UMA ESTREIA NA FICÇÃO PIAUIENSE: RIVANILDO FEITOSA

June 4, 2017 | Autor: F. Filho | Categoria: Literatura brasileira
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UMA ESTREIA NA FICÇÃO PIAUIENSE: RIVANILDO FEITOSA
By Cunha e Silva Filho
 
Leio a última página do romance Reflexões de uma cadela
vira-lata de Rivanildo Feitosa (Rio de Janeiro: Editora Mirabolante,
ilustração de Fernanda Barreto e orelha do escritor piauiense José Ribamar
Garcia,. 2011, 287 p.). Segundo informações que colho da segunda orelha,com
foto do autor, vejo que o estreante atua no meio jornalístico de Teresina,
tem 39 anos e nasceu em Pio XI, Piauí. Nada mais sei sobre o autor.
Costumo afirmar que o Piauí possui um número reduzido de
ficcionistas, mesmo contando com os autores do passado. Portanto, esta é
mais uma razão para que o crítico se sinta estimulado com a presença de
mais um autor no gênero
O último autor piauiense sobre quem escrevi foi o Dílson Lages
com seu romance O morro da casa-grande, mais uma estreia que mereceu os
elogios da crítica. Reflexões de uma cadela vira-lata narra a história de
uma cadela com traços de uma personagem picaresca. Seu nome, Sabiá. Sua
ambição maior: tornar-se uma mulher com todas as qualidades e os defeitos
de uma bela mulher, cuja obsessão que a acompanha está profundamente
enraizada no coito, num ímpeto insaciável que não tem tamanho. Este é o
leitmotif da narrativa. 
De origem desconhecida, desde os primeiros meses de vida
Sabiá vive como andarilha, transpõe limites de municípios e vai dar numa
cidadezinha de estranho nome, chamada Sem Nome, que acredito não existir
senão no universo do imaginário, fica perto de outra cidade piauiense –
Mármore -, que, confesso, não sei se existe no mapa do Piauí ou se o nome é
mais uma invenção do autor.
Ficção, antes de tudo, plena de personagens circunstanciais, a
ponto de o leitor se ver às vezes confuso em nomeá-los e localizá-los no
evoluir da fabulação, a história desta cadela vira-lata que se queria
mulher diante dos homens, sobretudo dessa bem urdida criatura ficcional,
concentra em si todo uma quadro múltiplo da realidade humana, sendo, por
isso, de natureza proteica, ser ambivalente, que, numa comparação
aproximativa, semelha sair da tela de um filme em quadrinhos onde falam e
agem animais de mistura com humanos, de tal sorte que, no conjunto, Sabiá
torna a narrativa permeada não apenas da ficção tradicional, mas sobretudo
de um universo imaginário que mistura harmoniosamente a prosa e a poesia. 
Reflexões de uma cadela vira-lata, excetuando naturalmente seu
aspecto pós-moderno ficcional, não é novidade em termos do aproveitamento
do animal irracional, que, no domínio das literatura de língua portuguesa,
remonta a autores medievais, à fase dos Cancioneiros, a fabulistas da
antiguidade grega e latina, a autores franceses como La Fontaine(1621-
1695) 
A melhor demonstração desse elo não perdido se encontra na alusão
à cadela Baleia, personagem animal magistralmente criado por Graciliano
Ramos (1892-1953), que a ela dedicou todo um capítulo da obra Vidas
secas (1938). Atente-se, a propósito, para a seguinte citação da personagem
Sabiá colada à voz do narrador: " - Vida sofrida inspira livros e novelas -
lembra ainda sem fama nenhuma, somente a de cadela-ladra e saliente."
(p.86)
Fabula? Alegoria? Literatura fantástica? O que seria a narrativa
em questão? Apontaria uma sugestão: é um romance, talvez, em alguns traços,
na linha do que já se está chamando "romance pós-pós", numa referência
aos romances brasileiros publicados a partir dos anos de 1990 (Veja-se o
interessante artigo "O pós-pós: literatura brasileira no século 21", estudo
conjunto de Carina Lessa, Cristina Amorim, Godofredo de Oliveira Neto e
Jorge Marques (JB Ideias, Rio de Janeiro, 03/03/2010).
O romance de Rivanildo Feitosa é uma estreia que, pelos valores
estéticos injetados, mais me impele a considerá-lo um bom lançamento,
principalmente pelo que de virtudes ostenta um escritor iniciante:
domínio imaginativo, linguagem moderna e correta (são poucos os senões nele
observados com respeito ao uso da língua enquanto mero veículo de
comunicação, fora alguns erros de impressão, uso da crase, uso de locução
prepositiva, inadequação entre um determinante e um determinado), manejo
técnico da narrativa que, no caso, só para considerar o dado do emprego do
tempo e do espaço, não sendo linear, se constrói de blocos narrativos, ora
para frente (prolepse) ora para trás (analepse) ou mesmo visto no seu todo,
num presente de enunciação de complexa feitura. 
O tempo, por sua vez, segundo disse, ocorre através de
anacronias, numa narrativa com 52 capítulos (todos com títulos alusivos à
peripécia contada, além de ilustrações geralmente alusivas ao falo),
seguidos de um epílogo, com o qual dá a medida da ruptura temporal e
espacial da obra que, em resumo, reforça os limites do enredo, do
leitmotif da narrativa e do seu objetivo metaficcional, cujo exemplo é a
deslocação do narrador, em toda a extensão da história, da terceira pessoa
para um breve relato em primeira pessoa.(Cf. p.240, capítulo 44), ocupando
os dois últimos parágrafos desse capítulo, estratégia narrativa
funcionando, assim, assim como quebra do ilusionismo narrativo até então
empregado.
Não devo deixar de mencionar o fato de que o título do último
capítulo não vem numerado, mas apenas com um título que sinaliza para as
preocupações do autor com a composição narrativa do romance: "Escrevendo
seu início sem fim", além de finalizar o verso da última página com uma
ilustração de uma mulher nua em posição de um caminhar primitivo próprio
dos irracionais.
De resto, outras ilustrações que constam do livro aludem, como
disse, a cenas de coito ou a imagens fálicas, numa obsessão constante e,
de certa forma, desmesurada nos relatos do texto, sobretudo porque abusa da
caprologia, o que de alguma forma pode causar no leitor algum efeito
negativo em relação ao conjunto do romance. Esse lado erótico da narrativa
de Reflexões de uma cadela vira-lata seguramente agradará a alguns leitores
que cultivam o gosto das cenas de sexo em romances e assuntos
correlacionados com práticas sexuais desviantes como pederastia, onanismo,
sexo grupal.
O que, contudo, salva o romance desse exagero de sexo já
mencionado são os recursos de narrativa de que se valeu o autor, realizando
uma ficção que, antes de tudo, tem compromisso com a sua forma estética,
enfim, com a linguagem escrita em bom e, por vezes, ótimo nível literário,
tal a força de seu poder narrativo, tal a capacidade de infundir suas
páginas de um lirismo poucas vezes encontrado em romances de escritores
brasileiros.
Se esta ficção ganha consideravelmente em dimensões estéticas,
ela igualmente tem o seu lado de narrativa que desnuda o universo social do
interior brasileiro nordestino, fazendo, assim, denúncia às condições
secularmente deploráveis de populações abandonadas pelos poderes públicos.
E isso sem laivos de engajamentos inócuos.
Seus personagens são convincentes, têm alma, têm vida e alguns
deles hão de permanecer, seja pelas suas virtudes, seja pelos defeitos, na
memória do leitores, como o primeiro deles, a cadela Sabiá, um dos
personagens mais bem compostos que tenho visto na ficção brasileira. Sabiá
permanecerá, sim, como Baleia de Graciliano Ramos, como alguns bichos-
personagens de Guimarães Rosa, como o cachorro Quincas Borba do romance
homônimo de Machado de Assis (1839-1908)
As ações de índole picaresca de Sabiá, movimentando-se sempre, se
portando como gente, como mulher sensual e messalina, como uma aventureira
que sai de uma cidadezinha do Nordeste e vai, escondida, de ônibus para a 
Cidade Grande (São Paulo), intromete-se com o baixo meretrício, conhece a
prostituta Margarida, penetra em ambientes mais sofisticados, faz amizade
com um morador de rua, um catador de lixo chamado Josué, imigrante em São
Paulo vindo do Piauí. Sabiá, dessa maneira, como sói acontecer com os
personagens pícaros, topa todas as paradas. Seu objetivo é sobreviver, nem
que seja das sobras, do lixo urbano. Seus sonhos constituem parte
considerável e um dos pontos altos da narrativa. É da passagem da realidade
para o sonho que a linguagem se torna mais artística, mais poética,
beirando a fronteira do mágico ou do fantástico. 
Epicentro de toda a fabulação, Sabiá vivencialmente, constrói
e desconstrói, abusa dos seus descaminhos, dos seus sentimentos díspares,
de suas perplexidades e de suas contradições. Ama e é amada por Zeca
Macho, seu parceiro na normalidade e na metamorfose de lobisomem. Daí
tantos trechos de cenas eróticas, de pantagruélicos excessos de orgasmos.
Sabiá é o mais perfeito protótipo da cadela-mulher, numa simbiose de
erotismo canino e mítico. Seria, pois, a representação mais alta do poder
de despertar o seu descomunal lado sensual-erótico, assim como se observa
na cena histriônico-irônico-erótica do pai do menino Erasmo em que o
defunto põe à vista o seu volumoso falo ereto, lembrando certa fase erótica
de Jorge Amado (1912-2001)
Sua dimensão humana, no plano legendário, também se faz em
vigorosas manifestações de carinho para com alguns seres humanos queridos,
como o menino Erasmo, assim como é admirável o sentimento de carinho e
proteção que, por um tempo, dedicou à cidade Sem Nome, a seus habitantes,
a seus cãe.,. Brincalhona, dançarina, desavergonhada, puta, amante e amada,
vivendo amiúde dos sonhos de ser mulher, de ser atraente para os homens e
os cachorros, faz dessa personagem uma exceção qualitativa na galeria dos
animais que povoam a literatura brasileira..
Isso é muito e a coloca numa narrativa que realça as técnicas e
maestria de um simples estreante no quadro da literatura de autores
piauienses e, por extensão, da literatura brasileira. Só espero que o autor
não fique apenas nesta obra e dê continuidade à aliciante e desalienante
arte de narrar.
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