Uma análise estrutural do fim da Ditadura no Brasil

August 12, 2017 | Autor: Roberto Santos | Categoria: Teoria da dependência, Ditadura Militar, História do brasil república
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Uma análise estrutural do fim da Ditadura no Brasil1 Roberto Santana Santos2

Resumo: o presente trabalho visa contribuir com a pesquisa e a reflexão sobre a Ditadura no Brasil ao enfocar as questões econômicas que levaram ao fim do regime de exceção. A partir de uma análise estrutural da época, passando pela reestruturação do sistema capitalista e da divisão internacional do trabalho, é apresentado como as mudanças econômicas em nível mundial afetaram o cenário interno e contribuíram junto a outros fatores para o término da Ditadura no país.

Palavras-chave: Ditadura; reestruturação capitalista; transição

Title: A structural analysis of the end of the Dictatorship in Brazil

Abstract: The present work aims to contribute to research and reflection on the Dictatorship in Brazil to focus on economic issues that led to the end of the authoritarian regime. From a structural analysis of the time, through the restructuring of the capitalist system and the international division of labor, is presented as the economic changes in the world affected the domestic scene and together with other factors contributed to the end of the dictatorship in the country.

Keywords: Dictatorship; capitalist restructuring, democratic transition

Vários fatores confluíram para o término da Ditadura militar no Brasil em 1985. No presente trabalho abordaremos os fatores estruturais/econômicos que contribuíram para o fim do regime de exceção. De maneira nenhuma reduzimos esse fato às condições aqui expressas. Esse artigo é somente uma abordagem de uma das causas para o fim da Ditadura. Por mais que seja, na opinião do autor, o mais importante dos motivos para o fim do governo ditatorial, não foi o único.

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Artigo originalmente publicado IN: História e Luta de Classes. Ano 10. Nº 17. Março 2014. P. 53-57.

2 Mestre em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Contato: [email protected]

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Os primeiros indícios para o fim do regime começam a ser dados em 1974, quando assume o ditador Ernesto Geisel, substituindo Emílio Garrastazu Médici. O novo “presidente” assume o cargo com promessas de um relaxamento da violência impetrada pelos órgãos de segurança e o início de um processo que levaria ao retorno do controle político por civis no futuro. Esse processo ficou conhecido como Distensão, sendo um conjunto de ações colocadas em prática pelo governo Geisel (1974-1979) para atenuar os principais signos do terror estatal, como os sequestros, torturas, execuções e a censura aos meios de comunicação. A ideia do abrandamento das medidas mais violentas do regime se concretizou durante o governo Geisel. Mortes ainda ocorreram, como a do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho, claramente vítimas dos aparatos de repressão, como o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna). No entanto, os responsáveis por essas mortes começaram a ser afastados dos seus postos de comando. O presidente Geisel dava um sinal de que realmente caminharia para uma Distensão, o que ainda não significava a redemocratização do país. O objetivo da Distensão não era a redemocratização imediata do país, mais um passo para incidir na velocidade que se daria esse processo. Como coloca Suzeley Kalil Mathias “o principal objetivo da distensão era descomprometer os militares com a repressão, e sua meta final – aceita pela maioria da elite dirigente – era o estabelecimento de uma ‘democracia tutelar’ ou ‘dictablanda’.” 3 Contudo, deveria haver uma razão para os militares começarem essa retirada estratégica do poder. É verdade que os principais grupos da esquerda, inclusive as guerrilhas, já haviam sido derrotados e os militantes de esquerda foram executados ou exilados. Com isso, a Ditadura perdeu o embasamento da sua retórica política que era a justificativa do regime devido ao “perigo vermelho”. Entretanto, essa saída estratégica dos militares se dava principalmente pelo fracasso econômico do país. A posse de Geisel foi concomitante ao fim do chamado “milagre econômico”, em que a economia brasileira cresceu a altas taxas, sem, no entanto, haver distribuição de renda. O arrocho salarial e o pesado custo de vida levaram ao pauperismo endêmico no país, assim como a falência de empresas menos 3

MATHIAS, Suzeley Kalil. Distensão no Brasil. O projeto militar (1973-1979). Campinas: Papirus, 1995. P. 39.

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competitivas com a monopolização do parque produtivo brasileiro pelo capital estrangeiro e o aumento dos latifúndios que começavam a se modernizar a partir do processo de mecanização com tecnologia de ponta (o chamado “agronegócio”). Essa política econômica se traduzia por meio de uma extrema concentração de renda e somente era possível de ser aplicada a partir de um regime ditatorial que reprimisse de maneira violenta qualquer contestação a essa prática. Os 5% mais ricos do país em 1960 tinham 27,4% da renda total do país, e em 1970 já possuíam 36,3%. 4 O investimento estrangeiro direto no mercado interno brasileiro levou à criação de um parque industrial de bens duráveis de propriedade estrangeira que se dirigia a um restrito mercado de classes alta e média no Brasil. O arrocho salarial era a base dessa produção por meio da superexploração do trabalhador, mas também limite dessa mesma produção, visto que esse trabalhador, devido às suas precárias condições de sobrevivência impostas pelo sistema, não se torna um consumidor. A saída para isso foi o que Ruy Mauro Marini 5 chamou de “subimperialismo”, ou seja, as multinacionais presentes no Brasil começam a utilizar suas unidades produtivas radicadas no país para exportação, visando outros mercados consumidores de países periféricos, notoriamente na América Latina e África. Portanto, a indústria radicada no Brasil não só se encontrava em mãos estrangeiras, como direcionava sua produção para produtos suntuários que eram consumidos por restritos mercados, tanto internamente quanto na sua modalidade exportadora. A partir da década de 1970, esse modelo de desenvolvimento excludente começa a perder fôlego. Com as crises dos anos 1970, as importações de máquinas e tecnologia industrial ficaram muito caras. Apresenta-se a necessidade de desenvolvimento interno das tecnologias mais avançadas daquele momento, como nos coloca Theotonio dos Santos: Isso [avanço tecnológico com vias à independência em certos setores] obrigava a um projeto de crescimento econômico e de desenvolvimento distinto que de fato se esboça durante o período Geisel. Através do Plano Trienal, este se propõe a implantar as indústrias de base que ainda faltavam 4

SANTOS, Theotonio dos. A Evolução Histórica do Brasil: Da Colônia à Crise da “Nova República”. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. P. 171. 5 MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. IN: Dialética da Dependência / uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini; organização e apresentação de Emir Sader. – Petrópolis, RJ: Vozes; Buenos Aires: CLACSO, 2000.

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ao país. Entre elas destacavam-se a petroquímica fina, a indústria espacial e militar e o setor energético, que apresentava uma grave crise internacional a partir da elevação do preço do petróleo. É nesse período que se implanta o contravertido projeto de construção das usinas nucleares que visava transferir a sua construção e a sua tecnologia para as empresas brasileiras. Inicia-se o processo da utilização da biomassa e a criação de uma energia fundada na nossa condição de país tropical e de grandes extensões territoriais com o próalcool e com a as perspectivas de transformar a mamona e a mandioca em fontes de combustíveis. 6

Essa tentativa de saída “endógena” do capitalismo brasileiro no governo Geisel se deve à crise mundial nos anos 1970 que arruinará o modelo de desenvolvimento da Ditadura, baseado no subimperialismo. A dependência de tecnologia estrangeira foi o calcanhar de Aquiles da política econômica do regime militar, pois para obtê-la era necessário um endividamento crescente no exterior por parte do Estado brasileiro. Essa situação era agravada pelas pressões da burguesia e da classe média que desejavam manter seu padrão de consumo permitido graças ao pauperismo generalizado da população do país. O Brasil, na condição de país mais devedor no mercado internacional quando dos choques do petróleo e do rearranjo da economia capitalista no fim dos anos 1970, sofreria na década de 1980 com a cobrança das dívidas (na casa dos 70 bilhões de dólares) 7 acompanhada de taxas de juros altíssimas. Os Estados Unidos apresentam um déficit público astronômico na casa dos 280 milhões de dólares, o qual deveria ser concertado com a exigência de pagamento dos empréstimos aos países periféricos. Esse cenário inviabiliza a manutenção do modelo subimperialista e empurra o governo ditatorial à saída endógena. No entanto, a influência neoliberal no mercado internacional já era muito forte. O desenvolvimento induzido pelo Estado no Brasil se encontrava na contramão do ritmo global do capitalismo avançado. Na década de 1980, os bancos internacionais não mais concediam créditos ao Brasil, mas sim, cobravam as dívidas acumuladas pela Ditadura, reforçadas por pesados juros. A economia brasileira travou e entrou em recessão, fruto do endividamento irresponsável do regime dos militares e sua política econômica concentradora de renda. 6

SANTOS, Theotonio dos. Op cit. P. 260. GIANNOTTI, Vito. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. 3ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. P. 241 7

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O endividamento interno aumenta para que se pudesse pagar o endividamento externo. O investimento no país é nulo, principalmente no campo de políticas sociais. O sucateamento das empresas estatais e públicas andava a passos largos o que, futuramente, facilitaria sua privatização nos anos 1990. O país fica sem liquidez econômica e sem crédito no mercado internacional, inviabilizando a manutenção da política de desenvolvimento da Ditadura. O recurso ao crédito interno também era nocivo, pois retirava capital que poderia ser investido na economia para pagar os credores estrangeiros, novamente configurando-se uma relação de dependência. O Fundo Monetário Internacional (FMI) exigia a restrição do endividamento público para liberar novos créditos, já impondo ao Brasil a receita que seria usada por vinte anos aos países periféricos: restrição do crédito para forçar a privatização generalizada e a flexibilização das leis trabalhistas na periferia, transformando os países da América Latina e Ásia principalmente, em áreas de alta rentabilidade para as multinacionais. Essa política estatal de endividamento interno (chegando a juros de 10% ao ano em 1984-1985) 8 para pagar a dívida externa recebeu o nome de “ciranda financeira” 9, pois estimulou a atividade do setor financeiro e especulativo do capital brasileiro. Ao mesmo tempo, com a ênfase da concessão de crédito voltada para o Estado, diminui o volume de empréstimos para a iniciativa privada, principalmente o setor produtivo. O Estado brasileiro diminuiu o financiamento de empresas menos competitivas, fato que ocorria desde a década de 1930. Os recursos eram retirados do endividamento interno para pagar o endividamento externo do governo. Com isso, aumentou as atividades do capital financeiro e especulativo no país, tanto para financiar o endividamento estatal, quanto internamente no mercado brasileiro, inundado com altíssima inflação. A média anual de inflação na década de 1980 foi de incríveis 330% ao ano.

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Essa manobra dos militares levou parte da burguesia brasileira que se via

prejudicada pela “ciranda financeira” para o campo da oposição ao regime, tentado apressar o fim da Ditadura. 8

PEDRAS, Guilherme Binato Villelas. História da dívida pública no Brasil: de 1964 até os dias atuais. P. 62. Disponível em: Acesso em 25 de dezembro de 2013. 9 Para um bom resumo sobre esse tópico e essa conjuntura, ver GOLDENSTEIN, Lídia. Repensando a dependência. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1994. P. 120-132. 10 Fonte IBGE. In: PORTAL BRASIL. Inflação. Disponível em: . Acesso em 25 de dezembro de 2013.

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Essa burguesia ligada aos setores produtivos e que dependia dos empréstimos concedidos pelo Estado via no fim do regime militar a possibilidade de iniciar a implementação das políticas neoliberais na economia brasileira. A privatização de empresas estatais e serviços públicos seria, para esses setores liberais, uma saída para estancar as contas do governo e reendereçar o capital para empréstimos visando os setores produtivos. Ou seja, a política de endividamento não mais se sustentava, apressando o fim da Ditadura, levando à perda de aliados dentro da própria classe dominante e pavimentando o caminho para a definição do neoliberalismo como adequação necessária do capitalismo dependente brasileiro ao mundo globalizado. Outros dados apontavam para a catástrofe econômica criada pelo regime ditatorial: O desempenho da economia nacional durante Governo Figueiredo (19791985) foi bastante irregular. Entre 1979-84 a renda per capita declinou 25%, o percentual das pessoas com renda domiciliar per capita inferior a linha de pobreza aumentou de 38,78% em 1979, para 48,39% em 1984. Entre os anos 1970-90 já haveríamos desembolsado quase 276 bilhões de dólares em juros e amortizações. Ainda assim, a dívida bruta externa do país situava-se em 123 bilhões de dólares. Do total desembolsado, 236 bilhões de dólares foram pagos entre 1980-90. 11

Esse desmoronamento da política econômica da Ditadura é o principal motivo do fim do regime de exceção e está ligado com as mudanças pelas quais passava o sistema capitalista em âmbito internacional. Uma reconfiguração da produção capitalista ocorre a partir do esgotamento do modelo keynesiano, o advento das ideias neoliberais e as mudanças na divisão internacional do trabalho (DIT). Nos anos 1970, as taxas de lucro nos países centrais demonstravam forte queda. Os gastos com o Estado de bem-estar social, a participação do Estado na economia e o protecionismo comercial em importantes mercados internacionais tanto no centro quanto na periferia do sistema levaram as grandes corporações a um movimento de concentração de capitais que garantisse a superação desse cenário. Para piorar a

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IGEPRI. Os anos 80-90: Década perdida para o Brasil – A estagnação político-econômica. Disponível em: Acesso em 25 de dezembro de 2013.

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situação, essa desaceleração da economia mundial foi agravada pelas duas crises do petróleo, em 1973 e 1979. Foi a partir desse momento que as ideias liberais econômicas voltaram à ordem do dia, com o neoliberalismo. Era necessária uma nova rodada de concentração de capital, abrindo novos espaços para a atuação do capital privado transnacional. Observamos assim um fenômeno de repatriação de capitais brutal, baseado na cobrança dos juros e dívidas dos países periféricos com instituições financeiras internacionais. Esse movimento foi acompanhado também de um ataque à participação do Estado na economia, no que tange às empresas estatais e aos serviços públicos. Qualquer tipo de proteção que setores estratégicos tivessem em algum país também era atacado como um entrave à “modernização” de um mundo sem fronteiras que se desenhava, mas que na verdade significava apenas a derrubada de fronteiras aos investimentos das grandes corporações. As ideias centrais do keynesianismo, principalmente o Estado de bem-estar social, são destruídas pelo avanço das medidas neoliberais, que se tornam hegemônicas ideologicamente graças aos sistemas de comunicação cada vez mais monopolizados. Assim assistimos nos países centrais à aplicação de programas de privatização de empresas estatais e sucateamento de serviços públicos, uma alta financeirização da economia, com destaque à especulação financeira, e à procura por mão de obra barata por parte das multinacionais. A redução dos custos de produção, principalmente no que tange à força de trabalho, é o elemento chave das ações dos grandes grupos econômicos e que leva não só ao deslocamento das fábricas para a periferia, mas também, à necessidade de liberalização total do comércio no Terceiro Mundo, viabilizando a livre circulação das mercadorias pertencentes às grandes empresas. Essa nova conjuntura mundial do capitalismo tem peso determinante no fim da Ditadura no Brasil. Primeiramente, o Estado brasileiro era um dos mais endividados quando do início da reestruturação capitalista de modelo neoliberal. O esgotamento do modelo de desenvolvimento promovido pelos generais, fortemente calcado no endividamento externo, sofre um grande baque quando, para resolver os impasses de suas próprias economias, os países centrais passam a cobrar com juros estratosféricos os pagamentos pendentes da periferia do sistema. Essa situação é o fator principal para o fim do “milagre”, juntamente com a restrição do mercado interno. Esse limite do crescimento de consumo no Brasil não 7

seria resolvido sem reformas estruturais que, obviamente, a Ditadura não poderia realizar, já que infligiriam os interesses dos grandes grupos econômicos nacionais e internacionais. O próprio Golpe de 1964 teve como uma das suas razões impedir as Reformas de Base do então presidente João Goulart. O que ocorria naquele período era uma modificação na divisão internacional do trabalho, como nos coloca Ruy Mauro Marini.

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O neoliberalismo e suas

características, principalmente a liberalização comercial e abertura de novos espaços de atuação para o capital privado com as privatizações incide numa mudança na DIT. Termina a fase do investimento estrangeiro direto nos mercados internos dos países periféricos e se inicia a fase da globalização neoliberal. Se anteriormente, as grandes empresas dos países centrais direcionavam suas unidades produtivas para determinados países, como o Brasil, para conquistar seus mercados internos, agora as fábricas são realocadas nas regiões com a maior superexploração da força de trabalho possível e revendidas em escala planetária. Por isso a importância da liberalização total do comércio ser uma das bandeiras tão fortemente defendidas pelos neoliberais. Produção, circulação e consumo se dão em nível global. As mercadorias precisam ser feitas onde o trabalho é mais barato (notoriamente o Sudeste asiático) e não encontrar barreiras comerciais em lugar nenhum do mundo, o que garante seu livre trânsito para a venda no mercado mundial. Claro que para isso foi necessário uma brutal concentração de capital que se dá a partir dos países centrais, com início na década de 1970 e alcança seu auge nos anos 1980. O Brasil e toda a América Latina contribuem decididamente para essa concentração de capital, com a cobrança de seu endividamento que levará os países da região à chamada “crise da dívida” durante a “década perdida” de 1980. A incapacidade de lidar com a nova situação é um dos fatores que leva os militares a iniciarem sua retirada da cena política. Mais do que isso, é o que leva a setores liberais do empresariado que sempre se locupletaram do regime ditatorial às fileiras da oposição. A Ditadura militar no Brasil tinha como política econômica uma monopolização da indústria, principalmente de bens duráveis, nas mãos do capital estrangeiro. Essas empresas estrangeiras, notoriamente estadunidenses, eram atraídas pela força de 12

Conferir os trabalhos de Marini “Dialética da dependência” e “processo e tendências da globalização capitalista”. IN: Dialética da Dependência / uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini; organização e apresentação de Emir Sader. – Petrópolis, RJ: Vozes; Buenos Aires: CLACSO, 2000.

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trabalho barata, fruto do arrocho salarial, além de outros incentivos, como isenções fiscais. Com isso os militares “modernizavam” o parque produtivo do país, fabricando carros e eletrodomésticos para a burguesia e a classe média que os apoiava a custo da superexploração dos trabalhadores. Contudo, os ditadores mantiveram boa parte das indústrias estatais construídas desde a Era Vargas (1930-1945) que atuavam em setores estratégicos da economia. Os serviços públicos também tinham grande participação estatal, mesmo que precários em qualidade e abrangência da população. Alguns militares e civis apoiadores do regime ainda mantinham uma ideia de desenvolvimentismo, traduzindo esse conceito como a propriedade de automóveis de marcas estrangeiras (mesmo que por parte ínfima da população). Essa visão de desenvolvimento tinha como um importante componente a participação do Estado na economia. A essa altura, falida pela crise da dívida e sem mais a “ameaça vermelha” para combater, a Ditadura perdia força. Em 1979 assume o último dos ditadores, João Baptista Figueiredo com a bandeira clara da Abertura, processo que deveria culminar na entrega do poder aos civis. A Distensão somada à Abertura liberou forças sociais então reprimidas e possibilitou o reagrupamento dos movimentos sociais e partidos de esquerda. Dessa forma, o processo de transição se dá de maneira dialética, com as forças populares tentando avançar nos limites conservadores impostos à Transição, ao mesmo tempo em que a classe dominante do país tenta mudar o sistema de governo sem mudar os fundamentos socioeconômicos que garantem sua preeminência de classe. A crise da dívida no Brasil (e em boa parte da América Latina) nos anos 1980 e o processo de Distensão com Geisel que se torna Abertura com Figueiredo, levou ao campo da oposição não só as forças de esquerda reorganizadas e alguns liberais democráticos, mas também parte do empresariado que até então apoiava o regime, mas viu naquele momento a necessidade de mudança e avanço sem a presença dos militares. Boa parte dos empresários tinham ligações com multinacionais já instaladas no Brasil. Esse cenário foi possível devido à brutal monopolização da indústria brasileira desde os anos 1960 nas mãos de empresas estrangeiras, processo garantido pela Ditadura Militar. Antes do Golpe de 1964 o Brasil chegou a produzir mais de 60% de suas maquinarias, contra menos de 40% nos anos 1980.13 Porém, o capitalismo neoliberal precisava de ainda mais. Era necessário desregulamentar uma série de 13

SANTOS, Theotonio dos. Op cit. P. 259.

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entraves judiciais ainda existentes que impediam ou dificultavam a participação direta do capital privado nacional e internacional nos setores de serviços. Os solavancos dialéticos da Transição se dão concomitantemente a um cenário desesperador de desigualdade social e na pior crise da história do capitalismo dependente brasileiro. A parte da população que tinha renda per capita familiar de um salário-mínimo em 1978 era de 73,4% do total. Dez anos depois, em 1988, esse número ficou praticamente estável em 73,2%. 14 A quebra total da economia brasileira nos anos 1980, e que se reflete nos graves problemas sociais, foi resultado de uma política econômica baseada no endividamento externo. Com a cobrança por parte dos credores internacionais, o governo ditatorial brasileiro se encontrou em uma rua sem saída e iniciou sua retirada estratégica. No processo de Transição até as eleições presidenciais de 1989 dois projetos de reforma se enfrentariam: um de reformas popular-democráticas, no sentido de distribuir a renda, aumentar o bem-estar da população e sua participação política; e outro conservador,

em

implementar

o

neoliberalismo

no

Brasil,

aumentando

a

superexploração do trabalho e caráter dependente da nossa economia, camuflado no discurso de que as medidas como privatização e liberalização do comércio de importados seriam uma “modernização” (mais uma) do país. Dessa forma, a Ditadura passa a ser um empecilho à reprodução do capital a partir do advento do neoliberalismo. Isso porque a necessidade de concentração de capital e de novos setores de investimento estava obstaculizada por vários setores dominados pela presença do Estado. A privatização do patrimônio público e o aprofundamento da superexploração do trabalho no modelo neoliberal não poderiam ser feitas pela Ditadura que já se encontrava desacreditada e débil. A crise estrutural do capital e sua remodelagem em nível mundial fizeram da Ditadura um entrave ao capital, sobretudo o estrangeiro, ao mesmo tempo em que debilitou sua condição e levou a uma série de medidas políticas internas que deram voz à oposição popular. Essa oposição contestava não só o regime político autoritário, mas também, os ditames econômicos que levavam boa parte da população brasileira à miséria.

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Dados da CEPAL. IN: MARTINS, Carlos Eduardo. Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2011. P. 311.

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A transição para um regime político liberal se dá então a partir de um acordo entre as elites, em que os militares saem de cena com a certeza da impunidade de seus crimes de lesa-humanidade e contra a economia do país e ao mesmo tempo garantem a permanência de boa parte de seus apoios civis no poder. A pulverização de antigos aliados do regime em diversos partidos políticos garante a sobrevivência eleitoral de boa parte de representantes das classes dominantes. A Assembleia Nacional Constituinte concluída em 1988 e as eleições presidenciais de 1989 marcaram o embate entre os dois modelos de Transição e garantiram a vitória do projeto conservador, abrindo as portas para a instalação das políticas neoliberais no Brasil. A privatização de estatais, sucateamento de serviços públicos, liberalização do comércio e a financeirização do capital, assim como a flexibilização das leis trabalhistas são as características centrais do neoliberalismo. Elas somente poderiam ser colocadas em prática num cenário pós-Ditadura, para ganhar um necessário verniz “democrático”, já que implementadas por governos eleitos pelo voto direto dos cidadãos. Uma nova rodada de achatamento salarial não seria possível por parte do regime militar. Por outro lado, a adoção do neoliberalismo ganha uma aura de legitimidade ao ser implementada nos governos presidenciais de Fernando Collor (1990-1992), Itamar Franco (19921994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). A política econômica da Ditadura, mesmo que desde sempre atada aos compromissos com o capital estrangeiro e norte-americano em particular, e com a entrega de boa parte do parque industrial brasileiro a empresas multinacionais; ainda guardava uma posição importante para o Estado na condução da economia. Além disso, vários eram os setores de serviços e de indústria básica que eram monopolizados ou que apresentavam grande participação estatal. Dessa maneira, na virada da década de 1970 para a de 1980 e com a reestruturação do capitalismo em nível mundial, a Ditadura brasileira deixa de ser um facilitador e passa a ser um entrave ao lucro das empresas que agiam em escala planetária. O regime militar era incompatível com os novos rumos da economia capitalista internacional e boa parte da alta burguesia brasileira, sócia menor do capital estrangeiro, percebia isso. É desse momento em diante que há uma movimentação política de parte da burguesia brasileira para o fim da Ditadura, não por questões política-humanitárias, mas pela compreensão correta para os seus negócios de que a política econômica dos militares estava tornando o Brasil inviável no plano 11

internacional. A grande questão é que a reestruturação do sistema capitalista promovida pelo neoliberalismo, em relação à DIT promoveu o esgotamento da fase de investimento estrangeiro direto no mercado interno. Uma nova fase se abriu com a globalização capitalista. A produção passa a ser disseminada pelo mundo pelas multinacionais. Os países periféricos passam a ser produtores de bens primários e de mercadorias industrializadas de baixa e média composição técnica. Aos países centrais se reservam as tecnologias de ponta (microeletrônica, informática, novas fontes de energia e biotecnologia), além claro, do controle monopólico da produção em escala global. A economia brasileira precisava ser readequada, como reza a cartilha do capitalismo dependente, ao novo momento da economia mundial. No entanto, as medidas necessárias para a inserção subordinada do Brasil na globalização não poderiam ser realizadas pelos militares, extremamente desgastados e com novas forças sociais que contestavam a perpetuação do regime ditatorial. A história da transição no Brasil é a história de como a classe dominante venceu a luta de classe em uma determinada conjuntura, ao não só se manter no poder enquanto se falava de mudança, mas aprofundar a dependência e a superexploração do trabalho com o neoliberalismo e legitimar suas ações por meio da apropriação do que seria um regime “democrático”.

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