Uma Análise de Corpus de Formas Anafóricas em Português Brasileiro e Europeu

May 20, 2017 | Autor: L. Lamberti Nunes | Categoria: Syntax
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Uma Análise de Corpus de Formas Anafóricas em Português Brasileiro e Europeu Luana Lamberti Nunes1

0. Introdução

O presente ensaio trata de formas anafóricas alternativas para antecedentes genéricos e específicos. Em português brasileiro e europeu (PB e PE) existem alguns tipos comuns de restrições que podem ser ativadas por expressões quantificacionais (ex. ninguém), como em PB no exemplo encontrado abaixo:

(1)

Ninguém tinha notado a porta atrás de {si/*ele}.

(2)

{Ana/Nenhuma aluna} tinha notado a porta atrás de {si(?)/ela}.

Além disso, esses julgamentos podem variar dependendo da variedade do português estudada, tornando o si, no exemplo (2), uma forma possível em PE. Menuzzi (1996) constrói hipóteses acerca dessas alternâncias argumentando que há uma interação entre duas restrições violáveis denominadas SEM GÊNERO e LOCALIDADE. Essa interação suporta a ideia de um sistema otimizado que atua nas restrições citadas. A análise dos contextos no citado artigo corrobora a hipótese de que os efeitos de localidade em anáfora sentencial são associados com a necessidade por economia morfológica. Com o objetivo de testar a hipótese de Menuzzi (1996), foi realizada uma busca dos contextos alternativos de anáfora sentencial em um corpus online que contém entrevistas sociolinguísticas das duas variedades de português estudadas. Em

suma,

foram localizados contextos que suportam a hipótese de economia morfológica nos efeitos de localidade.

1. Restrições em Anáfora: SEM GÊNERO e LOCALIDADE

Menuzzi (1996) ao tratar do tema referido no presente trabalho argumenta que duas restrições são atuantes na alternância das anáforas sentenciais que são SEM GÊNERO e LOCALIDADE.

1

Mestranda em Gramática e Significação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

NPs genéricos como ninguém e todo mundo são fortemente desfavorecidos como formas antecedentes de um pronome preenchido em português. Conforme os exemplos abaixo do PB:

(3)

a. Ninguém disse que {___/(?)*ele} estava interessado no livro. b. Todo mundo disse que { ___/*ele} estava interessado no livro.

Os exemplos citados com NPs NINGUÉM contrastam com NPs referenciais ou quantificacionais que alternam tanto com pronomes nulos ou preenchidos, como apresentado nos exemplos abaixo:

(4)

a. O Paulo disse que {___/ele} estava interessado no livro. b. Nenhum estudante tinha dito que {___/ele} gostou daquele livro. c. Todo estudante diz que {___/ele} gosta daquele livro.

Sendo assim, esse critério definido como SEM GÊNERO atua nos pronomes com antecedentes do tipo NINGUÉM, porque estes são especificados como [+gênero]. A partir dos exemplos e definições apresentados por Menuzzi (1996), há, então, o estabelecimento da seguinte restrição ao se tratar de antecedentes anafóricos em português:

(5)

SEM GÊNERO:

*[NINGUÉM i ...

X [+gênero]i]

A segunda restrição apresentada pelo autor considera o fato de que anáforas favorecem dependências locais, enquanto pronomes favorecem pronomes não-locais, denominada como LOCALIDADE. Os seguintes exemplos em PB ilustram a referida restrição:

(6)

a. O João tinha {se} visto {*ele} na TV. b. O João só fala de {si/ele}. c. O João viu uma cobra atrás de {(?)?si/ele}. d. O João disse que a Maria desconfia de {*si/ele}.

Se analisarmos os referidos exemplos é notável que quanto menos local é a dependência, menos aceitável a anáfora se torna. Em 6(d) si torna-se inaceitável pelo fato de ser pouco dependente e muito distante da forma referente. Já e, 6(b) ambas formas são possíveis por estarem próximas e com uma relação mais local de dependência.

2. Interação entre as restrições LOCALIDADE e SEM GÊNERO

Menuzzi (1996) questiona se as duas referidas restrições atuariam de forma isolada ou se haveria algum tipo de interação entre ambas. Ao analisar as duas variedades do português, o autor se depara com julgamentos distintos entre as formas testadas, como apresentado abaixo:

Português Brasileiro: (7)

a. O João viu o livro atrás de {(?)?si/ele}? b. Ninguém viu o livro atrás de {si/*ele}?

Português Europeu: (8)

a. O João viu o livro atrás de {si/ele}? b. Ninguém viu o livro atrás de {si/*ele}.

Sendo assim, os efeitos de SEM GÊNERO nos pronomes em (7) do PB parecem enfraquecer levemente os de LOCALIDADE na anáfora. Mostrando, assim, que as restrições interagem em PB. Entretanto em PE este paradigma parece ser diverso, de acordo com os exemplos apresentados. O autor fornece outros exemplos em PE para testar a interação das duas restrições:

(9)

a. O João jamais admitiria que a Maria desconfiasse de {(?)*si/ele} b. Ninguém admitiria que a Maria desconfiasse de {(?) ?si/(?) *ele} Em (9) podemos notar que os efeitos de LOCALIDADE na anáfora em PE

parecem ser mais moderados do que em PB. Abaixo há um resumo dos paradigmas apresentados pelo autor até então:

(10)

Estrutura

[CP NPi [VP V [PP P PRONi ]]]

Língua

PB

PE

Ref/QN NPi

(?)?si/ele

si/ele

NINGUÉM NPi

si/*ele

si/*ele

Ao analisar o paradigma apresentado o autor propõe um questionamento acerca da resistência maior às violações de LOCALIDADE em PE em relação ao PB. Como observamos no exemplo em (8a), PE parece apresentar mais alternativas de pronomes anafóricos com antecedente específicos do que PB. Menuzzi (1996) apresenta algumas evidências do uso de si em PE para demonstrar que as especificações de traço desta anáfora são claramente diversas em comparação com o PB. A primeira é que em PE falado, si é utilizado ao invés da 2º pessoa você em posições regidas por preposição, como nos exemplos abaixo:

(11)

a. O João viu uma cobra atrás de {si/??você}. b. O João jamais confiaria em {si/??você}.

Sendo assim, o si não-local e pronominal apresenta a mesma forma, que é como o si localmente fixado, exceto quando está especificado por número (-plural).

(12)

a. Nenhum rapaz admitiria que a Maria desconfiasse de {(?)si/ele} b. Poucos rapazes admitiriam que a Maria desconfiasse de {(?)*si/eles}

Observando os referidos exemplos o autor conclui que a propriedade distintiva da anáfora ligada em longa distância em PE parece vir de seu número. A anáfora em PE é mais resistente à LOCALIDADE porque ela apresenta um traço de especificação diferente, ou seja, porque ela é mais específica do que as anáforas em PB. Logo:

(13) Quanto mais específica a forma anafórica for, mais resistente será a LOCALIDADE.

3. Hipótese

Nesta seção será apresentada a principal hipótese proposta por Menuzzi (1996) que está relacionada com a especificação de traço das anáforas e sua relação com restrição de LOCALIDADE. O primeiro ponto é entender que o PB falado perdeu seus clíticos acusativos e os usos de pronomes oblíquos/pessoas de 3º pessoa, apresentado, assim, somente as formas de objeto, como nos exemplos observados abaixo:

(14)

a. Ele chegou tarde.

(Sujeito)

b. A Maria viu ele na TV.

(Objeto)

c. A Maria casou com ele.

(Regido por Preposição)

Já PE mantém os clíticos acusativos e com eles a distinção [± acusativo]:

(15)

a. Ele chegou tarde.

(Sujeito)

b. Maria o viu.

(Objeto)

c. Maria casou com ele.

(Regido por Preposição)

O fato de que os pronomes de 3º pessoa podem ocorrer basicamente em qualquer posição de Caso sugere que eles não são especificados por distinções de Caso. Entretanto, como a distinção [± acusativo] ainda está ativa em PE, os pronomes nesta língua não devem ser especificados pelo Caso: (16)

a. Pronomes em PE: [αpessoa] [γnúmero] [δgênero] [βCaso]

(=4)

b. Pronomes em PB: [αpessoa] [γnúmero] [δgênero]

(=3)

Feitas essas caracterizações prévias Menuzzi (1996) propõe a seguinte hipótese:

(17)

Quanto mais perto a forma anafórica estiver em especificação de traço das formas mais específicas em L, mais resistente será a LOCALIDADE. Portanto, as escolhas de padrões de anáfora resultam da competição entre formas

alternativas. Os efeitos de LOCALIDADE são uma função da especificação de traço das

formas alternativas. As violações de LOCALIDADE são, de alguma forma, proporcionais ao nível de especificação de traço de uma forma. Isto implica que quanto mais local a relação é, mais favorecida uma forma subespecífica ou “econômica” será. O autor encerra afirmando que os exemplos testados fortemente suportam a conclusão que os efeitos de LOCALIDADE em anáfora sentencial estão crucialmente relacionados à economia de morfologia.

4. O Corpus

Levando em consideração a análise das anáforas em PB e PE por Menuzzi (1996), surgiu a possibilidade de testar os principais contextos apresentados no referido artigo com o intuito de avaliar a plausibilidade da hipótese apresentada pelo autor que considera a economia de morfologia como um fator crucial no controle dos efeitos da LOCALIDADE na escolha de pronomes e expressões anafóricas em PE e PE. Os exemplos encontrados no referido artigo foram criados pelo próprio autor e julgados por um grupo de falantes nativos das duas variantes do português. Entretanto, uma busca em um corpus de fala natural seria de grande utilidade para corroborar a hipótese sugerida pelo autor. Sendo assim, o CRPC - Corpus de Referência do Português Contemporâneo foi selecionado por apresentar um variado corpus online que contém grande parte das variedades do português (Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Goa, Macau, Timor-Leste). Há um total de 311,4 milhões de palavras, abrangendo diferentes tipos de textos escritos (literário, jornalístico, técnico, etc.) e de registos orais (formal e informal). Para a pesquisa atual foi selecionado o projeto denominado Spoken Portuguese Geographical and Social Varieties realizado entre os anos de 1995 e 1997 pelas seguintes instituições: Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, University of Toulouse-le-Mirail e University of Provence-Aix-Marseille.

5. Análise

Ao total foram analisadas 20 entrevistas, sendo 10 de cada variedade do português. As porções de texto de cada variedade pesquisada apresentam em geral o mesmo número de páginas e palavras, somando uma média de 102 páginas (Brasil: 55

páginas e 12.851 palavras e Portugal: 57 páginas e 11.052 palavras). Abaixo há a lista de termos buscados nos arquivos:

Tabela 1.

Se

Si

Ninguém

Nenhum

Diz

Dito

Disse

que

que

que

Todo/a

Todo

Acho/a

mundo

que

Os referidos termos foram escolhidos baseados nos exemplos em Menuzzi (1996). Outros termos poderiam ter sido elegidos como pronomes pessoais, entretanto por razões de espaço somente os que poderiam ativar mais facilmente os contextos com anáforas foram selecionados. Ao total foram encontrados 8 contextos com anáfora que continham os termos pesquisados. Abaixo há uma tabela com a distribuição do número de dados recolhidos:

Tabela 2.

Termos

Número de Ocorrências em

Número de Ocorrências em

Português Brasileiro

Português Europeu

Se

0

1

Si

0

1

Ninguém

0

0

Nenhum

0

0

Diz que

0

0

Dito que

0

0

Disse que

2

0

Todo/a

0

0

Todo mundo

1

0

Acho/a que

2

0

É notável que há um número reduzido de dados, principalmente em português europeu. Por esse fato, foi recolhido um exemplo extra que não continha nenhum dos termos propostos, mas sim uma expressão referencial específica. Dito isso, abaixo há todas as ocorrências pesquisadas:

Tabela 3.

Português Brasileiro 18(a) ...o governo tem muita responsabilidade nisso. tem que ter. no sentido, sabe, eu acho que, por exemplo, deveria usar a televisão para se fazer propaganda... (pg.17) 18(b) Marx disse que, eh, um país se tornaria socialista, quando a... sua relação de produção capitalista se tornasse altamente desenvolvida, e isso não se deu. e por que é que não se deu? porque ele Marx viveu uma época, certo... (pg.41) 18(c) ... ela disse assim que a estrela da classe é o professor. não deixa de ter uma razão. só que ela chega com uma certa autoridade, logo no primeiro dia ela não cativou os alunos. (pg.46)

Português Europeu 18(f) ... os rapazes também lá deram conta de si. (pg.5)

18(g) ... da, as pessoas, eh, preocupam-se mais, são mais solidárias. (pg.18)

18(h) ... as mulheres que fiavam, com a, com saliva da boca e estavam com a roca fiando com um fuso. enrolavam aquilo, quando aquilo estava em fio. (pg.56)

18(d) ... não fui porque mais uma vez eu estava hospitalizada mas todo mundo falou que foi superorganizada. eu gostaria de ter ido. disseram que foi muito bem organizada. (pg.48) 18(e) ... e você acha que você cresceu muito mais que ela por ter ido estudar fora. (pg.54)

Em geral, os dados recolhidos, mesmo que em número reduzido, fornecem um material interessante para a discussão das anáforas em português. A primeira análise dos contextos encontrados que pode ser feita está relacionada com os exemplos 18(b) e 18(c) em PB. Ambos podem ser analisados considerando a hipótese de restrição da LOCALIDADE. Como observado em 18(b) o referente Marx é retomado depois de um distanciamento como ele Marx, reforçando a ideia de que “quanto mais local a relação é, mais favorecida uma forma subespecífica ou “econômica” será” apresentada por Menuzzi (1996). Ou seja, a relação entre as formas nesse contexto se torna menos local, porque o falante se distancia, incluindo outras informações no discurso. Quando este tem que retomar seu referente, o faz com uma repetição de seu nome específico com o pronome pessoal adicionado (ele Marx). Além disso, em 18(c) o mesmo tipo de estrutura parece se repetir. O falante vai se distanciando e com isso marcando o pronome pessoal para não perder o referente, sendo que ela aparece três vezes, pelo fato da dependência se tornar menos local. Ainda nos exemplos do PB, verificamos que em 18(a), (d) e (e) a preferência se dá pela anáfora , evidenciando a hipótese de que quanto mais local é a relação mais

econômica será a forma anafórica. As relações são mais locais nos referidos exemplos, fazendo com que não haja uso de expressões anafóricas específicas para fazer a retomada do referente como em  deveria,  disseram e  ter. No que concerne os dados recolhidos do PE, em 18(g) e (h) observamos casos de relações locais que, também, optam pela economia da forma. Nos referidos contextos a anáfora  é frequente como evidenciados em PB. Por fim, o caso em 18(f) ilustra a discussão apresentada em Menuzzi (1996) acerca da anáfora si em PE. Essa partícula em PE tem um caráter mais específico, carregando mais valor morfológico. No exemplo encontrado há uma relação local. Entretanto, seria interessante se houvesse dados no corpus com uma relação menos local com uso de si em PE para observarmos a hipótese levantada por Menuzzi (1996).

Conclusão Em um panorama geral do presente trabalho, houve a corroboração da principal hipótese levantada por Menuzzi (1996) que afirma que “quanto mais perto a forma anafórica estiver em especificação de traço das formas mais específicas em L, mais resistente será a LOCALIDADE.” Nos dados recolhidos foram encontrados exemplos em que a localidade exerceu um fator decisivo na escolha das expressões anafóricas. Foi observado que quanto menor a relação de localidade maior é a tendência pela escolha de formas preenchidas. Ademais, a hipótese pôde ser evidenciada em ambas as línguas pesquisadas. Pela limitação do presente trabalho, não foi realizada uma pesquisa com um maior número de expressões anafóricas ou mesmo com um corpus mais expandido. Entretanto, entendendo os objetivos que foram estabelecidos, houve uma recolha de dados naturais de fala que contribuiu para a hipótese proposta por Menuzzi (1996). Ema trabalhos futuros, seria possível fazer uma busca mais avançada com mais termos e em um corpus maior como, por exemplo, a comparação do pronome si em PE e PB e uma busca mais detalhada com pronomes pessoais de 3º pessoa.

Referências Bibliográficas http://www.clul.ul.pt/pt/recursos/183-reference-corpus-of-contemporary-portuguesecrpc. CRPC - Corpus de Referência do Português Contemporâneo. Acesso em 01/02/2016. HAEGEMAN, Liliane M. V. Introduction to Government and Binding Theory. 2nd edition. Blackwell Publishers Ltd. 1994.

MENUZZI, S. Antecedentes Genéricos e a Interpretação dos Pronomes Plenos: Comentários a “Anaphora with Generic Antecedents in Brazilian Portuguese”, de Ana Muller. Encontro Nacional da ANPOLL. 2000. ___________. Constraint interaction in binding and the feature specification of anaphoric forms. Linguistics in the Netherlands, 183-194, 1996.

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