 2014) No âmbito organizacional empresarial, da mesma forma que nos demais aspectos da vida em coletividade, existem regras morais e éticas a serem cumpridas. Dentro de uma empresa, há diversas expectativas com as quais lidar, e o respeito no tratamento de cada uma dessas variáveis incorpora o valor da empresa em si. A prática de um ato contrário à moral, em que pese possa representar a obtenção de algum ganho pessoal, por vezes, também revela-se um processo doloroso. Especialmente dentro das corporações, em que cumpre aos empregados a tomada de decisões em razão da função que desempenham, o agir antiético decorre de pressões internas e externas. Como revelam Ferrel, Fraedrich e Ferrel (2001, p. 160), utilizando o cenário americano para suas lições, as questões comerciais e a necessidade de cumprir com metas previamente estabelecidas levam a um debate ético íntimo: [...] à medida que gerentes e empregados enfrentam a necessidade de tomar decisões cada vez mais complexas, as questões éticas ocupam o primeiro plano nas preocupações da empresa. Com freqüência, as decisões são tomadas em ambientes coletivos com diferentes sistemas de valores, pressões competitivas e interesses políticos que contribuem para a possibilidade de má conduta. Uma pesquisa mostrou que quase 50% dos trabalhadores sentem pressão para agir de forma ilegal ou antiética. [...] Em outro levantamento, 47% de gerentes de recursos humanos disseram que se sentiam pressionados por empregados ou por outros

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administradores a fugir dos padrões éticos da empresa a fim de alcançar objetivos comerciais. A empresa, igualmente como ocorre com os demais atores sociais, enfrenta o dilema entre a oportunidade de crescimento e a ética. Obter mais lucro, aumentar a produtividade, inserir-se e manter-se em um mercado competitivo são temáticas constantes na vida empresarial e demandam a tomada de decisões. Se devidamente organizada e devidamente trabalhado um código de conduta entre todos os colaboradores, os riscos de um desvio moral, ainda que diante de ofertas de crescimento, reduzem-se. Todavia, imersos em um mercado competitivo, por vezes a oportunidade e a recompensa decorrentes da corrupção mostram-se demasiado atraentes, conduzindo a um mar de turbulência difícil de controlar. (FERREL, FRAEDRICH, FERREL, 2001) Ou ainda, em algumas situações, os instrumentos de controle ético idealizados pelas organizações são implantados somente em seu aspecto formal. Preocupados somente em atender às exigências no aspecto formal, as organizações relegam as questões atinentes à efetividade dos controles internos, dificultando outras formas de verificação externas sob a aparência de gestão responsável. (LEAL, 2014) Nessas situações, mais do que violações éticas, as corporações correm o risco de envolverem-se em problemas legais. Tratando-se de áreas imprecisas ou dilemas éticos ambíguos, a sentença entre o certo e o errado, entre o correto e o reprovável encontra-se em normas específicas e por vezes recai até mesmo ao Poder Judiciário. Nas relações, a ética revela-se por meio da reciprocidade. Quando conhecida e aplicada a palavra da lei, sabe-se de antemão o resultado para o seu descumprimento e a extensão dos danos decorrentes dessa aplicação: A ética aqui, portanto, não é um mero pressuposto factível ou desconhecido da ciência jurídica. É, por assim dizer, um elemento do ato, uma condição normal de executoriedade. Reflete lisura no conhecimento da lei. Prova exação na conduta administrativa. Impõe relações estáveis. Compõe obrigações recíprocas. Não impede a responsabilização por danos possíveis. Controla o direito aplicável. (FRANCO SOBRINHO, 1997, p. 37)

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E justamente, a fim de tentar coibir a prática da corrupção, idealizam-se a cada dia novas normas jurídicas, que buscam antever comportamentos e nichos de prática corruptiva, bem como estabelecer penalizações exemplares à transgressão de tais regras. Consoante ver-se-á no item seguinte, o ordenamento jurídico brasileiro tem evoluído na matéria do combate à corrupção, buscando atingir não apenas o agente público corrupto, como todos os demais atores de tais desmandos. 3 A EVOLUÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO NO COMBATE À CORRUPÇÃO: A LEI ANTICORRUPÇÃO Levando-se em consideração os apontamentos do item anterior, que revelam a prática de atos corruptivos, tanto na esfera pública quanto na privada, inegavelmente os esforços em combater tais desmandos devem atuar igualmente em ambas as frentes. Trata-se necessariamente da criação de normas e demais dispositivos administrativos e legais que visem à sensibilização, conscientização e punição de todos os envolvidos na teia da corrupção. Como destaca Rodríguez-Arana (2013), atuações isoladas não têm a capacidade de solucionar tal problema, faz-se necessário um controle da Administração Pública que atinja sociedade e Estado, cidadãos e agentes públicos. Nesse sentido, merece destaque a evolução normativa brasileira no combate à corrupção. A partir da década de 1990, idealizaram-se diversas normas de proteção do interesse público, prevenção de atos corruptos e punição de agentes que os praticam. A primeira das normas a merecer destaque é a Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992 (BRASIL, 1992), conhecida como “Lei da Improbidade Administrativa”, que trata das sanções aplicáveis aos agentes públicos corruptos, com a tipificação de hipóteses de condutas desonestas e previsão de procedimentos administrativos e judiciais para a averiguação de condutas suspeitas. O fato de a referida Lei não trazer uma conceituação fechada acerca do significado do termo “improbidade” pode atuar positivamente na luta travada contra a corrupção. Se corretamente aplicada e interpretada, permite um alargamento na compreensão do que seja definido por conduta ímproba e, consequentemente, pode vir a alcançar uma maior aplicabilidade.

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Outra norma que deve ser evidenciada é a Lei n. 12. 527, de 18 de novembro de 2011, que assegura e regulamenta o acesso à informação pública. Mais conhecida como “Lei de Acesso à Informação”, impõe aos órgãos da Administração Pública Direta e Indireta, bem como às demais entidades que utilizam recursos públicos, o dever de publicização de informações de interesse geral em local de fácil acesso ao público em geral. Trata-se, pois, da implementação efetiva do direito à informação (do cidadão) e do dever de transparência (da Administração Pública e demais entidades ligadas a ela), com a proposta de ampliação de canais de contato e uso de tecnologias nessa aproximação: Mais do que parâmetros substantivos, a lei estabelece procedimentos para o diálogo, e enriquece o processo de interpretação acerca da aplicação do princípio da transparência do qual o acesso a informação é um dos pilares, ao ampliar os canais e procedimentos, institucionalizados e legítimos, para atuação dos diversos atores envolvidos. [...] Além dos procedimentos para o acesso à informação, a Lei n. 12.527 define como atribuição de todos os órgãos e entidades públicos assegurar a gestão transparente da informação, propiciando amplo acesso a ela e sua divulgação, bem como a proteção da informação, garantindo sua disponibilidade, autenticidade e integridade (art. 6º, I e II). (ROCHA, 2012, p. 89) Por fim, mas não menos importante, importa destacar a idealização da Lei Anticorrupção (Lei n. 12.846, de 1° de agosto de 2013), que é objeto específico de análise deste trabalho. Inovou tal norma ao dispor acerca da responsabilidade civil e administrativa de pessoas físicas e jurídicas pela prática de atos lesivos ao patrimônio público nacional ou estrangeiro, ou ainda atos contrários aos princípios da Administração Pública: Art. 1°. Esta Lei dispõe sobre a responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Parágrafo único. Aplica-se o disposto nesta Lei às sociedades empresárias e às sociedades simples, personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou modelo societário adotado, bem como a quaisquer fundações, associações de entidades ou pessoas, ou sociedades

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estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente. (BRASIL, 2013) Além de instituir a responsabilidade às empresas sob as mais diversas formas de personificação, a Lei Anticorrupção traz em seu bojo a definição das condutas tipificadas como lesivas e sujeitas às penalidades legais, que vão desde a oferta de vantagem indevida a agente público até a interferência em atos de investigação e fiscalização: Art. 5°. Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1o, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos: I - prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada; II - comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei; III - comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados; IV - no tocante a licitações e contratos: a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público; b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público; c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo; d) fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente; e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo; f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou

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g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração pública; V - dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional. (BRASIL, 2013) Na esfera administrativa, a Lei prevê duas formas de sanções: a aplicação de multa – a ser arbitrada entre 0,1% e 20% do faturamento bruto da pessoa jurídica do último exercício anterior à instauração do procedimento administrativo – e a publicação extraordinária da decisão condenatória – a ser divulgada em meios de comunicação de grande circulação na área de atuação do condenado. Tais penalidades poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, a depender de cada caso concreto, sendo que o seu cumprimento não exclui a responsabilidade da empresa condenada à reparação integral do dano provocado. Independentemente da responsabilização administrativa, poderá, ainda, a Administração Pública, por meio de suas respectivas advocacias públicas, ou por intermédio do Ministério Público, buscar a responsabilidade judicial pela prática dos atos descritos no art. 5° da Lei Anticorrupção já antes transcritos. As sanções previstas na esfera judicial, por sua vez, igualmente podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente. São elas: perdimento de bens, direitos ou valores que representem a vantagem indevida; suspensão ou interdição parcial das atividades da empresa; dissolução compulsória da pessoa jurídica; e proibição de receber incentivos, doações e empréstimos de órgãos, entidades públicas ou instituições financeiras controladas pelo poder público, pelo prazo de um a cinco anos. Como se vê, as penalidades previstas na Lei Anticorrupção a serem aplicadas às pessoas físicas ou jurídicas envolvidas na prática da corrupção buscam atingir diferentes aspectos e estágios da atividade empresária. Seja por meio do perdimento imediato de bens e valores, seja pela proibição de receptação de incentivos e empréstimos públicos durante um período de até cinco anos, os efeitos da condenação a curto ou longo prazo são inegavelmente gravosos. Todavia, além dessas sanções administrativas e judicialmente acima destacadas, a norma em apreço trouxe nova espécie de penalidade. Não se trata de sanção propriamente dita, mas cujas consequências poderão ser semelhantes entre si. Trata-se da criação de listas abertas ao público em geral, disponibilizadas em meio de fácil acesso, constando todas as informações atinentes às pessoas jurídicas punidas pela prática de atos corruptivos e às sanções aplicadas. 368

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Como ver-se-á a seguir, tais listas atingem ponto nevrálgico às empresas, na era da disseminação da informação e da conscientização da responsabilidade social: a reputação. 4 A CRIAÇÃO DAS LISTAS DE EMPRESAS PUNIDAS INTRODUZIDA PELA LEI N. 12.846/13 E A GESTÃO DE REPUTAÇÃO EMPRESARIAL Como rapidamente discorrido no item anterior, na constante e crescente luta da sociedade brasileira contra a corrupção, a evolução do ordenamento jurídico tem revelado-se uma das mais poderosas armas. Consequentemente, mais do que prever sanções a serem aplicadas aos agentes públicos envolvidos nos atos corruptos, as normas adotadas pelo Brasil no combate à corrupção – sejam elas concebidas pelo Poder Legislativo local, ou decorrentes da assinatura de tratados internacionais ou ainda meros protocolos de intenção – buscam atingir todas as esferas suscetíveis a tais desmandos. Dentre tais normas, merece especial destaque a criação da Lei Anticorrupção, que propõe a responsabilização das pessoas jurídicas pelos atos praticados contra a Administração Pública, seja ela nacional ou estrangeira – conforme também antes já discorrido de modo sucinto.3 Dentre os diversos avanços trazidos por tal Lei, adquire especial relevância a criação de um cadastro nacional de empresas punidas, por meio do qual se revela ao mundo nomes e sanções aplicadas em cada caso concreto:

Art. 22. Fica criado no âmbito do Poder Executivo federal o Cadastro Nacional de Empresas Punidas - CNEP, que reunirá e dará publicidade às sanções aplicadas pelos órgãos ou entidades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de todas as esferas de governo com base nesta Lei. § 1° Os órgãos e entidades referidos no caput deverão informar e manter atualizados, no Cnep, os dados relativos às sanções por eles aplicadas. 3 – Posteriormente, acerca da implementação prática de tais cadastros, a referida Lei foi regulamentada pelo Decreto n. 8.420, de 18 de março de 2015 e pela Instrução Normativa n. 2 da Controladoria-Geral da União, de 7 de abril de 2015. 369

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§ 2° O Cnep conterá, entre outras, as seguintes informações acerca das sanções aplicadas: I - razão social e número de inscrição da pessoa jurídica ou entidade no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica - CNPJ; II - tipo de sanção; e III - data de aplicação e data final da vigência do efeito limitador ou impeditivo da sanção, quando for o caso. § 3° As autoridades competentes, para celebrarem acordos de leniência previstos nesta Lei, também deverão prestar e manter atualizadas no Cnep, após a efetivação do respectivo acordo, as informações acerca do acordo de leniência celebrado, salvo se esse procedimento vier a causar prejuízo às investigações e ao processo administrativo. § 4° Caso a pessoa jurídica não cumpra os termos do acordo de leniência, além das informações previstas no § 3o, deverá ser incluída no Cnep referência ao respectivo descumprimento. § 5° Os registros das sanções e acordos de leniência serão excluídos depois de decorrido o prazo previamente estabelecido no ato sancionador ou do cumprimento integral do acordo de leniência e da reparação do eventual dano causado, mediante solicitação do órgão ou entidade sancionadora. Art. 23. Os órgãos ou entidades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de todas as esferas de governo deverão informar e manter atualizados, para fins de publicidade, no Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas - CEIS, de caráter público, instituído no âmbito do Poder Executivo federal, os dados relativos às sanções por eles aplicadas, nos termos do disposto nos arts. 87 e 88 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993. (BRASIL, 2013) Trata-se, pois, da idealização de uma forma de penalização que supera a sanção pecuniária ou a proibição de contratação, essas típicas às pessoas jurídicas e seus dirigentes. Agora, mais do que buscar o ressarcimento imediato aos cofres públicos ou de preservar a coisa pública por meio de negativas de contratação por períodos determinados, o aspecto trabalhado pela Lei Anticorrupção diz respeito também à publicização e às repercussões decorrentes da aplicação de sanções. Em termos práticos, a implementação de ambos os cadastros previstos na Lei Anticorrupção, Cadastro Nacional de Empresas Punidas – CNEP e Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas – CEIS, em termos práticos, está 370

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ligada à Controladoria-Geral da União – CGU. Utilizando-se da ferramenta de acesso universal que é a internet, disponibilizou-se junto ao site do Portal da Transparência, a relação de todas as empresas e pessoas físicas punidas. Acerca do Cadastro Nacional de Empresas Punidas – CNEP, o banco de dados disponibilizado é mantido pela Controladoria-Geral da União – CGU, “[...] que tem como objetivo consolidar a relação das empresas que sofreram qualquer das punições previstas na Lei n. 12.846/2013 (Lei Anticorrupção)”. (BRASIL, 2016a) Qualquer pessoa tem acesso ao relatório, sem necessidade de identificação, e a lista de empresas punidas é disponibilizada em arquivo único para download, na qual se encontram especificados os dados tanto da empresa quanto do tipo de penalidade aplicada e o seu prazo de aplicação. Especificamente quanto ao Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas – CEIS, conforme explicação disponibilizada no site e que precede à relação propriamente dita, novamente, a manutenção do banco de informações é de responsabilidade da Controladoria-Geral da União, e “[...] tem como objetivo consolidar a relação das empresas e pessoas físicas que sofreram sanções das quais decorra como efeito restrição ao direito de participar em licitações ou de celebrar contratos com a Administração Pública”. (BRASIL, 2016b) O acesso a tais dados é aberto a todos os usuários, sem qualquer necessidade de identificação. As ferramentas de pesquisa disponibilizadas permitem ao usuário a pesquisa pelo nome de uma empresa ou pessoa física específica (mediante inserção de dados, como nome ou CNPJ/CPF), ou ainda mediante acesso à lista integral. Além da disponibilização do nome dos punidos, também são expostos os dados da sanção e a data final da penalidade, bem como informado o órgão público sancionador. Indubitável, pois, a importância da disponibilização de tais informações em meio de acesso fácil e rápido. Trata-se de atribuir efetividade à publicização dos atos inerentes à Administração Pública. Em uma sociedade marcada pela rapidez na propagação da informação, e em que a cada dia busca-se e leciona-se maior comprometimento de indivíduos, organizações e governos com questões éticas comportamentais e ambientais, a divulgação de nomes e penas de uma forma organizada tem um grande potencial de repercussão. Sejam tais informações analisadas pelos consumidores, preocupados em consumir somente produtos e serviços de reconhecido comprometimento ético, 371

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sejam elas usadas pelas empresas concorrentes, que podem manipular os dados a seu favor, é incontestável que a reputação da empresa punida será atingida. Logo, a esfera atingida por meio da divulgação de tais informações em banco público, aberto a todos, desenha-se para além da perda de um valor financeiro pré-determinado e previsível. Trata-se de atacar um valor intangível, haja vista que a reputação das organizações inegavelmente compõe o seu patrimônio – capaz de alavancar o valor econômico e sua importância no cenário mundial, ou soterrar quaisquer expectativas quando perdidas.4 Como bem define Srour (2003, p. 345), a reputação é de difícil conceituação, visto que se trata de algo intangível e que decorre da percepção dos outros: Falar em reputação – e sobretudo de boa reputação – é falar de um ativo intangível, cuja fragilidade é proverbial, porque, de forma singela, diz respeito à percepção que outros têm quanto ao valor de uma organização ou de um profissional [...] está intimamente ligada à confiança coletiva, ou melhor, à legitimidade que se conquista pelas políticas praticadas ou pelas ações cometidas. Assim, trabalhar reputação – a boa reputação – é tratar do seu agir, tendo em vista a compreensão de tais atos junto aos outros. É atuar com correção, esperando que o restante do mundo aperceba-se de tal singularidade e que valorize esse comprometimento. Tal reconhecimento, por parte da sociedade, traduz-se em credibilidade (SROUR, 2003). Gozar de credibilidade tem por pressuposto essencial já gozar de boa fama. Ou seja, trabalha-se para a criação ou manutenção do bom nome, e com tal reputação, tornar-se legítimo detentor de credibilidade que o diferencia dos demais. Constrói-se um caminho de busca constante e permanente pela boa reputação, cujo reconhecimento, por vezes, demora um longo tempo para acontecer. Já a sua perda, em total dissonância com a lógica da sua obtenção, esvai-se por entre os dedos em um instante. A luta de anos ou de toda uma vida organizacional pode ser destruída mediante a ocorrência de fatos e condutas desabonadoras e, especialmente, a propagação de tal informação ao público.

4 – Como definem Abreu, Diehl e Macagnan (2011), os ativos intangíveis constituem fatores de produção imateriais empregados na produção de bens ou de serviços, que, associados aos fatores produtivos, atuam como meio de apoio à manutenção de vantagem competitiva – dentre os quais se pode destacar imagem da empresa, carteira de clientes e motivação de empregados. 372

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E é este o ponto nevrálgico que pretende a Lei Anticorrupção atingir: atacar em uma esfera cujo resultado fático não possui limites previamente conhecidos, haja vista que a repercussão depende de outros atores sociais. Criar uma lista de livre acesso e com a disponibilização de todas as informações atinentes à penalização de empresas pela prática de corrupção acarreta efeitos que se estendem no tempo e que permanecem penalizando o infrator mesmo após o fim (ou cumprimento) das demais sanções. Para além do avanço no combate à corrupção, há de se observar o impacto que a disponibilização de tais informações acarreta ao penalizado. Como anteriormente já comentado, os efeitos superam a aplicação de multas – as quais, ainda que aplicadas em valores exponenciais, têm efeito momentâneo e meramente financeiro; ou a proibição de contratação com a Administração Pública – que possui um período determinado. A disponibilização de uma lista aberta de pessoas físicas e jurídicas penalizadas em matéria corruptiva permite o acesso e a utilização de tal informação por consumidores e concorrentes, afetando diretamente a reputação e o valor de mercado do penalizado. Como já pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça, por meio da edição da Súmula 2275, e reiteradamente aplicada na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, as pessoas jurídicas, embora não sejam detentoras de uma moral subjetiva, haja vista que não possuem capacidade afetiva, possuem uma moral objetiva defensável perante terceiros e, consequentemente, indenizável. Utilizando por analogia os julgados do Tribunal de Justiça gaúcho no que diz respeito aos pedidos de indenização por dano moral experimentados por pessoas jurídicas, extrai-se que para a sua configuração deve restar comprovada a conduta que tenha ferido o seu conceito, o seu bom nome ou a reputação junto ao mercado e aos consumidores. Exemplificativamente, em julgamento de recurso de Apelação de n. 70067061283, de relatoria do Des. Antônio Maria de Freitas Iserhard, restou deferido o pedido de condenação à indenização por danos morais sofridos por uma empresa em razão da inscrição indevida de seu nome junto aos cadastros de proteção ao crédito.6 (BRASIL, 2016c)

5 – Súmula n. 227 – A pessoa jurídica pode sofrer dano moral. (BRASIL, 1999) 6 – “APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. Hipótese em que confessado pela ré a inclusão do nome da autora no seu cadastro de restrição ao crédito. Cabível a concessão de 373

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Ou seja, a ideia trabalhada pela jurisprudência, no que diz respeito às empresas e à defesa de sua moral, diz respeito à noção e preservação de seu bom nome no mundo dos negócios. A inscrição junto a cadastros de maus pagadores, inegavelmente traz por consequência a perda da probidade comercial e de direito ao crédito. Abalados o conceito e o bom nome mediante a atribuição da pecha de mau pagador – ainda que incorreta e indevida –, entende-se por caracterizado o abalo moral e o direito à sua reparação mediante indenização a ser arbitrada. No mesmo sentido, no julgamento da Apelação de n. 70063048201, de relatoria do Des. Alexandre Kreutz, extrai-se de forma ainda mais clara que a caracterização do dano moral de pessoa jurídica depende da exteriorização do fato desabonador.7 (BRASIL, 2016e) indenização por danos morais à pessoa jurídica por prejudicar sua reputação e seu crédito. APELO PROVIDO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70067061283, Décima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Maria Rodrigues de Freitas Iserhard, Julgado em 08/06/2016).” (BRASIL, 2016c) 7 – “APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. PROTESTO INDEVIDO. EMPRÉSTIMO RECUSADO EM RAZÃO DO PROTESTO. AUSÊNCIA DE PROVA. PESSOA JURÍDICA. DANO MORAL. JUROS DE MORA. MAJORAÇÃO DOS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. Inaplicabilidade do CPC/2015. Art. 14 do CPC. Regra de direito intertemporal. Decisão proferida anteriormente a entrada da Lei n. 13.105/2015. Cerceamento de defesa não configurado. Da decisão que indeferiu a prova testemunhal, a parte não interpôs o recurso competente. Preclusão configurada. O dano material depende de prova concreta acerca de sua configuração. Os documentos apresentados não atestam o prejuízo no valor de R$ 20.000,00, nem mesmo a perda do negócio, relativo à compra do imóvel. Em se tratando de protesto indevido de título, o dano moral se configura in re ipsa, isto é, prescinde de prova, ainda que seja pessoa jurídica. Incidência da Súmula 227 do STJ, de acordo com o qual “a pessoa jurídica pode sofrer dano moral”. Em se tratando de responsabilidade civil contratual, o termo inicial dos juros moratórios, referente ao dano material reconhecido na sentença, deve ser a data da citação, conforme dispõe o art. 405 do Código Civil. A fixação dos honorários deve obedecer à equidade e valorar as moduladoras elencadas nas alíneas do § 3º c/c §4º do art. 20 do CPC, modo a não ensejar o aviltamento da profissão de advogado. No caso em apreço, os honorários foram fixados em patamar ínfimo, diante do trabalho realizado pelo advogado e o tempo de tramitação do feito, merecendo, pois, majoração. Compensação dos honorários. É possível a compensação dos honorários advocatícios, forte a aplicação do artigo 21 do CPC/73 e Súmula 306 do STJ, porquanto inaplicável o regramento previsto no Código de Processo Civil vigente, já que a sentença e o recurso de apelação foram praticados na vigência da antiga legislação processual civil. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70063048201, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alexandre Kreutz, Julgado em 30/06/2016)”. (BRASIL, 2016e) 374

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No feito em questão, analisava-se a possibilidade do deferimento de indenização decorrente do protesto indevido de título, entendendo-se pelo seu deferimento, haja vista que a efetivação do protesto é sinônimo de publicidade do fato. Tem-se, assim, que a construção jurisprudencial do dano moral empresarial rege-se pela percepção do restante da sociedade acerca dos atos praticados. O ato ou fato errado e/ou indevido deverá ser corrigido, todavia, caso não se torne do conhecimento de terceiros, não configurará dano indenizável. A corroborar, transcreve-se trecho do voto proferido pelo Des. Umberto Guaspari Sudbrack no julgamento da Apelação n. 70069290161, que tratava de pedido de indenização decorrente de mero apontamento indevido de títulos para protesto:8 No caso concreto, o pedido de indenização por danos morais não prospera, porém, exatamente por força da já referida distinção entre honra objetiva e subjetiva. Do exame do feito, não se verifica qualquer abalo à honra objetiva da parte autora – uma vez que os títulos indicados a protesto foram sustados antes que houvesse a publicização dos seus efeitos, impedindo a ocorrência do dano. Dessa forma, as aflições pelas quais a administradora da empresa recorrente teve de passar, ao se deparar com dois títulos indicados para protesto, não são suficientes para a caracterização do dever de indenizar, já que se cuida de causa de configuração de dano moral por força da violação à honra subjetiva, daí porque não tem qualquer pertinência, ante 8 – “APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. APONTAMENTO DE TÍTULOS PARA PROTESTO. SUSTAÇÃO ANTES DA PUBLICIZAÇÃO. DANO MORAL. PESSOA JURÍDICA. HONRA OBJETIVA. INOCORRÊNCIA. Não obstante a pessoa jurídica seja titular de direitos da personalidade, com a conseqüente possibilidade de ser vítima de abalo extrapatrimonial, a configuração do dano moral em prejuízo de pessoa jurídica dá-se de maneira distinta daquela atinente à pessoa física, tendo em vista que não tem a pessoa jurídica capacidade de sentir emoção, dor, repulsa, embaraço em seu âmago, sendo incabível falar em abalo em sua honra subjetiva. Por outro lado, a empresa não está imune, contudo, a eventual lesão a sua honra objetiva, que diz respeito a sua reputação e ao nome a zelar no seu âmbito negocial. Nesse sentido, levando em conta que, nos termos da jurisprudência deste Órgão fracionário, o aponte indevido de título para protesto, por si só, não é fonte geradora do dever de indenizar - por não ocorrer a publicização dos efeitos do protesto -, deve ser mantida a sentença de improcedência. Apelação desprovida. (Apelação Cível Nº 70069290161, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em 16/06/2016)”. (BRASIL, 2016d) 375

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a mencionada distinção entre honra subjetiva e honra objetiva, sendo a pessoa jurídica titular apenas dessa última. (BRASIL, 2016d) Novamente, a distinção entre protesto efetivo e apontamento para protesto reside no alcance do ato. No caso do mero apontamento, não se configura o dano em razão da inexistência de exposição e publicização da qualidade de mau pagador ao restante da sociedade. Quando ocorrido o efetivo protesto, passa a estar consubstanciado o dano, em razão do abalo de confiança e imagem acerca da empresa. Em outras situações, como a inclusão indevida de valores em faturas, por exemplo, entende o Tribunal de Justiça gaúcho pela não caracterização de dano e, consequentemente, indevida eventual indenização moral pretendida. Nessas ocasiões, a cobrança indevida não atinge a moral da pessoa jurídica, que unicamente passará pelo transtorno de discutir a ausência de contratação do serviço.9 (BRASIL, 2016f) Ainda que pago o valor indevido, comprovado o empreender de forças na discussão e cancelamento do débito, não haverá qualquer violação à imagem empresarial. Aqui, o dano moral não constitui forma de punição daquele que agiu indevidamente, mas apenas e tão somente de ressarcimento pela mácula a sua boa reputação. Assim, por lógica, a exposição de uma empresa em cadastros e listas por condutas corruptivas, igualmente poderá atingir a sua relação para com os concorrentes, os consumidores e o mercado. 9 – “APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE TELEFONIA. SERVIÇOS NÃO SOLICITADOS. PERÍODO DE ABRANGÊNCIA. A restituição em dobro da quantia paga acerca de serviços não solicitados deve abranger todos os pagamentos realizados pelo consumidor. EXIBIÇÃO DAS FATURAS TELEFÔNICAS. Tratando-se de relação de consumo, a ré deve exibir a documentação e/ou informações necessárias ao adequado esclarecimento da relação jurídica existente entre as partes (art 6º, III e VIII, da Lei n. 8.078/90 - CDC). DANO MORAL. PESSOA JURÍDICA. A pessoa jurídica pode ser vítima de dano moral (honra objetiva) quando atingida em sua imagem, credibilidade e bom nome no meio social e no mercado em que atua (Sumula 227 do STJ). Por outro lado, simples transtornos ou meros dissabores nas relações econômicas e sociais não têm relevância suficiente para caracterizar dano moral. No caso concreto, inexiste comprovação de a imagem, credibilidade ou o bom nome da empresa no meios social e no mercado tenha sido atingido. Por isso, não procede a pretensão de indenização por danos morais. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70069627776, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Antonio Angelo, Julgado em 07/07/2016)”. (BRASIL, 2016f) 376

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Trata-se, novamente, do fator exteriorização. Ainda que os processos administrativos e judiciais que antecedem as penalizações possam ser públicos, o seu acesso certamente é restrito – seja em razão de dificuldades impostas pelo linguajar técnico, seja pela forma e local de disponibilização das decisões que por vezes tolhe o direito do cidadão. A idealização de uma lista única, em um único local de fácil acesso, disponibilizando apenas as informações que realmente interessam ao público em geral, incontestavelmente tem maior poder de dar publicidade à matéria e divulgá-la. Os concorrentes, como antes já dito, aguardam justamente a oportunidade de sobressair-se dos demais que atuam no mesmo ramo. A disponibilização do nome de um concorrente por conduta ímproba constituirá um diferencial a ser trabalhado, tanto na forma de exaltação de seu agir ético como na propagação interessada das informações atinentes aos erros praticados pelos demais. Os consumidores, que detêm o direito de escolha, de optar pelos prestadores de serviços e produtos que preferem, são governados pela sua consciência e constantemente expostos a ações publicitárias que buscam induzi-los a uma determinada opção. Por fim, o mercado atua na seleção dos melhores em cada espaço negocial – e na exclusão daqueles que não atendem às expectativas. Não se reabrem espaços para aqueles que perderam o crédito, tampouco para aqueles que carregam estigmas em seu nome ou que sofrem rejeição dos consumidores. Esses mesmos efeitos, certamente serão suportados pelas empresas punidas pela prática de atos corruptos e que tenham seus nomes e penalizações expostas nos cadastros idealizados pela Lei Anticorrupção. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A breve análise dos elementos acima trabalhados, deixa evidenciar o comprometimento do Estado brasileiro na luta contra a corrupção, fazendo uso da norma jurídica como uma de suas armas mais eficazes. Ainda, resta evidente que a concepção de tais normas tem suportado evolução constante. Mais do que punir apenas agentes públicos ou definir sanções econômicas, as leis têm buscado a responsabilização de todos aqueles que de alguma forma contribuíram para a prática do ato corrupto – sejam eles pessoas físicas ou jurídicas. 377

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Nesse sentido, a Lei Anticorrupção inovou ao tratar da responsabilização das pessoas jurídicas e ao determinar a disponibilização do nome das empresas punidas em matéria de corrupção, mediante a criação de cadastros de livre acesso ao público. A inscrição e a veiculação dessas listas inaugura nova fase em matéria de sancionamento, vez que atinge valores intangíveis no meio empresarial, atacando a reputação da organização e comprometendo a sua imagem perante todos os setores, o que reclama maturação por parte da doutrina e casuística nacional e em muito ainda vamos ter que avançar. 6 REFERÊNCIAS ABREU, A.; DIEHL, C. e MACAGNAN, C. Mensuração de Custos Intangíveis: uma análise prática, Revista Contabilidade Vista & Revista. Belo Horizonte, v. 22, n. 3, p. 41-71, jul./set. 2011. BRASIL. Controladoria-Geral da República. Disponível em: . Acesso em: 3 jun. 2016a. BRASIL. Controladoria-Geral da República. Disponível em: . Acesso em: 3 jun. 2016b. BRASIL. Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na Administração Pública Direta, Indireta ou fundacional e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 15 out. 2014. BRASIL. Lei n. 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inc. XXXIII do art. 5º, no inc. II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei n. 11.111, de 5 de maio de 2005 e dispositivos da Lei n. 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 15 out. 2014. BRASIL. Lei n. 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2016.

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n. 227. 1999. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70067061283. Relator: Des. Antônio Maria de Freitas Iserhard. Julgado em 8 jun. 2016. 2016c. Disponível em: . Acesso em: 4 jul. 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70069290161. Relator: Des. Umberto Guaspari Sudbrack. Julgado em: 16 jun. 20162016d. Disponível em: . Acesso em: 4 jul. 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70063048201. Relator: Des. Alexandre Kreutz. Julgado em: 30 jun. 2016. 2016e. Disponível em: . Acesso em: 11 jul. 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70069627776. Relator: Des. Marco Antonio Angelo. Julgado em: 7 jul. 2016. 2016f. Disponível em: . Acesso em: 11 jul. 2016. FERREL, O. C.; FRAEDRICH, J. e FERREL, L. Ética empresarial: dilemas, tomadas de decisões e casos. Tradução de Cecília Arruda. 4ª ed. Rio de Janeiro: Reichmann & Affonso, 2001. FRANCO SOBRINHO, Manoel O. Ética e moralidade nos atos administrativos. Direitos Fundamentais Sociais e a Solidariedade: notas introdutórias. In: TELLES, Antonio A. Q. e ARAÚJO, Edmir N. de. (Org.). Direito

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UM ESTUDO DE CASO DA AÇÃO POPULAR N. 70032484198 CONTRA A CÂMARA MUNICIPAL DE VEREADORES DE PELOTAS: O CONTROLE SOCIAL EM FACE DA PRÁTICA DO NEPOTISMO 1 Jonathan Augustus Kellermann Kaercher 2 Carla Luana da Silva3 Resumo: O presente trabalho versará sobre a Ação Popular como instrumento de controle social dos atos corruptivos. Assim, o problema central

1 – Este artigo é resultado de pesquisas feitas junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas – CIEPPP, do Programa de Pós-Graduação em Direito, Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, e vinculado ao Diretório de Grupo do CNPq intitulado Estado, Administração Pública e Sociedade, coordenado pelo Prof. Titular Dr. Rogério Gesta Leal, bem como decorrência de projeto de pesquisa intitulado “Patologias Corruptivas nas relações entre Estado, Administração e Sociedade: causas, consequências e tratamentos”. 2 – Advogado, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito com Conceito 5 na Capes – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC (2015-2016), com Taxa PROSUP/Capes, na linha de pesquisa “Políticas Públicas”. É integrante do grupo de pesquisa “Patologias Corruptivas nas relações entre Estado, Administração e Sociedade: causas, consequências e tratamentos”, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal, vinculado ao PPGD – UNISC e certificado pelo CNPq. E-mail: [email protected]. 3 – Advogada, mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, com bolsa PROSUP/Capes, modalidade Taxa, na linha de pesquisa “Constitucionalismo Contemporâneo”. Integrante do Grupo de Pesquisa “Estado, Administração Pública e Sociedade”, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal, na linha de “Patologias Corruptivas”, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da UNISC. E-mail: [email protected].

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desta pesquisa gira em torno de analisar se Ação Popular poderá servir como controle social às práticas corruptivas. Para isso, analisa-se a Ação Popular em aplicação no caso concreto de corrupção quanto a atos praticados na Câmara Municipal de Vereadores de Pelotas, no Estado do Rio Grande do Sul – RS. Assim, para além de um estudo bibliográfico, o presente artigo buscará, na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, os aportes necessários para as observações de como essa ação tem sido manuseada visando ao controle da contratação pública no que diz respeito à prática de atos corruptivos, no caso, a prática de nepotismo. 1 INTRODUÇÃO Inicialmente, salienta-se que os contornos sociais e econômicos que são dados em torno da corrupção expõem diariamente consequências que passam do âmbito da Administração Pública brasileira, gerando variadas consequências à sociedade. Assim, diante da crescente preocupação com a corrupção, surgem os meios de controle para sua inibição, sendo um desses mecanismos existentes o controle social exercido por meio do instituto da Ação Popular. Nesse sentido, aborda-se especificadamente, no presente artigo, o controle social exercido por meio da Ação Popular n. 70032484198 contra a prática do nepotismo na Câmara Municipal de Vereadores de Pelotas, no Estado do Rio Grande do Sul – RS. Dessa forma, o problema que conduz o presente trabalho é o seguinte: considerando que o nepotismo é uma prática corruptiva que está vinculada às relações de parentesco no trabalho e emprego e que o seu desencadeamento viola as garantias constitucionais, pergunta-se se a Ação Popular poderá servir como controle social às práticas corruptivas. Para desenvolver uma resposta ao presente questionamento faz-se, primeiramente, um estudo do que vem a ser a corrupção, seus feitos e as estratégias para sua inibição. Em um segundo momento, indo ao encontro do objetivo do presente estudo, trazem-se os mecanismos de controle a essas práticas, dentre eles o controle social pelo cidadão por meio da Ação Popular. Assim, tem-se que o tema central do presente estudo é a Ação Popular como instrumento de controle social dos atos corruptivos, tendo em vista sua aplicação pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Eis o tema desenvolvido.

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2 PONDERAÇÕES CONCEITUAIS SOBRE A CORRUPÇÃO COMO FENÔMENO MULTIFACETADO Inicialmente, salienta-se que a corrupção é um fenômeno definido pela Organização das Nações Unidas como sendo o “abuso da função pública para ganho pessoal direto ou indireto”, enquanto no Dicionário Houaiss é um “ato ou efeito de subornar uma ou mais pessoas em causa própria ou alheia, geralmente com oferecimento de dinheiro” (PETRELLUZZI; RIZEK JÚNIOR, 2014, p. 19-20). Vulgarmente, conceituar corrupção é uma tarefa quase impossível, pois o termo comporta inúmeros significados e extensa gama de consequências. Há, no entanto, um ponto em comum: trata-se de algo negativo; jamais positivo. Em dicionários, as definições não variam e perfilam o mesmo contexto: decompor, depravar, desmoralizar, subornar, tornar podre, enfim, destroçar algo. (NUCCI, 2015, p. 1) Nesse sentido, as condutas corruptivas são entendidas como extremamente complexas, onde se envolvem agentes públicos e privados, pessoas físicas e pessoas jurídicas, sendo difícil encontrar uma definição ou até mesmo um único conceito que venha a contemplar todas as possibilidades que o vocabulário encerra (PETRELLUZZI; RIZEK JÚNIOR, 2014). Assim, para fins de análise do tema, o conceito de corrupção é o seguinte: trata-se de toda e qualquer vantagem obtida pelos agentes públicos no exercício das funções que cause prejuízo aos bens, serviços e dos interesses do Estado. (LIVIANU, 2014, p. 25) Nesse contexto, observa Leal (2013) que, na tradição do pensamento político ocidental, não há um único consenso sobre o que vem a ser corrupção, ou seja, não há uma definição nesse sentido. Portanto, não se pode falar de uma única Teoria Política de Corrupção, pois existem diferentes abordagens sobre o tema, por meio de determinados marcos teóricos e filosóficos específicos. La corrupción tiene semejanza com la palabra corrosión, efectivamente, la acción corrupta se puede dar em forma instantánea, pero tras de ella hay todo um proceso en el que la conciencia y la voluntad han sido poco

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a poco corroídas. Incluso las fuentes originales de esta tendencia perversa trascienden nuestro momento histórico (LLACA, 2015, p. 168) 4. Em outras palavras, este fenômeno é um difícil debate de se compreender e definir, haja vista que possui diversos campos de conhecimento, pois inúmeros são os conceitos que esclarecem essa prática. Logo, pode-se também entender que a corrupção vem a surgir como uma ideia de destruição e degradação. Assim, por exemplo, nesta perspectiva: […] a corrupção se apresenta como um meio de degradação do interesse público em prol da satisfação do interesse privado. O agente público, apesar de exercer suas funções no âmbito de uma estrutura organizacional destinada à consecução do bem comum, desvia-se dos seus propósitos originais e passa atuar em prol de um interesse privado bipolar, vale dizer, aquele que, a um só tempo, propicia uma vantagem indevida para si próprio e enseja um benefício para o particular que compactuou com a prática corrupta (GARCIA, 2013, p. 68). E esse tipo de benefício não passa a ser somente econômico. No âmbito político, por exemplo, a exploração do prestígio e a conduta desviada com o intuito de obter vantagem de natureza política, mesmo que não tenha finalidade econômica, caracteriza igualmente a corrupção (PETRELLUZZI; RIZEK JÚNIOR, 2014). E isso não ocorre somente em esfera pública, mas também em esfera privada, como é o caso de empresas privadas, que são corrompidas por meio de seus funcionários que se utilizam do cargo que ocupam a fim de obter ganhos pessoais próprios ou alheios. Logo, dá para se considerar que, quem para se firmar no controle utiliza, ilegalmente, de sua função, mesmo que não venha lograr obter vantagem econômica, está também agindo de maneira corrupta. Ademais, a ausência de consciência coletiva somada à supremacia do interesse privado sobre o público é igualmente um poderoso elemento de estímulo à corrupção, tornando-se socialmente aceitável. (GARCIA, 2013) Com isso, dá para se estabelecer o entendimento de que:

4 – A corrupção tem semelhança com corrosão, onde de fato a ação corrupta pode se dar instantaneamente, mas por trás dela há todo um processo em que a consciência terá sido gradualmente corroída. As fontes originais desta tendência vão além do nosso momento histórico. 384

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[...] o problema da corrupção, assim, é amplo, envolvendo, na verdade, qualquer locupletamento indevido decorrente da prática de ato ilegal ou mesmo antiético para beneficiar alguém ou facilitar alguma atividade, ainda que legítima de outrem, ou ainda, comportar-se de maneira indevida para obter algum benefício para si ou para outrem, ainda que sem conteúdo econômico. Nesse sentido amplo, por exemplo, também seriam atos de corrupção o do empregado que assina o livro de presença por outro ou o funcionário que pula a catraca controladora de entradas e saídas para burlar a vigilância de horário de expediente. (GRECO FILHO, V.; RASSI, J. D.; 2015, p. 16) O fenômeno da corrupção, portanto, é definido como um tema amplo e difícil de compreender, em razão de abranger variados campos do conhecimento, havendo, nesse sentido, variados conceitos que esclarecem o que vem a ser essa prática. Logo, a corrupção tanto pode sugerir a ideia de destruição como a de mera degradação, assumindo uma perspectiva natural, como evento efetivamente apurado na realidade fenomênica, ou meramente valorativa. Assim, a corrupção é entendida como uma relação social, que é estabelecida por duas pessoas ou dois grupos de pessoas, compostos por corruptos e corruptores, com a intenção de transferir renda ilegal, tanto da sociedade, como de fundo público, para a concretização de fins exclusivamente privados. Relação essa, que também abrange a troca de favores estabelecida entre os grupos ou pessoas e, comumente, ao pagamento dos corruptos com a utilização de propina ou de quaisquer outros tipos de incentivos, compactuados pelas regras do jogo e, em consequência, pelo sistema de incentivos que delas insurgem. Corrupção é o comportamento que se desvia dos deveres formais de uma função pública devido a interesses privados (pessoais, familiares, de grupo fechado) de natureza pecuniária ou para melhorar o status, ou que viola regras contra o exercício de certos tipos de comportamento ligados a interesses privados (KLITGAARD, 1994, p. 40). Ademais, as histórias que são difundidas sobre o tema da corrupção buscam esclarecê-la como um fenômeno multifacetário, cujos aspectos são culturais, políticos, sociais, institucionais e econômicos. É definida como um padrão de comportamento que se afasta de normas predominantes em um dado contexto,

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sendo que este comportamento é associado a uma particular motivação que, conforme tratado anteriormente, é o ganho privado a expensas do público (BREI, 2016). E as suas consequências são inúmeras, dentre elas: […] la corrupción ha provocado en la administración pública desgracias semejantes: pérdida de efectividad, aumento de costos en la burocracia y de gastos en la sociedad; resultados fuera de control y los programados absolutamente precarious. En un gobierno corrupto, entrar a una oficina pública es dar un paso en el abismo; el riesgo y la incertidumbre campean. Lá pérdida de reglas y el dominio de la informalidad convierten a la tramitología en una película de terror, todo puede suceder (LLACA, 2015, p. 168) 5. A par disso, é necessário ressaltar que a corrupção é trazida por meio de temas centrais no processo comunicativo de globalização, em que se buscam unir esforços internacionais, tanto para o seu controle, quanto para uma possível execução, difusão e fortalecimento de ferramentas preventivas e de diagnósticos que sejam eficazes, visando, com isso, a objetivos comuns aos povos civilizados e democráticos (OSÓRIO, 2013). É interessante frisar que a tarefa de buscar a inclusão social das parcelas da população menos favorecidas encontra dificuldades na progressiva carência de recursos financeiros, não só no nosso País, como em grandes potências mundiais, como os Estados Unidos. Mas, no Brasil, o problema é mais crônico, pois, além da grande desigualdade social com a qual convivemos, deparamo-nos com altos índices de corrupção praticada por agentes que deveriam estar a serviço da sociedade e não de interesses pessoais. (BOTELHO, 2010, p. 120) Em verdade, quando a corrupção se encontra espalhada em todo o corpo político e tolerada pela comunidade, as pessoas mais necessitadas, por consequência, 5 – A corrupção tem provocado na administração pública desgraças semelhantes: perda de efetividade, aumento de custos da burocracia e de gastos com a sociedade; resultados fora de controle e programas absolutamente precários. Em um governo corrupto, entrar em um setor público é dar um passo ao abismo; o risco e a incerteza predominam. A perda de regras e o domínio da informalidade convertem a burocracia em um filme de terror, onde tudo pode acontecer. 386

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sentem os efeitos dessa mazela social de forma mais direta, em razão de que as estruturas dos poderes instituídos se ocupam, por vezes, com questões que lhes rendam vantagens, seja de grupos, seja de indivíduos, do que com interesses públicos vitais existentes (LEAL, 2013). Em consequência disso: […] hospitais públicos deixam de atender pacientes na forma devida porque são desviados recursos da saúde para outras rubricas orçamentárias mais fáceis de serem manipuladas e desviadas como prática de suborno e defraudação; famílias em situação de pobreza e hipossuficiência material não podem se alimentar porque os recursos de programas sociais são desviados para setores corruptos do Estado e da Sociedade Civil; as escolas públicas não têm recursos orçamentários à aquisição de material escolar em face dos desvios de recursos para outros fins, e os alunos ficam sem condições de formação minimamente adequadas (LEAL; KAERCHER, 2015, p. 02). Infelizmente, quando as pessoas se tornam mais conscientes dos danos que a corrupção provoca a interesses públicos e mesmo privados, elas ficam sensibilizadas com medidas de enfrentamento e tratamento dessa patologia (LEAL, 2014). Em razão de ser uma patologia manifesta em grande parte do mundo, deixou de ser somente uma preocupação nacional. Assim, ao longo dos anos a corrupção se tornou uma preocupação predominantemente nacional ou regional, transformando-se em um tema de debate global. Em menos de meia década a reação mundial contra a corrupção tomou de assalto o cenário político internacional. Governos caíram. Partidos há muito no poder foram expulsos do comando. Presidentes, primeiros-ministros, parlamentares e caciques corporativos antes poderosos foram questionados/investigados, à exaustão, por promotores, e engrossam os registros de processo judiciais. Itália, França, Japão, Coréia do Sul, Índia, México, Colômbia, Brasil, África do Sul: nenhuma região escapou e pouquíssimos países estão imunes. (GLYNN, P.; KOBRIN, S. J.; NAÍM, M., 2002, p. 27) Diante disso, depreende-se que a corrupção tem efeitos significativos sobre a democracia, no sentido de que ela rompe com os pressupostos fundamentais

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do regime, tais como a igualdade política e a participação. Minimiza a influência da população no processo de tomada de decisões, seja em razão de fraudes nos processos decisórios, como nas eleições, seja pela desconfiança e pela suspeita que ela vem a gerar entre os próprios cidadãos com relação ao governo e às instituições democráticas. Acaba, por fim, minimizando a transparência das ações dos governantes (MENEGUELLO, 2011). A corrupção não pode ser considerada como um fenômeno exclusivamente de uma sociedade ou de um momento de seu desenvolvimento, conforme sugerem algumas teorias evolutivas modernizantes, haja vista que ela está corrente nas formações sociais mais distintas, consoante comprovam trabalhos publicados nos últimos anos nas ciências sociais (BEZERRA, 1995). Além do exposto, as práticas definidas como corruptas ou, em outras palavras, corruptoras, não são idênticas, pois sofrem uma variação significativa. De fato, o fenômeno da corrupção possui uma dimensão legal, histórica e cultural que não pode ser negligenciada, quando se pretender estudá-la (BEZERRA, 1995). A luta contra a corrupção é complicada por inúmeros fatores; porém, a dificuldade básica é definir o que seja a corrupção, independentemente se sua definição legal, que varia enormemente de uma sociedade para a outra. O termo tem sido empregado para se referir a um amplo espectro de ações. Pode ser usado para designar ações ilegais ou antiéticas perpetradas por pessoas em posição de autoridade ou de confiança no serviço público, ou por cidadãos e empresas em sua relação com os agentes públicos. Consequentemente, parece claro que a luta contra esse mal não pode ser confinada ao setor público e restringir-se a medidas punitivas, penais e administrativas, dirigidas a agentes individuais, pois não há dúvida de que a corrupção interna quase sempre depende da relação entre os agentes públicos e os cidadãos. (SILA, 2008, p. 575) A corrupção, portanto, é um dos assuntos mais debatidos no processo comunicativo de globalização, em que se procuram reunir esforços e auxílios internacionais, para o seu combate, bem como para a implementação e o fortalecimento de ferramentas preventivas e de diagnósticos precisos, pois esse debate é um objetivo comum frente aos povos civilizados e democráticos (OSÓRIO, 2013). No entanto, uma das respostas que parece ser mais viável a isso tudo, é a de que o Estado deve procurar fomentar a utilização de mecanismos de “controle” já

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existentes, bem como a criação de novos meios que auxiliem na minimização de atos corruptivos. A partir daí, como já está acontecendo, entende-se que algumas mudanças acontecerão, mesmo que sejam vagarosamente conquistadas. É interessante frisar que a tarefa de buscar a inclusão social das parcelas da população menos favorecidas encontra dificuldades na progressiva carência de recursos financeiros, não só no nosso País, como em grandes potências mundiais, como os Estados Unidos. Mas, no Brasil, o problema é mais crônico, pois, além da grande desigualdade social com a qual convivemos, deparamo-nos com altos índices de corrupção praticada por agentes que deveriam estar a serviço da sociedade e não de interesses pessoais. (BOTELHO, 2010, p. 120) A par disso, dentre tantos mecanismos que estão presentes no sistema brasileiro, um deles que parece ser de grande relevância é o instituto da Ação Popular. Botelho (2010, p. 185), nesse sentido, dispõe que: “a Ação Popular é um instrumento constitucional posto à disposição do cidadão para que se possa anular ato lesivo ao patrimônio público, exercendo grande relevância no combate a corrupção”. A partir dessa visão, é que se analisa a possibilidade do instituto de a Ação Popular servir como controle social pelo cidadão em face das práticas corruptivas. Portanto, esse é o tema que se passa a analisar, com o auxílio de um estudo de caso do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, envolvendo a prática de nepotismo. 3 O CONTROLE SOCIAL EXERCIDO POR MEIO DA AÇÃO POPULAR CONTRA PRÁTICA DO NEPOTISMO: ANÁLISE DO CASO CONCRETO N. 70032484198 Frente a um cenário de uma corrupção desenfreada e multifacetada, surgiria a necessidade de buscar mecanismos de controle para inibição desse fenômeno. Pensando nesse aspecto, surgem para esse contexto os meios de controle da Administração Pública, com especial relevância o meio de controle social exercido por meio do cidadão pelo instituto da Ação Popular. Tem-se que a Ação Popular é um remédio constitucional em que qualquer cidadão tem a legitimidade para o exercício de um poder de natureza essencialmente política, constituindo, deste modo, manifestação direta da soberania popular (SILVA, 2007). 389

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Como bem ensina Justen Filho (2005), o controle da atividade administrativa dependeria da utilização de instrumentos adequados e satisfatórios, e os instrumentos que trazem em seu bojo a participação popular, os controles sociais, atenderiam essas expectativas. Furtado (2015, p. 62) aponta que “a necessidade de controlar as atividades administrativas desenvolvidas pelo Estado, é percebida de modo evidente pela comunidade como instrumento imprescindível de combate e prevenção da corrupção”. Diz–se que foi com o término do período autoritário, vigente de 1964 a 1985, que acaba por constar na agenda política brasileira o controle social, tendo com ele a proposta de elevar o nível de transparência do Estado brasileiro (BOTELHO, 2010). Consoante Botelho (2010), o controle social surgiria como uma esperança de que por meio de organizações formais e informais ocorresse a fiscalização das organizações públicas, tornando seu exercício efetivamente exercido. Segundo Mancuso (2001) o modelo de Estado de Direito, sendo substancialmente democrático, dependeria da eficácia desse controle social sobre o poder com o intuito de se prevenir da consequência do perecimento das instituições básicas que o compõe. “A Constituição Federal vigente, instaurou, claramente uma democracia participativa, que conclama aos cidadãos, isoladamente ou reunidos em associações ou sindicatos, a colaborarem na gestão e fiscalização da coisa pública” (MANCUSO, 2001, p. 17). Reflete ainda Mancuso (2001), que no Brasil o vigor democrático é expresso na Constituição Federal de 1988 por meio dos mecanismos jurisdicionais de controle dos atos do Poder Público, em especial pela criação de instrumentos processuais vinculados à defesa da cidadania. Sendo disposta como um desses instrumentos constitucionais de defesa a cidadania, sabe-se que a Ação Popular é um importante remédio constitucional. Na Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inc. LXXIII, e na Lei Infraconstitucional n. 4.717, de 1965, dispõe a presente ser um meio constitucional posto à disposição de qualquer cidadão para obter a invalidação de atos ilegais ou lesivos ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Trata-se de uma garantia inerente ao sistema democrático, instituída como meio de propiciar a participação popular no controle da atividade administrativa. A Ação Popular se caracteriza pela legitimação de qualquer cidadão para questionar atos administrativos, o que propicia a ampliação significativa da participação popular na vida comunitária 390

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e representa um modo de integração entre a sociedade e o Estado. Esta natureza justifica um regime jurídico próprio e peculiar, diferenciado em face dos demais instrumentos processuais (JUSTEN FILHO, 2005, p. 777). Analisando seu conteúdo, a Ação Popular seria um instrumento de defesa dos interesses da coletividade, não se amparando por ela direitos individuais próprios, mas da comunidade, sendo beneficiário direto e imediato o povo, titular do direito subjetivo de um governo honesto (MEIRELLES, 2010). Botelho (2010) explica que são requisitos da Ação Popular, o ajuizamento da ação feito por cidadão brasileiro, a presença de ilegalidade ou ilegitimidade do ato a invalidar e que o ato seja lesivo ao patrimônio público. Especificando, segundo Meirelles (2010), o primeiro requisito de ser cidadão6 reflete-se no fato de ser toda pessoa humana no uso e gozo de seus direitos cívicos e políticos, tendo a qualidade de eleitor. “Isso porque tal Ação se funda essencialmente no direito político do cidadão, que, tendo o poder de escolher os governantes, deve ter, também, a faculdade de lhes fiscalizar os atos da administração” (MEIRELLES, 2010, p. 129). Quanto ao segundo requisito, a ilegalidade ou ilegitimidade do ato a invalidar diz-se que seria aquele contrário ao Direito, infringindo “normas específicas que regem sua prática ou por se desviar dos princípios gerais que norteiam a Administração Pública” (MEIRELLES, 2010, p. 129), resultando lesão ao patrimônio público. Falando em patrimônio público, já se nota que o terceiro requisito é justamente a lesividade7 ao mesmo, onde lesivo será “todo ato ou omissão administrativa que desfalca o erário ou prejudica a Administração, assim como o que ofende bens ou valores artísticos, cívicos e culturais, ambientais ou históricos da comunidade” (MEIRELLES, 2010, p. 129). Justen Filho (2005) argumenta que o presente instrumento teria fins preventivos, visando a impedir efeitos lesivos, como também repressivos, sendo proposta depois da lesão, com o intuito de anular o ato e responsabilizar os causadores do dano. Nesse sentido, toma-se como base o caso concreto n. 70032484198

6 – Os inalistados, os partidos políticos, entidades de classe ou qualquer outra pessoa jurídica não tem qualidade para propor Ação Popular. Vide Súmula n. 365 do STF. 7 – A lesividade que abrange o texto constitucional abrange tanto o patrimônio material quanto moral, bem como estético, espiritual e histórico. 391

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do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, para analisar esses aspectos específicos de aplicação da Ação Popular, como meio repressivo, anulando atos lesivos, entendidos aqui pelas práticas corruptivas: APELAÇÃO CÍVEL. REEXAME NECESSÁRIO. AÇÃO POPULAR. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MUNICÍPIO DE PELOTAS. CÂMARA MUNICIPAL DE VEREADORES. PRÁTICA NEPÓTICA. AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL AFASTADA. EFETIVIDADE E UTILIDADE DA AÇÃO CONSTITUCIONAL. SUMULA VINCULANTE Nº 13, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MORALIDADE ADMINISTRATIVA. AGRAVO RETIDO. 1. Agravo retido. Não se conhece de agravo retido sobre o qual a parte deixa de reiterar seja apreciado nas razões de apelação. Aplicação do artigo 523, § 1º, do CPC. 2. Interesse processual. Considerando-se que a atividade administrativa fundamenta-se nos primados da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, e que ao Estado compete zelar pelo meio ambiente e pelo patrimônio cultural lato sensu, em ocorrendo lesão a tais direitos, qualquer cidadão eleitor estará autorizado a fazer valer em juízo a tutela desse bem, valor ou interesse, por meio de actio popularis, conforme a norma constitucional - artigo 5º, inciso LXXIII. Se a providência desconstitutiva e/ou condenatória for insuficiente para frear o ato lesivo ou ameaçador ao patrimônio público, outras medidas a ela se somarão, face à máxima efetividade e maior utilidade da ação. Interesse processual do autor popular reconhecido, do que decorre a impositiva desconstituição da sentença para iniciar-se a fase instrutória, a fim de que se comprove a imoral prática de nepotismo na seara do Poder Legislativo do Município de Pelotas, demonstrando-se a condição de servidores públicos dos réus e o grau de parentesco destes com os Srs. Vereadores. AGRAVO RETIDO NÃO CONHECIDO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA. (Apelação e Reexame Necessário nº 70032484198, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogerio Gesta Leal, Julgado em 17/03/2011) Nesse, pode-se observar a utilização do controle social por meio da Ação Popular em face da corrupção. Trata-se de decisão julgada em 17 de março de

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2011 e publicada em 6 de abril do mesmo ano, pela 3ª Câmara Cível, em Reexame Necessário de Apelação Cível n. 70032484198, interposta por Thiago Seidel em face da sentença que extinguiu, sem resolução de mérito, a Ação Popular ajuizada contra a Câmara Municipal de Vereadores de Pelotas, seus respectivos Vereadores e parentes, em razão da inadequação da via eleita. No caso em tela, o Senhor Thiago Seidel ajuizou Ação Popular contra a Câmara de Vereadores do Município de Pelotas, contra seus respectivos vereadores e parentes de tais agentes, investidos em cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gratificada, no Poder Legislativo local. O objetivo da ação visava à demissão de todos os parentes em até terceiro grau já contratados pelos senhores vereadores, e a proibição em definitivo de contratação de novos. In verbis a sentença foi extintiva, ao argumento de que o cunho da Ação Popular é desconstitutivo e, subsidiariamente, condenatório, não servindo para determinar a obrigação de fazer ou não fazer, como a desconstituição de ato tido ilegal (contratação de servidores públicos), e a condenação dos responsáveis pela prática de nepotismo no âmbito do Poder Legislativo local. Na mesma oportunidade da apelação, foi interposto agravo retido, o qual por unanimidade não foi conhecido pela Turma nos termos do art. 523, § 1º, do CPC. No acórdão da apelação, também houve a exclusão da lide de um co-réu, bem como parcial provimento ao recurso. Thiago Seidel apresentou suas razões recursais, no entanto apenas uma litisconsorte apresentou resposta pleiteando sua exclusão da lide, porquanto não mais ocupava cargo de confiança junto ao Poder Legislativo do Município de Pelotas. Nos termos do art. 1º da Lei n. 4.717/65, os desembargadores constataram a possibilidade do manejo de Ação Popular para obstar a prática de nepotismo, objetivando a anulação dos atos de admissão de servidores comissionados ou contratados para exercer função gratificada junto à Câmara. Alude o art. 1º da Lei n. 4.717/65 que [...] qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios[...]. § 1º - Consideram-se patrimônio público para os fins referidos neste artigo, os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico. Nesse sentido, constatou-se que o ato lesivo é aquele que pode ser classificado como algo que malfere a moralidade administrativa, o meio ambiente e

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o patrimônio histórico e cultural, servindo a ação para atacá-lo. Essa manifestação foi destacada pela Constituição Federal em seu art. 5º, LXXIII: [...] qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência Sob a orientação dessas disposições, determinou-se, como finalidade principal do manejo do instituto da Ação Popular, a cessação desse ato lesivo, que pode se concretizar por providência constitutiva negativa como é o caso da anulação. O objetivo-fim seria sempre a máxima efetividade e maior utilidade da Ação Popular, devendo sempre prevalecer a interpretação que confira a maior extensão da proteção dos interesses em questão. Na oportunidade viu-se que tal prática contraria a Súmula Vinculante n. 138 do STF, que proíbe a prática do nepotismo no âmbito dos três Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e possui função normativa, vinculando os órgãos do Poder Judiciário e a administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. Essa prática estaria caracterizando indiscutivelmente uma das formas de corrupção, que como visto, traz em seu bojo efeitos nefastos à sociedade. Por tudo, admissível é o pedido em ação popular, além de visar à desconstituição do ato contrário à moralidade administrativa (anulação das nomeações dos parentes comissionados dos vereadores do Município de Pelotas, por prática nepótica), dispensável a demonstração de lesividade ao patrimônio público, também contemplar a ordem de abstenção de novas contratações ao arrepio da diretriz constitucional , para conferir efetivamente àquele comando, o que vai ao encontro da Súmula 8 – A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal. 394

Um estudo de caso da Ação Popular n. 70032484198 contra a Câmara Municipal de Vereadores de Pelotas: o controle social em face da prática do nepotismo

Vinculante nº 13 (Apelação e Reexame Necessário n. 70032484198, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogerio Gesta Leal, Julgado em 17/03/2011). Foi reconhecida, então, a possibilidade de manejo de Ação Popular ao caso em tela, visto que a prática do ato corruptivo de nepotismo estaria sendo lesiva à moralidade administrativa, estando até mesmo por infringir súmula do Supremo Tribunal Federal. No caso, constatou-se que não haveria provas seguras da condição de servidores públicos dos réus, nem mesmo do grau de parentesco que possuem com os vereadores do legislativo local, matéria a ser aferida em nível de 1º Grau, no devido processo legal constitucional e infraconstitucional. Contudo, observando a constituição do ato lesivo, desconstituiu-se a sentença e determinou-se o retorno dos autos ao 1º Grau para que tais dados aportem aos autos, autorizando o julgamento de mérito. Vê-se que nesse caso concreto a Ação Popular figuraria como controle da prática de nepotismo, sendo, portanto, um controle social por parte do cidadão contra atos tidos como corruptos. Essa por sua vez, em sua utilização, mostrou resultados positivos, visto que tenha atendido seu objetivo de anular atos que sejam lesivos ao patrimônio público em sentido lato, como tão bem se configura pela corrupção. O manuseio da Ação Popular estaria concretizando a participação popular, refletida pela abertura à cidadania dada pela Constituição, e, como visto, seus efeitos são essencialmente efetivos. Como já relacionado, pelo fato de a corrupção delinear-se como um fenômeno cada vez mais complexo, a solução mais efetiva para sua inibição parece estar na utilização dos instrumentos à disposição da sociedade, que seria a peça-chave para essa realização do objetivo de construir uma sociedade em prol do interesse público. Todavia, mesmo vendo a efetividade da utilização da referida Ação como meio de controle social a práticas corruptivas, Botelho (2010) aponta que a população ainda não está acostumada a exercer esse controle social sobre os atos da Administração Pública, deixando uma atuação muito a desejar, sendo diversas vezes até mesmo utilizada de forma desvirtuada como instrumento de oposição política. Esse é um fato a se pensar. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS De fato, um dos grandes problemas enfrentados pela sociedade, tanto em nível nacional como global, é a corrupção. Essa, por sua vez, entendeu-se como 395

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um fenômeno extremamente complexo, visto que, por ter um largo campo de abrangência, não tem como se obter uma definição ou mesmo um único conceito do que vem a se constituir. Mesmo não tendo como se chegar a uma unanimidade conceitual, compartilhou-se da ideia de que a corrupção tem efeitos significativos sobre as esferas da sociedade. Viu-se que, frente a esse cenário, a procura de mecanismos para a inibição da corrupção tornou-se um tema relevante a se considerar. Assim, dentre tantos mecanismos que estão presentes no sistema brasileiro, o que pareceu assumir o papel de ser a solução mais efetiva, foi o instituto da Ação Popular, entendida como controle social da Administração Pública. A Ação Popular constituiu-se como um instrumento constitucional posto à disposição do cidadão para anular atos lesivos ao patrimônio público, exercendo grande relevância no controle da corrupção. Sob esse viés, analisou-se então, o caso concreto da Ação Popular n. 70032484198 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ação manuseada, visando ao controle da contratação pública no que diz respeito à prática de ato corruptivo. Nessa avaliação, entendeu-se que a Ação Popular figuraria como controle da prática de nepotismo, sendo, portanto, um controle social por parte do cidadão contra atos tidos como corruptos. Nessa aplicação, sua utilização mostrou resultados positivos, visto que, tenha atendido seu objetivo de anular atos que sejam lesivos ao patrimônio público, no caso em tela lesivo à moralidade administrativa. Assim, o manuseio da Ação Popular estaria concretizando a participação popular, refletida pela abertura à cidadania dada pela Constituição. Considerando que a corrupção torna-se um fenômeno cada vez mais complexo, a solução mais efetiva para sua inibição parece estar na utilização dos instrumentos à disposição do cidadão. E nesse sentido, concluiu-se que o instrumento da Ação Popular serve como controle social efetivo. 5 REFERÊNCIAS BEZERRA, Marcos Otávio. Corrupção: um estudo sobre poder público e relações pessoais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. BOTELHO, Ana Cristina Melo de. Corrupção política: uma patologia social. Belo Horizonte: Fórum, 2010. BRASIL. Apelação e Reexame Necessário n. 70032484198. Relator: Rogério Gesta Leal, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS. Julgado em 396

Um estudo de caso da Ação Popular n. 70032484198 contra a Câmara Municipal de Vereadores de Pelotas: o controle social em face da prática do nepotismo

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TEMAS POLÊMICOS DA JURISDIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL: MATÉRIA DE CORRUPÇÃO E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – ESTUDO DE CASOS

TEMAS POLÊMICOS DA JURISDIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL: MATÉRIA DE CORRUPÇÃO E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – ESTUDO DE CASOS VOLUME II

VOL. II

ORGANIZADORES: DES. ROGÉRIO GESTA LEAL | PROFA. DRA. CAROLINE MÜLLER BITENCOURT ARISTIDES PEDROSO DE ALBUQUERQUE NETO | AUGUSTO CARLOS DE MENEZES BEBER | BRENDA CATOI | BRUNA HENRIQUE HÜBNER | CARLA LUANA DA SILVA | CAROLINE MÜLLER BITENCOURT | CYNTHIA JURUENA | DENISE BITTENCOURT FRIEDRICH | EDUARDA SIMONETTI PASE | IANAIÊ SIMONELLI DA SILVA | JANRIÊ RECK | JAYME WEINGARTNER NETO | JOÃO BATISTA MARQUES TOVO | JONATHAN AUGUSTUS KELLERMANN KAERCHER | JULIANA MACHADO FRAGA | LEONEL PIRES OHLWEILER | LUIZ EGON RICHTER | LUIZ FELIPE NUNES | MÁRCIA SILVEIRA MOREIRA | MAURO BORBA | NEWTON BRASIL DE LEÃO | PAULO JOSÉ DHIEL | RAMÔNIA SCHMIDT | RICARDO HERMANY | ROGÉRIO GESTA LEAL | SÉRGIO LUIZ GRASSI BECK

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