Uma Cabeça sem Corpo: Reflexões em torno da Malaca Portuguesa, 1511- 1641

Share Embed


Descrição do Produto

UMA CABEÇA SEM CORPO REFLEXÕES EM TORNO DA MALACA PORTUGUESA 1511-1641 A HEAD WITHOUT A BODY SOME REMARKS ON PORTUGUESE MELAKA 1511-1641

Paulo Jorge de Sousa Pinto CECC – Universidade Católica Portuguesa, Portugal

Abstract: The conquest of Melaka by Afonso de Albuquerque was a feat of arms celebrated by poets and chroniclers and traditionally referred to as a major achievement in the settlement of Portuguese Estado da Índia. However, some questions may be raised concerning its real significance: the decision of taking the city by force and its possible misjudgement; how Melaka was far from Goa and the main centres of Portuguese presence in Asia and completely depended upon local conditions; the strategies developed by the Portuguese that allowed the city to survive in a potentially hostile environment and, finally, the arrival of the Dutch in Southeast Asian waters and the collapse of Melaka’s former position.

Em 1634, Francisco de Sá de Meneses fazia publicar em Lisboa o seu poema épico 1 Malaca Conquistada pelo Grande Afonso de Albuquerque . Trata-se de uma obra decalcada d’Os Lusíadas, quer na trama quer no estilo, e foi escrita em idêntico tom panegírico e de exaltação das virtudes nacionais e de heroísmos passados. Embora houvesse um interesse concreto, por parte do autor, em enaltecer o seu ramo familiar, uma vez que o principal objetivo da obra parece ter sido o de exaltar – apesar do 2 anacronismo – a memória do seu tio-avô Garcia de Sá , o tom de nostalgia e de invocação de um passado tão glorioso como distante estão omnipresentes e constituem características essenciais do trabalho. De facto, Malaca era, à data da edição, uma espécie de “último reduto” português no Sueste Asiático perante o assalto da VOC holandesa à navegação e aos interesses portugueses na área. Pouco depois, a cidade viria a sucumbir a um prolongado cerco, levado a cabo por uma aliança malaio-holandesa. O feito de armas perdurou na memória coletiva nacional, acoplado ao génio militar e estratégico de Afonso de Albuquerque, tomado, já nos meados do século XVI, como o fundador do império português na Ásia. Posteriormente, a conquista de Malaca foi considerada como um momento decisivo do estabelecimento de uma alegada supremacia portuguesa no Índico, de que fez eco, entre outros, Oliveira Martins: “tudo o que vinha das Molucas, pátria do cravo precioso; tudo o que vinha da China e do Japão, metais, 3 sedas, loiças, tudo ia passar a Malaca, para daí seguir a Goa, e de Goa para a Europa” . 1

A edição mais acessível é a 3ª, Lisboa, José de Aquino Bulhões, 1779. Luís de Sá Fardilha, “Disputa por um nome: O Poema Malaca Conquistada (1634), de Francisco de Sá de Meneses, e a representação genealógica”, Revista da Faculdade de Letras – Línguas e Literaturas, II série, vol. XXI (Porto, 2004), pp. 61-87 3 Oliveira Martins, Portugal nos Mares (Lisboa: Guimarães Ed., 1954), I, pp. 211-212. 2

2

PORTUGAL E O SUESTE ASIÁTICO: 500 ANOS

No entanto, Malaca nunca suscitou grande interesse junto da historiografia portuguesa. Talvez devido ao facto de o “período português” ter sido relativamente breve e por o domínio colonial holandês se ter afirmado no arquipélago malaio-indonésio logo nas primeiras décadas do século XVII, Malaca permaneceu, essencialmente, como uma memória de uma remota “era dourada”, em especial o momento da sua conquista por Albuquerque. Só há pouco menos de meio século, e pela mão de Luís Filipe Thomaz, numa 4 dissertação ainda inédita , a presença portuguesa no século XVI e, sobretudo, o contexto político e económico envolvente, vieram relançar algum interesse pela história da presença portuguesa em Malaca e, de um modo geral, pelo Sueste Asiático. Sob a sua orientação foram posteriormente produzidos, sobretudo na década de 1990, alguns trabalhos – invariavelmente resultantes de investigação de mestrado – que vieram, de forma conclusiva, renovar o panorama português sobre estas temáticas e paragens, abrangendo não só Malaca mas também Samatra, o Sião, a Birmânia, Java ou as Molucas. É hoje unanimemente aceite que a visão tradicional, que tendia a considerar que os portugueses dominaram efetivamente a navegação do Índico e canalizaram para a Europa as especiarias e outras mercadorias que anteriomente seguiam a Rota do Levante, padeceu de uma proximidade excessiva em relação ao teor e ao sentido das crónicas quinhentistas. Sabe-se que, excetuando momentos iniciais bem delimitados, os portugueses acomodaram-se às redes de comércio preexistentes no Índico e o comércio regional interasiático (chamado “de Índia em Índia”) rapidamente se tornou bem mais importante – e lucrativo – do que a exportação para a Europa, e que esta característica 5 era especialmente vincada no Sueste Asiático . A própria ideia de Malaca enquanto “empório” comercial de enorme dimensão e que exerceria um domínio incontestável sobre os Estreitos vem sendo discutida. É notório o contributo decisivo das descrições de Tomé Pires para um certo empolamento do papel desempenhado por Malaca no comércio asiático e no contexto dos sultanatos malaios vizinhos, visível, por exemplo, na obra 6 seminal de Meilink-Roelofsz, que ainda hoje goza de enorme divulgação . Estas premissas merecem hoje alguma contestação, nomeadamente no que diz respeito às cifras da 7 população da cidade veiculadas pelas fontes portuguesas . A passagem do quinto centenário da chegada e fixação dos portugueses no Sueste Asiático, cujo episódio decisivo ocorreu em 1511 com a conquista de Malaca, constitui momento oportuno para lançar outros pontos de debate sobre várias questões que envolvem esse processo; em específico, a tomada da cidade e os seus possíveis equívocos, a posição extravagante no contexto do Estado da Índia e da presença portuguesa na Ásia, as características peculiares que assumiu o domínio português naquelas paragens e os processos de acomodação e de adaptação que permitiram a sobrevivência de Malaca durante mais de um século; por fim, o seu rápido esvaziamento e declínio por ação da competição e da hostilidade holandesas. Como mote e fio condutor, a ideia de que a conquista portuguesa cindiu duas entidades que até então se haviam mantido 4

Os Portugueses em Malaca, dissertação de licenciatura, Faculdade de Letras de Lisboa, 1964, 2 vols. Luís Filipe Thomaz, “Os Portugueses nos Mares da Insulíndia no século XVI”, De Ceuta a Timor (Lisboa: Difel, 1994), p. 581. 6 M.A.P. Meilink-Roelofsz, Asian Trade and European Influence in the Indonesian Archipelago between 1500 and about 1630 (Haia: Martinus Nijhoff, 1962). 7 A título de exemplo, veja-se Roderich Ptak, “Reconsidering Melaka and Central Guangdong: Portugal’s and Fujian’s Impact on Southeast Asian Trade (Early Sixteenth Century)”, in Peter Borschberg (ed.), Iberians in the Singapore-Melaka Area (16th to 18th Century) (Wiesbaden/Lisboa: Harrassowitz Verlag/Fundação Oriente, 2004), pp. 1-21. 5

PINTO, P.J.S. – Uma cabeça sem corpo reflexões em torno da Malaca portuguesa

3

indissociáveis e que permitiram o florescimento do sultanato malaio e a sua posição hegemónica nos Estreitos: a cidade, entendida enquanto mera cabeça do reino, e as ligações e articulações deste com os sultanatos vizinhos e as elites malaias. E que esta cisão veio a condicionar decisivamente a presença portuguesa na região e o espaço de manobra de Malaca no contexto regional.

1. O EQUÍVOCO DE ALBUQUERQUE Os factos são conhecidos: após a tomada de Goa, Afonso de Albuquerque aguardava a melhor oportunidade para seguir para Malaca, onde quedava retida parte do contingente da armada de Diogo Lopes de Sequeira, que lá chegara ido de Lisboa e por ordem do próprio rei D. Manuel. Debatendo-se com uma carência crónica de recursos, em permanente conflito com os portugueses estabelecidos na Índia, a quem pouco interessavam os planos de estratégia global com que o governador alinhava os seus atos com os projetos imperiais do monarca, Afonso de Albuquerque conseguiu reter a armada de Diogo Mendes de Vasconcelos e utilizá-la na sua própria expedição a Malaca. O governador juntou, portanto, a maior armada que conseguiu reunir e partiu, logo que lhe foi possível, para Malaca, que acabou por tomar de assalto após um processo de contactos, exigências e desavenças com o sultão Mahmud Syah. Foi, decerto, um ato de ousadia, não apenas porque Malaca ficava muito longe das bases portuguesas na Ásia, mas também porque Albuquerque não tinha ordens específicas de D. Manuel para tomar a cidade. A conquista foi, aliás, aproveitada pelos seus inimigos – nomeadamente o influente grupo de portugueses estabelecidos em Cochim – para, uma vez mais, 8 desacreditar o governador junto do monarca e procurar minar o seu poder . A conquista de Malaca poderá não ter resultado apenas do vigor e da determinação de Afonso de Albuquerque, apostado em executar o seu plano global de apoderar-se do que considerava serem os principais nós do comércio asiático – as “principais cabeças” da 9 Índia, na expressão da sua famosa derradeira carta a D. Manuel . Na verdade, poderá também ter sido o desfecho de um erro de cálculo, de um desconhecimento das condições políticas e económicas da região ou de um simples equívoco. Se Malaca era efetivamente uma cidade portuária dotada da riqueza e dimensão que as fontes portuguesas indiciam, nomeadamente uma população entre 100 mil e 200 mil 10 habitantes , é uma questão que não importa discutir aqui. Interessa, sim, realçar o facto de a sua fama ecoar por toda a Ásia marítima, e que as ressonâncias deste prestígio chegaram cedo a Lisboa. E, ainda, que o rei D. Manuel, em plena euforia motivada pelo sucesso dos seus homens na Índia, ansiava por atingir a cidade, assegurar uma posição que lhe daria acesso à China e às Ilhas das Especiarias e, nunca é demais relembrá-lo, afastar definitivamente as pretensões castelhanas de que toda esta região estaria dentro

8

Inácio Guerreiro and Vítor Luís Gaspar Rodrigues, “O Grupo de Cochim e a oposição a Afonso de Albuquerque”, Stvdia, 51 (1992), p. 133. 9 Carta de Afonso de Albuquerque a D. Manuel, 6.12.1515, in R. A. Bulhão Pato (ed.), Cartas de Afonso de Albuquerque (Lisboa: Academia Real das Ciências, 1898), I, p. 381. 10 Luís Filipe Thomaz, “The Malay Sultanate of Melaka” in Anthony Reid (ed.), Southeast Asia in the Early Modern Era (Ithaca: Cornell University Press, 1993), p. 70.

4

PORTUGAL E O SUESTE ASIÁTICO: 500 ANOS

da sua esfera de influência, segundo o Tratado de Tordesilhas, conforme relembrou, logo 11 em 1506, ao vice-rei D. Francisco de Almeida . A expedição de Afonso de Albuquerque a Malaca resultou tanto da necessidade de cumprir as ordens régias e de resgatar os portugueses que lá tinham ficado retidos, como da vontade pessoal do governador em dotar a presença portuguesa no Índico de alicerces sólidos e duráveis. É muito provável que, ao partir da Índia rumo aos Estreitos, Albuquerque tivesse já em mente a conquista da cidade pela força das armas, determinação reforçada pelo arrastamento das negociações e pela hesitação das autoridades malaias em chegar a um entendimento. Depreende-se, pelas fontes disponíveis, que nem o governador da Índia nem o sultão de Malaca estavam verdadeiramente interessados num acordo pacífico que evitasse o conflito. Poderíamos dizer hoje que estavam ambos equivocados e avaliaram mal o adversário: o sultão, ao subestimar o poder dos estrangeiros e ao não entender que estes estavam ali para ficar e não se retirariam se saíssem vitoriosos, como veio de facto a ocorrer; os portugueses, por não pesarem devidamente, por desconhecimento, preconceito ou simples equívoco, as dificuldades, os custos e as consequências decorrentes da conquista da cidade. As cidades portuárias na Ásia do Sueste, como noutras paragens aliás, eram tipicamente pontos de escoamento de mercadorias produzidas na retaguarda, quer se tratasse de especiarias, de metais ou de simples mantimentos. Era o que ocorria em Samatra, em Java, em Bornéu ou nos reinos continentais da península indochinesa. Ou eram entrepostos costeiros de entidades políticas que tinham a sua capital e o seu centro nevrálgico no interior, ou entidades políticas que captavam e concentravam mercadorias, geralmente canalizadas por via fluvial, de regiões mais remotas, que podiam ser politicamente distintas mas economicamente solidárias. Malaca, pelo contrário, nada produzia no seu sertão (com a excepção, talvez, de pequenos volumes de estanho). Era uma entidade verdadeiramente artificial que vivia do usufruto, da promoção e da maximização da sua posição geográfica excecional: um dom dos Estreitos, como o Antigo 12 Egipto fora um dom do Nilo . A capacidade de atração das comunidades mercantis, a proteção, ainda que apenas formal e distante, do grande Império do Meio, o prestígio da casa real e da linhagem dos sultões reinantes junto de outros sultanatos malaios, a posição intermediária, talvez moderadora entre outras potências regionais poderosas e agressivas, eis algumas características de Malaca. Possuía, cumulativamente, uma estrutura política e social organizada segundo o modelo do sultanato malaio, dominada por uma elite urbana e mercantil no seio da qual o sultão era também um mercador e não uma figura divinizada, 13 como ocorria nas sociedades tradicionais sueste-asiáticas . Há, contudo, que assinalar uma importante característica: Malaca não era apenas uma cidade portuária, mas sim a cabeça de um corpo mais vasto. Ao longo do século XV, os sultões haviam conseguido estabelecer em ambos os lados do Estreito uma teia de vassalidades escoradas na solidariedade islâmica, nas ligações dinásticas a vários sultanatos vizinhos e na primazia ideológica da sua própria linhagem, que remontava aos 11

Carta de D. Manuel a D. Francisco de Almeida, 1506, in R. A. Bulhão Pato (ed.), Cartas de Afonso de Albuquerque, III, pp. 269-270. 12 Paulo Jorge de Sousa Pinto, The Portuguese and the Straits of Melaka (Singapura: NUS Press, 2012), p. 172. 13 Denys Lombard, “Le sultanat malais comme modèle socio-économique”, in Denys Lombard e Jean Aubin (eds.), Marchands et Hommes d'Affaires Asiatiques dans l'Océan Indien et le Mer de Chine 13e.-20e. siécles, (Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1988), pp. 118-119.

PINTO, P.J.S. – Uma cabeça sem corpo reflexões em torno da Malaca portuguesa

5

14

tempos do império de Sri Vijaya . Havia igualmente que contar com a fidelidade ancestral das populações costeiras e dos Estreitos – conhecidos sob a designação de Orang Laut e que haviam assegurado a sua fidelidade aos sultões de Malaca desde a fundação da cidade – , que controlavam na prática o labirinto de canais e ligações na ponta da 15 Península Malaia e do Estreito de Singapura . Era esta argamassa política, social e ideológica que compensava a fraqueza estrutural de Malaca e lhe conferia solidez territorial, força política e prestígio ideológico e lhe facilitava, por consequência, a pujança económica. As suas fontes de conhecimento destas realidades, os seus informadores locais e conselheiros eram estrangeiros como ele próprio: os quelins e, eventualmente, os chineses do Fujian, gente que conhecia Malaca pelo mesmo prisma que os portugueses: o mar e os assuntos ligados ao comércio e à função portuária. Além disso, tinham interesse em que o governador agisse pela força e não pela diplomacia, pois isso permitir-lhes-ia – como ocorreu de facto com os quelins, nomeadamente o homem de mão de 16 Albuquerque, Nina Chatu – obter vantagens na nova ordem política e suplantar a comunidade guzerate que era dominante no sultanato malaio. Também os portugueses que estavam cativos em Malaca, nomeadamente o feitor Rui de Araújo, conseguiram fazer chegar cartas ao governador, descrevendo a fraqueza das forças do sultão e instando-o a 17 tomar a cidade pela força . Tivesse Albuquerque um corpo de conselheiros malaios e o desfecho da sua expedição teria sido, porventura, diferente. Entre outros aspetos, talvez tivesse ponderado de outra forma as consequências da conquista e, sobretudo, compreendido melhor o significado da sua vitória militar. De facto, a fuga do sultão e da sua corte podia ser, para os portugueses, um sinal inequívoco de derrota; mas segundo os padrões da mentalidade e das práticas político-militares do Sueste Asiático, não o era. Pelo contrário, era o procedimento habitual em caso de conflito, num mundo onde a riqueza era sobretudo móvel, as cidades eram construídas em materiais perecíveis e a guerra 18 destinava-se a obter prestígio, saque e recursos humanos . A verdadeira derrota não provinha da perda de uma capital; os vencedores retirar-se-iam, o rei derrotado retomaria a sua posição e reconstruiria a cidade; ocorreria, sim, se o sultão fosse capturado ou morto e a sua teia de vassalidades e de ligações dinásticas aos reinos envolventes fosse danificada. Os portugueses viriam gradualmente a compreender estas questões; mas só mais tarde. De momento, tomaram como vitória o que o era apenas aos seus olhos: Mahmud Syah retirou-se mas manteve intacta a sua corte, as suas ligações de preponderância em relação aos sultanatos vizinhos e o prestígio da sua linhagem enquanto herdeiro do império de Sri Vijaya, posteriormente transferidos para o sultanato 19 de Johor, fundado pelo seu filho . 14

Keith W. Taylor, “The Early Kingdoms”, in Nicholas Tarling (ed.), The Cambridge History of Southeast Asia, (Cambridge University Press, 1999), I, 1, p. 175. 15 Leonard Andaya, The Kingdom of Johor 1641-1728 (Kuala Lumpur: Oxford University Press, 1975), pp. 45-47. 16 Luís Filipe Thomaz, “Nina Chatu e o comércio português em Malaca”, De Ceuta a Timor, pp. 487-512. 17 Carta de Rui de Araújo a Afonso de Albuquerque, Fev. 1510, in A. Basílio de Sá (ed.), Documentação para a História do Padroado Português do Oriente – Insulíndia (Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1954), I, p. 20. 18 Anthony Reid, ““The Structures of Cities in Southeast Asia, 15th to 18th centuries”, Journal of Southeast Asian Studies, XI, pte.2, Set. 1980, pp. 235-250. 19 John R. Bowen, ‘Cultural Models for Historical Genealogies: The Case of the Melaka Sultanate’, in K. S. Sandhu and P. Wheatley (eds.), Melaka: The Transformation of a Malay Capital c. 1400–1980 (Kuala Lumpur: Oxford University Press, 1983), I, pp. 162-179.

6

PORTUGAL E O SUESTE ASIÁTICO: 500 ANOS

A confiança nas capacidades de adaptação e na quase invencibilidade das armas dos Portugueses, aliada à pressão para abrir a D. Manuel as portas das Ilhas das Especiarias e da China terá, eventualmente, precipitado o governador a arriscar a conquista da cidade em vez de apostar num acordo vantajoso com o sultão, como era a prática corrente e ocorrera noutras paragens. Aparentemente, terá chegado a ponderar a possibilidade de ceder a “governança” da cidade ao Sião, se deste obtivesse ajuda para a conquista, o que 20 indicia que o governador estava, até certo ponto, consciente das dificuldades futuras . Mas tal não veio a ocorrer. Afonso de Albuquerque terá eventualmente medido mal os efeitos e as consequências da conquista pura e simples da cidade. A sua visão era marítima e económica, supondo ser possível mudar apenas a cabeça deste corpo, prevendo e esperando que a posição geográfica da cidade e uma cuidada política de continuidade com as práticas portuárias, no que respeita a taxas alfandegárias, atração das comunidades mercantis e jurisdições separadas de cada uma delas, fosse suficiente para transferir para a Fazenda de El-Rei de Portugal os proventos que anteriormente eram auferidos pelo sultão e pela elite dirigente do sultanato.

2. UM LEGADO EXTRAVAGANTE Uma das ideias mais interessantes que envolvem a tomada de Malaca por Albuquerque é a de que se tratou de algo de definitivo e irreversível, uma “conquista” no sentido comum e geral do termo e que remete, entre outras aceções, para as ações castelhanas no Novo Mundo. Mas há informações que permitem entender a questão de modo distinto. Como ficou dito acima, Afonso de Albuquerque não estava diretamente mandatado pelo rei D. Manuel para tomar a cidade. Mas a euforia manuelina, que rejubilava com o rápido sucesso das armas portuguesas na Ásia e anunciava a queda do sultão do Cairo e a vitória final da Cristandade, não desdenhou uma presa de tal importância e impacto, tanto mais que Malaca vedava o acesso castelhano à região e constituia uma excelente alavanca ao avanço para a China e as Molucas. Pelo contrário, o rei apressou-se a ordenar a redação e publicação de um folheto, em latim e em Itália, que permitisse a divulgação do 21 feito por toda a Europa . Contudo, algumas fontes parecem indicar que D. Manuel terá eventualmente chegado à conclusão de que a manutenção de Malaca se havia tornado pesada e difícil, devido à guerra movida pelo sultão deposto e ao clima de permanente incerteza em que a cidade vivia. Em 1551, Simão Botelho – que seguira para Malaca em 1545 como Vedor da Fazenda – relatava que tanto D. Manuel como D. João III haviam manifestado abertura para que, se Mahmud Syah ou os seus sucessores (sultões de Johor) aceitassem regressar a Malaca, “que lhe deixassem levar todas as fazendas e direitos da terra, e somente tivesse Sua 22 Alteza a fortaleza”, mas que os malaios sempre haviam recusado tal possibilidade . Mais 20

Carta de Rui de Brito Patalim a Afonso de Albuquerque, 5.2.1514, in A. Basílio de Sá (ed.), Documentação para a História do Padroado Português do Oriente – Insulíndia, I, p. 43. 21 Jean Aubin and Luís Filipe Thomaz, “Un opuscule latin sur la prise de Malacca par les Portugais, imprimé en Italie en 1514”, Archipel, 74 (2007), pp. 107-138. 22 Simão Botelho, “Tombo do Estado da Índia”, em R. J. de Lima Felner (ed.), Subsídios para a História da Índia Portuguesa (Lisboa: Academia Real das Ciências, 1868), p. 105.

PINTO, P.J.S. – Uma cabeça sem corpo reflexões em torno da Malaca portuguesa

7

tarde, o cronista Diogo do Couto seria ainda mais claro na descrição das intenções do Venturoso: “depois que o valoroso capitão Afonso de Albuquerque tomou aquela cidade de Malaca a el-rei sultão Mahamed Xá, desejou el-rei D. Manuel em extremo de o restituir à sua cidade, e que ficasse regendo e governando seus vassalos com as rendas da alfândega, porque não queria mais que ter ali uma fortaleza para acarretar dali para a 23 Índia todas as drogas que iam ter de todas as partes do Oriente por modo de comércio” . Houve um momento em que esta possibilidade foi real. Durante a capitania de Pero de Mascarenhas (1525-26), e num período de guerra aberta com o sultão, os portugueses atacaram Bintão, onde este se havia fortificado, e nos anos seguintes germinou e foi discutida a possibilidade de um tratado de paz que não excluía a possibilidade do regresso 24 do sultão (na verdade, do seu filho, pois Mahmud Syah morrera entretanto) a Malaca . Pela mesma altura havia em Portugal quem fosse mais longe e advogasse simplesmente o abandono da cidade. O projeto asiático manuelino, imbuído de um espírito messiânico e milenarista, suscitara grandes reticências – quando não oposição explícita – de boa parte da corte e das elites portuguesas, pouco inclinadas a submeter-se ao dirigismo de um rei triunfante que tentava submeter interesses privados, privilégios e direitos às suas diretivas e iniciativas e cujo sucesso fá-lo-ia emergir claramente acima dos 25 seus pares . O reinado de D. Manuel fora marcado por um permanente braço-de-ferro, de avanços e recuos, entre o monarca e dos seus partidários – entre os quais se contava Albuquerque – , e quem se lhes opunha. Malaca estava associada a D. Manuel e ao governador que a havia tomado pela força das armas; natural era, pois, que, numa época de reformas globais do império como foi a primeira década do reinado de D. João III, houvesse quem defendesse a sua contração e o abandono das posições mais longínquas e incertas. É assim que em 1529, o duque de Bragança, invocando pareceres e opiniões de Vasco da Gama, defendia que Malaca fosse vendida ao sultão de Johor, acompanhando 26 um geral abandono ou destruição das fortalezas, exceto Goa e Cochim . Afonso de Albuquerque não descurou a dimensão diplomática da sua conquista e estava consciente do facto de que Malaca corria o risco do isolamento e era totalmente dependente do exterior, nomeadamente dos mantimentos obtidos em Java, na Birmânia ou noutras regiões. Eis porque atrasou alguns meses o seu regresso à Índia, no decurso dos quais tentou assegurar a continuidade da conquista, não só através da construção de uma fortificação mas também pela sua viabilidade geopolítica. Enviou de imediato embaixadores e mensageiros a diversos reinos e sultanatos vizinhos, com a missão de apaziguar ânimos, acalmar inquietações, atrair mercadores e capitais e garantir a 27 sobrevivência da cidade . Malaca passou a ser uma posição-chave de toda a presença portuguesa a oriente da Índia, não só como base essencial para o comércio, tanto oficial como privado, com o 23

Diogo do Couto, Da Ásia (Lisboa: Liv. Sam Carlos, 1974), Dec. V, liv. IX, cap. III, pp. 315-316. Carta de Jorge Cabral a D. João III, 5.9.1528, em Luís Filipe Thomaz, “O Malogrado Estabelecimento Oficial dos Portugueses em Sunda e a Islamização da Java”, in Luís Filipe Thomaz (ed.), Aquém e Além da Taprobana – estudos luso-orientais à memória de Jean Aubin e Denys Lombard (Lisboa: Centro de História de Além-Mar, 2002), p. 458. 25 Sobre o projeto de D. Manuel, cf. Luís Filipe Thomaz, “A ideia imperial manuelina” em Andréa Doré et al. (eds.), Facetas do Império na História: Conceitos e Métodos (São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008). 26 Carta do Duque de Bragança a D. João III, 12.2.1529, em David Lopes et al. (eds.), Les Sources Inédites de L’Histoire du Maroc (Paris: Paul Geuthner, 1946), II, 2, p. 450. 27 Manuel Lobato, “Malaca”, in A. H. de Oliveira Marques (ed.), História dos Portugueses no Extremo Oriente, (Lisboa: Fundação Oriente, 2000), 1, II, pp. 25-27. 24

8

PORTUGAL E O SUESTE ASIÁTICO: 500 ANOS

arquipélago malaio-indonésio e o Extremo Oriente, mas também como ponto de apoio e de escala à navegação portuguesa e de todas as restantes atividades que dela dependiam – nomeadamente a missionação – , cumprindo deste modo, e plenamente, a sua função de “charneira de três mundos”. Para o Estado da Índia, Malaca funcionava como outra qualquer posição fortificada, com um capitão designado por termos de 3 anos, um pequeno aparelho de feitores, escrivães, juízes e alcaides e uma guarnição militar. Dela dependiam, em termos de apoio logístico e operacional, os fortes nas Molucas – primeiro Ternate, depois Amboino e finalmente Tidore. Mas não deixava de ser uma cidade isolada, deixada à sua mercê sem pontos de apoio, uma vez que os projetos de fixação em regiões vizinhas, a saber, em Pasai e em Sunda, que chegaram a conhecer desenvolvimentos animadores na década de 1520, acabaram por fracassar. Ademais, a localização extravagante da cidade, longe de Goa e do coração do Estado, levou a que cedo se entendesse que as suas especificidades obrigariam a uma rápida adaptação às condições envolventes. Malaca foi, talvez, a mais arrojada herança de Albuquerque, que permitiu a Portugal o domínio sobre uma das grandes cidade mercantis da Ásia das Monções e uma posição privilegiada sobre o que é ainda hoje uma das 28 passagens marítimas mais importantes do mundo – o Estreito de Malaca . Mas a sobrevivência desta posição obrigou a um permanente esforço de gestão e de acomodação, sempre um pouco ao sabor das oportunidades e das condições de cada momento, e a sua evolução foi quase sempre informal, ou seja, dependente de adaptações aos contextos locais, e só raras vezes resultou de políticas definidas em Portugal e aplicadas para todo o Estado da Índia. Uma das características tradicionalmente imputada à governação de Albuquerque foi, sem dúvida, a criação local de um novo estrato social misto, permitido por uma “política de casamentos” que viria a ser tomada como bandeira político-ideológica em tempos bem mais recentes. Na verdade, e ao contrário do modo como agiu em Cochim, Cananor e Goa, Albuquerque nada fez nesse sentido em Malaca, precisamente onde as circunstâncias aconselhariam a rápida emergência de um estrato de casados. Na verdade, Albuquerque limitou-se a reservar um espaço junto à fortaleza com esse fim, na eventualidade de, 29 futuramente, essa política vir a ser seguida . Os casados vieram efetivamente a desempenhar um papel de destaque na vida social e económica de Malaca, mas a sua 30 ascensão foi informal e não ficou a dever-se a qualquer política oficial . Aliás, durante boa parte do século XVI, vigorou em Malaca uma política fiscal desfavorável aos cristãos, que 31 pretendia evitar que os soldados trocassem a vida das armas pelos tratos mercantis . Deste modo, Malaca criou o seu próprio perfil, ao ritmo das conjunturas locais e dos equilíbrios de poder que conseguiu construir junto das potências vizinhas, e que lhe permitiu sobreviver num ambiente difícil. Não deixava, contudo, de ser um edifício de alicerces frágeis; uma cabeça sem corpo. 28

Cf. Paulo Jorge de Sousa Pinto, “Share and Strife – The Strait of Melaka and the Portuguese (16th and 17th centuries)”, Journal of Asian History, no prelo. 29 Carta de Afonso de Albuquerque ao rei, 1.4.1512, em R. A. de Bulhão Pato, Cartas de Afonso de Albuquerque (Lisboa: Academia Real das Ciências de Lisboa, 1884), I, p. 53. 30 Sobre os casados de Malaca, veja-se Paulo Jorge de Sousa Pinto, “Os casados de Malaca, 1511-1641: estratégias de adaptação e de sobrevivência”. História Lusófona, IICT, 2011 [http://www2.iict.pt/archive/ doc/bHL_Ano_VI_10_Paulo_Pinto__Os_casados_de_Malaca__1511-1641__estrategias_de_adaptacao_e_de sobrevivencia.pdf]. 31 Cf. Luís Filipe Thomaz, “Os Portugueses nos Mares da Insulíndia no século XVI”, De Ceuta a Timor (Lisboa: Difel, 1994), p. 574.

PINTO, P.J.S. – Uma cabeça sem corpo reflexões em torno da Malaca portuguesa

9

3. UMA CIDADE FLUTUANTE É legítima a interrogação: se a conquista de Albuquerque foi precipitada, se foi o resultado de um impulso assente num equívoco e em informações distorcidas sobre a realidade local, se as capacidades de reacção e de desafio dos adversários asiáticos foram subestimadas e se não foi possível encontrar uma solução de compromisso para um tratado de paz duradouro, então, como foi possível à cidade permanecer nas mãos dos portugueses durante mais de um século? Uma resposta possível seria: porque estes adaptaram-se rapidamente às práticas locais, aprenderam a jogar habilmente com as ambiguidades, as rivalidades e os interesses das potências vizinhas, fizeram ceder as motivações ideológicas e as posições oficiais da Coroa e do Estado da Índia aos interesses mercantis e ao puro negócio e conseguiram transformar em força algumas das fraquezas de Malaca, nomeadamente a distância de Goa. E, também, porque o acaso e a pura sorte assim decidiram, em alguns momentos. Há, inequivocamente, algo de contraditório e de paradoxal na história de Malaca no século XVI, algo que não pode ser explicado apenas pela contabilidade dos recursos materiais e humanos. História essa que foi, fundamentalmente, uma história de adaptação e de sobrevivência num meio frequentemente hostil, de competição com cidades portuárias rivais que disputavam os mesmos tratos, os mesmos produtos e as mesmas comunidades mercantis. A Malaca portuguesa era uma cidade que não dispunha de bases de apoio próximas, aliados fiáveis e duradouros ou capacidades militares que lhe garantissem a necessária segurança em tempo de crise. Pelo contrário, e num tempo de comunicações lentas e totalmente sujeitas ao ritmo regular das monções, Malaca tinha que esperar pela chegada de armadas de socorro da Índia ou, em certos momentos, do próprio reino. O isolamento e a dependência do exterior, das ligações marítimas, dos abastecimentos nos reinos vizinhos, assim como a percepção da fraqueza estrutural da cidade no contexto regional, levaram à adoção de diversas estratégias de adaptação e de acomodação, de que se podem destacar as seguintes: A procura de um equilíbrio entre os mais directos adversários, ou seja, os sultanatos de Aceh, a oeste, e de Johor, a leste, procurando evitar a todo o custo uma aliança entre ambos, prometendo apoio alternado ora a um, ora a outro, e 32 fomentando e explorando as clivagens e os receios mútuos de parte a parte . Esta estratégia foi eventualmente aplicada a terceiros, nomeadamente o sultanato javanês de Japara, que em 1551 alinhou com Johor num ataque directo a Malaca e na década de 1570 com o Aceh. Um uso controlado da guerra, limitada a acções defensivas e punitivas e sempre num cenário marítimo ou costeiro, destinadas a readquirir o estatuto anterior à situação de crise. Ataques directos e desembarques em terra ocorreram muito excepcionalmente e sempre contra o antigo sultão de Malaca ou seus herdeiros,

32

Paulo Jorge de Sousa Pinto, “Melaka, Johor and Aceh. A bird’s eye view over a Portuguese-Malay triangular balance”, Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, XXXI (1996), pp. 117-121.

10

PORTUGAL E O SUESTE ASIÁTICO: 500 ANOS 33

em Bintang e em Johor . Em nenhuma ocasião houve lugar a expedições de conquista, ocupação permanente de território ou tentativas de repetir o episódio de 1511 numa outra cidade. Houve projectos e pareceres e quem advogasse que seria necessário conquistar o Aceh, que desde a década de 1530 emergiu como o 34 inimigo de Malaca mais persistente, mas nunca houve lugar à sua execução . O desembarque do vice-rei D. Martim Afonso de Castro no Aceh, em 1606, ocorreu numa conjuntura e em circunstâncias absolutamente excepcionais – que não envolviam diretamente o Aceh mas sim a estratégia de expulsão da presença 35 holandesa – e resultou em desastre . Uma diplomacia hábil e vigilante sobre toda a região, integrada numa estratégia que privilegiava a multiplicação dos canais de comunicação e de circulação de informações, entre embaixadas formais, envio e recepção de legados informais e diversificação de agentes diplomáticos, como os capitães da fortaleza, o bispo da cidade, o bendahara ou o tumenggong. Estes cargos vieram gradualmente a perder as funções que lhes haviam sido atribuídas por Afonso de Albuquerque (representantes das comunidades mercantis dos quelins e muçulmanos, respetivamente), e passaram a desempenhar um papel essencialmente diplomático e intermediário com o sultanato de Johor e com as comunidades do 36 Minangkabau estabelecidas no sertão de Malaca . A prioridade concedida ao trato e aos negócios em detrimento de preconceitos ideológicos; ou seja, a procura de contactos e de apoios junto de reinos e unidades políticas não-muçulmanas, que marcou os primeiros tempos da presença portuguesa na região, esbateu-se rapidamente, à medida que o Islão penetrava em Samatra, em Java e na Insulíndia Oriental. Os portugueses foram, assim, obrigados a assumir parcerias e alianças com potências muçulmanas, sem que isso causasse qualquer perturbação ou incómodo. Por outro lado, os preceitos da Contra-Reforma não atingiram a cidade onde, por exemplo, nunca funcionou o Tribunal do Santo Ofício, sendo, portanto, sintomáticas as informações de que Malaca era um refúgio de cristãos-novos (utilizados, aliás, pelos capitães como agentes e feitores) e que o próprio bispo permitia a 37 celebração pública de cerimónias hindus . Malaca dotou-se, assim, de uma maleabilidade e capacidade de adaptação resultantes do isolamento e da distância que a separava da Índia, o que, ironicamente, acabou por funcionar como uma vantagem, uma vez que a situação de quase auto-gestão que marcava o quotidiano da cidade não só concedia um muito maior espaço de manobra para as elites locais e o florescimento dos seus empreendimentos privados, como permitia que fossem adotadas soluções convenientes à situação no terreno, ainda que 33

Nomeadamente em 1526 e em 1587, dois momentos de particular tensão com este sultanato. Paulo Jorge de Sousa Pinto, The Portuguese and the Straits of Melaka, pp. 68-78. 35 Descrição em Fernão de Queirós, História da Vida do Venerável Irmão Pedro de Basto (Lisboa: Miguel Deslandes, 1699), pp. 334-337. 36 Cartas do governador Fernão de Albuquerque ao rei, 18.2.1622 e 20.2.1622, em A. da Silva Rego (ed.), Documentos Remetidos da Índia ou Livros das Monções (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1974), VII, pp. 393 e 407. 37 Carta do vice-rei D. Francisco da Gama ao rei, s.d. [1600], Biblioteca Nacional de Portugal, Reservados, cod. 1976, fl. 131; Carta do ouvidor de Malaca ao rei, 17.12.1588, Archivo General de Simancas, Secretarias Provinciales, liv. 1551, fl. 469v. 34

PINTO, P.J.S. – Uma cabeça sem corpo reflexões em torno da Malaca portuguesa

11

contrariando disposições régias ou ordens emitidas de Goa. Muitas vezes, essas soluções eram encontradas por simples imposição do capitão, que em certas épocas detinham um poder discricionário e quase absoluto e que utilizavam em proveito próprio. E ao capitão não era difícil chegar a acordo com interesses estranhos à cidade, muitas vezes à custa do Erário Régio, das comunidades mercantis que frequentavam a cidade ou dos próprios moradores. De facto, a ampla margem de manobra e liberdade de movimentos de que dispunham os capitães tanto conduzia a frequentes abusos e extorsões, e, portanto, a represálias que não raras vezes colocavam em sério risco a segurança da cidade, como permitia resolver conflitos e obter acordos com os reinos vizinhos. Esta procura de um modus vivendi com o ambiente circundante permitiu, por exemplo, que a certa altura o sultão de Johor criasse uma alfândega no seu porto que captava e fazia divergir o comércio das Molucas e do Extremo Oriente, em detrimento da alfândega de Malaca, com a cumplicidade dos capitães, soldados e moradores da cidade. Uma fonte castelhana que descreve a conjuntura faz eco da resposta do sultão quando interrogado sobre a possibilidade de represálias por parte dos portugueses: respondeu simplesmente que estes eram demasiado gananciosos para lhe moverem guerra e que, se algum dia o fizessem, ele resolveria rapidamente o assunto com subornos de pimenta e 38 cravo . Não deixa de ser curioso que a função exclusivamente portuária e marítima da Malaca portuguesa, sem pontos de apoio na retaguarda, nunca tenha sido considerada como uma fraqueza por cronistas, capitães ou arbitristas que teceram considerações sobre a situação da cidade. Na segunda metade do século, os temas de debate oscilavam entre a neutralização do Aceh, como forma de eliminar a mais directa ameaça à cidade, o projeto de construção de uma fortaleza de apoio – em Muar ou em Singapura – para maior segurança da navegação portuguesa na região e, sobretudo, a necessidade de minimizar as carências e acabar com os abusos e excessos dos capitães, reforçar as defesas e as armadas de vigilância nos Estreitos. Mas ninguém considerou qualquer proposta de dominar territorialmente o sertão ou controlar e submeter os reinos vizinhos. Malaca era uma cidade quase totalmente dependente do exterior, no que toca a mantimentos, como ficou dito acima. Interessa, contudo, salientar que esta fragilidade incorporava a própria matriz do sultanato malaio e que, embora fosse encarada como um sério risco que poderia ameaçar a cidade em caso de cerco (como ocorreu por diversas vezes), foi mantida por opção dos próprios casados da terra, que controlavam este comércio com evidentes ganhos e mantinham os produtos em permanente carestia. Quando na década de 1590 chegaram a Malaca 15 juncos de chineses do Fujian que se propunham cultivar a banda de Hilir para abastecer a cidade, nem o capitão nem os 39 moradores consentiram tal empreendimento . Malaca era, assim, uma espécie de organismo híbrido que, na sua forma exterior, se assemelhava a qualquer outra fortaleza portuguesa mas onde dominavam, na sua lógica de funcionamento, os elementos herdados do sultanato malaio e das práticas políticas e económicas do Sueste Asiático. E se as diferenças com o que se passava na Índia e no Índico Ocidental eram substanciais, os contornos da especificidade da Malaca portuguesa ganham clara nitidez se comparados com o que se passava com Manila e a presença 38

Alvaro de Bolaños Monsalve, “Memorial de las Filipinas y India de Portugal de cosas muy convinientes al real servicio de V. M.”, 24.3.1586, AGI, Filipinas, Patronato, 53, R. 1, fl. 38 v. 39 Jacques de Coutre, “Vida de Jaques de Coutre”, pub. com o nome de Andanzas Asiaticas (Madrid: Ed. Historia 16, 1991), p. 423.

12

PORTUGAL E O SUESTE ASIÁTICO: 500 ANOS

castelhana em paragens vizinhas. De facto, em certos aspectos o contraste não podia ser mais flagrante. Malaca era uma cidade encravada no meio de outras cidades portuárias e localizada num Estreito onde o risco de bloqueio nunca podia ser desprezado, quer a oeste, quer a leste. Manila, pelo contrário, localizava-se numa baía abrigada e não tinha rivais nas suas vizinhanças. Mas era na prática do funcionamento que as diferenças assumiam real contraste: enquanto que a acção dos portugueses era quase exclusivamente mercantil, marítima e costeira, os castelhanos levaram a cabo uma abordagem completamente diferente, resultado da sua própria experiência no Novo Mundo. Manila era efetivamente uma cidade portuária virada para o comércio com a China e o Japão mas, ao mesmo tempo, era a base de um processo, lento mas imparável, de colonização da ilha de Lução e das Visayas, constituindo simultaneamente uma alavanca para vários projectos de conquista, uns nunca concretizados, como Taiwan, o Japão e a própria China, e outros 40 tentados, como foram as expedições ao Bornéu e ao Camboja . Este “modelo castelhano” passou a ser encarado por alguns arbitristas como um exemplo a seguir, integrado em projetos de reforma global do Estado da Índia, mas correspondia a respostas a dar perante desafios que nada tinham a ver com o que fora o cenário decorrido ao longo do século XVI, mas com algo completamente novo que emergiu na viragem do século: a chegada das potências do norte da Europa às águas do Sueste Asiático.

4. EPÍLOGO: DESEQUILÍBRIO E ASFIXIA O panorama traçado nas páginas anteriores entrou em colapso progressivo a partir do momento em que os navios ingleses e, sobretudo, holandeses, fizeram a sua aparição na região. Não foi por acaso que foi precisamente esta a região escolhida para destino das primeiras viagens dos norte-europeus, e onde a VOC holandesa acabou por fixar a sua capital asiática, em Batávia. Era na Ásia do Sueste que se encontravam os produtos de maior valia e, precisamente, onde o poderio naval português era mais débil e as suas capacidades militares limitadas quase exclusivamente a um único ponto, precisamente a cidade de Malaca. Inicialmente apostados em reconhecer rotas, portos e produtos, os holandeses rapidamente organizaram a sua presença na Ásia sob a forma de uma companhia de comércio, bem financiada pelos mercadores da Zelândia, que passou a competir 41 diretamente com os portugueses nos mercados asiáticos . Porém, mais do que o desafio económico, era o confronto naval e militar que estava em causa, uma vez que a transposição da Guerra dos Oitenta Anos, que opunha a Monarquia Católica dos 42 Habsburgos ao rebeldes calvinistas , para o cenário asiático, arrastava o Estado da Índia 43 para um conflito de consequências imprevisíveis . 40

Cf. Paulo Jorge de Sousa Pinto, No Extremo da Redonda Esfera: Relações Luso-Castelhanas na Ásia, 1565-1640 – um ensaio sobre os impérios ibéricos (dissert. de doutoramento, Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2010) , pp. 232-244. 41 Jonathan Israel, Dutch Primacy in World Trade, 1585-1740 (Oxford: Clarendon Press, 1989), pp. 67-73. 42 Cf. Jonathan Israel, La República Holandesa y el Mundo Hispánico, 1606-1661 (Madrid: Nerea, 1997). 43 Leonard Blussé e George Winius. “The Origin and Rhythm of Dutch Aggression against the Estado da India, 1601-1661”, em Teotónio de Souza (ed.), Indo-Portuguese History - Old Issues, New Questions (Nova Deli: Concept Publishing Company, 1985), pp. 73-83.

PINTO, P.J.S. – Uma cabeça sem corpo reflexões em torno da Malaca portuguesa

13

Em 1603, os holandeses fizeram, às portas de Malaca, a sua primeira captura de uma 44 nau portuguesa, no célebre episódio do Santa Catarina . Três anos mais tarde, e no âmbito de uma aliança com o sultanato de Johor, atacaram diretamente Malaca. Embora tenha resistido ao assalto, os efeitos da guerra ao estilo europeu e o grau de devastação foram terríveis para uma cidade já habituada à guerra à moda malaia e perfeitamente impreparada para um embate com tal dimensão e impacto. Porém, foi a transposição para o cenário asiático da guerra naval à moda europeia, com navios mais ligeiros, rápidos e melhor artilhados do que os portugueses, que verdadeiramente teve um efeito de curtocircuito na estrutura funcional portuguesa. No que diz concretamente respeito a Malaca, a competição e agressividade holandesas teve dois efeitos principais. O mais importante foi o de asfixia, uma vez que, tornando mais insegura a navegação portuguesa, fez aumentar consideravelmente o risco de perda de navios, capitais e de mercadorias, ao mesmo tempo que obrigava a uma crescente preocupação e despesa com armadas de patrulhamento e de proteção e fortificação da própria cidade. De perseguidores dos rebeldes de Holanda nas águas do arquipélago malaio-indonésio, com a preparação de grandes armadas destinadas a expulsá-los da região, os portugueses passaram a perseguidos, tentando, à medida que os papéis se invertiam, escapar às malhas da rede naval holandesa mediante a utilização preferencial de navios de remo, mais pequenos e rápidos. Há a apontar igualmente um outro efeito, mais profundo e de erosão mais lenta: o desequilíbrio do precário balanço político-diplomático que Malaca conseguira manter ao longo do século XVI com os reinos vizinhos. Havia agora um concorrente poderoso e hostil na procura de alianças e de acordos de comércio. Malaca perdeu gradualmente a sua capacidade de “fiel da balança” nos conflitos regionais, na qual a sua amizade – ou meutralidade – era anteriormente disputada e que agora estava francamente diminuída a favor da VOC. De facto, o prestígio holandês junto dos sultanatos malaios crescia à medida que os portugueses se mostravam incapazes de suster os seus avanços, garantindo deste modo importantes vantagens diplomáticas e negociais. O resultado global destes dois processos simultâneos foi uma gradual contração e esvaziamento de Malaca, da sua capacidade de atracção do comércio e das diversas comunidades mercantis. As fontes portuguesas registam, por exemplo, que 1615 foi o último ano que se encontrou noz moscada e cravo em Malaca, em quantidades 45 substanciais . Quatro anos mais tarde, em 1619, a VOC instalou-se em Batávia, a partir da qual o novo governador-geral, Jan Pieterzoon Coen, delineou uma estratégia global de assalto às principais linhas de comércio no Índico e de ataque directo às posições portuguesas. Na década de 1630, o governador Antonio van Diemen adotou uma estratégia complementar, mas igualmente eficaz: o bloqueio dos portos portugueses, e de 46 Malaca em particular . Neste processo, Malaca definhou, até cair nas mãos dos holandeses, após cerco prolongado, em 1641, quando era já apenas uma sombra do seu fulgor passado. Não constituía ameaça ao domínio holandês na região, mas apenas um símbolo que, por 44

Peter Borschberg, “The Seizure of the Sta. Catarina Revisited: The Portuguese Empire in Asia, VOC Politics and the Origins of the Dutch-Johor Alliance (1602–c.1616)”, Journal of Southeast Asian Studies, 33, 1 (2002), pp. 31– 62. 45 António Bocarro, Década 13 da História da Índia, (Lisboa: Academia Real das Ciências, 1876), I, p. 461. 46 Holden Furber, Rival Empires of Trade in the Orient, 1600-1800 (Nova Deli: Oxford University Press, 2004), pp. 50-64.

14

PORTUGAL E O SUESTE ASIÁTICO: 500 ANOS 47

questões de prestígio junto dos sultanatos malaios, a VOC necessitava de tomar . A cabeça do corpo inexistente rolou, finalmente, relegando definitivamente Malaca para uma posição secundária. De facto, sob o domínio holandês, a cidade permaneceu sempre uma posição subalterna em relação a Batávia. Mais tarde, e no contexto do tratado angloholandês de 1824, que transferiu a soberania de Malaca para o império britânico, essa subalternização manteve-se, uma vez que o centro nevrálgico dos Straits Settlements britânicos estava já localizado em Singapura.

47

Cf. P. A. Leupe, “The Siege and Capture of Malacca from the Portuguese in 1640–1641: Extracts from the Archives of the Dutch East India Company”, Journal of the Malayan Branch of the Royal Asiatic Society, 14, 1 (1936), pp. 1–178

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.