Uma das raízes do mundo da mera aparência.

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UMA DAS RAÍZES DO MUNDO DA MERA APARÊNCIA


Para Tito, já ausente mas sempre presente.

Iraci del Nero da Costa






Ao que parece, de maneira inconsciente, porém com elevado grau de
inconsequência, Orson Welles ao realizar sua teatralização radiofônica
de A Guerra dos Mundos, em 1938, estabeleceu o marco inicial da era em
que ainda nos encontramos imersos, qual seja, a do espetáculo dominado
pela mera aparência e pelo execrável culto narcisístico que perverte
parcela substantiva da humanidade – conspurcando as distintas formas de
expressão de que nos servimos no largo espectro que vai da arte à vida
política –, atingindo, especialmente, solitários seres anódinos
perdidos em seu anonimato do qual procuram fugir buscando a
"celebridade" segundo métodos que percorrem o amplo caminho cujo
nascedouro repousa nas mais diversas atitudes grotescas e cujo ponto
final distingue-se pela dramaticidade envolvida nos recorrentes
suicídios, os quais, por via de regra, veem-se conjugados ao
assassinato de uma ou mais pessoas.

Como se pode concluir, não houve demonstração alguma de uma
refinada inteligência nessa famigerada transmissão ocorrida num momento
em que a radiofonia distinguia-se como o principal meio de difusão das
notícias em tempo real; tratou-se, tão somente, de um mal pensado
engodo pespegado em uma população desprevenida e crédula a qual,
sentindo-se desprotegida, foi presa de imenso pavor em decorrência do
qual algumas pessoas, cujo desespero tornou-se incontrolável, foram
levadas ao suicídio. O autor da encenação, não obstante, tornou-se
muito mais conhecido do que já o era, passou a integrar a galeria das
personalidades famosas e foi tratado por muitos cronistas como detentor
de uma inconteste genialidade.1

Emergiu, assim, um período caracterizado pela total ausência de
princípios e despido de objetivos dignos; depois de sua consolidação
nos vemos cercados por individualistas ávidos por alcançar o ganho
fácil ou que almejam, tão só, "aparecer" a qualquer custo. Com essa
busca desvairada pelos decantados quinze minutos de fama perdeu-se o
norte e ganhou-se o nada.

A projeção desse desprezível mundo novo no meio universitário viu-
se consubstanciada nos conhecidos episódios de plágio, na falsificação
e distorção de dados e, em especial, na asquerosa prática da usurpação
do esforço despendido por orientandos engajados nos programas de
mestrado e de doutorado.2 Em muitas de nossas instituições de ensino
tal apropriação indevida foi consagrada como obrigatória pela própria
burocracia universitária a qual, cinicamente, a justifica alegando ser
ela um meio eficaz de se garantir a qualidade dos estudos
desenvolvidos pelos ditos estudantes.3 Assim, amiudadas vezes deparamo-
nos com artigos e comunicações científicas encimados pelos nomes de
seus reais, efetivos e únicos elaboradores acompanhados pelos nomes de
seus orientadores os quais, em muitos casos, mais grotescos ainda, veem-
se seguidos pelos de vários outros coautores.4

Esta é a regra, dizem mestres e doutores que acabaram de defender
suas dissertações ou teses que, por vezes, como os seus demais estudos,
também são vilmente compartilhadas por terceiros, os quais deveriam
adotar como mandamento maior o respeito absoluto pelo empenho de seus
alunos e a proteção e clara identificação dos verdadeiros autores dos
achados porventura existentes nas aludidas teses e dissertações.

Vergados a uma burocracia absolutamente apartada do autêntico
espírito universitário e de qualquer compromisso com o alargamento e
universalização do "saber pelo saber", tais pessoas, interessadas
apenas em "construir" currículos formais com numerosos itens, não raro
se unem com um alentado número de outros pretensos autores cujo
contributo para a elaboração efetiva dos trabalhos em questão foi
absolutamente nulo, todos a servirem-se da diligência de orientandos
cuja autonomia vê-se manietada dada sua dependência com respeito a seus
mestres.

Chega-se mesmo a encontrar, na deplorável Plataforma Lattes,
casos em que apenas o mestrado e/ou o doutorado são atribuídos
exclusivamente ao autor pesquisado, pois em todos os demais trabalhos
arrolados no "documento" faz-se presente um abundante número de
coautores. Como dizem os entendidos, o trabalho em equipe é uma das
mais expressivas conquistas de nosso mundo acadêmico. Impõem-se aqui a
conclusão de que os solitários e ensimesmados Meneghettis são próprios
de um passado definitivamente superado, pois nos admiráveis dias
correntes nos defrontamos com o flamante e superior ludíbrio
organizado.

Outro efeito deletério da corrida desenfreada em busca do
"sucesso" rapidamente alcançável é dado pelo privilégio emprestado à
aceitação de alunos diretamente nos programas de doutoramento sem
previamente haverem cumprido o curso de mestrado. Este último, como
sabido, foi relegado a um deprimente segundo plano, vendo-se desprezado
tanto por alunos como por instituições acadêmicas, em algumas das
quais, praticamente, foram extintos. Certa vez ouvi de uma colega
responsável por cursos de pós-graduação: "esqueça o mestrado, ele
morreu"!

Ora, se das teses de doutorado espera-se uma contribuição
científica original; do mestrado – sem deixar de lado a exigência de
uma dissertação de qualidade – deve-se esperar, essencialmente, a
formação de um novo pesquisador, apto a formular e desenvolver
integralmente um trabalho de mais largo fôlego. Assim, se o produto
final da tese é um trabalho original, o produto último da dissertação é
o próprio pesquisador. "Queimar etapas" representa, a meu juízo, um
imenso prejuízo imposto não só ao orientando mas, sobretudo, à academia
e ao desenvolvimento harmonioso e seguro do pensamento científico.




NOTAS

1 A proposta de promover a tresloucada teatralização nem sequer foi
original, pois baseou-se em fato verídico, qual seja a transmissão
efetuada por um repórter que relatava, em 1937, a chegada à base de
Lakehurst, em Nova Jersey, do dirigível Hindenburg, o qual, como
sabido, incendiou-se; coube a esse repórter, descrever em tempo real o
drama que se desenrolava ante seus olhos.

2 Sobre esta última questão escrevi uma crônica, divulgada na Internet,
intitulada O plágio é apenas um detalhe.

3 A presença do orientador como garantidor da qualidade dos trabalhos
realizados por seus orientandos poderia ser dada pela exigência de seu
aval, em nota de rodapé, nos estudos e artigos elaborados por seus
pupilos. Por outro lado, caso o orientando, para a confecção de seu
texto, tenha se servido de laboratório ou utilizado qualquer outra
instrumentação pertencente a seu orientador ou por este preparada para
outros fins tal fato deverá constar do texto do orientando com os
devidos esclarecimentos e agradecimentos.

4 Evidentemente, não incluo neste rol os casos em que se dá uma correta
e equilibrada conjugação de esforços de orientandos e seus respectivos
orientadores. Participei pessoalmente de vários trabalhos com esta
característica, ademais, por ter um currículo mais alentado do que o de
meus orientandos ou demais coautores, sempre fiz questão de colocar
seus nomes em primeiro lugar quando da publicação de nossos estudos
conjuntos.
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