Uma crítica construtiva ao sindicalismo

June 7, 2017 | Autor: Elisio Estanque | Categoria: Sociology, Trade unionism, Labour Studies
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44 | PÚBLICO, QUA 24 FEV 2016

Uma crítica construtiva ao sindicalismo MIGUEL MANSO

Debate XIII Congresso da CGTP Elísio Estanque, Hermes Augusto Costa pesar da recente mudança de ciclo político no nosso país, a acentuada regressão dos direitos do trabalho e o quase desaparecimento do “emprego digno” — em especial no quadro da UE — são uma realidade que parece irreversível quando se desenham no mundo novas configurações e modelos produtivos marcados pela crescente flexibilidade e vulnerabilidade da classe trabalhadora. Neste contexto, é fundamental prestar atenção às vozes do sindicalismo, que agora se reúnem no XIII Congresso da CGTP. Num momento tão adverso para as condições de trabalho, um sindicalismo combativo e revigorado impõe-se como imperativo para a coesão social. A longa atividade de pesquisa e intervenção cívica que vimos desenvolvendo sobre o mundo do trabalho, muitas vezes em colaboração com dirigentes e quadros sindicais de diversas sensibilidades, cujo diagnóstico crítico tem sido publicado em diversos estudos (veja-se, por exemplo, o livro coletivo O Sindicalismo Português e a Nova Questão Social — crise, consolidação ou renovação? 2011, que contou com a participação de dirigentes e quadros sindicais ligados às duas principais confederações, CGTP e UGT), bem como a visão crítica do atual sistema económico, traduzida em diversos textos e no programa de doutoramento que coordenamos, “Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo” (que vai na sua quinta edição), dão-nos argumentos que nos protegem de qualquer rótulo de “antisindicalismo”, como é costume acontecer sempre que se critica o poder hegemónico na Intersindical. Como cientistas sociais, estamos cientes de que a sociedade e a esfera do trabalho são realidades cada vez mais complexas e que, nessa medida, qualquer perspetiva maniqueísta corresponde a uma simplificação que não ajuda a um diagnóstico sério, e que enfraquece o sindicalismo. A realidade é complexa e o entendimento do mundo atual exige ferramentas adequadas à enorme instabilidade gerada pelo capitalismo desregulado de hoje. Ter consciência disso pressupõe também que nos libertemos de velhos preconceitos e clichés ideológicos forjados num tempo muito diferente do contexto do século XXI em que vivemos. Ora, é justamente porque as estruturas sindicais se apresentam em geral blindadas perante uma atitude de abertura e de “humildade científica” que — como académicos mas também como ativistas

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sindicais e cidadãos — sentimos o dever de consciência de intervir neste debate. Entendemos, pois, que uma crítica (construtiva) do sindicalismo português pressupõe um olhar autónomo em relação às propostas e programas oficiais (seja qual for a tendência em causa) porque só dessa forma se pode contribuir para um conhecimento sociológico rigoroso, capaz de ajudar a fortalecer o campo sindical. E isto aplica-se evidentemente à CGTP, que, em diversas ocasiões, tem comprovado o seu alinhamento incondicional face ao discurso e ao programa do PCP. Em muitos países, diversos ativistas e académicos têm realçado as dificuldades das estruturas sindicais de base nacional, fundadas na era do industrialismo e das soberanias fechadas do Estado-nação, em se ajustarem ao mundo mais instável das redes e dos movimentos de âmbito global. Para além da crítica à burocracia e às lógicas oligárquicas que tendem a instalar-se nos sistemas estáveis, muitos falam da necessidade de uma autêntica “reinvenção” do sindicalismo para que possa adequar-se aos tempos do novo “precariado” e de uma classe média em declínio. A precariedade generalizada de hoje corresponde à “quebra do contrato” fundado no compromisso de classes da Europa do pós-guerra, que abriu caminho ao período mais “glorioso” das conquistas sociais dos trabalhadores. Num tempo de implosão e desaparecimento da velha classe operária, a atual geração de trabalhadores

Num momento tão adverso para as condições de trabalho, um sindicalismo combativo e revigorado impõe-se como imperativo para a coesão social

“proletarizados” — cada vez mais qualificada e cujas subjetividades e modos de vida replicam expectativas e “habitus” com marcas de classe média — já não adere, nem entende, uma retórica sindical que se limite a reproduzir os velhos slogans da “vanguarda operária” dos tempos de Marx e Lenine. Os nossos sindicalistas “de classe” têm dificuldade em compreender que os operários industriais apenas foram maioria da população ativa neste país durante um par de anos a seguir ao 25 de abril. A terciarização da economia arrastou consigo códigos e referências que, ao longo de quatro décadas de democracia, forjaram um universo cognitivo típico de classe média, e isso afastou a maioria da força de trabalho de um discurso gasto e desajustado. Paradoxalmente foram principalmente esses setores profissionais (professores, funcionários públicos, médicos, bancários, profissões estáveis e qualificadas) que mais se sindicalizaram. E fizeram-no porque perceberam que a narrativa em nome da classe operária já não tinha correspondência prática com uma ação coletiva tipicamente corporativista e materialista (prevalecente nesses setores). Nos documentos preparatórios do XIII Congresso continuam a pontificar algumas das orientações de sempre e, como de costume, uma — a nosso ver excessiva — colagem ao PCP. No plano organizativo fala-se na criação de novos métodos de trabalho; em “renovar e rejuvenescer a estrutura”; ampliar e reforçar a rede de delegados sindicais; em formação sindical inicial e contínua; em formas de organização descentralizada/ “casas sindicais com serviços comuns”; dinamizar a “Interjovem” e a Comissão para a Igualdade entre Mulheres e Homens, e da Inter-reformados; melhorar a informação e comunicação sindical, etc. São sem dúvida boas intenções. Mas nota-se que em questões como as desigualdades de género, os direitos das minorias (nomeadamente no campo da orientação sexual e LGBT) ou o domínio

da “Internet” e das redes sociais como potencial fator de consolidação do ativismo sindical, ainda surgem como assuntos secundários ou temas-tabu. É verdade que desde os tempos da liderança de Manuel Carvalho da Silva e já no período recente de intervenção da troika a central mostrou alguma abertura para se aproximar de outros sectores e protagonistas da ação coletiva, nomeadamente os movimentos de precários. Tratou-se porém de gestos pontuais. Na nossa perspetiva as reformas de que o sindicalismo português carece continuam por cumprir: 1. Uma efetiva renovação dos quadros, com maior presença de jovens e mais mulheres no topo; 2. Maior descentralização/ democratização do debate no relacionamento entre as cúpulas e as bases; 3. Mais parcerias e ações concretas com organizações e movimentos não sindicais; 4. Uma aposta efetiva na formação de quadros, através do envolvimento com universidades e entidades independentes; 5. Dinamização do sindicalismo eletrónico, com estímulo ao ativismo do “ciberespaço”; 6. Abertura ao sindicalismo internacional, nomeadamente com a integração na Confederação Sindical Internacional (onde a CGTP não se encontra filiada). Sabemos bem que estas sugestões não resolvem, por si só, os problemas do sindicalismo, até porque o principal se encontra a montante. Ou seja, o mais importante será uma visão estratégica e autónoma das estruturas dirigentes — e isto aplica-se a todo o campo sindical — na busca de um entendimento do mundo fora dos cânones impostos pelas rotinas e “certezas” que as ortodoxias constroem ao longo dos tempos. Enfim, o presente é difícil e o futuro é inquietante. Fica a dúvida se perante um cenário político-parlamentar hoje menos favorável à “luta de massas”, a CGTP se mostrará mais aberta ao “diálogo” ou se continuará a privilegiar a “vigilância” da ação governativa e o combate nas ruas e locais de trabalho. Poderá uma tal opção, a verificar-se, funcionar como elemento de “compensação” da atual “anuência” do PCP face às políticas (a começar pelo Orçamento do Estado) do Governo de António Costa? Acentuar-se-á o combate à União Europeia e a luta pelo regresso da soberania nacional? Vivemos um tempo de incerteza e de recuo do campo sindical. Por isso mesmo, só um sindicalismo mais aberto, renovado e rejuvenescido pode ajudar a abrir perspetivas e a revitalizar esperanças coletivas que invertam a atual tendência. Professores da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Investigadores do Centro de Estudos Sociais e coordenadores do programa de doutoramento em “Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo”.

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