UMA ANÁLISE SOBRE A INFLUÊNCIA DO PRINCÍPIO DA TERRITORIALIDADE NO ART. 8º DO REGULAMENTO ROMA II

May 27, 2017 | Autor: André Moreira | Categoria: Intellectual Property, European Law, Conflict of Laws, Rome II Regulation
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1 UMA ANÁLISE SOBRE A INFLUÊNCIA DO PRINCÍPIO DA TERRITORIALIDADE NO ART. 8º DO REGULAMENTO ROMA II André de O. S. Moreira1

SUMÁRIO: I. Introdução. II. A propriedade intelectual e o princípio da territorialidade. 2.1. A propriedade intelectual: conceitos e o seu aspecto monopolístico. 2.2. O princípio da territorialidade como pilar das relações envolvendo direitos de propriedade intelectual. III O regulamento Roma II: uma abordagem essencialmente territorialista. 3.1 O artigo 8º do regulamento Roma II – lex loci protecionis e lex loci delictis. 3.2 O dragão de 27 cabeças de van Engelen: as violações multiterritoriais. IV. Considerações finais.

I – Introdução É inegável o elevado grau de importância que detém a propriedade intelectual no atual mundo pós-moderno. Esse ramo do direito, responsável pela proteção das criações humanas e por regular os direitos imbuídos nas mesmas, deixou de ter um papel meramente coadjuvante nas políticas públicas e comercial-privativas para, hoje, agir como um dos protagonistas do desenvolvimento cultural, tecnológico, artístico e científico do homem e da sociedade do qual o mesmo faz parte, fortalecendo também a atividade de empresas e profissionais em um ambiente de intensa concorrência. A propriedade intelectual, como ferramenta de mercado, é capaz de conceder aos detentores desses direitos vantagens lícitas por meio de restrições artificiais onde a liberdade concorrencial é uma das regras máximas, isto é, um potencial atalho para o sucesso. Em recente estudo realizado pela Comissão do Parlamento Europeu, pelo Conselho Europeu, o Comitê econômico e Social Europeu e o Comitê de Regiões2, ficou registrado o alto grau de importância da propriedade intelectual para o desenvolvimento e consolidação do mercado interno europeu. De acordo com esse estudo 81% do valor das 500 maiores empresas de pesquisa e desenvolvimento advém de bens intangíveis, i.e., de bens protegidos por direitos de propriedade intelectual. Além disso, a indústria criativa na Europa empregava, em 2008, 6.7 milhões de pessoas, demonstrando a importância da mesma também para o povo europeu. 1 Mestrando pela Faculdade de Direito da UFRGS, advogado, militante da propriedade intellectual. 2 COMISSÃO EUROPEIA. Communication from the Comission to the European Parliament, the Council, the European Economic and Social Committee and the Committee of the Regions – COM(2011)287.

2 O estudo diz, ainda, que os direitos de propriedade intelectual moldam a vida diária de seus cidadãos e por tal razão merecem a melhor atenção do bloco e dos seus Estados membros para que o sustentáculo protetivo que as leis concedem não se afaste da realidade diária, e aqui reside o grande desafio do legislador da União Europeia. Assim, com base nessas observações, resta claro que o direito também deverá acompanhar o desenvolvimento da sociedade, em especial no atual cenário onde a internet quebrou diversos paradigmas da vida mundana. E é com essa nova ferramenta da pósmodernidade que a proteção emanada pelos direitos da propriedade intelectual está sendo testada, tendo em vista a proteção estritamente territorial dos mesmos, contrastante com o poder da internet que permite que os bens protegidos estejam ao alcance de qualquer um, em qualquer território e a qualquer tempo. Situações como estas são um terreno fértil para o conflito de leis, e é nesse ambiente que encontramos os primeiros passos do legislador da União Europeia almejando um tratamento harmonioso na definição da lei aplicável em casos que contenham elementos estrangeiros, algo extremamente comum quando falamos de objetos protegidos pela propriedade intelectual e do mercado atual. Dessa maneira, o objetivo deste trabalho é analisar, em um primeiro momento, o que são efetivamente os direitos de propriedade intelectual, bem como essa sua essência monopolística e territorial, focando na influência dessas questões no tratamento que o legislador outorga a casos que envolvam o direito internacional privado para definição da lei aplicável. Em um segundo momento será analisado especificamente o art. 8º do Regulamento Roma II, que trata da definição da lei aplicável para casos originados de obrigações extracontratuais relativas a direitos de propriedade intelectual, procurando entender o porquê dos elementos de conexão escolhidos pelo legislador uninonal. Por fim, será feita uma abordagem crítica das medidas adotadas por referido regulamento, analisando se houve um acerto ou uma falha, com a promulgação dessas regras de conflito de leis, em especial consideração ao ótimo funcionamento do mercado interno europeu.

II - A propriedade intelectual e o princípio da territorialidade

2.1 - A propriedade intelectual: conceitos e o seu aspecto monopolístico

Inicialmente é importante compreendermos ou apenas realçarmos alguns conceitos do

3 ramo do direito ora estudado, concedendo especial atenção aos aspectos de sua essência, já que terão grande influência nas regras que o regularão. A propriedade intelectual, nos dizeres do Padre Bruno Jorge Hammes, é o conjunto de regras (normas e princípios) que regulam os direitos sobre os produtos da atividade intelectual humana, englobando diversas disciplinas que, entre si, guardam um aspecto em comum: a imaterialidade, o fato do bem a ser protegido resultar de um exercício do intelecto e não da força física3. A Convenção que instituiu a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), agência da Organização das Nações Unidas (ONU) voltada exclusivamente para o fomento da inovação e da criatividade, coloca os seguintes institutos como abrigados pelo termo propriedade intelectual: “[...] Artigo 2º – Definições: (viii) “propriedade intelectual” deve incluir os direitos relacionados a:  obras literárias, artísticas e científicas;  interpretações dos artistas intérpretes e execuções dos artistas executantes, os fonogramas e as emissões de radiodifusão;  invenções de todos os domínios da atividade humana;  descobertas científicas;  desenhos industriais;  marcas de comércio, marcas de serviço, nomes e denominações comerciais;  proteção contra a concorrência desleal;  e todos os demais direitos resultantes de atividade intelectual nos campos da indústria, ciência, literatura e artes.”4 É possível notar que a gama de disciplinas envolvida pela propriedade intelectual é muita vasta, mas ainda assim alguns autores buscam encontrar uma subdivisão dessa categoria, como Tarcísio Queiroz Cerqueira que diz ser a propriedade intelectual dividida em dois grandes grupos: (i) a propriedade industrial e (ii) os direitos autorais5. Luiz Otávio Pimentel corrobora com essa afirmação, explicando que a primeira categoria refere-se à produção intelectual no campo da cultura, ciência e artes, e a segunda as criações ligadas ao campo industrial/comercial6. 3 HAMMES, Bruno Jorge. O direito de propriedade intelectual – subsídios para o ensino. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1996, p. 15. 4 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA PROPRIEDADE INTELECTUAL. Convention Establishing the World Intellectual Property Organization. Assinada em Estocolmo em 14/071967 e emendada em 28/09/1979, disponível em acessado em 25/05/2012. 5 CERQUEIRA, Tarcisio Queiroz. A propriedade intelectual. 2010. Disponível em acessado em 11/06/2012. 6 “As diversas produções da inteligência humana e alguns institutos afins são denominadas genericamente de propriedade imaterial ou intelectual, dividida em dois grandes grupos, no domínio das artes e das ciências: a propriedade literária, científica e artística, abrangendo os direitos relativos às produções intelectuais na literatura, ciência e artes; e no campo da indústria: a propriedade industrial, abrangendo os direitos que têm por objeto as invenções e os desenhos e modelos industriais, pertencentes ao campo industrial”. PIMENTEL,

4 Em escorreita síntese é necessário dizer que buscamos não tratar a subdivisão apresentada acima como definitiva e incontestável, especialmente porque diversas das disciplinas observadas no art. 2º da Convenção da OMPI, se estudadas individualmente e com um pouco mais de profundidade, poderão enquadrar-se em ambas categorias ou até mesmo em nenhuma delas. O que importa dessa separação defendida pelos autores citados alhures é o reconhecimento das diferentes formas de aquisição e proteção dos direitos da propriedade intelectual cuja essência assemelha-se mais a cada uma das categorias. A titularidade sobre os direitos autorais e os direitos conexos, por exemplo, é adquirida com a própria criação da obra, surge no ato da concepção7, independente de um registro chancelando tal aquisição, diferentemente daqueles institutos típicos da propriedade industrial, como as marcas, patentes, desenhos industriais e indicações geográficas, que dependem de um registro outorgado pelo Estado, após a análise de determinados requisitos, concedendo a titularidade ao solicitante. Deve ficar clara, para este trabalho, essa dicotomia existente, onde alguns dos institutos da propriedade industrial são regidos por um sistema declarativo de direito, e outros por um atributivo, conforme bem delineou Milton Lucídio Leão Barcellos.8 No entanto, além da imaterialidade citada anteriormente, existe outro fundamento existente em todos os direitos de propriedade intelectual: o direito de exclusividade de uso conferido ao seu titular. Esse privilégio é justificado por ser uma contrapartida aos investimentos suportados pelo criador (tempo, mão de obra, dinheiro) e pela própria natureza do bem protegido, conforme bem coloca Dênis Borges Barbosa: “Das muitas formas possíveis de estímulo ao investimento criativo, a história real das economias de mercado inclinou-se por um modelo específico: aquele que dá ao criador ou investidor um direito de uso exclusivo sobre a solução tecnológica, ou sobre a obra do espírito produzida. […] Luiz Otávio. Direito industrial – as funções do direito de patentes. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 126. 7 “Entretanto, a doutrina faz a distinção entre as formas de aquisição da titularidade: pela via originária ou pela derivada. A via originária é aquela pela qual se dá efetivamente por meio da criação da obra intelectual, sendo seu titular aquele que, mediante o exercício de sua intelectualidade, concebeu a obra, de forma criativa e original, colocando-a para o mundo. Já a derivada é aquela que se dá pela transferência dos direitos do autor, via negócio jurídico, do qual só podem ser objeto os direitos patrimoniais, ou pela via sucessória, que inclui também alguns dos morais”. NEVES, Alessandra Helena. Direito de autor e direito à imagem: à luz da Constituição Federal e do código civil. Curitiba: Juruá, 2011, p. 137. 8 “Não se pode esquecer que o direito sobre um desenho enquanto tutelado pelo direito autoral nasce no momento da sua concepção, consistindo o registro uma mera formalidade (declarativo) para fins de prova de autoria e data da criação, sendo que o direito sobre um desenho enquanto tutelado pelas normas de propriedade industrial nasce a partir do registro (sistema atributivo)”. BARCELLOS, Milton Lucídio Leão. As bases jurídicas da propriedade industrial e a sua interpretação. Tese de mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2006, p. 104.

5 Por que exclusividade, e por que artificial? Por uma característica específica dessas criações técnicas, abstratas ou estéticas: a natureza evanescente desses bens imateriais. Quando eles são colocados no mercado, naturalmente se tornam acessíveis ao público, num episódio de imediata e total dispersão. Ou seja, a informação ínsita na criação deixa de ser escassa, perdendo a sua economicidade.”9 Ao buscarmos as raízes desse direito de exclusividade concedido às criações humanas, encontramos na Idade Média privilégios parecidos que eram outorgados a determinadas pessoas. Allesandra Neves nos explicou que por volta do século XVII alguns monarcas e senhores feudais, quando do uso mais extensivo da imprensa, passaram a conceder monopólios e privilégios de exclusividade territorial para determinados editores explorar e comercializar as obras editadas10. Em referido momento histórico, portanto, já fora reconhecido que seria necessária desenvolver um mecanismo para proteger aquele que investiu no desenvolvimento de algo novo, dando ao mesmo um privilégio de exclusividade para que ao menos pudesse recuperar seus investimentos. Nesse sentido, esse mecanismo artificial da exclusividade, como bem salientou Dênis Borges Barbosa, mostrava-se como uma medida necessária em face ao cenário natural de desestímulo à criação, pois, como nos falou Thomas Jefferson, um dos pais fundadores da nação norte americana: “[...] se a natureza fez alguma coisa menos suscetível do que as outras de ser apropriada exclusivamente, é a ação do poder de pensamento chamado de ideia, a qual um indivíduo pode possuir exclusivamente desde que ele a mantenha para si, mas no momento que ela é divulgada, ela se força a ser possuída qualquer um, e o possuidor não consegue desapossar-se dela.”11 A partir dessa concepção, Dênis Borges Barbosa, ao estudar as opções que teria o Estado para estimular a criação, tendo em vista que sem a adoção de uma política protetiva as pessoas não teriam interesse em criar e o Estado deixaria de crescer tecnológica, artística e cientificamente, vê que duas foram as alternativas exploradas ao longo da história12:a primeira 9 BARBOSA, Dênis Borges. Nota sobre as noções de exclusividade e monopólio em propriedade intelectual. 2005, p. 1-2. Disponível em acessado em 20/05/2012. 10 NEVES, op. cit., p. 118. 11 UNIVERSITY OF CHICAGO. The Founders' Constitution, Volume 3, Artigo 1, Seção 8, Cláusula 8, Documento 12, disponível em acessado em 21/07/2012. 12 “Nas situações em que a criação é estimulada ou apropriada pelo mercado, duas hipóteses foram sempre suscitadas: ou a da socialização dos riscos e custos incorridos para criar; ou a apropriação privada dos resultados através da construção jurídica de uma exclusividade artificial, como a

6 foi a socialização dos riscos e custos para criar. Ainda que coerente, o estímulo observado nessa primeira opção ainda não é tão grande assim, diferente da segunda alternativa – a criação de uma exclusividade artificial, permitindo ao criador apropriar-se dos resultados da exploração se sua criação e impedindo terceiros de usufruírem da mesma. Esta mostrou-se preferencial para as economias de mercado, e é sem dúvida a forma adotada pela maciça maioria das nações da atualidade. Assim, o Estado passa a exercer papel de vital importância no estímulo à atividade criativa, pois será sua função, então, intervir e conceder um “monopólio” ao idealizador da criação, seja por instituir uma lei que define a existência de um direito de exclusividade com o nascimento da obra (direitos autorais), seja pela concessão de um título de exclusividade (propriedade industrial). Essa exclusividade artificial pode, outrossim, ser chamada de monopólio, ainda que diferencie-se em parte da noção comum sobre esse tipo de instituto jurídico quando referimo-nos à exploração de determinados serviços ou produtos. Dênis Borges Barbosa faz essa distinção, ressaltando o fato de que o monopólio da propriedade intelectual, como no caso de patentes, é instrumental, pois torna exclusivo o uso de um determinado meio para exploração do mercado, não impedindo que terceiros, que desenvolvam uma nova solução técnica com os mesmos fins, ingressem no mesmo espaço comercial13. Essas concessões monopolísticas passam, por óbvio, por um exame do próprio Estado que as concederá, pois em determinadas situações a outorga de um privilégio dessa dimensão pode não ser interessante ao Estado e à própria sociedade, como o caso das obras já contidas em domínio público, as invenções nocivas à humanidade, os métodos de tratamento de saúde14, entre outros. Isso mostra que há uma convergência de interesses público e privado da patente, ou do direito autoral, etc.. É desta última hipótese que falamos inicialmente como sendo o modelo preferencial das economias de mercado”. BARBOSA, op cit., p. 9. 13 “Mas exclusividade passa a haver – se o Direito o quis em geral e reconheceu no criador os pressupostos de aquisição do benefício. Há mesmo assim um monopólio, num certo sentido. Mas é necessário entender que nos direitos de Propriedade Intelectual - na patente, por exemplo – o monopólio é instrumental: a exclusividade recai sobre um meio de se explorar o mercado, sem evitar que, por outras soluções técnicas diversas, terceiros explorem a mesma oportunidade de mercado”. BARBOSA, op. cit., p. 10. 14 A Lei 9.279/96, a Lei da Propriedade Industrial no Brasil contém um rol de criações que não podem ser patenteadas, isto é, que não podem ser apropriadas exclusivamente por uma pessoa ou empresa, haja vista o ineresse maior que existe sobre esse tipo de inventos. É o que se observa no art. 18, que diz não ser patenteável: I - o que for contrário à moral, aos bons costumes e à segurança, à ordem e à saúde públicas; II - as substâncias, matérias, misturas, elementos ou produtos de qualquer espécie, bem como a modificação de suas propriedades físico-químicas e os respectivos processos de obtenção ou modificação, quando resultantes de transformação do núcleo atômico; e III - o todo ou parte dos seres vivos, exceto os microorganismos transgênicos que atendam aos três requisitos de patenteabilidade - novidade, atividade inventiva e aplicação industrial - previstos no art. 8º e que não sejam mera descoberta.

7 nos bens protegidos pela propriedade intelectual, pois são os mesmos importantes para o Estado (além dos registros em órgãos administrativos gerarem taxas e, portanto, renda, também contribuem para o desenvolvimento da nação, também transformado em tributos com o aumento da economia), para o indivíduo (que esforça-se para criar algo novo e, assim, pode ser remunerado por sua atividade) e para a sociedade, (que passa a usufruir dos avanços obtidos). Exemplos dessa importância atualmente outorgada à proteção da propriedade intelectual pode ser vista no Comunicado 287 (2011) da Comissão Europeia15, onde consta claramente que a proteção a inventos é crucial para o desenvolvimento de novos medicamentos, a das marcas é importante para o investimento das empresas na qualidade de seus produtos e serviços, devido à fidelidade marcária, e a proteção de direitos autorais estimula a criação de conteúdos criativos, como músicas, livros, obras científicas e filmes. Dessa forma, e com base nessas justificativas, o Estado passa a conceder monopólios temporários aos criadores, isto é, direitos de exclusividade temporários para a exploração dos produtos originados do esforço intelectual aplicado, limitados, obviamente, ao território governado por esse poder concedente.

2.2. O princípio da territorialidade como pilar das relações envolvendo direitos de propriedade intelectual

Da mesma forma que os privilégios outorgados pelos senhores feudais ficavam adstritos ao feudo onde os mesmos detinham poder, os atuais direitos de exclusiva da Propriedade Intelectual encontram-se limitados ao território do país que os concede e o regula, ensaiando assim uma noção do princípio da territorialidade ora estudado. Newton Silveira e Karin Grau-Kuntz trazem em sua obra uma conceituação importante acerca de referido princípio, analisando especificamente o caso de uma marca de produto e/ou serviço: “O princípio da territorialidade significa que a existência e a proteção de uma marca encontra-se limitada ao território do Estado que a concedeu, ou seja, a proteção nacional e a internacional de um mesmo sinal são totalmente independentes, sendo irrelevante a coincidência de seus titulares ou não. Assim, a situação jurídica da marca no 15 COMISSÃO EUROPEIA. COM (2011) 287 - Communication from the commission to the european parliament, the council, the european economic and social committee and the committee of the regions. P. 5. Disponível em acessado em 12/05/2012.

8 estrangeiro e o direito alienígena não afetam, pelo menos diretamente, o direito nacional ou as decisões nele calcadas.”16 Portanto, a propriedade intelectual, ou mais especificamente o direito de exclusividade a ela inerente, é o resultado de uma intervenção estatal, um mecanismo artificialmente criado pelo Estado conforme os interesses analisados na primeira parte deste capítulo e, por assim ser, ficará restrito ao ambiente físico que o reconhece (princípio da territorialidade). Alexander Peurket explica esses efeitos do princípio da territorialidade, tido pelo autor como pilar do direito da propriedade intelectual, destacando ainda que nenhum objeto intangível é protegido por um direito uniforme mundial, muito pelo contrário, disse referido autor que invenções, obras de arte, marcas, entre outros institutos, encontram-se hoje sujeitos a mais de 150 diferentes direitos territoriais de diferentes origens nacionais e regionais. Peukert traça um paralelo deveras ilustrativo ao dizer que o número de legislações de propriedade intelectual existentes é tão grande quanto os diferentes institutos que compõem essa área do direito17. Jean-Sylvestre Bergé complementa as análises acima ao observar que muitos dos direitos de propriedade intelectual adotam um sistema atributivo de direito (propriedade industrial, por exemplo), ou seja, passam por um procedimento administrativo público para que sejam concebidos, o qual é iniciado mediante um pedido feito perante uma entidade pública. Assim, para que o direito nasça e se consolide, necessária se faz a proteção território por território, de forma independente. Cita o autor que para a proteção de uma patente pela lei francesa, pressupõe-se que essa patente tenha sido depositada perante autoridades francesas18, 16 GRAU-KUNTZ, Karin; SILVEIRA, Newton. A exaustão do direito de marcas na União Européia e o Mercosul. In: Revista da ABPI - Associação Brasileira da Propriedade Intelectual. São Paulo: Ed. Bandeirantes, nº 25, Nov./Dez., 1996, p. 18. 17 “Its fundamental objective dimension means that an IP right is limited to the territory of the state granting it. The exclusive right can only cover activities occurring within the respective territory. No intangible subject matter is protected by one uniform right applying world-wide. Instead, technical inventions, works of literature and arts, signs, etc. are subject to a bundle of possibly more than 150 territorial rights of national or regional provenance. These rights are independent from each other so that an invention, work, etc. may be protected in one country, but unprotected in another. There are as many property legislations as there are IP rights”. PEUKERT, Alexander. Territoriality and extraterritoriality in intelletual property law. 2011, p. 2. Disponível em: acessado em 23/04/2012. 18 “This first reason is broadly supported by the specific mode in which an intellectual property right is acquired. Very often, it is the subject of public procedures. A right exists only if one is claimed. And as the claim is initiated with regard to national authorities, the right is protected territory by territory and in an independent manner. For example, the protection of a patent by French law presupposes that an application was filed with French authorities. The same applies to a patent in Germany, which is only granted further to a request to the German authorities”. BERGÉ, Jean-Sylvestre. The territoriality principle and intelectual property. 2010, p. 4. Disponível em acessado em 20/04/2012.

9 e assim por diante. No entanto, essa essência territorial do direito de propriedade industrial trouxe consigo alguns pontos negativos, como a coexistência de legislações nacionais extremamente diferentes entre si. Enquanto o mercado de interesse era apenas o interno, tal disparidade legislativa não importava tanto, mas quando o mercado externo tornou-se atrativo e de mais fácil acesso, no final do século XIX, um sistema de tratados internacionais multilaterais foi adotado, garantindo entre os signatários tratamentos igualitários entre os detentores de direitos da propriedade intelectual oriundos dos estados signatários19. É possível citar como produtos desse sistema a Convenção da União de Paris, firmada em 1883, referente aos direitos de propriedade industrial e concorrência desleal, bem como a Convenção de Berna de 1892, tratando dos direitos autorais. Enganam-se, todavia, aqueles que pensam que esse processo de internacionalização do direito da propriedade intelectual abandonaria a sua essência territorial. O que ocorreu foi exatamente o inverso disso, pois os tratados citados anteriormente vieram confirmar que a proteção desses direitos é limitada territorialmente, como nos disse Peukert: “Thus, international law in the field of IP does not overcome but confirm that IP protection is limited territorially and personally”20. As convenções supracitadas não apenas mantiveram o princípio da territorialidade em pleno efeito, como agregaram novos princípios a ele relacionados, como o princípio do tratamento nacional21 e o princípio da independência dos 19 “To overcome these restrictions and grant rightholders protection on an international scale, a system of multilateral conventions has been established since the late 19th century. Their most important features are substantive minimum rights and the principle of national treatment according to which each country shall accord the rights provided for in the conventions to the nationals of other contracting states”. PEUKERT, op cit., p. 3. 20 Ibidem, p. 3-4. 21 “A regra do tratamento nacional, em matéria de propriedade intelectual, nasce com a Convenção da União de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial de 1884 (CUP). Para melhor descrever o efeito de tal regra, basta citar o relatório do delegado brasileiro à Conferência Diplomática que conclui tal Convenção, o Conde de Villeneuve: O art. I do “Projecto” adoptado implica revogação de todas as disposições Iegaes que não concedem aos estrangeiros tratamento identico ao dos reinicolas. Assim, por exemplo, o § IV do art. X da nossa lei de 28 de agosto de 1830, relativa aos privilegios, declara nullo e sem effeito todo privilegio, si o inventor ou descobridor já tiver obtido privilegio em paiz estrangeiro para a mesma Invenção ou descoberta, embora nesse caso possa o introductor obter o premio de que trata o art. III da mesma lei . Semelhante disposição não existe no projecto de lei apresentado por V. Ex. em data de 26 de agosto no anno corrente, o qual, pelo contrario, reconhece formalmente no seu art. II e no § III do art. III o principio adoptado pela Conferencia. Do mesmo modo o art. XVII da lei de 23 de outubro de -1875 sobre as marcas de fabrica e do commercio terá de ser revogado. Com effeito, esse artigo só concede protecção aos estrangeiros ou nacionaes cujos estabelecimentos industriaes ou commerciaes forem situados fúra do Brazil, si nos paizes em que residem houver convenções diplomaticas que concedamreciprocidade para as marcas brazileiras. Ora, o art. III do Projecto de convenção equipara os subditos ou cidadãos dos Estados contratantes, aos dos Estados que não fizerem parte da União, comtanto que se achem domiciliados ou tenham estabelecimentos industriaes ou commerciaes no territorio de algum dos Estados da União.

10 direitos nacionais22. Assim, com base nessa essência fortemente enraizada no princípio da territorialidade, Nerina Boschiero justifica o porquê do direito internacional privado, no que tange a conflito de leis, não ter se desenvolvido muito no certame do direito da propriedade intelectual: “Private international law and intellectual property have a long history of neglected or even avoided relationships. An historical explanation is that as far back as the late nineteenth century the vast majority of intellectual property disputes were wholly domestic in nature: ownership or infringement issues hadn’t the potential of reaching the whole world, concerning parties established within a single national territory and rights conferred by the law of that territory and infringements that mostly took place there. Cross-border or transnational IP disputes, involving foreign elements, were rare and resolved by the courts through the standard principles embodied into the multinational treaties establishing an international protection system for intellectual property, namely the principle of territoriality reinforced by the principle of national treatment and independence of national rights.”23 Alexander Peurket contribui com essa análise feita pela autora acima, dizendo que a regra principiológica da territorialidade, imbuída tanto no direito nacional como no internacional, afetou drasticamente as regras de conflito de leis para a propriedade intelectual, citando o autor alguns julgados do Reino Unido 24 onde as Cortes negaram-se a analisar casos envolvendo direitos de propriedade intelectual estrangeiros sob pena de estarem interferindo Na redação da CUP hoje em vigor, o princípio assim se lê: "cidadãos de cada um dos países contratantes gozarão em todos os demais países da União, no que concerne à Propriedade Industrial, das vantagens que as respectivas Leis concedem atualmente ou vierem posteriormente a conceder aos nacionais" (artigo II). A Convenção porém, vai além: “tudo isso sem prejuízos dos direitos previstos pela presente Convenção”. Ou seja, quando a Convenção der mais direitos aos estrangeiros do que os derivados da Lei nacional, prevalece a Convenção. Este é o chamado “princípio do tratamento nacional”. Esta é a regra mais importante da CUP. A Convenção não tenta uniformizar as leis nacionais segundo padrões mínimos, objetivo do recente acordo TRIPs, nem condiciona o tratamento nacional à reciprocidade. Pelo contrário, prevê ampla liberdade legislativa para cada País, exigindo apenas paridade: o tratamento dado ao nacional beneficiará também o estrangeiro”. BARBOSA, Dênis Borges. O Princípio de Não-Discriminação em Propriedade Intelectual, 2004, p.8-9. Disponível em acesado em 12/07/2012. 22 “Esse princípio está disposto no art. 4o bis da CUP e complementa o princípio da territorialidade. Por ele se define que as patentes concedidas (ou os pedidos depositados) em quaisquer dos paísespertencentes à União são independentes das patentes concedidas (ou dos pedidos depositados) correspondentes em qualquer outro país signatário ou não da convenção. Tal dispositivo tem caráter absoluto. A independência está relacionada às causas de nulidade e de caducidade, também do ponto de vista da vigência”. PARANAGUÁ, Pedro, REIS, Renata. Patentes e criações industriais. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009, p. 36-37. 23 BOSCHIERO, Nerina. Intellectual property in the light of the european conflict of laws. 2012, p. 1. Disponível em acessado em 21/04/2012. 24 “(...)we think that there are good reasons for holding that foreign intellectual property rights, registered or not, should not be justiciable here in the absence of a treaty governing the position.” UK Court of Appeal, Lucasfilm v. Ainsworth, (2009) EWCA Civ 1328.

11 as decisões de outros Estados e, dessa forma, violando o princípio da territorialidade e também a soberania das nações. Portanto, é possível notar que a influência do princípio da territorialidade em questões envolvendo o direito internacional privado de casos de propriedade intelectual é considerável, pois enquanto inexistiam regras tratando do foro competente para análise de ações versando sobre os mesmos, as Cortes nacionais já davam indícios de que deveriam ser os Tribunais ligados à origem do direito discutido aqueles competentes para lidar com tais feitos. O regulamento Bruxelas I (Regulamento CE nº 44/01) é uma reflexo claro desse posicionamento e da influência do princípio ora discutido, já que em referido instrumento de direito internacional privado foi reconhecido no art. 22 (4)25 a competência exclusiva para questões de validade e registro do Tribunal do estado membro de onde o direito de propriedade intelectual, regido por um sistema atributivo (dependentes de registro), nasceu. Ademais, a inteligência do dispositivo citado anteriormente foi inclusive aplicada em questões onde a validade do direito tenha sido suscitada incidentalmente, em matéria de defesa de uma ação de violação, conforme observado no caso C-4/0326 (Gesellschaft für Antriebstechnik mbH & Co. KG v. Lamellen und Kupplungsbau Beteiligungs KG (GAT v. LuK)). Ao que tudo indica, portanto, o princípio da territorialidade segue em plena aplicação, não apenas dentro do próprio âmbito da propriedade intelectual, mas também no direito internacional privado que a envolve. Contudo, Nerina Boschiero nos faz um alerta sobre o atual panorama global, dizendo que nos últimos 30 anos as coisas mudaram drasticamente – enquanto as leis nacionais e internacionais seguem apegadas ao princípio da territorialidade, a realidade mundial cada vez mais se desfaz dessa noção como consequência do surgimento de novas tecnologias, especificamente o ambiente virtual criado pela internet. A autora diz que o 25 Artigo 22º - Têm competência exclusiva, qualquer que seja o domicílio: (...) 4. Em matéria de inscrição ou de validade de patentes, marcas, desenhos e modelos, e outros direitos análogos sujeitos a depósito ou a registo, os tribunais do Estado-Membro em cujo território o depósito ou o registo tiver sido requerido, efectuado ou considerado efectuado nos termos de um instrumento comunitário ou de uma convenção internacional. 26 “Proponho que o Tribunal de Justiça responda da seguinte modo à questão submetida pelo Oberlandesgericht Düsseldorf: «O artigo 16.°, n.°4, da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial determina a competência judiciária quando, num processo, é invocada a questão da validade ou da nulidade de uma patente ou de outro direito de propriedade industrial referido nesta disposição. O referido artigo é, por conseguinte, aplicável quando o demandado num processo por violação de patente ou o demandante num processo de declaração de inexistência de violação de patente deduzam a excepção da invalidade ou da nulidade dessa patente.»”. Tribunal de Justiça da União Européia, Gesellschaft für Antriebstechnik mbH & Co. KG v. Lamellen und Kupplungsbau Beteiligungs KG (GAT v. LuK), C-4/03.

12 choque entre o fragmentado mundo territorial da propriedade intelectual e o universo global do cyberespaço, onde não existem territórios nacionais separados é evidente27. Bergé também reconhece esse fenômeno, incluindo o mesmo dentro do que definiu como “Ataques modernos à territorialidade”28, defendendo que a prevalência do princípio da territorialidade deve ser repensada em face ao atual estado de troca de informações virtuais e do comércio global que já não mais permitem uma abordagem como essa. Nesse sentido, fica claro que o princípio da territorialidade também afetará a definição de lei aplicável em casos envolvendo disputas transnacionais de direitos de propriedade intelectual e, ainda que a realidade atual caminhe para um espaço único, isto é, sem limites territoriais, a tradição histórica desse ramo do direito ainda é muito forte, fazendo com que as questões que envolvam esse ramo jurídico ainda bebam insaciavelmente da fonte da territorialidade. Não obstante, pela lógica observada acima, em eventual conflito de leis a única norma que mostrar-se-ia aplicável deveria ser aquela que deu origem ao instituto discutido, sob pena de violação do princípio da territorialidade. Assim, será possível encontrarmos hoje saídas inovadoras para essa situação, onde a realidade atual fosse levada em conta e o princípio da territorialidade amenizado? É na legislação unional europeia, portanto, vanguardista e icônica na área de conflito de leis, que buscaremos um norte para a definição de lei aplicável a casos de direitos de propriedade intelectual nesse estado de “ataques modernos” ao princípio de territorialidade. 27 “However, in the last 30 years (since 1990’s) things dramatically changed. The international intellectual property law, firmly rooted on the notion of territoriality, started to face new challenges: national boundaries have lost their significance as a consequence of the emergence of new forms of technology; specifically, the digital networked environment (after the satellites) has put the spotlight on the “international” aspects of IPRs, that have been neglected too long time, by transcending and sweeping the territorialism inherited from the historical tradition of privileges. It has changed the nature of intellectual property litigations by creating scope for multiterritorial simultaneous communication of protected works and trade symbols, and consequently increasing the risk of ubiquitous infringements of intellectual property rights and of globally widespread piracy. The clash between the territorially fragmented world of intellectual property and the global universe of cyberspace, where there are no separate national territories, is evident. The potential impact of the alleged infringement of unregistered intellectual property rights over the five continent and in every State of the world, combined with the greater flow of patented inventions and other registered industrial property rights, increased thereby transnational cases that require courts to adjudicate the effect of foreign activities or to interpret foreign laws”. BOSCHIERO, op cit., p. 1. 28 “Modern “assaults” on territoriality Territoriality and modern times – The modern evolution of the regulatory, technical and practical environment illustrates that the territoriality principle is being assaulted by the development of uniformized law, in particular in the European context, with the generalization of the phenomenon of ubiquity caused by the massive use of digital networks and the growing privatization/contractualization of systems to ensure protection. (…) For example, a strictly territorial approach to the placing of an infringing work online using nothing more than a computer instantaneously raises the question of appropriate ways to protect copyrights when the prejudice to the owner is governed by as many national laws as there are territories in which the work can be downloaded”. BERGÉ, op. cit., p. 5.

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III - O regulamento Roma II: uma abordagem essencialmente territorialista

3.1. O artigo 8º do regulamento Roma II – lex loci protectionis e lex loci delictis

O regulamento Roma II (Regulamento CE nº 864/2007), em vigor desde 11 de janeiro de 2009, objeto principal da análise do presente trabalho, surge como uma sequência dos prévios esforços de harmonização do direito internacional privado europeu, conforme constatado pelos membros do renomado grupo de Hamburgo de direito internacional privado29, composto por expoentes como Felix Blobel, Jana Essebier, Jan von Hein, entre outros estudiosos. Referido instrumento complementa a malha unional normativa já tecida pelos Regulamentos Bruxelas I, que trata da competência jurisdicional e do reconhecimento de decisões estrangeiras, e Roma I, que abarca a definição da lei aplicável em casos envolvendo obrigações contratuais30, para regular o conflito de leis em obrigações extracontratuais, dentre as quais se encontram as violações a direitos de propriedade intelectual, previstas no art. 8º de referido regulamento. O regulamento Roma II, portanto, aplica-se, nos dizeres de Symeonides, “às obrigações extracontratuais em matéria civil e comercial, em situações envolvendo um conflito de leis, isto é, situações que possuem contatos multiestatais do tipo e importância que implicam nas leis de mais de um estado.”31. O art. 2º do estudado regulamento define, ainda, quais atos dariam nascimento ao dano e, portanto, à obrigação extracontratual: “Para efeitos do presente regulamento, o dano abrange todas as consequências decorrentes da responsabilidade fundada em acto lícito, ilícito ou no risco, do enriquecimento sem causa, da 29 “In May 2002, the Directorate-General for Justice and Home Affairs of the European Commission published a “Consultation on a Preliminary Draft Proposal for a Council Regulation on the Law Applicable to NonContractual Obligations”, hereinafter entitled EC Draft Proposal (DP).1 This Draft Proposal is another important step in the series of efforts to codify the private international law of obligations within the European Community”. HAMBURG GROUP FOR PRIVAT INTERNATIONAL LAW. Comments on the European commission's draft proposal for a council regulation on the law applicable to non-contractual obligations. 2002, p. 1. Disponível em acessado em 21/04/2012. 30 Assim falou Anita Frohlich: “The proposed preliminary draft of Rome II was a sequel to previous harmonization efforts in the area of conflict of laws, in particular the “Brussels I” Regulation and the “Rome I” Convention”. FROHLICH, Anita B. Copyright infringement in the internet age – primetime for harmonized conflict -of-laws rules?. 20/04/2012, p. 37. Disponível em acessado em 17/04/2012. 31 “It applies to non-contractual obligations in “civil and commercial matters,” in “situations involving a conflict of laws,” namely, situations having multistate contacts of the kind and pertinence that implicate the laws of more than one state”. SYMEONIDES, Symeon C. Rome II and tort conflicts:a missed opportunity. 2008, p. 8. Disponível em acessado em 21/04/2012.

14 negotiorum gestio ou da culpa in contrahendo”. Assim, em casos onde nasçam obrigações extrancontratuais decorrentes das situações acima identificadas, envolvendo elementos estrangeiros que possam tornar discutível qual lei aplicar-se-á ao caso, o Regulamento Roma II surge como ferramenta apaziguadora e harmonizadora, criando um procedimento próprio onde, como regra geral para definição da lei aplicável, instituiu em seu art. 4º32 a regra da lex loci damni (lei do local do dano), seguido por algumas exceções como a residência habitual das partes e uma válvula de escape consubstanciada pelo princípio da savigniano da lei que tenha uma conexão mais próxima com o caso33. No que tange aos direitos de propriedade intelectual, a minuta preliminar do regulamento estudado não continha previsão específica acerca das regras para definição da lei aplicável em violações desses direitos, o que as incluia implicitamente na regra geral prevista. Anita Frohlich explica que essa inclusão implícita foi recebida com severas críticas de todos os lados34 - enquanto os acadêmicos reivindicavam a determinação de um artigo específico no futuro texto do regulamento Roma II, os profissionais atuantes da área diziam que todas as questões relativas a conflito de leis na área da propriedade intelectual deveriam ser reguladas em um instrumento próprio, não apenas aquelas referentes à responsabilidade civil. De qualquer maneira, o entendimento comum desses dois grupos era um só: essa área do direito é dominada pelo princípio da territorialidade e, portanto, merecedora de um regramento específico e diferente da regra geral definida no Roma II. Assim, apesar das diversas críticas e sugestões para o novo texto, foi o trabalho realizado pelo grupo de Hamburgo de direito internacional privado35 que mais prevaleceu, sendo os mesmos um dos principais idealizadores do atual artigo 8º do Roma II, o qual definiu que: 32 1. Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável às obrigações extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em acto lícito, ilícito ou no risco é a lei do país onde ocorre o dano, independentemente do país onde tenha ocorrido o facto que deu origem ao dano e independentemente do país ou países onde ocorram as consequências indirectas desse facto. 33 “The general rule of Article 4 is the lex loci delicti, which is defined as the law of the place of the injury (lex loci damni). The rule is followed by an exception in favor of the parties’ common habitual residence, and by a general escape clause based on the “closer connection” principle”. SYMEONIDES. op cit., p. 8. 34 “This implicit inclusion of intellectual property infringement cases was met with criticism. Interestingly, there seemed to be a clear line between representatives of business and scholars. While the latter generally welcomed an inclusion of intellectual property into a future Rome II regulation, businesses advocated for a separate regulation on intellectual property choice-of-law issues in general, i.e. not limited to torts. Overall, the critics mainly argued that the area of intellectual property law was dominated by the principle of territoriality. As a consequence, this area of law should be subject to special rules, distinct from those for general choice-of-law cases”. FROHLICH, op. cit., p. 31. 35 HAMBURG GROUP FOR PRIVATE INTERNATIONAL LAW, op cit., p. 22-25.

15 Violação de direitos de propriedade intelectual 1. A lei aplicável à obrigação extracontratual que decorra da violação de um direito de propriedade intelectual é a lei do país para o qual a protecção é reivindicada. 2. No caso de obrigação extracontratual que decorra da violação de um direito de propriedade intelectual comunitário com carácter unitário, a lei aplicável a qualquer questão que não seja regida pelo instrumento comunitário pertinente é a lei do país em que a violação tenha sido cometida. 3. A lei aplicável ao abrigo do presente artigo não pode ser afastada por acordos celebrados em aplicação do artigo 14º. As razões suscitadas pelos renomados estudiosos do grupo de Hamburgo auxiliaram no convencimento do legislador unional, que promulgou o texto final do Roma II com as regras acima detalhadas. Dentre as razões apontadas, entendemos ser importante elencá-las, resumidamente, para entendermos parte dos motivos que resultaram no art. 8º de referido regulamento36: (i) em quase todos os estados membros e nas convenções internacionais as violações de direitos de propreidade intelectual são regidas pela lex loci protecionis (lei do local onde a proteção é reivindicada)37 e ela é considerada uma regra especial para os direitos de propriedade intelectual oriunda do princípio da territorialidade, o que supera as regras gerais do direito internacional privado; (ii) a propriedade intelectual segue o princípio da territorialidade e portanto não pode ser regulada pela lei de uma país estranho à sua criação; (iii) as convenções internacionais contemplam o princípio da territorialidade (Convenção da União de Paris, Convenção de Berna, acordo TRIPS); e (iv) um Estado não pode questionar os direitos de propriedade intelectual concedidos por outro Estado38. Importante destacar que o regulamento Roma II (art. 8º (2)) também abordou as questões referentes aos direitos de propriedade intelectual comunitários39, isto é, a marca 36 Ibidem, p. 22-23. 37 Fabrício Bertini Pasquot Polido também identifica essa tendência, e afirma que “toda a sistemática de solução de conflitos de lei no espaço envolvendo questões sobre bens imateriais orienta-se pela lei do país no qual a proteção dos direitos é reclamada (lex loci protecionis) e, portanto, associa a solução dos conflitos de leis no espaço em matéria de PI ao importante princípio da territorialidade” POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot. Reavaliando os métodos clássicos de direito internacional privado na interface com os direitos de propriedade intelectual - I. In: Revista da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual-ABPI. Nº 94, maio/jun. 2008, p.19.). 38 Aqui Fabrício Polido também demonstra sintonia com os argumentos sustentados pelo grupo de Hamburgo, afirmando que: “Se se tratar de um ato de império, emanado de autoridade do Estado estrangeiro, não pode o juiz nacional pretender questionar sua validade. Exemplo disso é o registro de uma marca efetuado em outro ordenamento jurídico, ou a concessão, pela autoridade patentária estrangeira, de uma patente válida. Ambas questões não podem ser averiguadas pelo juiz nacional, uma vez que se trata de ato de autoridade do Estado estrangeiro e, portanto, nesse ponto específico, revestida de caráter público” (Ibidem, p. 21). 39 Ver Regulamento do Conselho 2100/94, relativo às cultivares comunitárias; Regulamento do Conselho 207/2009 referente às marcas comunitárias; Regulamento do Conselho 6/2002 referente aos desenhos industriais comunitários.

16 comunitária, o desenho industrial comunitário e as cultivares comunitárias, direitos de propriedade intelectual estes que foram objetos de regulamentos específicos da União Europeia e, assim, tornaram-se uma opção aos usuários do mercado interno europeu para obter a proteção de seu bem intangível no âmbito do território da união e não apenas dentro de cada país. Nos regulamentos específicos desses direitos comunitários existem regras relativas a lei aplicável no caso de violações a referidos direitos mas, no caso das mesmas serem insuficientes para a solução de um caso concreto, o Roma II será aplicado na esfera de conflito de leis40. Os estudiosos do grupo de Hamburgo também teceram comentários a respeito desse tema, defendendo que a regra da lex loci protecionis não seria suficiente para direitos comunitários pois o território onde a reivindicação é protegida seria a própria Comunidade (União), e a mesma não possui ainda legislação material que trate da violação de direitos comunitários, tornando necessário que casos assim sejam remetidos à aplicação da legislação nacional de Estados Membros41. Assim, pela leitura do texto em vigor do Roma II, percebe-se que o legislador definiu como elemento de conexão para casos relativos às obrigações oriundas de direitos de propriedade intelectual nacionais a regra da lex loci protecionis (lei do local onde a proteção é reivindicada) e, quando tratar-se de direitos comunitários, a regra da lex loci delictis (lei do local onde ocorreu a violação. Levando em conta que a redação do artigo ora analisado corresponde às sugestões feitas pelo grupo de Hamburgo, é plenamente possível perceber qual o principal motivo por trás dos argumentos deste: afastar a aplicação da lei do local do dano (lex loci damni), regra geral prevista no Roma II, pois a mesma levaria à erosão do princípio da territorialidade42. 40 Van Engelen nos fala a esse respeito: “The community regulations creating Community IPRs do contain some provisions as to remedies and sanctions in case of infringement of these rights, but for those issues not propvided for in the Regulations themselves, these Regulations instruct the courts to apply the law of the Member State where 'the acts of infringement or threatened infringement were commited, including the private international law”. VAN ENGELEN, Dick. Rome II and intellectual property rights: choice of law brought to a standstill. In: Nederlands Internationaal Privaatrecht – NIPR.. 2008, Afl. 4, p. 443.. Disponível em acessado em 20/04/2012. 41 “The reference to the private international law of the Member State should not be understood as mandating the application of the lex loci protectionis for each Member State. Because of the unitary character of the Community trademark, the locus protectionis is the Community. Since substantive Community provisions on the liability for infringement of a Community trademark are lacking, a supplementary conflicts rule referring the matter to the national law of a Member State is required”. (HAMBURG GROUP FOR PRIVAT INTERNATIONAL LAW, op. cit., p. 23). 42 O jurista holandês Van Engelen fez essa análise: “The lex loci damni rule is considered to be inappropriate for IPRs because it undermines the principle of territoriality of IPRs. Except for unitary Community IPRs, and ins spite of an increasing IP harmonization by Community directives and international IP conventions (suc as TRIPs), IPRs are still bundles of national IP rights, which are governed by national IP laws of each relevant

17 Analisando especificamente as regras de conexão acima, adotamos a posição defendida por Van Engelen, dizendo que as regras lex loci protecionis e lex loci delicti são, na verdade, duas faces da mesma moeda, sendo a existência da segunda apenas uma solução prática ao problema que existiria em face à inexistência de um direito material comunitário sobre violações de direitos de propriedade intelectual, já que, ao definir o local da ocorrência da violação, aplicar-se-á a lei do estado membro onde a mesma ocorre43. Ademais, nos parece lógico que o local onde a violação ocorre (loci delicti) demanda a existência de um direito (loci protecionis) para que seja violado, em especial quando falamos de direitos que tenham essa essência territorial. Bergé, Peukert, e Van Engelen viram as regras promulgadas do art. 8º do Roma II com uma abordagem excessivamente (e até desnecessariamente) territorial44. Concordamos, todavia, que seria demasiado forçado afastarmos a aplicação do princípio da territorialidade na definição de lei aplicável em direitos da propriedade intelectual, em especial se a mesma tratar de sua validade, requisitos de registrabilidade, duração, escopo de proteção, porém, alguma relativização das regras poderia ter sido prevista ao menos no que tange à reparação dos danos causados, porém o legislador europeu parecer ter tido cuidado para não permitir que isso ocorresse ao estabelecer a regra do art. 8º(3) acima, vedando a aplicação do art. 1445, jurisdiction. Wheter or not a German patente is infringed, is to be a matter of German law. However, if the owner of a German patent is for instance based in China, then the lex loci damni might perhaps result in the application of Chinese law. To avoid something like that from happening a special conflicts rule for IPRs was proposed by the Hamburg Group: 'in contrast the lex loci protecionis refers to the law of the country in which the act of infringement was commited'. The main purpose of Article 8 is therefore to make sure that lex loci dmani rule does not apply to IPRs and both the lex loci protecionis rule of Article 8(1) and the lex loci delicti rule of Article 8(2) function to achieve that goal” (VAN ENGELEN. op. cit. p. 444). 43 “One has to realize that both lex loci protecionis and the lex loci delicti are not used in Article 8(1) of Rome II to come to differente outcomes. They function as two sided of the same coin. The reason why Article 8(2) refers to the lex loci delicti for unitary Community IPRs for any question that is not governed by the relevant Community instrument is only a practical one, since the lex loci protecionis is not able to cover all the bases for these Community IPRs”. Ibidem, p. 443. 44 “These provisions describe a strictly territorial approach to infringements of intellectual property rights”. BERGÉ, op. cit. p. 7); “As with objective territoriality, the EU‟s Rome II regulation proclaims that the law of the country of protection is “universally acknowledged” and should therefore be preserved under a special provision in the chapter on torts/delicts”. PEUKERT, op. cit, p. 7. 45Artigo 14 - Liberdade de escolha 1. As partes podem acordar em subordinar obrigações extracontratuais à lei da sua escolha: a) Mediante convenção posterior ao facto que dê origem ao dano; ou, b) Caso todas as partes desenvolvam actividades económicas, também mediante uma convenção livremente negociada, anterior ao facto que dê origem ao dano. A escolha deve ser expressa ou decorrer, de modo razoavelmente certo, das circunstâncias do caso, e não prejudica os direitos de terceiros. 2. Sempre que todos os elementos relevantes da situação se situem, no momento em que ocorre o facto que dá origem ao dano, num país que não seja o país da lei escolhida, a escolha das partes não prejudica a aplicação das disposições da lei desse país não derrogáveis por acordo. 3. Sempre que todos os elementos relevantes da situação se situem, no momento em que ocorre o facto que dá origem ao dano, num ou em vários Estados-Membros, a escolha, pelas partes, de uma lei aplicável que não a de

18 que trata da liberdade de escolha da lei aplicável, aos casos abrigados pelo dispositivo anterior. Importantes foram as considerações de Van Engelen a esse respeito: “What strikes one as odd is that the regime of Article 8 of Rome II provides only for a general rule to determine the law that applies to an infringement of an IPR: the lex loci delicti for Community IPRs and the lex loci protecionis for all other IPRs. There is no set of additional sub-rules that may further refine the choice of law process for IPRs. On the contrary, Article 8(3) of Rome II expressly excludes the possibility for parties to derogate from the law that is applicable as a result of Article 8(1) or (2). This effectively means that the choice of law process for infringements of IPRs is a one way street without crossroads or possibility for detours.”46 Essa rigidez observada no regime adotado pelo art. 8º do Roma II é o resultado de uma homenagem exagerada ao princípio da territorialidade, considerando, como analisado anteriormente, que essas regras específicas foram ali colocadas para afastar a aplicação da regra da lex loci damni das obrigações decorrentes de direitos de proprieade intelectual. Relembrando os “ataques modernos à territorialidade” de Bergé, é possível verificar que esse enfoque dado pelo legislador europeu encontra-se em uma zona de potenciais problemas, em especial quando tratarmos de casos onde hajam violações multiterritoriais.

3.2 - O dragão de 27 cabeças de van Engelen: as violações multiterritoriais

A análise do art. 8º do Roma II nos mostrou, portanto, que a regra de conflito de leis para obrigações decorrentes da violação de direitos da propriedade intelectual, criada pelo legislador unional, deteve-se de forma exagerada na essência territorial que referido ramo jurídico possui em sua esfera material, oriunda daquelas antigas noções de privilégios outorgados por senhores feudais e monarcas. Todavia, o mundo já não mais divide-se em feudos e, ainda que existam nações com territórios bem demarcados, coexiste paralelamente um outro mundo, responsável por grande parte da circulação de bens e riquezas: a internet. O alcance desse canhão da comunicação é vasto e aterritorial, e é neste ponto que o enfoque extremamente territorialista do Roma II passa a falhar. Peukert fala com bastante clareza sobre os efeitos do uso da internet na exploração de objetos protegidos por direitos de propriedade intelectual e o leque de países onde a violação poderá ocorrer: “Similar scenarios involving global communication technologies arise um Estado-Membro, não prejudica a aplicação, se for esse o caso, das disposições de direito comunitário não derrogáveis por convenção, tal como aplicadas pelo Estado-Membro do foro. 46 VAN ENGELEN, op. cit., p. 444.

19 in industrial property law. Signs are used commercially on the internet. Products, which are the subject matter of a patent or which incorporate a design, are offered via the internet. In principle, these activities as they stand could amount to an infringement of IP rights in all countries where the website is accessible, even if all other activities (the hosting of the site, the manufacture of the product, etc.) occur in a different country”47 A internet, portanto, levando-se em conta essa malha de legislações nacionais que tratam, cada uma, das violações de direitos de propriedade intelectual ocorrida em sua jurisdição, cria uma cenário de infrações multiterritoriais com grande facilidade, bastando a oferta de um produto violador nesse mundo virtual. Pelos critérios da regra da lex loci protecionis, deverá a parte prejudicada embasar seus pleitos em cada uma das legislações em que seus direitos estiverem sendo violados. Tal situação, considerando o âmbito da União Europeia de 27 países, pode tornar-se um inferno legal e principalmente custoso, conforme alerta van Engelen: “One of the clear problems facing litigants with regard to infringement of IPRs is that the alleged infringements may occur in numerous countries simultaneously. In this regard, one only has to think of an internet publication or the distribution of a product throughout the entire, single European market. Application of the lex loci protecionis will mean that the national IP laws of all 27 Member States will have to be applied. It seems obvious that such is nothing less than a nightmare for the parties, whether they be plaintiff or the defendant. Compared with being able to resolve their dispute under one applicable law, the additional cost for legal advice will be 'impressive' (x26), if not prohibitive, while the end result may be hard to predict and may differ from country to country. Such a result – resembling a patchwork quilt – is probably not what either the plaintiff or the defendant will be happy with. In addition, the European public interest – that strives for a single European market with a free flow of goods – and the European consumer is also poorly served. It basically adds layer of substantial costs to IP litigation concerning the single European market.”48 Com base nessa constação, a qual nos parece extremamente coerente e também preocupante, deveria o legislador do Roma II ter previsto uma clásula de escape para evitar essa aberração, porém o art. 8º(3) cuidou para não permitir qualquer simplificação de uma situação como a relatada acima. É o que o autor holandês acima49, em suas severas e ácidas críticas, entende quando disse não ser necessário ser uma cientista de foguetes para entender 47 PEUKERT, op. cit., p. 19. 48 VAN ENGELEN, op. cit., p. 445. 49 “One does not need to be a rocket scientist to appreciate that justice is better served if the scope and scale of such litigation can somehow be simplified and managed”. Ibidem, p. 445.

20 que a Justiça é melhor servida se o escopo e a escala desse absurdo litígio puder ser simplificada e administrada. Assim, com a total vedação da autonomia das partes para escolher a lei aplicável, simplesmente justificada pela Comissão Europeia como algo inapropriado para direitos de propriedade intelectual50, haja vista possivelmente o interesse público inerente a esses direitos (reflexo da territorialidade), ficaram os titulares de direitos de propriedade intelectual sujeitos a passar por essa situação inconcebível51. É possível concentrar, outrossim, todas as críticas do art. 8º a essa vedação, pois é ela que, sem dúvida, engessa o sistema de definição de lei aplicável obrigando às partes a, em situações que envolvam violações multiterritoriais, embasar seus pedidos em cada uma das correspondentes leis nacionais de propriedade intelectual. E foi esse fenômeno, portanto, que van Engelen batizou como “um dragão de 27 cabeças lex loci protecionis”, nos falando que: “A total ban on a freedom of choice for the parties, forces the litigants to fight a “27-heades-lex-loci-protecionis-dragon”, which will require grueling legal fees and will be a true nightmare for the parties (if no for the judge(s) that have to render judgment). I fail to appreciate that 'public interests' cannot allow for at least a post-tort agreement between the parties to manage their conflict and make it possible for them to agree on a practical and efficient way to resolve their conflict and manage their costs. That also qualifies as public interest to me. Also here, one wonders what actual problem is supposed to be solved by this absolute ban on party autonomy in the absence of any known aberrations in case law”52 Bergé, ao analisar o enfoque do dispositivo ora estudado, diz que o legislador do Roma II não conseguiu contemplar em suas regras sobre conflito de lei a atual dimensão internacional da proteção de direitos da propriedade intelectual, ficando opcionalmente preso à sua essência territorialista, o que, ao seu ver, resultará em um estreitamento das regras relativas à competência jurisdicional para equilibrar essa questão53. Concordamos, todavia, 50 “Freedom of will is not accepted, however, for intellectual property, where it would not be appropriate”. (COMISSÃO EUROPEIA. Proposal for a regulation of the European parliament and the council on the law applicable to non-contractual obligations (“Rome II”) - Explanatory Memorandum. 22/07/2003, p. 22. Disponível em , acessado em 21/04/2012. 51 Van Engelen também tece comentários a essa justificativa vazia da Comissão Europeia, remetendo às razões apresentadas pelo grupo de Hamburgo eventuais justificativas que levaram o legislador a criar a regra do art. 8º (3) do Roma II: “The reason to block party autonomy is not directly clear. The Explanatory Memorandum of the Commission simply states that ‘Freedom of will is not accepted […] for intellectual property, where it would not be appropriate’. Why party autonomy would not be appropriate for IPRs, is not explained. The basis for this exclusion can probably be traced back to the point of view of the Hamburg Group that party autonomy should not be allowed ‘where public interests are or may be involved’” (VAN ENGELEN, Dick. Jurisdiction and applicable law in matters of intellectual property. In: Electronic Journal of Comparative Law. Vol. 14.3, dez./2010, p. 15. Disponível em acessado em 20/04/2012. 52 VAN ENGELEN, op. cit., 2008, p. 446. 53 “Finally, it may be that, in future years, we shall see a tightening of rules on jurisdictional competence. As the Rome II Regulation has not managed to include in its rule on conflicts the international dimension of the

21 que o princípio da territorialidade exerce e deverá continuar exercendo importante papel na análise de casos que envolvam direitos de propriedade intelectual, mas ainda assim o regulamento em tela deveria ter previsto uma válvula de escape – a possibilidade de autonomia das partes ao menos em um momento pós definição da violação (da quantificação da indenização), que seria de comum acordo entre os litigantes, nada mais coerente e justo. O argumento de vedação absoluta à autonomia das partes sustentado pelo grupo de Hamburgo e absorvido pelo legislador do Roma II, o interesse público, é o mesmo fundamento levantado por autores que entendem que a aplicação absoluta da regra lex fori protecionis traz prejuízo a tal interesse. Van Engelen, por exemplo, diz não entender porque não poderia a autonomia das partes ser permitida e limitada a regras de concorrência ou até mesmo por exceções de ordem pública54, ou pelas regras de relação de consumo, afinal também é do interesse público europeu o funcionamento com fluidez do mercado interno europeu, e questões como as criadas pelo art. 8º(3) afetam negativamente esse fluxo. Concluiu o autor holandês55, portanto, que o Roma II mostrou-se pior para os casos de conflito de leis envolvendo direitos de propriedade intelectual do que se a oportunidade para legislar sobre esse assunto fosse perdida, finalizando suas críticas dizendo que o Roma II foi um passo para frente e outro (se não mais) passos para trás, afirmando que o legislador europeu antecipou-se de maneira descuidada pois teria sido melhor ter deixado essas questões serem tratadas pela lei nacional e por uma jurisprudência mais madura. Nesse sentido, a crítica geral, com a qual concordamos, recai sobre essa rigidez desnecessária e sobre esse culto exacerbado ao princípio da territorialidade, afastando por completo a autonomia das partes que, ao nosso ver, é uma regra de fundamental utilidade para o atual cenário pós-moderno. É como Nerina Boschiero falou: “Denying any role to party autonomy and any possibility for the courts to adapt the rigid rule to an individual case so as to have the applicable law the one that best reflects the center of gravity of the situation simply ends up in the European legislator's 'presumption' to have dictated the 'perfect rule'. But, as perfection 'is not for this world', each legislature has to provide a certain degree of flexibility in order to be able to overcome its intrinsic fallibility.”56 protection of intellectual property rights, the territoriality idea binds the court to apply its own law to most cases”. BERGÉ, op. cit., p. 8. 54 “I fail to see why the public interests involved cannot properly be served by restraining party autonomy by competition (anti-trust) law and public policy exceptions”. VAN ENGELEN, op. cit., 2008, p. 446. 55 “I am afraid that Article 8 of Rome II is effectively the equivalent of 'one step forward and at least one – if not tow – steps back' compared to the situation in which the European legislator would have left these issues to be first developed by national law and waited for case law to mature”. Ibidem, p.448. 56 BOSCHIERO, Nerina. Infringement of intellectual property rights: a commentary on article 8 of the Rome II

22 Nesse sentido, por não ser a perfeição algo para este mundo, como menciona a autora acima, o emprego de uma regra inflexível sob justificativa de um dos princípios norteadores do direito da propriedade intelectual obriga os operadores do direito a buscarem outras saídas para essa questão, provavelmente fora da própria regra que deveria prever alternativas para uma solução mais coerente. A rigidez do art. 8º do Roma II já é vista por Bergé como a causadora de uma marginalização de referida regra, pois aquele que estiver sofrendo violações multiterritoriais de seus direitos de propriedade intelectual fará de tudo para fugir das armadilhas que a proteção internacional fragmentada da propriedade inteletual lhe oferece57. Um dos exemplos citados pelo autor é a Diretiva EC 93/83, a qual determinou que em casos de violações de direitos autorais por transmissão de satélites, aplicável é a lei do local onde a transmissão é originada, o que mostra-se uma clara derrogação das regras previstas no Roma II58. Outro exemplo dessa marginalização que poderá sofrer o dispositivo estudado, mencionado tanto por Bergé59, é o uso gradual do art. 6º do Roma II60, que trata da definição regulation. In: VOLKEN, Paul, BONOMI, Andrea. Yearbook of private international law. Vol. 9, Alemanha: European law publishers, 2007, p. 110. 57 “Looking forward, one could venture to suppose that practice will no doubt require a marginalization of the solution adopted by the Rome II Regulation every time it seeks to avoid the pitfalls of the fragmentation of international protection of intellectual property”. BERGÉ, op. cit., p. 8. 58 “Yet rules of this type exist in our field of interest. For example, Directive (EC) No. 93/83 provides that, in matters of the satellite broadcasting of works of authorship, the law of the country in which the work is broadcast to the satellite applies18. This solution is a clear derogation from Article 8 of the Rome II Regulation, which instead would designate the various laws of the countries in which the public receives the work”. Ibidem. 59 “Article 8 of the Rome II Regulation can also be bypassed by calling on a special conflict-of-law rule: the one defined in Article 6 in the field of competition law. The contractualization/privatization aspects of the intellectual property law phenomena that have been described above offer many ties to competition rules, in particular the law governing unfair competition (collusion and abuse of a dominant position). This application of competition law may lead to the traditional rules of intellectual property being sidestepped and, along with them, the solution provided by Article 8 of the Rome II Regulation”. Ibidem, p. 9. 60 Art. 6 Concorrência desleal e actos que restrinjam a livre concorrência 1. A lei aplicável a uma obrigação extracontratual decorrente de um acto de concorrência desleal é a lei do país em que as relações de concorrência ou os interesses colectivos dos consumidores sejam afectados ou sejam susceptíveis de ser afectados. 2. Se um acto de concorrência desleal afectar apenas os interesses de um concorrente específico, aplica-se o artigo 4º. 3. a) A lei aplicável a uma obrigação extracontratual decorrente de uma restrição de concorrência é a lei do país em que o mercado seja afectado ou seja susceptível de ser afectado; b) Quando o mercado for afectado ou for susceptível de ser afectado em mais do que um país, a pessoa que requer a reparação do dano e propõe a acção no tribunal do domicilio do réu pode optar por basear o seu pedido na lei do tribunal em que a acção é proposta, desde que o mercado desse Estado-Membro seja um dos directa e substancialmente afectados pela restrição à concorrência de que decorre a obrigação extracontratual em que se baseia o pedido. Caso o requerente proponha nesse tribunal, de acordo com as regras aplicáveis em matéria de competência judiciária, uma acção contra mais do que um réu, só pode optar por basear o seu pedido na lei desse tribunal se a restrição à concorrência em que se baseia a acção contra cada um desses réus também afectar directa e substancialmente o mercado do Estado-Membro em que se situa esse tribunal. 4. A lei aplicável ao abrigo do presente artigo não pode ser afastada por acordos celebrados em aplicação do

23 da lei aplicável em casos envolvendo danos causados por atos de concorrência desleal. Como bem salienta van Engelen, violações a direitos de propriedade intelectual são uma subcategoria de atos de concorrência desleal e, ainda que a regra do art. 6º também não permita a autonomia das partes, há uma gama muito maior de opções para que as partes escolham que lei aplicar, com destaque em especial ao item 3b), que diz que quando o mercado é afetado em mais de um território, a parte que busca a compensação dos danos causados pode ingressar com a ação no domicílio do réu e basear seu pedido de compensação de danos na lex fori, contanto que o mercado dessa Corte também tenha sido afetado. Portanto, nos parece que o princípio da territorialidade foi levado por demais a sério no que tange às regras de definição de lei aplicável em casos de violações a direitos de propriedade intelectual, ao ponto de fazer com que as partes busquem alternativas para não enfrentar o temido dragão de 27 cabeças de van Engelen.

IV – Considerações finais

É inegável que o princípio da territorialidade é um dos fundamentos basilares do direito da propriedade intelectual. Por tratar-se de um monopólio, um privilégio de exclusiva concedido por um Estado, nada mais coerente e esperado que tal poder limite-se ao território onde o Concedente governa. Contudo, atualmente a noção de território está ficando cada vez mais alargada, para não dizer que os limites deste são cada vez mais relativizados. O advento da internet e de diversos outros meios de comunicação, por onde boa parte do comércio internacional ocorre, faz com que aqueles monopólios concedidos por determinados estados acabem sendo, muitas vezes, violados nessa “terra de ninguém e de todos ao mesmo tempo”. E isso é um daqueles fenômenos que o direito deve acompanhar bem de perto. Nesse sentido, grandes foram as expectativas direcionadas ao recente regulamento Roma II, que traria, a priori, soluções para as discussões envolvendo o conflito de leis em casos de violações de direitos da propriedade intelectual, em especial nos casos da internet – casos transfronteiriços. No entanto, dito regulamento, conforme visto por importante parte da doutrina e particularmente nesta opinião singlea, deixou muito a desejar. Certamente a definição de elementos de conexão vitalmente relacionados ao princípio da territorialidade auxiliaram nesse problema, contudo, é na rigidez e na falta de opções mais práticas e, artigo 14º.

24 consequentemente, justas, que o art 8º do Roma II pecou. O legislador da União Europeia, vanguardista na esfera de conflito de leis, deveria ter usado melhor sua expertise. O atual regulamento Roma II, no que tange às violações multiterritoriais, comuns em face ao atual estado tecnológico mundial, nos dizeres de um dos autores que influenciou fortemente a presente obra (van Engelen), concede ao lesado as mesmas opções que os compradores do carro T FORD possuíam em 1920: Podem escolher qualquer cor, desde que seja preta61!

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61 “They (litigantes europeus de propriedade intelectual) basically have the same range of options as buyers of T Ford automobiles had in the 1920s: 'you can have any color, as long as it is black', i.e., the Ilex loci protecionis” VAN ENGELEN, op. cit., 2008, p. 445.

25 COMISSÃO EUROPEIA. Communication from the Comission to the European Parliament, the Council, the European Economic and Social Committee and the Committee of the Regions – COM(2011)287. COMISSÃO EUROPEIA. COM (2011) 287 - Communication from the commission to the european parliament, the council, the european economic and social committee and the committee of the regions. Disponível em acessado em 12/05/2012. COMISSÃO EUROPEIA. Proposal for a regulation of the European parliament and the council on the law applicable to non-contractual obligations (“Rome II”) - Explanatory Memorandum. 22/07/2003. Disponível em , acessado em 21/04/2012. FROHLICH, Anita B. Copyright infringement in the internet age – primetime for harmonized conflict-of-law rules? 20/04/2012. Disponível em acessado em 03/06/2013. GRAU-KUNTZ, Karin; SILVEIRA, Newton. A exaustão do direito de marcas na União Européia e o Mercosul. In: Revista da ABPI - Associação Brasileira da Propriedade Intelectual. São Paulo: Ed. Bandeirantes, nº 25, Nov./Dez., 1996. HAMBURG GROUP FOR PRIVATE INTERNATIONAL LAW. Comments on the european commission's draft proposal for a council regulation on the law applicable to non-contractual obligations. 2002. Disponível em acessado em 21/04/2012. HAMMES, Bruno Jorge. O direito de propriedade intelectual – subsídios para o ensino. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1996. NEVES, Alessandra Helena. Direito de autor e direito à imagem: à luz da Constituição Federal e do código civil. Curitiba: Juruá, 2011. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA PROPRIEDADE INTELECTUAL. Convention Establishing the World Intellectual Property Organization. Assinada em Estocolmo em 14/071967 e emendada em 28/09/1979, disponível em acessado em 25/05/2012. PEUKERT, Alexander. Territoriality and extraterritoriality in intelletual property law. 2011. Disponível em: acessado em 23/04/2012. PARANAGUÁ, Pedro, REIS, Renata. Patentes e criações industriais. Rio de Janeiro: Ed.

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