UMA ANÁLISE FEMINISTA DOS DEVERES CONJUGAIS E DAS CONSEQUÊNCIAS DA CULPA PELO FIM DO CASAMENTO NO DIREITO BRASILEIRO

May 27, 2017 | Autor: Carol Sátiro | Categoria: Family Law, Feminism, Feminism and Law, Direito de família
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UMA ANÁLISE FEMINISTA DOS DEVERES CONJUGAIS E DAS CONSEQUÊNCIAS DA CULPA PELO FIM DO CASAMENTO NO DIREITO BRASILEIRO Caroline Sátiro de Holanda Resumo Tendo em vista a positivação do princípio da igualdade, o Código Civil brasileiro de 2002 (CC/02) utiliza uma linguagem neutra, objetivando atender à igualdade entre os gêneros. Nesta senda, o CC/02 estabelece os direitos e deveres conjugais, os quais são dirigidos a ambos os cônjuges. Em caso de descumprimento, as sanções impostas referem-se, principalmente, à perda do direito ao uso do sobrenome matrimonial e à natureza da verba alimentar. De acordo com a lei civil brasileira, os deveres conjugais são direcionados igualmente a ambos os cônjuges que, simetricamente, sofreriam as consequências pelo descumprimento. Tal fato seria, contudo, verdadeiro? Em outras palavras: como o cumprimento dos deveres conjugais e as suas consequências jurídicas atingem homens e mulheres?O objetivo do presente trabalho consiste em analisar como os deveres conjugais e as consequências jurídicas da culpa são dirigidos a homens e mulheres. A pesquisa revelou que igualdade formal não é suficiente para a efetivação da igualdade material entre os gêneros. A origem sexista dos deveres conjugais somadas à realidade dificulta uma aplicação igualitária da lei. Sob um falso discurso de igualdade, os dispositivos legais relativos aos deveres conjugais e às sanções por descumprimento acabam por ratificar a dominação masculina. O padrão masculino é colocado como paradigma, desconsiderando o universo feminino. A neutralidade do discurso jurídico não foi pensada para incluir as mulheres. Pierre Bourdieu aponta que a visão androcêntrica impõe-se como neutra e dispensa os discursos que a legitimam. Assim, o Direito, pretensamente neutro, acaba repetindo e recriando a ordem desigual. Palavras-chave: Gênero e Direito de Família. deveres conjugais. consequências da culpa pela separação.

1 INTRODUÇÃO

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 (CF/88), ao criar uma ordem jurídica democrática, além de uma igualdade, em uma perspectiva generalista, estabeleceu também, em seu artigo 226, §5º1, o princípio da igualdade entre homens e mulheres nas relações familiares2.



Doutoranda em Direito Civil pela Universidade de Coimbra, Mestra em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR, Professora da Graduação e Pós-Graduação em Direito, Advogada. 1 §5º. Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. 2 No âmbito do Direito de Família, este princípio significou uma quebra para com o paradigma patriarcal positivado pelo Código Civil de 1916 (CC/1916), que expressamente estabelecia nítidas diferenças entre homens e mulheres. Como exemplo, cita-se o fato de que o marido poderia pedir a anulação do casamento, se descobrisse que a mulher já não era mais virgem ao casar Estes dispositivos legais não foram, portanto, recepcionados pela

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Seguindo a linha democrática constitucional, Código Civil de 2002 (CC/2002) também positivou o princípio da igualdade entre homens e mulheres na relação conjugal3. Neste sentido, atual CC utiliza uma terminologia neutra, sem fazer referência expressa ao gênero (homem ou mulher). No que concerne aos direitos e deveres conjugais, o artigo 1.566 dirige, igualmente, tais obrigações a ambos os cônjuges. Em caso de violação aos deveres matrimoniais, o mesmo Código regula a chamada separação-sanção, cujo fundamento reside exatamente na violação às obrigações matrimoniais ou em outros fatores que tornem insuportável a vida em comum. O objetivo da chamada separação-sanção, conforme o próprio nome indica, é penalizar o cônjuge culpado, impondo-o sanções que se referem, principalmente, à perda do direito ao uso do sobrenome matrimonial e à natureza da verba alimentar. Fala-se ainda na possibilidade de o cônjuge infrator pagar uma indenização ao cônjuge lesado, o que não será abordado pelo presente ensaio dada a falta de previsão legal e o dissenso doutrinário e jurisprudencial relativo ao tema. Da forma como redigidos os artigos do CC/02, ambos os cônjuges poderiam ser igualmente responsáveis pelo descumprimento dos deveres conjugais e, simetricamente, sofreriam as consequências da culpa pela separação. Tal fato seria, contudo, verdadeiro? O objetivo do presente trabalho consiste exatamente analisar como os deveres conjugais e as consequências jurídicas da culpa atingem homens e mulheres. Pretende-se, com isso, denunciar que, por trás da suposta neutralidade, objetividade e abstração, o Direito também pode ser responsável por criar e ratificar diferenças de gênero.

2 COMPREENDENDO A ORDEM SIMBÓLICA PATRIARCAL E O PAPEL DO DIREITO NESTE CONTEXTO

Para compreender a ordem simbólica patriarcal, é necessário, antes, trabalhar o conceito de patriarcalismo/patriarcado. Carole Pateman (1993) aponta que não há um consenso acerca do significado de “patriarcado”, mas isto não é motivo para abandoná-lo, pois é “o único conceito que se refere especificamente à sujeição da mulher, e que singulariza a forma de direito político que todos os homens exercem pelo fato de serem homens” (Pateman, 1993, p. 39).

nova ordem constitucional. A CF/88 passou irradiar efeitos hermenêuticos para a legislação infraconstitucional, proporcionando formalmente a igualdade entre os gêneros. 3 Vide Art.1.511 e Art. 1.567, do CC.

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Não se pode afirmar que existe um patriarcalismo universal, no entanto é possível detectar nas diversas culturas uma subordinação das mulheres aos homens, em maior ou menor grau, assinalando, com isso, uma ordem patriarcal global4. Para Martha Giudice Narvaz e Sílvia Helena Koller (2006, p. 50), “o patriarcado é uma forma de organização social na qual as relações são regidas por dois princípios básicos: 1) as mulheres estão hierarquicamente subordinadas aos homens e, 2) os jovens estão hierarquicamente subordinados aos homens mais velhos”. Nesta forma de organização, atribui-se uma hierarquia/ superioridade às atividades masculinas em detrimento das atividades femininas. O patriarcalismo se caracteriza, segundo Manuel Castells (1999, p. 169), “pela autoridade imposta institucionalmente, do homem sobre a mulher e filhos no âmbito familiar”. Ocorre que essa autoridade masculina também existe na esfera pública e não apenas na familiar/privada. As divisões sexuais dos papéis masculinos e femininos, dentro e fora da família, se influenciam. Como características principais do patriarcalismo destacam-se, dentre outras5: 1) estabelecimento de um modelo único de família, baseado no casamento e com finalidade de procriação; 2) repúdio aos arranjos familiares homossexuais; 3) acentuada diferenças entre os papeis sociais de homens e mulheres, tendo por justificativa as diferenças biológicas, mais precisamente as que se referem à reprodução; 4) sujeição da mulher e dos filhos ao homem; 5) padrão moral de comportamentos completamente diferente entre os sexos, cabendo ao homem ampla liberdade e à mulher restrições; 6) forte controle da sexualidade, dos corpos e da autonomia femininos; 7) divisão sexual do trabalho. De acordo com a ordem patriarcal, os papéis sociais de homens e mulheres são completamente diferentes. Os papéis masculinos são dotados de prestígio social, porque geralmente exercido no espaço público, enquanto os femininos são, muitas vezes, inferiorizados e invisibilizados, já que majoritariamente exercidos no espaço domésticoprivado. Percebe-se, assim, uma nítida relação de poder entre os sexos, que cria diferenças sociais entre homens e mulheres. Vale indagar: como e por que essa ordem patriarcal de dominação masculina se mantém, mesmo a custa de sujeição e de injustiças?

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O relatório de desenvolvimento mundial (World Development Report 2012: Gender Equality and Development) do Banco Mundial (2012, on line) aponta que, apesar dos avanços alcançados, ainda é perceptível as diferenças entre os gêneros nos mais diversos países, em maior ou menor grau, conforme a realidade social de cada um. 5 Tudo aquilo que, hodiernamente, contrapõe-se às características do sistema patriarcal constitui resultado de mudanças sociais e de lutas sociais e políticas em busca de rompimento para com tal paradigma.

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Pierre Bourdieu (2002) assinala que a ideologia patriarcal se legitima porque as diferenças biológicas entre os sexos são utilizadas para justificar a submissão das mulheres aos homens, tanto na esfera pública como na privada. A “natureza” é, assim, empregada para explicar as diferenças sociais entre os sexos, como se tais diferenças sociais também fossem “naturais”. Ocorre que, segundo o mesmo autor (Bourdieu, 2002), os aspectos apontados como biológicos foram também socialmente construídos segundo uma visão androcêntrica. O mundo social é que constrói o corpo como realidade sexuada (Bourdieu, 2002). A diferença entre os sexos biológicos é construída socialmente, em conformidade com os princípios de uma visão mítica do mundo, a qual é fundada na arbitrária dominação dos homens (Bourdieu, 2002). Bourdieu (2002) considera que a força da sociodicéia masculina vem do fato de ela acumular e condensar duas operações: ela legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada. O arbitrário cultural é, portanto, transformado em natural (Bourdieu, 2002). Pode-se afirmar que a ideologia patriarcal também se mantém mediante o uso da linguagem, entendida, na perspectiva pós-estruturalista, como sistema de significação, que precede a fala, leitura e escrita (Scott, 1995, p. 81). Trata-se de uma ordem simbólica, que emite significados independentemente da apreensão da linguagem falada, escrita ou lida. Para Joan Scott, não é possível entender as relações de gênero “sem dar uma certa atenção aos sistemas de significação, quer dizer, aos modelos pelos quais as sociedades representam o gênero, servem-se dele para articular as regras de relações sociais ou para construir o significado da experiência” (Scott, 1995, p. 82). Para a autora, “sem significado, não há experiência; sem processo de significação, não há significado” (Scott, 1995, p. 82). A ordem simbólica patriarcal sustenta-se mediante diversos símbolos: mitos, arte, ciência, religião, língua, política, educação, saúde, Direito etc. Estes símbolos são responsáveis pela construção de uma realidade social. Nas palavras de Pierre Bourdieu (2011, p. 6): “os símbolos são instrumentos por excelência da ‘integração social’: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação, eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social (...)”. Os “sistemas simbólicos” impõem e legitimam a dominação (Bourdieu, 2011). Esses instrumentos reproduzem, legitimam e ratificam a ideologia dominante, formando o que Pierre Bourdieu denomina de “poder simbólico”6 (Bourdieu, 2011) ou “ordem 6

Bourdieu define o “poder simbólico” como o “poder invisível o qual só pode ser exercido com cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (Bourdieu, 2011, p. 4).

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masculina” (Bourdieu, 2002). O autor (Bourdieu, 2002) denomina de “violência simbólica” a dominação masculina, derivada do poder simbólico patriarcal. Para o autor, tal violência é invisível até para as próprias vítimas e é exercida por vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento. Dessa forma, o pensamento do próprio dominado (no caso as mulheres) está estruturado em conformidade com as estruturas de dominação, de modo que os seus atos constituem ato de reconhecimento e de submissão (Bourdieu, 2002). Assim, o dominado acaba participando do processo relativo à própria dominação7. Destaca-se aqui a utilização do Direito como um importante instrumento (símbolo) para construção dos gêneros, legitimação e criação da ordem simbólica patriarcal. O Direito (embora não mais o faça) sempre traçou diferenças entre os papéis de homens e mulheres, contribuindo para configuração dos gêneros e, consequentemente, manutenção da ideologia patriarcal. Exemplificativamente, cita-se o primeiro CC brasileiro que, sob a égide de uma sociedade patriarcal e androcêntrica, estabeleceu nítidas diferenças entre homens e mulheres, ratificando e criando os papéis masculinos e femininos. Mesmo que, hodiernamente, encontre-se positivado o princípio da igualdade entre os sexos, não se pode olvidar da instrumentalização do Direito como símbolo de uma ordem patriarcal. Desse modo, a atual consagração da igualdade formal entre homens e mulheres, embora muito importante, não é capaz, por si só, de mudar as práticas sociais, jurídicas e religiosas de divisão sexual. Para que o Direito venha a ser um instrumento de transformação social, a igualdade formal além de não ser suficiente pode ainda ser prejudicial, na medida que esconde as desigualdade materiais, fazendo crer que a igualdade fora efetivamente alcançada. Somente com a igualdade material, ou seja, com um tratamento desigual8 é que se pode mudar as relações de gênero.

3 OS DEVERES CONJUGAIS SOB UMA PERSPECTIVA FEMINISTA

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Cabe destacar que a participação das mulheres do próprio processo de sujeição aos homens não pode ser entendido como consentido, na medida em que o consentimento pressupõe consciência e liberdade. Para Heleieth Saffioti, (1994, p. 445-446)“O consentimento não representa senão a aparência do fenômeno, na medida em que a consciência das dominadas é distinta da consciência dos dominantes. Esta assimetria não autoriza nenhum cientista a falar em consentimento das mulheres com sua dominação pelos homens. As duas categorias de gênero falam a partir de posições hierárquicas e antagônicas, ao passo o conceito de consentimento presume que os co-participes falem a partir da mesma posição e posição de iguais”. 8 Conforme aponta Joan Scott (2005), igualdade e desigualdade são conceitos interdependentes.

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Como dito alhures, o Direito sempre foi um dos instrumentos simbólicos de legitimação da ideologia patriarcal. Com tal premissa em mente é que se passa a analisar os deveres matrimoniais, elencado no artigo 1.566, do atual CC brasileiro: Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: I - fidelidade recíproca; II - vida em comum, no domicílio conjugal; III - mútua assistência; IV - sustento, guarda e educação dos filhos; V - respeito e consideração mútuos.

Note que o Código Civil determina que os deveres conjugais sejam cumpridos por ambos os cônjuges. A lei direciona-se a ambos os sexos com igualdade. Mas, na prática, como se exige o cumprimento de tais obrigações por parte de homens e mulheres? Efetivamente, existe igualdade no cumprimento e na exigência dos deveres conjugais? É o que se passa a estudar.

3.1 O DEVER DE FIDELIDADE

O dever de fidelidade recíproca decorre do caráter monogâmico do casamento e impõe que ambos os cônjuges se abstenham de praticar relações sexuais com terceiros. Pela regra, com o casamento, cada cônjuge deve renunciar à sua liberdade sexual, abrindo mão de qualquer relacionamento íntimo, afetivo ou sexual com terceiro estranho à relação matrimonial. Qual a origem do dever de fidelidade? Ao narrar o surgimento da família patriarcal romana, Friedrich Engels (2012, on line) explica que o dever de fidelidade surgiu para assegurar que o filho da mulher casada fosse de seu marido. Sendo assim, “para assegurar a fidelidade da mulher e, por conseguinte, a paternidade dos filhos, aquela é entregue, sem reservas, ao poder do homem: quando este a mata, não faz mais do que exercer o seu direito” (Engels, on line, 2012). Por outro lado, ao homem “se concede o direito à infidelidade conjugal, sancionado ao menos pelo costume (o Código de Napoleão outorga-o expressamente, desde que ele não traga a concubina ao domicílio conjugal)” (Engels, 2012, on line). Enquanto a maternidade sempre foi dita como certa9, já que é a mulher quem engravida e dá à luz, a paternidade era incerta. Assim, a lei criou um sistema de presunções legais de

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Cabe anotar que, hodiernamente, ante as técnicas de reprodução assistida e a possibilidade de utilizar um útero alheio para procriar já não é possível considerar que a maternidade é sempre certa.

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paternidade, objetivando garantir que o filho da mulher casada fosse de seu marido 10. Neste sentido, Carole Pateman (1993) aponta que a maternidade é um fato natural e social, enquanto a paternidade é apenas um mero fato social, uma invenção humana. Para assegurar a eficácia dessa ficção jurídica, a infidelidade feminina precisaria ser rigidamente proibida e controlada, mormente quando o patrimônio familiar e o direito sucessório estivessem em jogo. Observe-se, portanto, que o dever de fidelidade nasceu com o objetivo de controlar os corpos e a sexualidade feminina, a fim de garantir o conhecimento da paternidade, buscando impedir a transferência hereditária de patrimônio a outrem que efetivamente não fosse o filho do marido. Expostas a origem e a finalidade do dever de fidelidade, é fácil perceber o motivo pelo qual a infidelidade sexual masculina sempre foi tolerada. O homem não tinha que garantir que sua prole pertence a sua mulher, o que era perceptível pela gravidez e pelo parto. Em nome do direito de propriedade, a sexualidade feminina passou a ser objeto de controle. Ressalte-se, aqui, a moral religiosa cristã que sempre corroborou com a ideia de controle da sexualidade feminina. Para diversas religiões cristãs, a infidelidade feminina é odiosa, enquanto que a masculina é aceitável. Aliás, fundamentando-se na infertilidade da mulher, diversas passagens bíblicas retratam o adultério masculino praticado, inclusive, com o aval da própria esposa11, o que denota a aceitação da infidelidade do homem. Além da religião e da moral social, o Direito também foi utilizado para manter e recriar a ordem simbólica de controle da sexualidade feminina, tratando com mais benevolência a infidelidade masculina. Para se ter um exemplo do que fora dito, Rolf Madaleno (2011, on line) noticia que somente as mulheres eram punidas pelas práticas de do crime de adultério, enquanto que o adultério masculino só era punido se fosse praticado com mulher casada, sofrendo o homem a punição não por ser adúltero, mas por ser cúmplice do adultério da mulher. A chamada tese da “legítima defesa da honra” não é coisa de passado e ainda é utilizada na prática forense brasileira para fins absolutórios ou para diminuição da pena do homicida de uma mulher infiel12. 10

Mesmo nos dias atuais, quando se pode ter certeza da paternidade, mediante a realização do exame de DNA, o sistema de presunção de paternidade previsto pela ordem jurídica ainda se faz necessário, já que a imposição de realização da prova pericial como pressuposto para o reconhecimento da paternidade poderia gerar conflitos, desgastes familiares e, mais uma vez, a subjugação do sexo feminino. 11 O capítulo 16, do livro Gênesis, da Bíblia Sagrada, narra a história de Sarai, mulher de Abraão, que não podia ter filhos. Sarai, então, ofereceu sua serva Hagar a Abrão, para que concebessem um filho. O filho foi concebido e recebeu o nome de Ismael (A Bíblia Sagrada, 1993, p. 14-15). Também no Gênesis, é possível encontrar outro exemplo, no qual a infertilidade de Raquel, casada com Jacó, fez com que ela oferecesse sua serva Bila para que, com seu marido, tivesse relações sexuais e concebesse um filho (A Bíblia Sagrada, 1993, p. 29). 12 Neste sentido, ver os ensaios de: Daliane Mayellen Toigo (2010); e Silvia Pimentel, Valéria Pandjiarjian e Juliana Belloque (2012, on line).

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A realidade social atual demonstra que a traição feminina ainda conta com mais repúdio social que a masculina. A título de ilustração, cita-se uma passagem da obra de Direito de Família, da jurista Maria Helena Diniz, edição do ano de 2004: É preciso salientar que sob o prisma psicológico e social o adultério da mulher é mais grave que o do marido, uma vez que ela pode engravidar de suas relações sexuais extramatrimoniais, introduzindo prole alheia dentro da família ante a presunção da concepção de filho na constância do casamento prevista no art. 1.597, do Código Civil, transmitindo ao marido o encargo de alimentar o fruto de seus amores. (...) Já em relação ao adultério do marido, os filhos que tiver com sua amante ficarão sob os cuidados desta e não da esposa, e, além disso, pode ocorrer que a infidelidade do homem seja um desejo momentâneo ou mero capricho, sem afetar o amor que sente pela sua mulher (Diniz, 2004, p. 126-127).

O pensamento de Maria Helena Diniz representa uma violência às mulheres no plano das idéias (violência simbólica). Constitui um modo de domesticação das mulheres e de sua sexualidade. O exercício da sexualidade feminina, mesmo hodiernamente, só é respeitado e considerado legítimo em um relacionamento monogâmico heterossexual, motivo pelo qual a infidelidade da mulher possui um maior repúdio social. Enquanto isso, aceita-se mais facilmente que o homem exerça sua sexualidade paralelamente ao casamento. Vale lembrar que, em uma sociedade com resquícios patriarcais como a brasileira, os corpos femininos são considerados os responsáveis pela honra masculina e pelos destinos da família. Assim, o dever de fidelidade é essencialmente um dever feminino. Mesmo que o Código Civil determine que o dever de fidelidade seja obedecido por ambos os cônjuges, a realidade social denota que esta obrigação é, na verdade, uma forma de controle apenas do comportamento das mulheres e não dos homens. Não se pode olvidar o motivo pelo qual o dever de fidelidade fora criado, qual seja, controle da sexualidade feminina. Para tanto, a participação do Direito foi de suma importância. Desse modo, o passado jurídico recente ainda está presente, mesmo que atualmente a igualdade formal esteja formalizada. Atualmente, a igualdade formal não é incapaz de eliminar as diferenças no enfretamento da infidelidade. A neutralidade jurídica, neste caso, encontra-se em favor dos homens e contra as mulheres.

3.2 O DEVER DE MANTER UMA VIDA EM COMUM NO DOMICÍLIO CONJUGAL

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O dever de manter uma vida em comum no domicílio conjugal possui dois sentidos: o primeiro refere-se ao dever de moradia sob um mesmo teto; o segundo concerne ao dever de manter práticas sexuais com o cônjuge. Com relação ao dever de moradia sob o mesmo teto, a doutrina familiarista e a jurisprudência, atualmente, entendem que tal obrigação não é absoluta. Logo, os cônjuges poderiam residir em moradas diferentes por motivos de trabalho ou se assim acordassem, sem que tal fato descaracterizasse a união matrimonial. A doutrina considera, entretanto, desarrazoado deixar de residir na mesma casa, sem apresentação de um motivo justo. Neste sentido, o abando imotivado do lar conjugal consistiria, inclusive, ofensa aos deveres conjugais e causa para o ajuizamento da ação de separação-sanção, conforme previsto no artigo 1.573, do CC brasileiro. Como dito, o dever de manter uma vida em comum também impõe a prática de relações sexuais. Por relação sexual, deve ser entendida apenas a prática de conjunção carnal. Sobre o assunto, Ferreira Pinto afirma que "o débito conjugal não implica, porém, que qualquer dos cônjuges se tenha de sujeitar às fantasias sexuais do outro, por muito que os sexólogos se pronunciem a seu favor. Exigi-lo seria manifestamente coactar a liberdade individual daquele que a elas se teria de submeter" (Pinto, 1980, p. 72). Para o Direito Canônico, o matrimônio tem com finalidade precípua a procriação13, logo a conjunção carnal, ainda hoje, é da essência do casamento católico. Neste sentido, a impotência sexual do homem ou da mulher constitui uma causa para anulação do casamento católico14. Aliás, o ato sexual é o meio pelo qual se consuma o casamento religioso e a sua não implementação pode ser causa de dissolução matrimonial15. Ante à influência religiosa que ainda se encontra presente nos dispositivos legais reguladores do casamento civil, especialmente no Brasil, a conjunção carnal, para muitos teóricos, ainda faz parte da essência do casamento. Trata-se do chamado “débito conjugal”. Para Jorge Alberto Caras Altas Duarte Pinheiro (2005), o débito conjugal decorre do dever de fidelidade. Para o autor (Pinheiro, 2005), se o cônjuge não pode ter relações sexuais com terceiros estranho ao matrimônio isso imporia, por outro lado, o dever de praticar 13

Can. 1055, §1º. The matrimonial covenant, by which a man and a woman establish between themselves a partnership of the whole of life and which is ordered by its nature to the good of the spouses and the procreation and education of offspring, has been raised by Christ the Lord to the dignity of a sacrament between the baptized (Code of Canon Law, 2012, on line). 14 Can. 1084, §1º. Antecedent and perpetual impotence to have intercourse, whether on the part of the man or the woman, whether absolute or relative, nullifies marriage by its very nature. (Code of Canon Law, 2012, on line). 15 Can. 1142, §1º. For a just cause, the Roman Pontiff can dissolve a non-consummated marriage between baptized persons or between a baptized party and a non-baptized party at the request of both parties or of one of them, even if the other party is unwilling. (Code of Canon Law, 2012, on line).

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conjunção carnal com seu consorte. Assim, o dever de fidelidade teria uma dimensão negativa (vedação de práticas sexuais com terceiro) e outra positiva (débito conjugal com o consorte). Embora o débito conjugal seja recíproco, o que se percebe, numa realidade patriarcal, é uma diferença no trato da sexualidade de homens e mulheres. De um modo geral, na ideologia patriarcal, considera-se que a sexualidade das mulheres deve ser exercida para satisfazer aos desejos masculinos. Cabe, aqui, fazer referência às representações sociais do feminino e de sua sexualidade, constantemente veiculadas (por filmes, arte, publicidade etc.) como objeto de satisfação dos anseios sexuais masculino. Tais representações são feitas para atender ao que Laura Mulvey (2012, on line) chama de “male gaze” (olhar masculino). Neste quadro, a mulher não é vista enquanto sujeita do ato sexual, mas sim como objeto do prazer masculino. Sob os efeitos da ideologia patriarcal, a recusa à conjunção carnal ainda é apontada como justificativa da violência doméstica e familiar contra a mulher. Até o ano de 2005, o estupro marital não era punível, já que o casamento era uma excludente de punibilidade do crime de estupro16. Ocorre que o débito conjugal, ainda que considerado ínsito à relação matrimonial, não autoriza o seu cumprimento forçado. Ao contrário, o ato sexual deve ser livre. A manutenção de um relacionamento sexual sem voluntariedade viola a integridade psicofísica e a liberdade. A sexualidade feminina está adstrita a um sistema ideológico e institucional de controle, mediante o qual a mulher aprende a controlar os seus impulsos sexuais. Mesmo com a revolução sexual, ainda hoje a sexualidade feminina só é considerada legítima em um relacionamento heterossexual monogâmico. Todos esses fatores interferem na sexualidade das mulheres. Não se pode negar que os homens têm sido cobrados, cada vez mais, pelo cumprimento do dever sexual, mesmo porque a ereção constitui o símbolo da virilidade e da identidade masculinas. Fabíola Rohden (2009) aponta que a indústria farmacêutica já é capaz de oferecer recursos (como o Viagra) capazes de combater a falta de controle ou imprevisibilidade do corpo masculino. A autora (Rohden, 2009), com base nas publicidades veiculadas pelas indústrias, aponta que esse tipo de medicamento não é voltado para uma faixa etária específica, mas sim para todos os homens, denotando, com isso, que o seu objetivo consiste na melhora do “desempenho” sexual masculino. Cria-se, assim, um mecanismo de combate à vulnerabilidade masculina.

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Art. 107, Código Penal Brasileiro. Extingue-se a punibilidade: (...) VII - pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código; (...). Dispositivo revogado pela Lei nº 11.106, de 2005.

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Na ordem simbólica patriarcal, o débito conjugal tem significados diferentes para homens e mulheres. As mulheres são consideradas objeto do ato sexual, devendo servir aos desejos sexuais masculinos. Por outro lado, os homens devem ser capazes de manter relações sexuais porque sua masculinidade está diretamente relacionada à virilidade. A ereção não está comprometida com o prazer sexual feminino, mas sim com o significado da masculinidade.

3.3 O DEVER DE MÚTUA ASSISTÊNCIA

O dever de mútua assistência possui duas dimensões: assistência imaterial e assistência material. A assistência imaterial implica as prestações de cuidado e auxílio nos momentos difíceis, especialmente quando há doenças na família. Trata-se do exercício do cuidado, tarefa considerada essencialmente feminina. Neste sentido, os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) concluem: Mesmo com a maior participação das mulheres no mercado de trabalho e as mudanças nos padrões familiares brasileiros, a responsabilidade no cuidado dos afazeres domésticos ainda era predominantemente feminina em 2005. Entre as mulheres ocupadas 92% declararam cuidar de afazeres domésticos. De 1995 a 2005, foi observado um tímido aumento da participação dos homens no cuidado de afazeres domésticos (cerca de 2 pontos percentuais na população de 10 anos ou mais de idade) e uma variação um pouco menor entre a população ocupada (0,8 p.p.). A análise desses indicadores mostra que ainda está longe uma divisão igualitária de tarefas entre homens e mulheres no ambiente doméstico: em média as mulheres gastavam 25,2 horas semanais nessas atividades contra 9,8 horas dos homens (IBGE, 2012ª, on line).

As críticas feitas pelas feministas ao Estado de Bem-Estar Social consistem exatamente no fato deste relegar à família as tarefas de cuidado, o que se denomina de familiarismo. Aliás, neste modelo de Estado, a família exerce um papel preponderante na construção do Bem-Estar Social, o qual se baseia em três pilares: mercado, família e Estado. Andréa Sousa Gama (2008) salienta que a construção dos Estados de Bem-Estar Social se baseia na divisão sexual do trabalho, cabendo às mulheres o espaço privado-domésticofamiliar, mesmo quando exercem atividades remuneradas fora do lar. Ao submeter à família as funções de cuidado, o Estado está, na verdade, comprometendo as mulheres, já que, como demonstrado, são elas quem exercem, majoritariamente, tais funções. O problema das políticas públicas familiaristas é que elas se baseiam na falsa premissa de uma igualdade material que não existe.

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As políticas públicas estatais familiaristas17 objetivam, principalmente, proporcionar a conciliação entre a maternidade, o cuidado com os filhos e o trabalho feminino. O intuito é permitir que as mulheres possam trabalhar fora de casa, sem que isso prejudique às suas funções de cuidado. Com isso, o Estado termina por ratificar a desigualdade entre os sexos, já quem mantém as mulheres atreladas ao espaço doméstico. As políticas públicas familiaristas não objetivam introduzir os homens no espaço privado ou retirar as mulheres desta esfera; ao contrário, reforçam essa divisão. Já o dever de assistência material consiste na manutenção econômica da família, implicando provisão nas despesas relativas à alimentação, vestuário, lazer, habitação, educação e saúde. Esta obrigação recai essencialmente sobre os homens, de quem se espera o custeio da maior parte dos encargos familiares. É difícil sair dessa realidade porque, como dito, as políticas públicas não visam incluir os homens no espaço privado, nem incluir as mulheres no espaço público. O trabalho remunerado feminino é apenas coadjuvante, mas não protagonista para a renda e o sustento da família. Por conta da ideologia patriarcal ainda dominante, a sociedade ainda espera e exige que os homens ganhem mais que as mulheres, o que de fato ainda ocorre18. A realidade social mostra que não há igualdade de gênero no atendimento aos deveres de assistência imaterial e material. Na verdade, tem-se uma divisão sexual dos papéis acerca de tais tarefas, delimitando sexualmente o espaço público e privado.

3.4 O DEVER DE SUSTENTO, GUARDA E EDUCAÇÃO DOS FILHOS

O dever de sustento, guarda e educação dos filhos estabelece compartilhamento no exercício das funções parentais. Mais uma vez, tem-se uma divisão sexual do trabalho. As 17

No Brasil, debate-se o sexismo existente nas políticas públicas de assistência e nos programas sociais vinculados às políticas econômicas e de desenvolvimento. Supostamente protegendo as mulheres, ao destinar prioritariamente a elas os programas assistencialistas, o Estado ratifica a divisão sexual do trabalho, ao mantê-la atrelada ao espaço doméstico-privado. Neste sentido, ver os trabalhos dos seguintes autores: Laura Susana Duque-Arrazol (2012, on line) e Renata Adriana Rosa (2009). 18 Os dados do IBGE (2012b, on line) apontam que, em 2009, comparando a média anual de rendimentos dos homens e das mulheres, as mulheres ganharam em torno de 72,3% do rendimento recebido pelos homens. O nível de escolaridade não constitui um fator de diminuição da desigualdade salarial; ao contrário, o IBGE aponta que “tanto para as pessoas que possuíam 11 anos ou mais de estudo quanto para as que tinham curso superior completo, os rendimentos da população masculina eram superiores aos da feminina” (IBGE, 2012b, on line). A escolaridade de nível superior também não aproximou os rendimentos recebidos por homens e mulheres. Pelo contrário, o instituto constatou que a diferença acentua-se: “no caso do ‘comércio’, por exemplo, a diferença de rendimento para a escolaridade de 11 anos ou mais de estudo é de R$ 616,80 a mais para os homens. Quando a comparação é feita para o nível superior, ela é de R$ 1.653,70 para eles” (IBGE, 2012b, on line).

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pesquisas19 revelam que o espaço privado ainda pertence majoritariamente às mulheres, a quem cabe as tarefas de cuidado com a casa, com o marido e com os filhos. Por outro lado, o dever de sustento da casa e da família ainda é majoritariamente atribuído aos homens. Os encargos domésticos e com os filhos aprisionam as mulheres que, para se dedicar a si, restringem consideravelmente sua vida profissional e social. A socióloga francesa Anne-Marie Devreux assinala que, segundo suas pesquisas, “a maioria das mulheres sofre muito fortemente a contradição estrutural entre sua função reprodutora e sua função produtora” (Devreux, 2005, p. 572). A maternidade, segundo a autora, influencia diretamente a inserção, manutenção e ocupação de determinados cargos, por parte das mulheres, no mercado de trabalho. A mulher constantemente é levada a optar entre o projeto reprodutivo ou a função produtiva. Já em relação aos homens, a pesquisa da mesma cientista social apontou que a paternidade fortalece o estatuto profissional masculino. Cabe assinalar que essa desigualdade é constata na sociedade francesa, onde as idéias feministas estão bem mais sedimentadas do que no Brasil. No Brasil, os dados do IBGE (2012c, on line) apontam que a escolaridade é um dos condicionantes do comportamento da fecundidade feminina. Ou seja, quando são levadas a optar entre procriar ou estudar, as mulheres têm levado a cabo a primeira opção aumentando, com isso, a idade reprodutiva das mulheres e diminuindo a taxa de fecundidade. Noticia o instituto: Para o país como um todo, as mulheres com até 7 anos de estudo tinham, em média, 3,19 filhos, enquanto o número de filhos das mulheres com 8 anos ou mais de estudo era 1,68. Comparando os valores regionais extremos, a distância que separa a fecundidade das mulheres menos instruídas da região Norte (3,61) daquelas que possuem mais escolaridade no Sudeste (1,60) era de 2,01 filhos. Entre as mulheres com menos de 7 anos de estudo, o grupo de 20 a 24 anos de idade concentrava, em 2009, 37% da fecundidade total, e o de 15 a 19 anos, 20,3%. Já entre as mulheres com 8 anos ou mais de estudo, os grupos etários de 20 a 24 anos (25,0%) e de 25 a 29 anos (24,8%) concentravam, juntos, quase metade da fecundidade, e o grupo entre 15 e 19 anos concentrava 13,3%. Entre as mulheres com menor grau de instrução o padrão de fecundidade tende a ser mais jovem. Como resultado, a idade média com que as mulheres têm filhos também se diferenciava pela instrução: entre aquelas com menos de 7 anos de estudo, a média era de 25,2 anos. Entre as que tinham 8 anos ou mais de escolaridade, a idade média era 27,8, uma diferença de 2,6 anos (IBGE, 2012c, on line).

Em razão da divisão sexual do trabalho doméstico que ainda impera, a guarda dos filhos é majoritariamente atribuída às mulheres. Os homens encontram forte resistência para conquista a guarda, mesmo quando se demonstra disponível e com maiores condições de criar e educar os filhos. Este fato tem despertado reivindicações organizadas, mediante instituições em defesa dos pais divorciados. A busca desses pais é pela igualdade dos direitos parentais. 19

Ver o artigo de Maria Coleta Oliveira e Glaucia dos Santos Marcondes (2012, on line).

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Cabe salientar entretanto que mesmo quando ficam com a guarda dos filhos, o exercício do trabalho parental e doméstico continua desigual. A mesma socióloga francesa, Anne-Marie Devreux (2005), uma pesquisa, em França, com homens acerca da efetiva participação deles no trabalho doméstico e parental. A pesquisa mostrou que, mesmo em família monoparentais masculinas, os homens realizam menos trabalhos domésticos do que as mulheres em idêntica situação. A autora concluiu que “viver só com o filho” não tem a mesma significação para homens e mulheres e que essa “nova paternidade” é na França mais uma representação social do que uma realidade prática (Devreux, 2005, p. 579-580). De acordo com os dados apresentados por Anne-Marie Devreux (2005), os homens deleguem a terceiros (instituições, familiares ou empregados) a tarefas domésticas ou parentais. Logo, a reivindicação do compartilhamento da autoridade parental, por parte dos homens, não traz consigo a assunção real das responsabilidades de cuidados. Então, para autora (Devreux, 2005, p. 581), o compartilhamento das responsabilidades parentais não representa o signo de uma igualdade entre os sexos, mas sim uma negação da importância social do trabalho parental das mães. Nas funções relativas ao exercício do poder parental, por mais que a lei fale em igualdade, o que se percebe, portanto, é uma divisão sexual das tarefas.

3.5 O DEVER DE RESPEITO E CONSIDERAÇÕES MÚTUOS

O dever de respeito e considerações mútuos impõe o dever de não expor o outro a situações vexatórias, humilhantes, violentas etc. Novamente, visualizam-se diferenças de gênero no que concerne ao cumprimento de tal obrigação. Quando é a mulher quem ofende ao dever de respeito e considerações mútuos, o homem é facilmente colocado na posição de vítima sem qualquer contestação. No entanto, a recíproca não é verdadeira. Se a mulher é a ofendida, instantaneamente passa ser colocada na função culpada pela própria ofensa. Quando a mulher é desrespeitada, uma suspeita é logo levantada: “o que ela fez para merecer”? É necessário salientar, aqui, quão difícil é fazer com que os homens respeitem a integridade física, emocional e mental de suas mulheres. Por exemplo, em relação à violência (em sentido lato) contra a mulher, ainda há poucas denúncias (em proporção ao número, que se supõe, de mulheres que sofrem violência) e quando há denúncia, a vítima é considerada culpada pela própria violência.

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Na ordem simbólica patriarcal, considera-se “normal” que os homens maltratem suas mulheres. Aliás, as diversas formas de violência contra a mulher derivam da ordem simbólica patriarcal que privilegia o masculino. A violência, a força, a potência, a virilidade e a dominação fazem parte da construção da masculinidade. Sobre a relação entre violência e masculinidade, Heleieth Saffioti leciona: Efetivamente, a questão se situa na tolerância e até no incentivo da sociedade para que os homens exerçam sua força-potência-dominação contra as mulheres em detrimento de uma virilidade doce e sensível, portanto, mais adequada ao desfrute do prazer. O consentimento social para que os homens convertam sua agressividade em agressão não prejudica, por conseguinte, apenas as mulheres, mas também a eles próprios (Saffioti, 1999, p. 84).

No Brasil, a violência familiar contra a mulher faz parte da realidade social. Enquanto para o homem, a violência está nas ruas, para as mulheres a violência está em casa. Neste sentido, Rivane Fabiana de Melo Arantes denuncia: A maior incidência dos crimes praticados contra as mulheres se refere aos delitos integrantes da chamada violência contra a mulher, ou seja, as lesões corporais leves dolosas e culposas, ameaças, estupros, homicídios, maus tratos, constrangimento ilegal, abandono moral e intelectual, etc., não coincidentemente praticados pelos homens com quem as mesmas têm algum tipo de relação (maridos, pais, irmãos, namorados, padrastos, etc.), desvelando uma situação em que, a correlação de forças entre mulheres e homens reserva à mulher a condição de subalternidade, e aos homens, pelo menos àqueles que correspondem a um determinado padrão, a condição de poder e de controle (Arantes, 2009, p. 53).

Constantemente, a violência doméstica contra as mulheres se justifica como sanção às negligências femininas20. Mesmo a existência da Lei Maria da Pena e de Delegacias Especializadas em Atendimento às Mulheres (DEAM) não são fatores que apontam, necessariamente, para um correto enfrentamento da questão da violência de gênero, ainda que os dados apontem um aumento no número de denúncias21. Vale mencionar ainda que a interpretação da Lei Maria da Penha teve que enfrentar percalços para sedimentar o entendimento que salvaguardam os direitos das mulheres. Interpretações que limitam os direitos humanos das mulheres, a ineficiência e o despreparo das instituições estatais para combater a violência contra as mulheres ratificam as desigualdades de gênero, mantendo a ordem patriarcal dominante. É a violência simbólica alimentando a violência real.

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Neste sentido, é válido conferir a análise da violência doméstica feita pelo relatório sobre a situação de gênero no Brasil, financiado pelo Banco Mundial (Banco Mundial, 2003: 61). 21 Vale conferir o relatório do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero (2012, on line), onde é analisada a aplicação da Lei Maria da Pena.

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4 AS CONSEQUÊNCIAS DA CULPA PELA SEPARAÇÃO

Em caso de descumprimento dos deveres conjugais, o cônjuge inocente pode ajuizar uma ação de separação judicial impondo a culpa pelo fim do casamento ao outro. A culpa pelo fim do casamento é aferida em razão dos descumprimentos dos deveres conjugais, conforme descrito no artigo 1.57322, do CC. Embora o citado dispositivo não faça referência expressa aos deveres conjugais, os seus incisos descrevem exatamente os atos que constituem afronta a tais obrigações. Praticadas tais condutas, a lei impõe como sacões expressas: a perda do direito ao nome matrimonial (art. 1.57823) e a perda do direito aos alimentos civis (ar. 1.70424). O cônjuge culpado somente pode pleitear, em caso de necessidade, os alimentos naturais, jamais os civis. Os alimentos naturais são os destinados a suprir apenas aquilo que é considerado como estritamente necessário para a mantença da vida de uma pessoa. Já os chamados alimentos civis, além de garantir a sustento básico, destinam-se, também, a atender despesas que não se revelam imprescindíveis à sobrevivência, tais como as relativas à educação e ao lazer, por exemplo. Como demonstrado alhures pelos dados do IBGE, mesmo quando inseridas no mercado de trabalho e com maior nível de escolaridade, as mulheres continuam ganhando menos que os homens. O mesmo instituto demonstra que o desemprego feminino é maior que o

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Art. 1.573. Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de algum dos seguintes motivos: I - adultério; II - tentativa de morte; III - sevícia ou injúria grave; IV - abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo; V - condenação por crime infamante; VI - conduta desonrosa. Parágrafo único. O juiz poderá considerar outros fatos que tornem evidente a impossibilidade da vida em comum. 23 Art. 1.578. O cônjuge declarado culpado na ação de separação judicial perde o direito de usar o sobrenome do outro, desde que expressamente requerido pelo cônjuge inocente e se a alteração não acarretar: I - evidente prejuízo para a sua identificação; II - manifesta distinção entre o seu nome de família e o dos filhos havidos da união dissolvida; III - dano grave reconhecido na decisão judicial. §1º. O cônjuge inocente na ação de separação judicial poderá renunciar, a qualquer momento, ao direito de usar o sobrenome do outro. §2º. Nos demais casos caberá a opção pela conservação do nome de casado. 24 Art. 1.704. Se um dos cônjuges separados judicialmente vier a necessitar de alimentos, será o outro obrigado a prestá-los mediante pensão a ser fixada pelo juiz, caso não tenha sido declarado culpado na ação de separação judicial. Parágrafo único. Se o cônjuge declarado culpado vier a necessitar de alimentos, e não tiver parentes em condições de prestá-los, nem aptidão para o trabalho, o outro cônjuge será obrigado a assegurá-los, fixando o juiz o valor indispensável à sobrevivência.

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masculino25. Logo, o alvo da aplicação das consequências da culpa serão as mulheres, uma vez que são elas que, na maioria das vezes, pedem e necessitam dos alimentos. No que concerne ao nome de casado, o cônjuge “culpado” pela separação só perde o direito ao seu uso se a supressão não acarretar prejuízos. Novamente, as mulheres são, majoritariamente, o alvo de tal sanção. Ora, quase que exclusivamente, são as mulheres que mudam de nome ao casar! Pelo exposto, conclui-se que, além das diferenças sociais relativas à aplicação e exigência dos deveres conjugais, as sanções decorrentes da verificação da culpa também não atingirão com igualdade homens e mulheres. A igualdade formal, neste aspecto, só ratifica a desigualdade material.

5 CONCLUSÃO

O estabelecimento dos deveres conjugais tal como disposto no Código Civil constitui mais deveres femininos, ainda que exista a previsão da igualdade formal entre os cônjuges. A realidade material contamina a aplicação e interpretação da lei, já que os profissionais do Direito estão inseridos no contexto de dominação simbólica. Sob um falso discurso de igualdade, os dispositivos legais relativos aos deveres conjugais e às consequências da culpa pela separação acabam por ratificar a dominação masculina. Nesta seara, o Direito não foi capaz de eliminar a desigualdade. A realidade social de preconceitos contra as mulheres fragiliza a força normativa das leis reparadoras das desigualdades em razão do sexo. Só mesmo mediante a desconstrução do pensamento hegemônico masculino será possível eliminação a desigualdade de gênero. É o padrão masculino que se coloca como paradigma, desconsiderando-se o universo feminino. Pierre Bourdieu (2002) aponta que a visão androcêntrica impõe-se como neutra e dispensa os discursos que a legitimam. Assim, o Direito, pretensamente neutro, acaba repetindo e recriando a ordem desigual que, paradoxalmente, pretenderia abolir.

Segundo do IBGE (2012d, on line): “Em janeiro de 2008 a taxa de desocupação entre as mulheres foi de 10,1% e de 6,2% entre os homens. Em relação a janeiro de 2003 observou-se queda na taxa de desocupação entre homens e mulheres, sendo que entre elas essa queda foi de 3,4 pontos percentuais, enquanto que entre os homens essa redução foi de 3,2 pontos percentuais .... 25

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